Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8520/20.4T8PRT-B.P2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: FIANÇA
RISCO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
PAGAMENTO
RENDA
INCUMPRIMENTO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
FIADOR
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
OBRIGAÇÃO
OBJETO
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – O facto de a fiança ser um negócio de risco, determina a necessidade de a declaração fidejussória ser interpretada de forma estrita, segundo o critério do carácter menos gravoso para o declarante, de acordo com o princípio in dubio pro fideiussore.

II – Pese embora o seu pressuposto contratual, a obrigação do pagamento de renda, a que se reporta o disposto no nº1 do art.º 1045.º do CCiv, revela-se uma obrigação de indemnização do ex-locador, não uma obrigação estritamente decorrente de uma renda.

III - A situação vem a ser apenas a de uma indemnização a título de enriquecimento sem causa, à qual se não aplicam as normas dos art.ºs 473.ºss. CCiv, por esta ser uma via subsidiária – art.º 474.º CCiv.

IV – Tendo os fiadores se comprometido perante “obrigação emergente do contrato, seus aditamentos e prorrogações”, e pelo critério interpretativo assumido, interpretação estrita e in dubio pro fideiussore, a dita obrigação dos fiadores é de considerar ter pressuposto sempre que o arrendamento não estivesse findo, não abrangendo a indemnização devida pela arrendatária, face ao atraso na restituição do locado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

                  



Notícia Explicativa

AA e BB moveram processo de execução, com forma comum, contra CC e DD.

Requereram os primeiros que a execução prosseguisse contra os fiadores solidários até pagamento da quantia global de € 53.250,00 (€29.750,00 - cfr. nº1 do artº 1045º, do CC, mais €23.500,00, reconhecido no PER aprovado e homologado por sentença proferida em 21.01.2015).

Fundamentam a execução no capital decorrente de rendas vencidas e não pagas, a que acresce a indemnização pela mora de 17 meses na restituição do locado, no valor de € 29.750,00, assim como a globalidade dos juros de mora vencidos até à presente data no valor de € 7.608,55, e ainda os juros de mora vincendos até integral pagamento.

Vieram então os Executados apresentar os presentes embargos de executado, invocando a inexistência do título executivo, já que o título executivo previsto no artº 14º-A do NRAU, que é formado pelo contrato de arrendamento complementado pela notificação de liquidação ao inquilino, apenas tem exequibilidade extrínseca contra o inquilino e não contra o fiador.

Mesmo que assim se não entendesse, o citado art. 14º-A do NRAU apenas confere força executiva para efeitos de execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas em dívida, e não para pagamento de indemnização devida por atraso na restituição do locado após a resolução do contrato de arrendamento, pelo que, não estando prevista no contrato, este não pode constituir título executivo em relação à referida indemnização.

Pela mesma ordem de razões, o artº 14º-A do NRAU não confere força executiva à pretensão de pagamento de quaisquer quantias devidas a título de um crédito que terá sido reconhecido no âmbito do PER da arrendatária.

Aliás, para prova, os Exequentes juntam apenas a lista provisória de créditos reconhecidos que não se encontra assinada, invocando excepção peremptória da prescrição.

Os Exequentes pugnaram pela improcedência dos presentes embargos de executado.


As Decisões Judiciais

Por sentença de 9 de Dezembro de 2020, foi decidido julgar totalmente procedentes os embargos de executado deduzidos, tendo sido considerado que o título executivo previsto no artigo 14.º-A do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27.02, com as alterações da Lei n.º 31/2012, de 14.08, é restrito ao arrendatário, não se estendendo ao respectivo fiador ainda que tenha intervindo no contrato de arrendamento e renunciado ao benefício da excussão prévia.

Os Exequentes recorreram (per saltum) da decisão, a qual veio a ser revogada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no dia 20 de Maio de 2021, que estabeleceu que o contrato de arrendamento junto aos autos e a sua interpelação constituem título executivo a fim de serem accionados os fiadores, nos termos do artigo 14.º-A do NRAU.

Foi proferido novo saneador/sentença, onde foi julgada improcedente a alegada excepção de prescrição e se decidiu: “julgar parcialmente procedentes os embargos “relativamente à quantia exequenda peticionada pelos exequentes a título do artigo 1045.º, n.º 2, do Código Civil - indemnização pelo atraso na restituição do locado, a partir da mora da arrendatária, desde 01/05/2018 até 27/09/2019, no valor global de € 29.750,00, acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos até integral pagamento -, não se encontrando esta quantia peticionada abrangida pela exequibilidade do título apresentado”, tendo sido, em consequência, absolvidos os executados nesta parte, prosseguindo a execução relativamente ao restante pedido exequendo.

Tendo os Embargantes recorrido de apelação, em julgamento desta o colectivo da Relação acordou em julgar procedente a apelação e alterou a decisão recorrida julgando igualmente parcialmente procedentes os embargos relativamente à quantia exequenda peticionada pelos Exequentes a título do artº 1045, nº1, do CC, no valor global de € 29.750,00, acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos até integral pagamento.

No mais, manteve o decidido pela 1ª instância, nos seus precisos termos.

A Revista 

Os Exequentes interpõem agora recurso de revista.

Formulam as seguintes conclusões de recurso:

1.Julgou o Tribunal recorrido «procedentes os presentes embargos relativamente à quantia exequenda peticionada pelos exequentes a título do artº 1045.º, n.º 1, no valor global de € 29.750,00 acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos até integral pagamento», porquanto «...tendo o artº 2.º n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27/2, que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano [NRAU], revogado expressamente o artº 655 Código Civil, passaram a ser os próprios contraentes que definem o âmbito e a extensão da fiança.

(...) Todavia, após a cessação do contrato, as rendas devidas a título de ocupação do arrendado, nos termos do disposto no artº 1045.º n.º 1 do CCiv, já não responsabilizam, salvo convenção em contrário, o fiador, já que a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança, como dispõe o artº 651 CCiv. Teria, pois, que ficar inequivocamente estipulado que a fiança abrangia, para além das obrigações vencidas durante a vigência do contrato, ainda as indemnizações devidas após a cessão do mesmo, designadamente as devidas nos termos do artº 1045º do CCiv, o que não ocorre no caso em presença.»

2. Discordando em absoluto da interpretação jurídica - que consideram errada - que o Tribunal recorrido fez do disposto no artigo 1045.º n.º 1 e do artigo 651.º do Código Civil, e não conseguido, de todo, compreender a relação jurídica entre aquela interpretação e a revogação do artigo 655.º do Código Civil a que aludiu, não podem os aqui Recorrentes deixar de interpor o presente recurso, pois consideram que a decisão recorrida viola, ostensivamente, o disposto nos artigos 631.º, 634.º, assim como no artigo 798.º todos, do Código Civil.

3. Tendo outorgado a prestação de fiança, nos termos do disposto nos artigos 627.º, 631.º e 634.º do Código Civil, os fiadores passaram a assegurar com o respetivo património o cumprimento da obrigação da arrendatária, ficando pessoalmente obrigados perante os credores, aqui Recorrentes, obrigação essa que, face à renúncia ao benefício de excussão prévia, passou a ser solidária com a arrendatária. Pelo que, nos termos do disposto no artigo 634.º do Código Civil, a obrigação da fiança passou a ter o conteúdo da obrigação principal e a cobrir as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.

4. Ou seja, salvo estipulação em contrário - artigo 631.º n.º 1 do Código Civil – a responsabilidade dos fiadores é moldada pela do devedor principal e abrange tudo aquilo a que, aquele, está obrigado, não apenas a prestação devida, mas também a reparação dos danos decorrentes do incumprimento culposo, como, aliás, consagra o disposto no artigo 798.º do Código Civil.

5. E tal obrigação legal, ao contrário do que entendeu o Tribunal recorrido, em nada contende com a extinção da obrigação principal determinar a extinção da fiança, como estabelece o artigo 651.º do Código Civil, porquanto o Legislador, em clara harmonia com a natureza e a extensão da fiança, estendeu, expressamente, aos fiadores a responsabilidade pelas consequências legais emergentes do incumprimento culposo do devedor, como sucedeu quando o devedor faltou culposamente ao cumprimento da obrigação – de restituir o locado, nos termos da al. i) do artigo 1038.º do CC. - e por força do disposto no artigo 798.º do CC, se tornou responsável pelo prejuízo que com essa conduta causou ao credor e que o legislador estabeleceu, no artigo 1045.º n.º 1 do CC., ser equivalente às rendas.

6. A obrigação de restituição do locado findo o contrato de arrendamento, não constitui uma obrigação nova que tenha nascido com a cessação do contrato, na verdade, tal obrigação foi constituída com a celebração do contrato de arrendamento, apesar de só se ter vencido com a cessação do mesmo, ou como melhor esclareceu o TRP no Acórdão de 06/09/2009: «(..) a obrigação de remunerar o senhorio, apesar da extinção do contrato de arrendamento, (...) configura simplesmente, no tocante à obrigação de pagamento da renda, um caso de ultractividade do vínculo contratual. A obrigação de pagamento da renda, no caso figurado, é decerto uma obrigação post pactum finitum, mas é ainda a obrigação de remuneração, embora referida, já não ao gozo efectivo da coisa, mas à mera susceptibilidade desse gozo (...), e não, ainda que imperfeitamente, uma obrigação de indemnização.»

7. Atenta a finalidade da fiança, destinada a garantir e acautelar as consequências do incumprimento do devedor principal do contrato, é totalmente absurda e, aliás, contra a letra da lei e a unidade do sistema jurídico – concretamente do disposto na segunda parte do artigo 634.º do CC e do artigo 798.º do CC - a interpretação de que com a extinção do contrato, os fiadores extinguem a obrigação de assegurar as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor principal, como erradamente, entendeu o Tribunal recorrido.

8. Ao contrário do que afirma o Tribunal recorrido, as indemnizações devidas pela responsabilidade decorrente do incumprimento contratual culposo do devedor e acessoriamente dos fiadores, não têm de ficar expressamente estipuladas na fiança, porquanto elas decorrem da imperatividade da lei, concretamente no artigo 798.º e 634.º do Código Civil.

9. Apesar de considerar absolutamente desconexa a referência à revogação do artigo 655.º do Código Civil, face à questão em apreço, não podem os Recorrentes deixar de realçar que o disposto no artigo 631.º do CC não foi revogado e, como tal, o âmbito e extensão da fiança mantém as restrições legais estabelecidas naquele preceito.

10. Por tudo o que antecede, consideram os Recorrentes que o Tribunal recorrido errou na interpretação que fez do artigo 1045.º n.º 1 e do artigo 651.º do Código Civil, violando dessa forma o disposto no artigo 631.º, no artigo 634.º e no artigo 798.º, todos do C. Civil.


Por contra-alegações, os Embargantes pugnam pela improcedência do recurso.


Factos Provados

1. Por acordo escrito datado de 28 de Fevereiro de 2008, os ora exequentes deram de arrendamento a S..., LDA, a fracção autónoma designada pela Letra ... do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., (conforme documento junto com o requerimento executivo denominado “Contrato de arrendamento” cujo teor se dá aqui por reproduzido).

2. Nos termos da cláusula 13.º do acordo supra identificado, os Executados CC e DD, prestaram expressamente fiança da obrigação principal da arrendatária S..., LDA., assumindo-se solidariamente como principais pagadores de todas as obrigações emergentes do referido contrato, mesmo para além dos cinco anos do prazo do contrato, renunciando ao benefício de excussão prévia.

3. Em 2014, a ex-arrendatária, interpôs um Processo Especial de Revitalização que correu termos pela ... Secção de Comércio - J1 do Tribunal de Comércio ..., com o n.º 502/14...., onde se confessou devedora da quantia global de € 23.500,00, o qual foi reconhecido no Plano Especial de Revitalização aprovado e homologado por Sentença proferida em 21.01.2015.


Conhecendo:


I


Resumindo, para o que nos importa, a matéria dos autos, os ora Embargados apresentaram como título executivo o contrato de arrendamento para fins não habitacionais, no qual os Embargantes prestaram fiança da obrigação principal da arrendatária.

Como se lê de 2), dos factos provados, os Embargantes assumiram-se solidariamente como principais pagadores de todas as obrigações emergentes do contrato, mesmo para além dos cinco anos do prazo do contrato, renunciando ao benefício de excussão prévia – mais concretamente, “afiançaram os arrendatários como seus fiadores e principais pagadores no tocante a todas as obrigações emergentes do contrato, seus aditamentos e prorrogações, seja qual for o seu número, mesmo para além dos cinco anos e ainda que, entretanto, a renda seja alterada”.

Depois de, num primeiro momento, ter sido discutida no processo a exequibilidade do título contra os fiadores, à luz do disposto no art.º 14.º-A NRAU, situação definida positivamente em anterior acórdão transitado deste S.T.J., analisou-se, nas decisões das instâncias, o mérito dos embargos, face ao pedido executivo admitido.

O que está em causa agora é, pois, o pedido executivo, desdobrando-se, como se desdobra, em dois aspectos cumulados:

- o pagamento de 17 rendas vencidas, no total de € 29 750, exigência feita à luz da norma do art.º 1045.º n.º1 CCiv, ou seja, rendas devidas pelo atraso na restituição do locado;

- e ainda, nos termos do disposto no art.º 1045.º n.º2 CCiv, a exigência da indemnização pelo atraso na restituição do locado, mais uma vez os citados € 29 750 (ou seja, o dobro da primeira soma, por se tratar de quantia a acrescer).

Entendeu-se, em 1.ª instância, que a quantia exigida à luz do disposto no art.º 1045.º n.º2 CCiv não era abrangida pela exequibilidade do título, por não ser uma obrigação propriamente contratual, antes indemnizatória, ao contrário da indemnização do n.º1 do art.º 1045.º CCiv, que pode afirmar-se derivar do próprio contrato e do facto de o arrendatário continuar a se aproveitar das utilidades do arrendado, mesmo após a cessação do contrato.

Nesse sentido, os embargos foram julgados procedentes apenas quanto a essa parte do pedido, reportada ao n.º2 do art.º 1045.º CCiv.

Tendo recorrido de apelação apenas os Embargantes, a Relação julgou os embargos procedentes, na parte agora recorrida pelos ditos Embargantes, relativa ao n.º1 do art.º 1045.º CCiv.

Basicamente, entendeu-se ali que, após a cessação do contrato, as rendas devidas a título de ocupação do arrendado não responsabilizam, salvo convenção em contrário, o fiador, já que a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança, nos termos da norma do art.º 651.º CCiv.

Acrescente-se que, desde a revogação da norma do artº 655º CCiv, efectuada pela Lei n.º 6/2006 de 27/2, são os próprios contraentes que definem o âmbito e a extensão da fiança, sem se encontrarem adstritos a quaisquer restrições legais, temporais ou relativas à estipulação de renda (assim, v.g., Gravato Morais, Fiador do Locatário, in Scientia Juridica, 309º/103).



II


A fiança, tal como regulada nos art.ºs 627.º a 654.º CCiv, constitui uma garantia pessoal das obrigações, pela qual um terceiro assegura com o seu património uma obrigação alheia, ficando assim pessoalmente obrigado perante o credor.

Caracteriza-se a fiança pela sua subsidiariedade e pela sua acessoriedade.

A subsidiariedade traduz-se na possibilidade do fiador invocar o benefício da excussão, embora possibilidade não essencial à fiança, posto que o fiador pode renunciar à característica apontada, ou seja, ao benefício da excussão – art.º 640.º al.a) CCiv, como, de resto, aconteceu no contrato dos autos.

Quanto à acessoriedade, incide essa característica sobre a natureza da obrigação do principal devedor, no sentido de ser a obrigação do fiador acessória da obrigação do principal devedor – art.º 627.º n.º2 CCiv.

Assim, a fiança não pode exceder a dívida principal, nem ser contraída em condições mais onerosas, ficando sujeita a redução quando tal venha a acontecer – art.º 631.º CCiv.

Por outro lado, a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança – art.º 651.º CCiv.

Como escreve Manuel Januário da Costa Gomes, Estudos de Direito das Garantias, I, pg. 23, cit. in Ac.R.P. 31/3/07 Col.I/166 (rel. Marques Pereira), “o regime da fiança leva a que se fale dela como um negócio de risco”.

Trata-se de achar um compromisso entre segurança do credor e a defesa do fiador.

Esclarece aliás aquele citado Autor (Assunção Fidejussória de Dívida, 2000, pgs. 744 e 745) que o problema da interpretação da declaração do garante é um problema mais geral de interpretação da declaração negocial, resolvido, em potência, pelo disposto no art.º 236.ºss. CCiv.

Mas destacando a especificidade do negócio jurídico fiança, deve ela ter consequências específicas a nível da interpretação da declaração do fiador.

Assim, o facto de a fiança ser um negócio de risco, determina a necessidade de a declaração fidejussória dever ser interpretada de forma estrita.

“Na dúvida sobre o sentido da declaração, não será directamente relevante o critério subsidiário do art.º 237.º CCiv - “dicotomizado” entre os negócios gratuitos e os onerosos - mas, antes, o critério do carácter menos gravoso para o declarante. Assim resulta, natural e razoavelmente, do facto de a fiança ser um negócio de risco, donde decorre que deve ser o credor, beneficiário da garantia, a curar no sentido de a declaração “cobrir”, inequivocamente, todas as situações que pretende ver resguardadas.” (…)

“Uma vez firmado que a garantia em causa é uma fiança, as dúvidas (internas) que poderão surgir na interpretação da declaração deverão, de acordo com o mesmo critério, ser resolvidas por estoutro princípio: in dubio pro fideiussore. As dúvidas que possam surgir, neste particular - não dúvidas subjectivas, mas, antes, dúvidas com suporte objectivo, após a interpretação da declaração nos termos legais (art.º 236.º nºs 1 e 2 CCiv) - podem dizer respeito a qualquer aspecto da vinculação fidejussória, desde o tempo de vinculação, ao âmbito da responsabilidade, passando pelo sentido de qualquer cláusula acessória”.



III


O que está em causa no processo é assim discernir o alcance de os Embargantes se terem assumido solidariamente como principais pagadores de todas as obrigações emergentes do contrato, mesmo para além dos cinco anos do prazo do contrato, renunciando ao benefício de excussão prévia – mais concretamente, terem “afiançado os arrendatários como seus fiadores e principais pagadores no tocante a todas as obrigações emergentes do contrato, seus aditamentos e prorrogações, seja qual for o seu número, mesmo para além dos cinco anos e ainda que, entretanto, a renda seja alterada”.

Estamos reconduzidos à aplicação da conhecida norma do art.º 236.º n.º1 CCiv – “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

Para além dos citados termos do negócio, há que salientar o facto de a fiança se assumir como negócio de risco.

E é certo que a vinculação dos ora Embargantes abrangeu apenas “as obrigações emergentes do contrato, seus aditamentos e prorrogações, seja qual for o seu número, mesmo para além dos cinco anos e ainda que, entretanto, a renda seja alterada” - não abrangeu quaisquer obrigações constituídas na esfera jurídica dos arrendatários, após a cessação do contrato.

Todavia, o sentido da norma do art.º 1045.º n.º 1 CCiv é o de que, enquanto o prédio não for restituído, “o contrato se prolonga até à entrega da coisa, devendo o locatário continuar a pagar, agora a título de indemnização, a renda ou aluguer convencionado – indemnização justa, visto que ele continua a usar a coisa em prejuízo do locador – mas indemnização de natureza claramente contratual” (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, 4.ª ed., pg.382).

Assim, em tese, poderia afirmar-se que, quando os fiadores se obrigaram a solver “as obrigações emergentes do contrato, seus aditamentos e prorrogações”, não puderam afastar a quantia devida pela não restituição lícita ou justificada do arrendado, vista a necessária equiparação entre as rendas em sentido estrito e os montantes decorrentes do uso do locado sem título.

A situação dos autos revela-se, todavia, uma obrigação de indemnização do ex-locador, não uma obrigação estritamente decorrente de uma renda.

E não se trata de uma obrigação devida a incumprimento temporário culposo do locatário (essa a situação prevista no nº2 do art.º 1045.º CCiv).

Trata-se, voltando ao caso do nº1 citado, de uma indemnização específica pela não restituição do locado: posto que o proprietário não possa usar ou dispor do bem, a indemnização vai fixada na renda praticada no contrato, considerando-se ser esse o valor de uso do prédio.

A situação assim contemplada vem a ser apenas uma indemnização a título de enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia.

Não se aplicam, todavia, as normas dos art.ºs 473.ºss. CCiv, por esta ser uma via subsidiária – art.º 474.º CCiv, existindo, como existe, a via expressamente prevista do art.º 1045.º n.º1 CCiv.

Como é princípio geral da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa, tudo quanto os bens sejam capazes de render ou produzir pertence, em princípio, ao respectivo titular – “a obrigação de restituir a que se referem os art.ºs 473.ºss. não visa reparar o dano do lesado (esse é o fim da responsabilidade civil), mas suprimir ou eliminar o enriquecimento de alguém à custa de outrem; por consequência, nos casos de intromissão em coisa alheia, a restituição terá por objecto tudo aquilo que foi obtido à custa do titular da coisa, mediante o uso, a fruição ou o consumo indevido dela” (Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, 3.ª ed., art.º 479.º).

Trata-se de vantagens que se encontravam reservadas ao titular do direito, segundo o conteúdo da destinação, afectação ou ordenação dos bens objecto desse direito.



IV


Voltando porém à vinculação dos Embargantes.

A regra está, como visto, em que a dúvida sobre o sentido da declaração deve ser resolvida interpretativamente pela solução mais favorável para o fiador e, designadamente, o que dê menor âmbito à fiança, cabendo ao credor solicitar que, no termo de fiança, tudo fique bem esclarecido (Menezes Cordeiro, Tratado, X, Dtº das Obrigações, Garantias, 2015, pg. 460, com expresso apoio em Vaz Serra, Fiança e Figuras Análogas, Bol.71/72).

Trata-se de saber se nos encontramos perante “obrigação emergente do contrato, seus aditamentos e prorrogações”, tal como os Embargantes adrede se comprometeram.

Pelo critério interpretativo assumido, interpretação estrita, por um lado, in dubio pro fideiussore, por outro, a obrigação dos fiadores pressupôs sempre que o arrendamento não estivesse findo, pelo que não abrangeu a indemnização devida pela arrendatária, pelo atraso na restituição do locado – indemnização que é epígrafe do próprio art.º 1045.º CCiv (e designadamente a indemnização a que se reporta o nº1 do normativo, única que se encontra em causa na revista).

Diferentemente se passariam as coisas acaso se estipulasse a fiança das obrigações emergentes do contrato, seus aditamentos e prorrogações, “até à restituição do locado”, como no caso observado, ainda que não a propósito do art.º 1045.º do CCiv, no Ac.S.T.J. 17/6/98 Col.II/115 (rel. Fernando Fabião).

Neste entendimento assim exposto, nada se objectará ao decidido na Relação.


Em suma:

I – O facto de a fiança ser um negócio de risco, determina a necessidade de a declaração fidejussória ser interpretada de forma estrita, segundo o critério do carácter menos gravoso para o declarante, de acordo com o princípio in dubio pro fideiussore.

II – Pese embora o seu pressuposto contratual, a obrigação do pagamento de renda, a que se reporta o disposto no nº1 do art.º 1045.º do CCiv, revela-se uma obrigação de indemnização do ex-locador, não uma obrigação estritamente decorrente de uma renda.

III - A situação vem a ser apenas a de uma indemnização a título de enriquecimento sem causa, à qual se não aplicam as normas dos art.ºs 473.ºss. CCiv, por esta ser uma via subsidiária – art.º 474.º CCiv.

IV – Tendo os fiadores se comprometido perante “obrigação emergente do contrato, seus aditamentos e prorrogações”, e pelo critério interpretativo assumido, interpretação estrita e in dubio pro fideiussore, a dita obrigação dos fiadores é de considerar ter pressuposto sempre que o arrendamento não estivesse findo, não abrangendo a indemnização devida pela arrendatária, face ao atraso na restituição do locado.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelos Exequentes/Embargados.

                                     

S.T.J., 15/9/2022


Vieira e Cunha (Relator)

Ana Paula Lobo

Afonso Henrique Cabral Ferreira