Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A4040
Nº Convencional: JSTJ00001714
Relator: FERNANDES MAGALHÃES
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
Nº do Documento: SJ200102130040406
Data do Acordão: 02/13/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 0/00
Data: 05/23/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
Sumário : I - Na responsabilidade delitual, o dever, indemnizatório não intervém para proteger nenhuma relação obrigacional pré-existente, a sua função é permitir e regular a reparação dos danos para além de qualquer contexto diferenciado pela relação obrigacional.
II - Assim, a ofensa ao direito à saúde a pessoa transportada provocada por causa alheia ao contrato de transporte não gera responsabilidade contratual e o dever indemnizatório radica na delitual ou aquiliana.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
"A" em 3/11/95 intentou acção ordinária contra Transportes B - Sociedade de Viagens de Peniche, Ldª., e C, Grupo Segurador, MSA., pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de 3.500.000$00 porque enquanto passageiro de um navio da 1ª Ré, sofreu danos pessoais em consequência da colisão entre esse navio e um outro devido a negligência do mestre da embarcação.
O processo correu termos com contestação das Rés, que, além do mais invocaram a prescrição, tendo também a 1ª Ré requerido a intervenção principal provocada da Sociedade D., por ter sido co-responsável pelo sinistro, tendo esta contestado e arguido também a prescrição.
A Autora replicou defendendo-se da deduzida excepção.
Saneado e condensado o processo, realizou-se o julgamento, e, posteriormente, foi proferida sentença a dar por verificada a excepção de prescrição e, consequentemente, a julgar a acção improcedente e a absolver as Rés do pedido.
Inconformada com tal decisão dela interpôs recurso de apelação a Autora, sem êxito, pelo que recorre agora de revista.
E fá-lo mantendo a sua tese de que propôs a presente acção atempadamente, afirmando a sua convicção de que apesar das decisões proferidas nas instâncias declarando extinto o direito continua a ter razão, já que:
1 - A responsabilidade é mesmo contratual e, assim, aquele podia ser exercido enquanto decorresse o prazo de prescrição geral de 20 anos (artº 309º C. Civil), prazo esse que não decorreu, pois, o acidente teve lugar em 25/8/78 e a acção foi proposta em 3/11/95.
2 - A infecção verificada cerca do ano de 1995 e um facto novo, que desencadeia novo prazo de prescrição.
Corridos os vistos cumpre decidir.
Vejamos antes de mais a matéria de facto provada:
- A Ré B aceitou transportar, em 25-8- 78, na embarcação "Cabo Avelar Pessoa", a A., das Berlengas para Peniche, mediante um preço previamente pago por aquela - 1°;
- Na viagem de regresso das Berlengas para Peniche, e entre aquelas e o Cabo Carvoeiro, pelas 20.15 horas, a embarcação "Cabo Avelar Pessoa" colidiu com a traineira de pesca "D", estando o mar bom, mas com nevoeiro denso, o que tomava a visibilidade reduzida - A;
- O comandante E, da "Cabo Avelar Pessoa", sabia que a zona onde navegava era de intenso tráfego marítimo e que nela se exigia uma navegação cuidada e vigilância permanente - B);
- Perto do local onde veio a dar-se a colisão, já na zona de intenso
nevoeiro, apercebeu-se de um eco de radar pela sua linha de proa, a cerca de 1 a 1,5 milhas de distância - C)
- Era a traineira "D" que navegava em sentido oposto, proa a proa - D
- Apesar do referido em C) e D), a "Cabo Avelar Pessoa" prosseguiu em frente, reduzindo apenas para 3/4 da sua força a velocidade da embarcação e não utilizando sinais luminosos nem sonoros de alerta à navegação, limitando-se a pequenas emendas que não alteraram o rumo da colisão - 2°,3°,4° e 5°;
- E, conscientemente, o E deixou que a "Cabo Avelar Pessoa" prosseguisse em trajectória de colisão sem cuidar de reduzir mais a velocidade ou de tomar outros cuidados, de modo que quando avistou a traineira Relíquia, a 20/30 metros, já não pôde evitar a colisão, apesar de ter, então, tentado o uso da marcha à ré - 6° e 7.
- A colisão referida em A) deu-se a BB da "D" e a EB da "Cabo Avelar Pessoa", tendo aquela deslizado por este, de frente para a ré, num espaço de 5 a 6 metros ao longo da tábua de bordo e de talabardão - E);
- Como consequência directa e necessária dessa colisão, os passageiros do "Cabo Avelar Pessoa" foram arremessados descontroladamente uns contra os outros ou contra a própria embarcação - F);
- A A. seguia sentada à frente da "Cabo Avelar Pessoa", e por força da colisão foi projectada com outros passageiros contra a estrutura da embarcação, pelo que sofreu traumatismo da face e do globo ocular esquerdo, com imediato esvaziamento do olho respectivo - 8°, 9° e 10°;
- Para tratamento dessas lesões esteve a A. internada nos hospitais de S. José, Capuchos e Curry Cabral - 11°
- Por isso esteve totalmente incapacitada para o trabalho durante 3 meses (Outubro a Dezembro de 1978), ficando definitivamente com a perda do olho esquerdo e com cicatrizes na face esquerda - 12° e 13°;
- Para manutenção do globo ocular na sua dimensão normal foi o mesmo preenchido por uma prótese de vidro - 14°;
- Desde cerca de 1995, em virtude da prótese de vidro, começaram a manifestar-se na cave orbital esquerda da A. mais frequentes infecções, com ocorrência de secreções muco-purulentas, o que tem causado dores e mal estar contínuos à A. e lhe dificultam o trabalho - 15° e 16°;
- Para limpeza da cavidade ocular esquerda e combate às infecções, a A. tem sido regularmente assistida pelo seu médico oftalmologista e recebido medicação regular - 17°;
- As infecções e secreções referidas na resposta ao quesito 15° apresentam-se com natureza crónica, não se prevendo a sua cura - 19°;
- As infecções e secreções carecem de assistência médica e medicamentosa - 20°.
- As lesões sofridas e as sequelas determinaram para a A., desde a data do acidente, incapacidade parcial definitiva para o trabalho correspondente à perda total do olho esquerdo, incapacidade essa que se vem agravando em consequência do referido na resposta ao quesito 15° - 21º;
- A A. era e é funcionária da Câmara Municipal de Portalegre, auferindo em 3-11-95 106.100$00 - 23° e 23°;
- A Ré C assumiu a responsabilidade pelos danos causados aos passageiros transportados no navio "Cabo Avelar Pessoa" no trajecto Peniche-Berlengas e vice-versa, até ao capital de 100.000$00 por pessoa, conforme apólice de fls. 42 e 43 que se reproduzem - G).
Feita esta enumeração, e, delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações da recorrente, começaremos por dizer que ela carece de razão.
Com efeito, há desde logo que salientar que o facto de a Autora ter celebrado com a Ré B um contrato para ser transportada num navio desta, não significa que todo e qualquer dano que tenha tido lugar na ocasião do transporte deva ter solução jurídica com base nas normas da responsabilidade contratual.
Como também de igual modo se diz na decisão da 1ª instância o ter ocorrido a lesão do direito à saúde da A. na fase do cumprimento do contrato de transporte não é suficiente para descaracterizar o tipo de responsabilidade civil que recai sobre a Ré B, nem impede a aplicação das regras relativas à responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.
E assim, aquela Ré responderá nos mesmos termos em que responderia qualquer outra entidade a quem pudesse ser imputada a ofensa do direito à vida ou à saúde, como tem sido defendido por aqueles que se têm debruçado especificamente sobre a concorrência de institutos de responsabilidade civil.
Anote-se que o instituto da responsabilidade contratual se destina tão só a abarcar situações de cumprimento de obrigações típicas do contrato de transporte, o que não sucede no caso "sub judice" em que a conduta imputável a Ré B não correspondeu a uma mera situação de incumprimento da obrigação de "facere" (transportar a A.), mas sim a uma causa de violação de direitos absolutos na esfera jurídica da A. (saúde e integridade física) - veja-se neste sentido Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso - Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, 1994, pág. 266 que propõe, e utilizando uma nova nomenclatura, a distinção entre danos "extra rem" e danos "circa rem", entendendo que só estes últimos ficam sujeitos ao regime da responsabilidade contratual, já que os outros estão para além do interesse no cumprimento.
E, acrescentando, que os direitos absolutos, como a saúde e a vida, gozam de protecção legal, não necessitando do quadro contratual para da sua violação resultar a responsabilização da contraparte no contrato.
Como também salienta Carneiro da Frada, in Contrato e Deveres de Protecção, 1994, pag. 125 e 126, a responsabilidade obrigacional serve a tutela e a realização das expectativas ligadas à prestação, e o seu fundamento é, ordinariamente, a frustração da promessa de prestação caracteristicamente assumida na auto vinculação contratual, ou seja, a violação da regra "pacta sunt servanda".
Diferentemente na responsabilidade delitual o dever indemnizatório constituído é frequentemente referido como um dever primário de prestação, para assinalar, no fundo, que ele não intervém para proteger nenhuma relação obrigacional pré-existente, o que quer dizer que esta responsabilidade, ao não tutelar posições jurídicas em razão de terem sido ordenadas já nas relações lesante-lesado através de um vinculo creditício, protege em geral certas posições independentes desse mecanismo de atribuição.
À violação da distribuição particular dos bens instaurada pela obrigação, sucede agora, como fundamento de responsabilidade um facto ou comportamento social que afecta a ordenação geral dos bens.
Em suma, não compete ao direito de responsabilidade aquiliana a tutela dos específicos riscos ligados à relação creditícia e ao particular relacionamento entre sujeitos determinados que ela significa.
Sua função é permitir e regular a reparação dos danos para além de qualquer contexto diferenciado pela relação obrigacional, e ao visar-se deste modo o estabelecimento e a salvação de uma ordem geral de coexistência social ela guarda uma estreita relação com aquela função geral do Direito que é a de conseguir a paz jurídica.
Tudo a significar que, contrariamente ao pretendido pela recorrente, se não pode aplicar o prazo ordinário de prescrição de 20 anos, estabelecido no artº 309 C.Civil, estando, portanto, prescrito o direito que ela invoca.
E isto, como é óbvio, também significa que não é de igual modo de sufragar a sua tese de que a infecção verificada cerca do ano de 1995 é um facto novo, que desencadeia novo prazo de prescrição.
Aqui, é momento antes do mais de pôr em destaque, como se fez na sentença da 1ª instância, que não se compreende, efectivamente, como é que a Autora, sem dúvida alguma afectada no seu direito à saúde, no seu direito à realização profissional e pessoal ou no seu direito à imagem, deixou transcorrer 17 anos antes de instaurar contra os responsáveis a presente acção de indemnização.
Embora a A. pudesse não ter conhecimento de toda a extensão dos danos originados no abalroamento dos dois navios, a verdade é que estava logo na posse de elementos suficientes para assegurar a efectiva tutela do seu direito a ser indemnizado pelos danos pessoais de forma a conseguir uma decisão favorável do tribunal.
Teve ela, aliás, oportunidade de formular um pedido genérico que abarcasse todas as consequências que até ao momento se tinha verificado.
E o tribunal teria então elementos suficientes para proferir uma sentença de condenação que ponderasse os danos concretamente apurados ou os que se revelassem previsíveis, mesmo que tivesse de recorrer à, legalmente permitida, equidade, podendo ainda proferir uma sentença de condenação genérica que abrisse as portas ou à posterior quantificação dos danos ou à invocação de outras consequências que, entretanto, viessem a ocorrer, como também se salienta na sentença da 1ª instância.
Adoptou a A., sem motivo razoável, uma postura de passividade inadequada à tutela efectiva dos graves danos que sofreu (ou haverá outras razões que não descortinamos ...), pelo que sofre agora as consequências dela.
E isto também porque resulta da matéria de facto provada que o dano decorrente do acidente de que a A. recorrente foi vitima é um só, embora os seus efeitos se prolonguem no tempo.
Pretende ela que se considere o agravamento do seu estado físico e da sua incapacidade como um novo dano para desencadear um novo prazo de prescrição.
Tal não é de aceitar já que tais sequelas se apresentavam com previsibilidade no momento em que foi colocada a prótese, existindo, assim, inequivocamente o direito da A. ao ressarcimento não apenas dos danos já ocorridos, mas ainda das respectivas sequelas, não se detectando qualquer razão juridicamente válida para um tão longo arrastamento no que respeita ao accionamento dos mecanismos tendentes a obter o seu ressarcimento.
Em suma: não existem na recorrente danos autónomos susceptíveis de serem qualificados como factos novos suficientes para desencadear um novo prazo prescricional, ou que a tivessem impedido de ter exercido anteriormente o seu direito a reclamar uma indemnização.
Por todo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações se decide negar a revista, condenando-se a recorrente nas custas.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2001
Fernandes Magalhães
Tomé de Carvalho
Silva Paixão