Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERNANDES DA SILVA | ||
Descritores: | NULIDADE DE ACÓRDÃO QUESTÃO NOVA JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO DEVER DE LEALDADE FURTO TRABALHO SUPLEMENTAR LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 12/02/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / MODALIDADES DE CONTRATO DE TRABALHO / INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS. DIREITO PROCESSUAL LABORAL - SENTENÇA (NULIDADES). | ||
Doutrina: | - Jorge Leite, in ‘Colectânea de Leis do Trabalho’, Coimbra Editora, 1985, p. 250. - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13.ª Edição, p. 561; 16.ª Edição, Outubro de 2012, p. 473 e seguintes. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 661.º, N.º2, 684.º-A, N.ºS 1 E 2. CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT): - ARTIGO 77.º, N.º1. CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2003: - ARTIGOS 163.º, N.º1, 367.º, 396.º, N.ºS 1 E 2. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 2.2.2006, DE 8.3.2006, PROCESSO N.º 3846/05, CITADO NO DE 18.2.2011, E, AINDA, DE 30.4.2013, PROCESSO N.º 382/09.9TTALM.L1.S1, TODOS EM WWW.DGSI.PT; -DE 12.9.2007 E DE 17.12.2009, EM WWW.DGSI.PT; -DE 22.5.2013, PROCESSO N.º 5164/07.0TTLSB.L1.S1; -DE 26.6.2013, PROCESSO N.º 382/08.6TTVRL.P1.S1; -DE 12.9.2013, PROCESSO N.º 1582/07.1TTLSB.L1.S1. | ||
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Sumário : |
I - Tendo o A. invocado causa petindi complexa, concretamente com (outro) fundamento, diverso e prévio ao da ilicitude do despedimento (o da invalidade do procedimento disciplinar), e não tendo o mesmo sido considerado na decisão da 1.ª Instância, a pretensa nulidade, a ter ocorrido, aconteceu a montante do acórdão impugnado, pelo que competiria ao aí apelado reagir, no âmbito da previsão acautelada no art. 684.º-A, n.ºs 1 e 2 do CPC, requerendo a ampliação do âmbito do recurso, donde, não o tendo feito, encontra-se tal questão subtraída ao conhecimento deste Supremo Tribunal, por constituir uma questão nova. II - O despedimento-sanção, correspondendo à ultima ratio das penas disciplinares, reserva-se aos comportamentos culposos e graves do trabalhador subordinado, violadores de deveres estruturantes da relação, que reclamem um forte juízo de censura, maxime quando a relação de confiança em que assenta o vínculo seja fatalmente atingida, tornando inexigível ao empregador a manutenção do contrato. III - É de afirmar a justa causa para o despedimento – atenta a violação do dever de lealdade por parte do trabalhador, dever que tem subjacente o valor absoluto da honestidade - quando está demonstrado que o trabalhador furtou duas garrafas de vinho do restaurante do seu empregador, onde prestava serviço, levando-as para casa, e aí as consumindo, não relevando, para o efeito, o seu valor pecuniário. IV - Estando demonstrada a prestação de trabalho suplementar por parte do trabalhador, atento o disposto no n.º 2 do art. 661.º do CPC, não há qualquer obstáculo à condenação do empregador em quantia a liquidar em execução, mesmo quando o trabalhador, tendo formulado um pedido específico, não tenha logrado provar o exacto quantitativo em dívida, porquanto esse segundo momento probatório não incide sobre a existência do direito, fundamento do pedido, mas apenas sobre o quantum da condenação. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
1. AA, com os sinais dos Autos, instaurou, em 17.09.2008, no Tribunal do Trabalho do Porto, acção de impugnação do despedimento contra a sociedade «BB – … Ld.ª», pedindo, a final, que seja declarado insubsistente, proferido sem justa causa e ilícito, o despedimento promovido pela Ré e, consequentemente, a condenação desta: a) - No pagamento das retribuições que se vencerem desde a data da propositura da acção e até ao trânsito em julgado da decisão final; b) - No pagamento da quantia de € 52.695,00, a título de indemnização por despedimento sem justa causa, ressarcimento de danos não patrimoniais, retribuição de trabalho suplementar, diuturnidades e férias não gozadas, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal.
Alegou para o efeito, em síntese útil, ter sido admitido, em Janeiro de 1980, ao serviço de seu pai, o qual era dono de um restaurante, sendo que em finais de 2001 passou a trabalhar para a aqui Ré (a qual adquiriu ao pai do A. o referido restaurante), como empregado de mesa. Na sequência da instauração de processo disciplinar, a Ré despediu o Autor, despedimento que é ilícito, por inexistência de justa causa.
A Ré contestou, defendendo a licitude do despedimento e pedindo a condenação do A. como litigante de má fé. O Autor respondeu, pedindo, também, por sua vez, a condenação da Ré como litigante de má fé.
Discutida a causa, proferiu-se sentença a julgar a acção parcialmente procedente, declarando ilícito o despedimento do A. e condenando a Ré a pagar-lhe: - Uma indemnização em substituição da reintegração, correspondente a 30 dias de remuneração-base e diuturnidades por cada ano de serviço (€ 655,50), contada desde Dezembro de 1983 e até ao trânsito em julgado da decisão, ascendendo a parte já vencida à quantia de € 18.354,00; - As retribuições que o A. deixou de auferir em virtude do despedimento, desde 17.09.2008 e até ao trânsito em julgado da sentença, à razão mensal de € 655,50, encontrando-se já vencida a quantia global de € 15.732,00; - A quantia de € 30,00, a título de diuturnidades vencidas e não paga desde 01.01.2007; - A quantia que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença, relativa a 11 horas semanais de trabalho suplementar, prestadas pelo A. durante o ano de 2005, e relativa a 7 horas e meia de trabalho suplementar prestadas pelo Autor a partir de Janeiro de 2006 e até ao seu despedimento; - A quantia de € 21,85, a título de um dia de férias não gozado, das que se venceram no dia 01.01.2007; - Os juros de mora, à taxa de 4%, sobre as referidas quantias, a contarem da citação até integral pagamento.
2. A Ré, inconformada, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que, pelo Acórdão prolatado a fls. 662-686, lhe concedeu parcial provimento. E, revogando a sentença na parte em que declarou ilícito o despedimento do A. e condenou a R. a pagar-lhe os valores correspondentes, acima discriminados, julgou o despedimento lícito, absolvendo a R. de tais pedidos, mais revogando a decisão recorrida …na parte em que condenou a ré a pagar juros de mora a contar ad citação, relativamente à quantia que se apurar em sede de liquidação de sentença, relativa ao trabalho suplementar prestado, e se substitui pelo presente acórdão e, em consequência, se declara que os juros, nesta parte, são devidos nos termos do art. 805.º, n.º 3, 1.ª parte, do Cód. Civil. (Sic). Quanto ao mais, confirmou a sentença recorrida. ___ É o A. – e de seguida a R., subordinadamente – que, irresignado, se rebela contra a deliberação sujeita, mediante a presente Revista, cuja motivação fecha com a formulação destas conclusões: 1.ª - Logo na petição inicial, o Autor, aqui recorrente, protestou a ilicitude e a invalidade do despedimento – arts. 33° a 50° daquele articulado.
2.ª - Reza o art. 415.º do Código do Trabalho, na versão aplicável (cuja identificação doravante omitiremos quando aludirmos a este mesmo diploma): "2 - A decisão deve ser fundamentada e constar de documento escrito. 3 - Na decisão são ponderadas as circunstâncias do caso, a adequação do despedimento à culpabilidade do trabalhador, … não podendo ser invocados factos não constantes da nota de culpa, nem referidos na defesa escrita, salvo se atenuarem ou diminuírem a responsabilidade".
3.ª - Na nota de culpa são imputados os seguintes factos: "1. O Trabalhador, no dia 27 de Novembro, por volta das 15:00h, retirou, sem qualquer autorização da gerência, 2 garrafas pertencentes ao restaurante e levou-as para sua casa, que se situa por cima do local de trabalho. 2. Na mesma hora e local o Trabalhador, sem qualquer razão aparente ou instrução da gerência, foi ao armazém buscar outras duas garrafas, que colocou dentro do balcão frigorífico que está situado no pátio, na parede contígua à cozinha, com o intuito de repor as que tinha retirado do restaurante, de forma a que não se desse pela falta das que tinha retirado anteriormente".
4.ª - Não constam da decisão, discriminadamente, quais os factos imputados ao trabalhador e que, no decurso do processo disciplinar, tenham sido dados como provados.
5.ª - Também não se vê fundamentação, quanto ao apuramento da matéria de facto, que não seja o "prevalecer" das "declarações e depoimentos prestados pelas pessoas inquiridas, sendo, uma delas, o Gerente da Entidade Patronal".
6.ª - O depoimento de um gerente da Ré é inábil para produzir qualquer prova.
7.ª - O único depoimento, de CC, é completamente omisso quanto ao facto de o Autor ter agido sem a autorização da gerência.
8.ª - Na resposta à nota de culpa, o Autor invocou expressamente o conhecimento dos factos por parte da gerência e, nem por isso, foram considerados provados os factos que constam dos pontos 7, 8, 9,11 ou 16 daquela resposta.
9.ª - Nem a ré fundamentou a recusa em ter em conta tal conhecimento pessoal, em violação do disposto no art. 414.º, n.º 1.
10.ª - A entidade patronal conclui que o trabalhador cometeu um crime de furto, sendo que a nota de culpa é completamente omissa quanto à imputação de qualquer facto que consubstancie a intenção ilegítima de fazer seus os objectos que foi acusado de ter levado para casa.
11.ª - A aqui recorrida não discriminou circunstanciadamente todos os factos que vieram a servir de base à decisão ou os que considerou provados, não fundamentou a decisão, não fez qualquer ponderação das circunstâncias do caso, não emitiu qualquer consideração relativamente à adequação da sanção aos factos, não sopesou adequadamente a prova produzida e omitiu a que o trabalhador requerera…
12.ª - E, na conclusão genérica de que estariam "provados todos os factos apresentados na nota de culpa", alguns há acerca dos quais não foi efectuada qualquer prova, designada e principalmente, que o autor agiu sem consentimento da gerência.
13.ª - A ilicitude e invalidade do procedimento resultam do disposto nos arts 429.º, alínea a) e 430.º, n.º 2, alíneas a) a c).
14.ª - Na douta decisão da Primeira Instância, o Meritíssimo Juiz optou por apreciar em primeiro lugar a questão do ponto de vista da sua substância, o que prejudicou a questão da validade formal.
15.ª - Nas suas contra-alegações do recurso de apelação, o autor tornou à questão -ponto 4 e suas conclusões 17.ª a 23.ª.
16.ª - No douto acórdão ora em crise, tal questão não é minimamente abordada em termos de fundamentação, nem proferida qualquer decisão a tal propósito, o que, salvo o devido respeito, entendemos que foi cometida, por omissão, a nulidade prevista no art. 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
17.ª - Cuja arguição aqui fazemos, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo.
18.ª - Tendo presente que a matéria de facto ficou definitivamente assente nos termos do decidido pelo douto acórdão em crise, cremos que fundamentam a decisão de que se recorre os seguintes factos: KK - O Autor retirou duas garrafas de vinho do frigorífico do restaurante, que levou para sua casa, onde as consumiu. AAA – Após o mencionado em KK, ao regressar da sua casa, o Autor foi ao armazém buscar outras duas garrafas que colocou junto do balcão frigorífico que está situado no pátio. DDD - O Autor não tinha autorização da Ré para retirar as duas garrafas do frigorífico e para as levar para casa.
19.ª - Nos termos do disposto no art. 415.º, n.º 3, na decisão não podem ser invocados factos não constantes da nota de culpa nem referidos na defesa, a não ser que atenuem ou diminuam a responsabilidade.
20.ª - Dos reproduzidos na conclusão 18.ª, não constam da nota de culpa: - Que o Autor tenha consumido as garrafas ou o seu conteúdo; - Que as garrafas tivessem vinho ou outro qualquer conteúdo.
21.ª - Se os factos não tiverem podido (como não puderam) sustentar a decisão disciplinar, não poderão também fundamentar decisão judicial pela subsistência do despedimento.
22.ª - A acção de impugnação de despedimento não é apta a produzir prova que, na instância disciplinar, não tenha sido lograda.
23.ª - Por outro lado, como bem nota o Digno Procurador da República junto do Tribunal da Relação, a fls 5 do seu parecer, nos termos do art. 435.º, n.º 3, "o empregador apenas pode invocar factos e fundamentos constantes da decisão de despedimento comunicada ao trabalhador".
24.ª - Pelo que a matéria que pode servir para aferirmos da bondade do despedimento é, tão-somente, a seguinte: - O Autor retirou duas garrafas do frigorífico do restaurante, que levou para sua casa. - Após o mencionado em KK, ao regressar da sua casa, o Autor foi ao armazém buscar outras duas garrafas que colocou junto do balcão frigorífico que está situado no pátio. - O Autor não tinha autorização da Ré para retirar as duas garrafas do frigorífico e para as levar para casa.
25.ª - Como estaria, então, demonstrada a transferência do que quer que fosse da esfera patrimonial da Ré para a do Autor? Onde estaria demonstrada a intenção de apropriação ilegítima?
26.ª - Acresce ainda que, porque no processo disciplinar a ré não provou que o autor não tinha autorização para retirar as garrafas, em bom rigor, tal facto não poderá também ser atendido para a decisão o facto, (mas foi) adicionado à matéria assente pelo douto acórdão em crise.
27.ª - Citando a douta sentença da Primeira Instância, “a Ré fundamentou a decisão de despedimento do Autor única e exclusivamente com base na apropriação por este de duas garrafas pertencentes ao restaurante que levou para sua casa, após o que as substituiu por outras duas garrafas que entretanto foi buscar ao armazém. Tal conduta, no entender da Ré, consubstancia um acto previsto no artigo 396.º, n.º 3, e), do Código do Trabalho, ou seja, lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa”.
28.ª - E o que, nos termos do já invocado n.º 3 do art. 435.º, terá de balizar a apreciação judicial.
29.ª – E essa convicção e tese da Ré são mantidas na sua contestação, como se vê dos seus artigos 12.º a 22.º.
30.ª - Portanto, é claro, o fundamento para a sanção de despedimento não foram quaisquer factos que constituíssem crime de furto, mas, tão-somente, o causar de prejuízo patrimonial sério.
31.ª - É, pois, nessa perspectiva que terá de ser apreciada a bondade da decisão disciplinar, sob pena de se incorrer no vício cominado no art. 415.º, n.º 3, e de se violar a norma do n.º 3 do art. 435.º.
32.ª - Ao direito disciplinar laboral e ao procedimento disciplinar são aplicáveis os princípios e regras do direito e processo criminal.
33.ª - A convolação da qualificação dos factos e os novos factos que nova qualificação implica constituem alteração, substancial ou não substancial, dos factos, o que implicaria a instauração de novo procedimento, a fim de que pudesse haver condenação, ou a sua comunicação ao arguido, com a concessão de prazo de defesa, sob pena de nulidade – arts. 303.º, 358.º, 424.º, n.º 3 e 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
34.ª - Tanto a nota de culpa como a decisão omitem, por completo, a alusão a factos essenciais à qualificação da conduta do autor como constituindo a prática de um crime de furto.
35.ª - Não deixa de ser significativo procurar o que, quanto a factos, pode colher-se dos diversos processos cujos acórdãos são citados pela aqui recorrente nas suas alegações de apelação, para verificarmos, em qualquer deles, um conjunto de factos que denotam a apropriação ou tentativa de apropriação ilegítima.
36.ª - Bem diverso da precária prova que, no nosso caso, o Tribunal da Relação julgou suficiente para concluir pelo ilícito.
37.ª - Do acervo assente nos termos do douto acórdão atentemos nos seguintes factos, conjugando-os com os reproduzidos nas alíneas KK, AAA e DDD: A – Factos das alíneas L a O. Não será adequado ao entendimento do homem médio concluir que, gozando do direito de consumir o vinho em resultado dos termos do contrato de trabalho o poderia fazer também para acompanhar a refeição, na sua casa, situada no piso imediatamente superior do mesmo edifício? B – Factos das alíneas O a S. A forma como o autor agiu, em pleno tempo de funcionamento do estabelecimento, ainda com clientes no local, e não, como poderia ter feito, a horas em que o estabelecimento estivesse encerrado e sem ninguém no seu interior, não é o comportamento do ladrão, mas de alguém que age com tranquilidade e com a convicção de que não comete qualquer acto que lhe seja vedado. C – Factos das alíneas T a V. Sendo instrumentais, mas importantes, permitem-nos, em conjugação com o historial dos autos, configurar fundadamente e com elevado grau de probabilidade, que o gerente da R. preparou esta armadilha para tentar o despedimento do A., livrando-se de um subordinado mais popular e mais conceituado do que ele próprio.
37.ª - Ainda de particular importância para este raciocínio foi julgado assente que o autor não estava autorizado a levar vinho para sua casa, mas não ficou demonstrado o facto positivo correspondente - que estivesse proibido de o fazer.
38.ª - Finalmente, não se diga que tal entendimento do Tribunal recorrido não possa agora ser sindicado por esse Tribunal, uma vez que estamos a apreciar matéria de facto.
39.ª - A intenção de apropriação ilegítima não consta da matéria de facto, mas do conclusivo da decisão e, nessa conformidade, pode ser corrigida. E deve.
40.ª - Sempre salvo o devido respeito, o douto acórdão em crise é violador, entre outras, das disposições dos arts. 411.º, 414.º, n.º 1, 415.º, 429.º, 430.º, 435.º, 436.º e 437.º do Código do Trabalho de 2003, 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, e 303.º, 358.º, 424.º, n.º 3 e 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
Termina pedindo que seja concedido provimento ao presente recurso, com revogação do acórdão em crise, repondo-se em vigor a decisão da 1.ª Instância, com todas as consequências legais, designadamente as pecuniárias, nos termos ali decididos, com prévia baixa, se tal for entendido, para decisão da matéria atinente à invalidade substancial do procedimento disciplinar. __
A R./recorrida contra-alegou, pugnando no sentido de que o ajuizado pela Relação quanto à existência de justa causa para o despedimento não merece censura, devendo manter-se, com a consequente improcedência do recurso deduzido pelo A. E interpôs, do mesmo passo, como se disse já, recurso subordinado, por não se conformar com a decisão na parte relativa à sua condenação no pagamento de trabalho suplementar. Alegando, concluiu, em conformidade: 1. A Douta Decisão em crise entendeu que a prova de que "por determinação da Ré, o Autor estava obrigado ao cumprimento do seguinte horário de trabalho diário, de 2.ª até sábado, inclusive: entrada às 10H30M; saída às 23H; intervalo entre as 15H30M e as 19H30", é suficiente para que se considere prestado trabalho suplementar, sem necessidade de alegação e prova dos concretos dias em que o mesmo foi prestado.
2. Louva-se, nesse seu entendimento, num Acórdão do STJ de 18.02.2011, do qual extraiu o seguinte excerto: "Provando-se na acção a efectiva prestação de trabalho suplementar, mas fracassando a prova dos dias e do número exacto de horas em que o trabalho ocorreu para além do período normal, deve o respectivo apuramento ser relegado para posterior liquidação, ao abrigo do disposto no art. 661.º, n.º 2, do Código de Processo Civil."
3. Da análise deste Acórdão infere-se que a matéria de facto que lhe está subjacente é substancialmente diversa da dos presentes autos.
4. Na verdade, nele se pode ler: " Provou-se que ‘por imposição e no interesse da Ré, a Autora sempre praticou o seguinte horário de trabalho: das 10h às 22h, com uma hora de intervalo para o almoço’. (Sublinhado no original).
5. Existe uma diferença abissal entre a seguinte factualidade: " O A estava obrigado a cumprir o seguinte horário..." (presente caso), e, " O A sempre praticou o seguinte horário..." (situação do Acórdão do STJ).
6. No primeiro caso estamos perante matéria factual que define a existência de uma regra; no segundo caso estamos perante matéria factual que retrata a ocorrência de factos traduzidos na forma como o trabalho foi efectivamente prestado.
7. O A., ao pretender fazer-se valer da sujeição a um horário diário que excedia os limites legais para invocar trabalhado suplementar, tinha o ónus acrescido de ter alegado que efectivamente sempre praticou esse horário, o que não fez.
8. O ónus da prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga competia ao A, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil.
9. Contrariamente ao sustentado pela douta decisão em crise, a jurisprudência do Acórdão do STJ 18.2.2011 não se aplicará aos presentes Autos, pois o quadro factual é substancialmente diverso nas duas situações.
10. A invocação de trabalho suplementar não se basta com a prova da obrigação de cumprimento de um horário que exceda o limite legal, sendo necessário alegar e provar em concreto os dias e as horas em que ele foi prestado, cabendo o ónus da prova ao trabalhador.
11. Não tendo o A. alegado, de forma minimamente concretizada, o efectivo trabalho suplementar alegadamente prestado, inexistem fundamentos de facto para a condenação da R., pelo que deverá ser, nessa parte, revogada a douta decisão em crise.
12. A decisão em crise violou os arts. 198.º e 257.º do Código do Trabalho, bem como o art. 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Termos em que, remata, deverá ser declarado procedente o presente recurso, com a consequente absolvição da R. do pagamento ao A. de trabalhado suplementar. Notificado, o A. não reagiu. __
Já neste Supremo Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu proficiente ‘parecer’ em que concluiu no sentido de dever julgar-se nulo o Acórdão recorrido, com a consequente baixa do processo à Relação, ou, se assim não for entendido e se o mesmo houver de ser decidido já, deve sê-lo a favor do A., na procedência da invocada ilicitude do despedimento por inexistência de justa causa.
Quanto ao recurso interposto pela R., propende para a sua improcedência face à invalidade dos seus argumentos.
Notificado às partes, apenas a R. respondeu, nos termos de fls. 760, a que nos reportamos. __ Observou-se o disposto no art. 657.º, n.º 2, do NCPC, entregando cópias do projecto aos Exm.ºs Juízes-Adjuntos. Cumpre ora conhecer. __
3. – O ‘thema decidendum’. Compulsadas as proposições conclusivas que rematam as motivações recursórias – por onde se afere e delimita, por via de regra, o objecto e âmbito da impugnação – são questões colocadas: - Da nulidade do Acórdão recorrido. - Da invalidade (formal) do procedimento disciplinar. - Da ilicitude do despedimento. - Do trabalho suplementar (recurso subordinado). __
II. Fundamentação
A – De Facto. As Instâncias fixaram a seguinte factualidade: A. Em Dezembro de 1983 o Autor foi admitido ao serviço de DD para desempenhar funções[1] no estabelecimento de restaurante e casa de pasto, sito na Rua ..., n.º …, no Porto. B. O referido estabelecimento era propriedade do referido DD e de sua mulher, EE. C. Nos finais de 2001, foi constituída a sociedade Ré, com sede na mesma morada do estabelecimento comercial e tendo como objecto a indústria de restaurante, café, snack-bar, cervejaria, bebidas e comércio de produtos alimentares. D. Aquando da sua constituição, a Ré adquiriu ao DD e mulher, pelo preço de 2.800.000$00, pago no acto, o estabelecimento comercial identificado em A., aquisição formalizada por contrato de trespasse celebrado em 02.01.2002. E. Desde a data referida em A. e até à data mencionada em G., o Autor sempre exerceu as seguintes funções: - recepção dos clientes quando entravam no estabelecimento e o encaminhamento para a respectiva mesa; - aconselhamento e informação destes relativos aos alimentos e bebidas disponíveis; - recolha dos pedidos e sua transmissão aos serviços da cozinha; - condução dos alimentos e bebidas à mesa onde os clientes se haviam instalado; - elaboração e apresentação da conta, recepção do meio de pagamento e sua entrega na caixa; - recepção de quaisquer reclamações e sua transmissão à entidade patronal; - limpeza, arrumação e preparação das mesas após o serviço. F. Durante todo o período de duração do contrato, o Autor desempenhou as descritas funções com zelo, assiduidade, dedicação e competência. G. O contrato veio a cessar no dia 07.01.2008, por resolução da Ré, com a invocação de justa causa. H. O local da prestação do trabalho do Autor era nas instalações da sede da Ré. I. No dia 11.12.2007, foi remetida ao Autor a carta e nota de culpa juntas, de folhas 25 a 28 dos autos. J. O Autor apresentou a resposta à nota de culpa, junta de folhas 29 a 31 dos autos. K. Com data de 03.01.2008, a Ré remeteu ao Autor a carta e o documento juntos de folhas 32 a 37 dos autos, através do qual lhe comunicou a sua decisão de proceder ao despedimento com invocação de justa causa. L. O Autor, como os restantes trabalhadores, tinha o direito, decorrente do contrato, a tomar o almoço e o jantar no restaurante da entidade patronal. M. O Autor reside na habitação existente por cima do estabelecimento, onde também reside a sua mãe. N. Por vezes, o Autor optava por ir jantar a casa. O. O imóvel no qual o estabelecimento comercial se situava era constituído por rés-do-chão, onde este estava instalado, e um piso superior, que servia de habitação. P. O acesso à habitação, para além da porta da rua, podia fazer-se por uma escadaria existente nas traseiras, a partir de um pátio onde funciona uma esplanada. Q. O Autor tinha a possibilidade de acesso directo e livre ao pátio das traseiras, sendo que só em Julho de 2008 a Ré colocou uma porta na parte inferior dessa escadaria. R. O Autor não usava o acesso referido em P. S. É no pátio mencionado em P. que se encontra o frigorífico, do qual, se quisesse, o Autor poderia retirar o que pretendesse, a qualquer hora em que ninguém estivesse no restaurante. T. O restaurante ‘R...’ é um estabelecimento famoso e tradicional na cidade, que, desde o início da década de quarenta do século passado, foi propriedade da família do Autor e sempre gerido pelos seus membros. U. Ao longo dos anos em que trabalhou no restaurante, o Autor granjeou a estima da maior parte dos seus clientes, por ser afável, eficiente, trabalhador e sabedor do seu ofício. V. Mesmo após a aquisição das quotas da sociedade Ré, que deu origem à gerência actual, vários clientes do restaurante gostavam de ser atendidos pelo Autor. W. À data do despedimento, o Autor auferia a retribuição base de € 650,00 líquidos, recebendo subsídios de férias e de Natal de igual montante. X. A Ré é filiada na ‘UNIHSNOR – União das Empresas de Hotelaria, de Restauração e de Turismo de Portugal’. Y. Por determinação da Ré, o Autor estava obrigado ao cumprimento do seguinte horário de trabalho diário, de 2.ª até sábado, inclusive: entrada às 10H30M; saída às 23H; intervalo entre as 15H30M e as 19H30M. Z. O Autor tinha como único dia de descanso semanal o domingo. AA. Aproximadamente desde o início do ano de 2006, passou o Autor a gozar mais meio-dia de descanso semanal, à 2.ª ou 3.ª-feira, no segundo período. BB. Por várias vezes, nas noites de fins-de-semana e de vésperas de feriados, o Autor trabalhou até às 24 horas e até à 1 hora da manhã do dia seguinte. CC. A Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de trabalho suplementar. DD. O Autor gozou 15 dias de férias nos meses de Janeiro dos anos de 2005, 2006 e 2007, e iguais períodos nos meses de Julho de 2005 e Julho de 2006. EE. No ano de 2007, o Autor foi suspenso aquando da notificação da nota de culpa remetida com data de 11 de Dezembro. FF. Nunca foi paga ao Autor qualquer diuturnidade. GG. O Autor esteve de férias entre os dias 1 e 15 de Outubro de 2007, tendo então gozado apenas 10 dias úteis. HH. Tendo sobrevindo a suspensão imposta e o posterior despedimento, acabou o Autor por não gozar os demais dias de férias a que tinha direito. II. A Ré foi constituída em 20.11.2001, através de escritura pública, tendo sido seus sócios fundadores o Autor e a sua cunhada FF. JJ. Após a constituição da Ré, o Autor exerceu as funções de gerente desta e foi remunerado como tal desde Dezembro de 2001 até Dezembro de 2006. KK. O Autor retirou duas garrafas de vinho do frigorífico do restaurante, que levou para sua casa, onde as consumiu. LL. Em 16.07.2004 o Autor cedeu a sua quota na Ré a GG. MM. Após a cessão mencionada em LL., o estabelecimento esteve encerrado para obras, apenas tendo reaberto no ano de 2005. NN. Nos dias em que o Autor não jantasse no restaurante estava autorizado a apresentar-se ao serviço às 19H30M. OO. Só muito raras vezes é que o Autor deixou de jantar no restaurante. PP. Nas relações de trabalhadores apresentadas pela Ré ao Ministério da Segurança Social e do Trabalho, relativas aos anos de 2003 a 2007, todos os trabalhadores da Ré constam como tendo sido admitidos em data posterior à da sua constituição. QQ. DD faleceu no dia 14.05.2004. RR. A efectiva gestão do estabelecimento nunca deixou de estar atribuída ao pai do Autor, o qual agia como dono efectivo do estabelecimento, e que, como tal, era tido por todos, empregados, clientes e fornecedores. SS. A atribuição formal da qualidade de sócios aos outorgantes da escritura mencionada em II. e a de gerente ao Autor deveu-se ao estado de saúde debilitado de DD, fustigado, havia muito, por doença do foro oncológico. TT. Após a celebração do contrato mencionado em II., a gerência do estabelecimento foi assumida por GG. UU. Desde a data mencionada em A. e até poucos dias antes do falecimento do pai do Autor, era este último quem incumbia directamente o Autor de exercer as funções referidas em E. VV. Durante o período mencionado em UU. o Autor cumpria o horário que lhe era imposto pela sua entidade patronal e obedecia em tudo às ordens e instruções que por esta lhe eram dadas, tomava as refeições no restaurante com o restante pessoal e, normalmente, com os seus colegas e recebia mensalmente o seu ordenado. WW. Durante esse mesmo período de tempo, nada distinguia a actividade profissional do Autor da dos outros empregados de mesa que a casa teve sucessivamente – HH e II – aos quais o Autor não dava ordens. XX. Durante esse período de tempo, o pai do Autor vigiava e fiscalizava o trabalho deste como fazia com os demais trabalhadores, verificando se todas as funções descritas em E. eram exercidas pelo Autor, a contento, chamando-lhe a atenção, mandando corrigir falhas e verberando as incorrecções que encontrava. YY. O Autor tem um irmão que fez vida profissional alheia ao estabelecimento. ZZ. A doença que afectou o pai do Autor nunca o impediu de gerir o estabelecimento, salvo desde poucos dias antes da sua morte, quando foi internado. AAA. Após o mencionado em KK., ao regressar da sua casa, o Autor foi ao armazém buscar duas outras garrafas que colocou dentro do balcão frigorífico que está situado no pátio. BBB[2]. Da nota de culpa remetida ao Autor consta o seguinte: “1. O trabalhador, no dia 27 de Novembro, por volta das 15H00, retirou, sem qualquer autorização da gerência, 2 garrafas pertencentes ao restaurante e levou-as para sua casa que se situa por cima do local de trabalho. 2. Na mesma hora e local o trabalhador, sem qualquer razão aparente ou instrução da gerência, foi ao armazém buscar outras duas garrafas, que colocou dentro do balcão frigorífico que está situado no pátio, na parede contígua à cozinha, com o intuito de repor as que tinha retirado do restaurante, de forma a que não se desse pela falta das que tinha retirado anteriormente. Os factos descritos, dada a sua gravidade, e as consequências deles resultantes, denotam que o trabalhador terá agido em violação dos deveres a que está obrigado, nomeadamente pelo «furto» de duas garrafas de vinho pertencentes ao restaurante”. CCC[3]. Em 30.11.2007 a Ré ordenou a instauração de processo disciplinar contra o Autor. DDD[4]. O Autor não tinha autorização da Ré para retirar as duas garrafas do frigorífico e para as levar para casa. __
A factualidade estabelecida pelo Tribunal recorrido não vem questionada. Não se prefigurando situação susceptível de preencher o condicionalismo a que ora alude o n.º 3 do art. 682.º do NCPC (anterior n.º 3 do art. 729.º), será com base nos factos descritos que hão-de resolver-se as questões suscitadas na presente Revista. __
B – Enquadramento normativo.
B.1 – Do recurso do A. A deliberação sub specie, dissentindo da solução alcançada na sentença que sindicou, no que concretamente concerne à qualificação jurídica do despedimento, julgou-o lícito e absolveu a R. dos correspondentes pedidos.
A questão axial que nos vem proposta – assim expressamente delimitada no exórdio da motivação – é apenas a relativa à existência ou não de justa causa.
Todavia, o recorrente insurge-se, antes de mais, contra a circunstância de não se ter conhecido da oportunamente suscitada ilicitude e invalidade do procedimento disciplinar (arts. 429.º, a) e 430.º, n.º 2, alíneas a) e b), ambos do Código do Trabalho/2003), tendo o julgador da 1.ª Instância optado …por apreciar em primeiro lugar a questão do ponto de vista da sua substância, o que prejudicou a questão da validade formal. Não obstante a questão não ter sido objecto da apelação – prossegue – o A. referiu-a nas contra-alegações, mas o Acórdão revidendo não abordou a matéria, o que, constitui, na sua perspectiva, a nulidade prevista no art. 668.º, n.º 1, d), do C.P.C., que ora expressamente suscita.
Vejamos, então, antes de prosseguir, estas duas subquestões.
B.1.1 – Da nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia.
A dedução da pretensa nulidade não respeitou a disciplina prevista no art. 77.º/1 do C.P.T. (a arguição de nulidades é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso), regra aplicável, como é pacificamente firmado, aos acórdãos da Relação. Não pode ora, por isso, ser como tal considerada. __
B.1.2 – Da invalidade formal do procedimento disciplinar.
Como se nos afigura meridianamente claro, esta argumentação é claudicante.
Com efeito, tendo o A. invocado, como diz, causa petindi complexa, concretamente com (outro) fundamento, diverso e prévio ao da ilicitude do despedimento (:o da falada invalidade do procedimento disciplinar), e não tendo o mesmo sido considerado na decisão da 1.ª Instância – que …optou por apreciar em primeiro lugar a questão do ponto de vista da sua substância…pelo que prejudicada ficou aquela questão, usando as suas palavras, sic, a fls. 695 –, a referida omissão, a ter ocorrido, aconteceu a montante do Acórdão ora impugnado.
Assim, competiria ao aí apelado reagir, no âmbito da previsão acautelada no art. 684.º-A, n.ºs 1 e 2, do C.P.C., (na versão então vigente), que injuntivamente estatui, sob a epígrafe “Ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido”, que, para além de poder (dever) ser arguida, do mesmo passo, a nulidade da sentença, [n]o caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o Tribunal de recurso conhecerá do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
Como se constata, o Acórdão revidendo não versou (…não tinha que o fazer) a referida questão, que não lhe foi colocada em termos técnico-jurídicos atendíveis. Tal problemática não faz parte do objecto da deliberação sub judicio, apresentando-se-nos essa matéria como uma questão nova, de que não pode conhecer--se. Como é consabido, os recursos, sendo meios de impugnação, visam a reapreciação (e eventual modificação/revogação) de decisões judiciais, e não a produção de decisões sobre matéria nova, salvo quanto às temáticas de conhecimento oficioso, situação esta que, no caso, não ocorre.
Soçobram, por isso, as correspondentes proposições conclusivas. __
B.1.3 – Da justa causa.
Admitindo expressamente que a matéria de facto ficou definitivamente assente nos termos decididos no Acórdão impugnado (…nesta fase, é inatacável a decisão do Tribunal a quo relativamente à matéria de facto), o recorrente alinha, como suporte que crê ser o fundamento da deliberação de que recorre, a seguinte materialidade: - O Autor retirou duas garrafas de vinho do frigorífico do restaurante, que levou para sua casa, onde as consumiu (KK); - Após o mencionado em KK, ao regressar da sua casa, o A. foi ao armazém buscar outras duas garrafas que colocou junto do balcão frigorífico que esta situado no pátio (AAA); - O Autor não tinha autorização da Ré para retirar as duas garrafas do frigorífico e para as levar para casa (DDD).
Não obstante, explana depois a tese seguinte, imbricada na questão (ultrapassada) dos falados vícios de forma do procedimento disciplinar, em cujos termos a R. não teria discriminado circunstanciadamente todos os factos que vieram a servir de base à respectiva decisão, inadequadamente fundamentada, referindo-se em concreto a omissões de facto na nota de culpa, que pretende sejam havidos como relevantes, tais como …que o A. tenha consumido as garrafas ou o seu conteúdo …ou que …as garrafas tivessem vinho ou outro qualquer conteúdo.
E, em desenvolvimento desta argumentação, adianta o entendimento de que, assim, não pode sustentar-se o preenchimento dos elementos típicos do crime de furto, questionando onde está demonstrada a transferência do que quer que seja da esfera patrimonial da Ré para a do Autor …ou a tentativa de apropriação ilegítima… …Visando, afinal, a reposição do juízo da 1.ª Instância, que concluiu pela ilicitude do despedimento, com as respectivas consequências, designadamente as pecuniárias, nos termos aí decididos.
Tudo visto: Sem menoscabo pelo empenho destas e das demais razões afins, adrede convocadas (…fala-se também, v.g., em convolação da qualificação dos factos – furto vs. lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa -, pois que a nova qualificação implicaria alteração substancial ou não substancial dos mesmos, sendo que, esgotado que foi o procedimento disciplinar, não pode tal alteração, conclui, ser provocada nestes autos), diremos que é vão ou nulo o seu alcance, atento o fim último da operação que nos ocupa.
Na verdade, estas considerações, qual tarefa de Sísifo, irrelevam, de todo, para o concreto efeito da subsunção do factualizado comportamento do arguido ao conceito de justa causa disciplinar, onde a única preocupação e finalidade é a de valorar jurídica/axiologicamente a actuação (culposa) do agente e ponderar acerca da sua gravidade e consequências na subsistência da relação juslaboral.
Já importará, sim, de algum modo e em alguma medida, acompanhar, na subsequência, o exercício desenvolvido de conjugação dos factos, alguns embora instrumentais, elencados na FF[5] sob L. a V., com os atrás reproduzidos sob as alíneas KK, AAA e DDD. Não deixaremos de o fazer adiante, ainda que de modo breve. __
Tendo como referencial de subsunção a noção de justa causa de despedimento constante do transcrito art. 396.º/1 do Código do Trabalho de 2003 (‘O comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, constitui justa causa de despedimento’), o Acórdão apreciando – depois de aludir à alegação da recorrente no sentido de que tendo-se concluído pela ilicitude da conduta do A., se deveria ter igualmente concluído pela existência de justa causa, em consonância com o entendimento de vasta jurisprudência que tem considerado que, independentemente do valor subtraído, fica definitivamente prejudicada a relação de confiança e lealdade essenciais à manutenção da relação de trabalho – alicerçou a solução eleita (a licitude do despedimento) nas considerações seguintes, que se relembram na sua concisão e sobriedade: “Tendo em conta a matéria de facto dada como provada, podemos concluir que o A. incorreu na prática de um crime de furto, previsto e punido pelo art. 203.º, n.º 1, do Código Penal e, consequentemente, violou os deveres de fidelidade e lealdade/probidade previstos nas alíneas a) e e) do n.º 1 do art. 121.º do Código do Trabalho/2003, a determinar que a sua conduta é grave e culposa.” (…) Quer a doutrina, quer a Jurisprudência, sempre entenderam – já na vigência do Decreto-Lei n.º 372-A/75 e, posteriormente, do Decreto-Lei n.º 64-A/89 – que a subtracção (o furto) de bens pertencentes à empregadora configura a violação do dever de fidelidade, independentemente do valor subtraído, a justificar o despedimento, na medida em que fica irremediavelmente perdida a confiança da entidade patronal no trabalhador – cfr. Carlos Alberto Morais Antunes/Amadeu Ribeiro Guerra, em ‘Despedimentos’, pg. 101; António II Motta Veiga, em ‘Lições de Direito do Trabalho’, 6.ª edição, pg. 540; Menezes Cordeiro, em ‘Manual de Direito do Trabalho’, pgs. 826-827, e a abundante jurisprudência citada por Pedro Furtado Martins, em ‘Cessação do Contrato de Trabalho, pg. 175 e também os Acórdãos do S.T.J. de 15.3.2003 e de 18.4.2007, na CJ/Acórdãos do S.T.J., Tomo I, ano 2003, pg. 245, e Tomo II, ano 2007, pg. 251, respectivamente. E nenhuma razão existe para não seguir tal entendimento. É certo que se desconhece qual o prejuízo da Ré. No entanto, tal factor é irrelevante para o caso concreto, já que, e como referido, em causa está a perda de confiança por parte do empregador. Assim sendo, verifica-se, no caso em análise, a justa causa de despedimento. Por isso, não pode a sentença recorrida manter-se na parte em que considerou o despedimento do A. ilícito e condenou a Ré a pagar a indemnização em substituição da reintegração e as retribuições a que alude o art. 437.º do CT/2003.”
Como é pacífica e reiteradamente proclamado, o despedimento‑sanção, correspondendo à ultima ratio das penas disciplinares, reserva-se aos comportamentos culposos e graves do trabalhador subordinado, violadores de deveres estruturantes da relação, que reclamem um forte juízo de censura, maxime quando a relação de confiança em que assenta o vínculo seja fatalmente atingida, tornando inexigível ao empregador a manutenção do contrato.
A impossibilidade prática da subsistência da relação juslaboral é um conceito normativo-objectivo[6], impossibilidade perspectivada enquanto inexigibilidade da sua constância, que se preenche com um comportamento que atinge, de modo irreparável, o suporte psicológico da relação, a confiança, o dever de lealdade, na sua faceta subjectiva, criando, irreversivelmente, a dúvida, no espírito do empregador, sobre a idoneidade da conduta futura do trabalhador arguido.
Na respectiva apreciação, para além das circunstâncias que se mostrem particularmente relevantes no caso concreto, ponderam-se, com objectividade e razoabilidade, os factores a que alude o n.º 2 do art. 396.º, aferindo-se a final a gravidade do comportamento em função do grau de culpa e da ilicitude, como é regra do direito sancionatório, nela incluído necessariamente o princípio da proporcionalidade, convocado aquando da selecção da sanção disciplinar tida por adequada – art. 367.º.
O despedimento-sanção é, em suma, a solução postulada sempre que, na análise diferencial concreta dos interesses em presença, se conclua – num juízo de probabilidade/prognose sobre a viabilidade do vínculo, basicamente dirigido ao suporte psicológico e fiduciário que a interacção relacional pressupõe – que a permanência do contrato constitui objectivamente uma insuportável e injusta imposição ao empregador, ferindo, desmesurada e violentamente, a sensibilidade e liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do real empregador[7].
É sob o enfoque destas coordenadas basilares, delimitativas do quadro normativo de referência, que se pondera axiologicamente o caso sujeito, ao encontro da solução que temos por consentânea.
Tudo sopesado, não podemos deixar de secundar a deliberação sob protesto – adiantamo-lo desde já, sem embargo do reconhecido melindre do caso –, que interpretou judiciosamente a factualidade relevante, à luz da dilucidada dimensão normativa da noção de justa causa de despedimento.
Como é repetidamente proclamado na Jurisprudência deste Supremo Tribunal[8], a subtracção de um objecto/bem ou valor do empregador, por parte de um seu trabalhador dependente, constitui violação do dever de lealdade, correspondente a uma obrigação acessória de conduta conexionada com a boa fé, que tem subjacente o valor absoluto da honestidade, e, porque assim, em pouco ou nada releva o montante/valor concreto da apropriação. Daí que, como também em uníssono se entende, não releve o prejuízo efectivo no património do empregador.
Determinante é, antes, a afectação, ofensa ou quebra da infrangível confiança na pessoa do trabalhador, cuja factualizada actuação fundamenta, no caso, a pertinente dúvida sobre a idoneidade da sua conduta futura[9]: O A. retirou duas garrafas de vinho do frigorífico do restaurante da R., onde prestava serviço, levando-as para casa, onde as consumiu. Regressado da sua casa, o A. foi ao armazém buscar duas outras garrafas, que colocou dentro do balcão frigorífico que está situado no pátio. O A. não tinha autorização da Ré para retirar as duas garrafas do frigorífico e para as levar para casa.
Num novo contexto relacional, com marcantes antecedentes históricos – …filho do anterior proprietário do estabelecimento e sócio fundador da sociedade Ré, constituída em Novembro de 2001, adquirente do estabelecimento, por contrato de trespasse, em 2.1.2002, nela tendo o A. exercido funções de gerente, com posterior cedência da sua quota na Ré, em 16.7.2004, a GG, que desde então assumiu a respectiva gerência, ut items de facto de A. a F.; II.; JJ.; LL. e QQ. a TT. –, o A., como tudo sugeria e se concederá, deveria ter interiorizado, por cautela, que a sua actuação/estatuto no estabelecimento se alterara entretanto, substancialmente, o que lhe recomendava, no mínimo, uma conduta cautelosa/insuspeita perante a diversa realidade empresarial.
Daí que, ao contrário do que ora sustenta, nenhuma das razões aduzidas baste, ante os factos acima sublinhados, por si e enquanto tal, para legitimar o seu comportamento. Com efeito: Não o justificam, numa relação de infra-ordenação, à luz do padrão convencional do homem médio/’bonus paterfamilias’, a liberdade ou facilidade de movimentos de que desfrutava, nomeadamente a circunstância de permanecer há muito no estabelecimento, residir na habitação por cima do estabelecimento, ter a estima dos clientes, nem o direito contratual de tomar o almoço e/ou o jantar no restaurante do seu empregador…e de acompanhar a refeição com vinho; e, menos, contrariamente ao por si alegado, o acesso directo do local de trabalho à sua residência, através da escadaria existente nas traseiras, a partir de um pátio onde funcionava uma esplanada do restaurante, situação esta a demandar até um maior cuidado, para que ficasse a coberto de qualquer suspeição acerca da sua idoneidade.
Violando o dever de lealdade, e ferindo letalmente, nos sobreditos termos, a estruturante relação de confiança, não é razoável impor ao empregador a manutenção do vínculo contratual em causa. Bem se ajuizou, pois. __
B.2 – Do recurso (subordinado) da Ré. Insurgindo-se contra o segmento do Acórdão que manteve a sua condenação no pagamento ao A. do trabalho suplementar prestado, a liquidar posteriormente, a recorrente aduz, como razão maior, que não tendo o A. alegado, de forma minimamente concretizada, o efectivo trabalho suplementar que realizou, inexistem fundamentos de facto para a condenação da R.
Não se discutindo que o ónus da prova da prestação do trabalho suplementar impende sobre o trabalhador/A., o problema consiste em saber primordialmente – conforme entendimento que se vem sustentando nesta Secção – se o reclamado direito existe, ou seja, se realmente houve prestação de trabalho fora/para além do respectivo horário, cujo pagamento se pede. Se sim, se demonstrada a existência da obrigação, faz todo o sentido que a quantificação do direito a tal pagamento possa ser apurada no subsequente incidente de liquidação[10].
Relativamente à latitude da previsão constante do n.º 2 do art. 661.º do C.P.C. (Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado…), esta 4.ª Secção do S.T.J., sem embargo da reconhecida existência de alguma hesitação e divergência na sua interpretação, vem acolhendo, nos últimos tempos e de modo uniforme, o entendimento de que, numa compreensão da norma dita mais lata – …e que não vemos motivo para abandonar –, reconhecida a existência do reclamado direito, não há qualquer obstáculo à condenação do réu em quantia a liquidar em execução, mesmo quando o A., tendo formulado um pedido específico, não tenha logrado provar o exacto quantitativo em dívida.
Esse segundo momento probatório não incide sobre a existência do direito, fundamento do pedido, mas apenas sobre o ‘quantum’ da condenação. (Vejam-se, na peugada do paradigmático Acórdão de 2.2.2006, os Acórdãos de 8.3.2006, na Revista n.º 3846/05, citado no de 18.2.2011, e ainda o de 30.4.2013, prolatado na Revista n.º 382/09.9TTALM.L1.S1, todos in www.dgsi.pt, além da recensão jurisprudencial recentemente alinhada no Acórdão de 22 de Maio do corrente ano, na Revista n.º 5164/07.0TTLSB.L1.S1).
Isto posto. Alega concretamente a recorrente que apenas resulta da economia dos factos retidos que o A. cumpria o horário imposto pela entidade empregadora até 2004, mas não se provou que assim continuou a ser posteriormente a essa data. Tratando a questão, discreteou-se a propósito no Acórdão em apreciação: (…) «Na petição inicial o A. indicou o horário de trabalho que lhe foi estabelecido pela Ré, alegando que o mesmo ultrapassava a duração diária de oito horas e a duração semanal de 40 horas, concluindo que todo o trabalho prestado para além desses limites é trabalho suplementar (trabalhou uma hora por dia a mais, cinco horas por semana a mais e uma hora a mais em cada sexta-feira e sábado). Reclamou o A. o pagamento do trabalho suplementar a partir de Dezembro de 2004 (art. 108.º da petição). Provou-se que: Y. Por determinação da R., o A. estava obrigado ao cumprimento do seguinte horário de trabalho diário, de 2.ª até sábado, inclusive: entrada às 10:30 horas; saída às 23:00 horas; intervalo entre as 15:30 horas e as 19:30 horas; Z. O A. tinha como único dia de descanso semanal o domingo; AA. Aproximadamente desde o início do ano de 2006, passou o A. a gozar mais meio-‑dia de descanso semanal, à 2.ª ou 3.ª feira, no segundo período; BB. Por várias vezes, nas noites de fins-de-semana e véspera de feriados, o A. trabalhou até às 24:00 horas e até à 1 hora da manhã do dia seguinte.
Ora, a matéria de facto acabada de descrever é suficiente para que se considere prestado trabalho suplementar, sem necessidade de alegação e prova dos concretos dias em que o mesmo foi prestado. Acresce que, e como é natural, poderia o A. não ter trabalhado em determinados dias, designadamente feriados, no gozo de férias e por força de faltas dadas. No entanto, tal determina apenas a remessa para liquidação posterior do cálculo do trabalho suplementar. Neste sentido decidiu o Acórdão do S.T.J. de 18.2.2011 e cujo sumário, na parte que interessa, é o seguinte: (…) “ Provando-se na acção a efectiva prestação de trabalho suplementar, mas fracassando a prova dos dias e do número exacto de horas em que o trabalho ocorreu para além do período normal, deve o respectivo apuramento ser relegado para posterior liquidação, ao abrigo do disposto no art. 661.º, n.º 2, do C.P.C.” – publicado na CJ/Acórdãos do S.T.J., ano 2011, Tomo I, pg. 257.»
Ante o que vem factualizado e a previsão normativa de subsunção identificada no Acórdão revidendo (art. 163.º/1 do Código do Trabalho e cl.ª 62.ª da Convenção Colectiva de Trabalho aplicável), em transcrição do adrede expendido na sentença – e assente também que a R. nunca pagou ao A. qualquer quantia a título de trabalho suplementar –, a decisão questionada mostra-se conforme ao entendimento que temos por consentâneo, sufragando-se por isso.
Não havendo, pois, por que censurar a deliberação sob protesto – também quanto a este ponto –, claudicam consequentemente as correspondentes proposições conclusivas.
Tudo tratado, do essencial que nos cumpria conhecer, vamos terminar. __
III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se negar provimento aos recursos de Revista interpostos pelo A. e (subordinadamente) pela R., confirmando o Acórdão impugnado. Custas de cada recurso de revista pelos respectivos recorrentes. __
Anexa-se sumário do Acórdão.
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Lisboa, 2 de Dezembro de 2013
Fernandes da Silva (Relator) Gonçalves Rocha. Leones Dantas.
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