Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1680/19.9T8BGC.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE APELAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
COMPETÊNCIA DO RELATOR
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ALEGAÇÕES DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - Em termos gerais, pode afirmar-se que, na sua jurisprudência o STJ tem seguido, essencialmente, um critério de proporcionalidade e da razoabilidade, entendendo que os ónus enunciados no art. 640.º do CPC pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objeto do recurso.
II - O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.

III - No recurso sobre a matéria de facto se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640.º, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada.

IV - Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640.º do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento.

V - A apresentação de documentos com as alegações de recurso, quando a junção se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, apenas pode ocorrer quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.

AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ... ..., veio intentar a ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ..., ... – ..., pedindo a declaração e reconhecimento da união de facto entre autora e réu, no período que mediou entre .../.../2012 e .../.../2017, a condenação do réu a reconhecer que naquele período autora e réu contribuíram por força dessa união de facto, na mesma proporção e em partes iguais, para a formação do património referido nos artigos 17.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 30.º, 32.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º e 40.º da petição inicial, de valor não inferior a € 88.036,44, bem como a sua condenação a restituir-lhe, nos termos do instituto do enriquecimento sem causa, 50% daquele valor, em montante não inferior a € 44.018,22 e o pagamento de juros vincendos à taxa legal em vigor sobre o capital peticionado desde a citação até integral e efetivo pagamento.

O réu apresentou contestação, pugnando pela sua absolvição.

Para o caso de poder vir a ser condenado, o réu apresentou reconvenção, na qual peticionou a compensação de metade dos valores que já pagou e que terá de pagar, estes a determinar em liquidação de sentença, a título de empréstimos bancários contraídos pelo casal e/ou para aquisição de bens pelo casal.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação e, em consequência, reconheceu que entre autora e réu existiu uma união de facto que se manteve entre .../.../2012 e .../.../2017, no mais, absolvendo o réu do pedido.

Não se conformando com a decisão proferida veio a autora interpor recurso de apelação sendo, após deliberação, decidido pelo Tribunal da Relação “Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes que integram esta ... Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.”

Como “NOTA PRÉVIA” às conclusões da apelação dizia a autora: “Juntam-se alguns documentos dado que só devido à sentença recorrida fazem sentido. Isto é, tais documentos, nomeadamente os referentes a veículos automóveis, por nunca se ter, nem por longe, imaginado que se iria dispor do que só às partes respeita, cremos ser admissível que se juntem tais documentos. O recurso visa ex lege se sentença recorrida foi a que devia ter sido proferida. Não se trata, portanto de factos novos. DocNº 1 composto por 3 fols , indicando o pedido monetário “pornográfico” pelo aparcamento.

Novamente inconformada recorre a autora de revista, formulando as seguintes conclusões:

“1º-O Tribunal a quo violou nitidamente o artigo 608º nº 2 do C.P.C. ao basear também – cremos que sobretudo – a decisão de improcedência da apelação neste preceito legal. Já que, claramente, não se pronunciou sobre as questões que lhe foram submetidas.

2º-Atentemos

Sem nunca perder de vista o caminho se quisermos chegar bem ao fim, sempre diremos que, mesmo nas conclusões a recorrente em tudo foi conclusiva e pugnou por sentença diferente. Ora, “à cause” e na esteira da violação legal anterior (atº 608º nº2 C.P.C., violou ainda também de forma assaz cortante o disposto no artº 663º nº 2 C.P.P. Numa palavra,

3º-Impediu a recorrente de poder ver apreciado um pedido, vetando-lhe, em consequência de forma indirecta o direito constitucional de acesso à justiça.

3º-(repetida a numeração)-Sejamos claros;: quer no corpo das alegações de recurso, quer nas conclusões do alegado disse ao que vinha e porque discordava:

a)-Juntou documentos dos automóveis, sua propriedade. E porquê?

b)-Só porque são seus e o réu lhos não entrega ou pede um enorme quantitativo monetário porque abusivamente e contra a vontade da autora os detém.! Até aqui entende-se. De resto, foram transcritas passagens da audiência de discussão e julgamento.

c)-Conclui-se que era apenas a autora que com o seu magro salário e pagava as despesas do agregado familiar, nomeadamente, alimentos, produtos de higiene e de limpeza. Matéria confessada (26; 27 28) e repetida nas conclusões.

d)-Indicara-se factos que o juiz de 1ª instância deveria ter aquilatado mais prudentemente: atente-se nas conclusões em declarações feitas pelo réu Em sede de depoimento de parte: Saía de casa (ele réu) às 6,30h e chegava às 8 ou 9h.

Agora pergunta-se: era ou não a autora quem em exclusivo cuidava dos filhos? Daí que se tivesse apontado erro notório. Não obstante, o Acórdão recorrido não ter – mero lapso – visto pontos concretos de desacordo.

E, concluindo eu chegava às 7 ou às 8 da noite queria era descansar. E o pequeno-almoço não o tomava com a família porque saía às &,00H da manhã. Tudo conforme ficheiros “: 51-2:24 Demais,

D)As empresas, referiu o réu eram dos dois.

Conclui-se para obstar ao enriquecimento ilícito de qualquer dos consortes, indicaram-se as normas violadas, como pode ler-se e, por fim, pediu-se justiça.

Ora se invocam novamente, para além do inexplicável e praticamente autêntico “non liquet”, foram violadas para além dos artigos referidos no recurso ainda as normas invocadas neste Acórdão recorrido 608º nº e nº 2 CPC.663º

É que, foi escrupulosamente cumprido o ónus de alegar e formular conclusões. Indicara-se as normas violadas e o sentido que o recorrente entendeu como fundamento para o recurso. Daí que, a muito custo se diga, que o recorrente deveria ter sido convidado a completá-las,. Mas quem somos nós......, sempre à cautela diremos que foi violado ainda o artº 639º C.P.C., dado que, a não se entender, admitamos, deveria o recorrente ser convidado a suprir tal deficiência. Não o tendo feito veta o mais sagrado e elementar dos direitos o direito à justiça, constitucionalmente consagrado.

Assim, Senhores Juízes Conselheiros, solicitamos a revogação do acórdão recorrido e o substituam por outro que, por um lado decrete a entrega dos automóveis propriedade da requerente sem, claro está, nenhum encargo, já que a tal não deu aso – seria premiar o devedor relapso - e, no demais se considere com bom é de ver que foi a recorrente o único cônjuge a tomar conta, cuidar, vestir calçar, pagar creche e alimentação aos filhos, seja ressarcida do montante referido nas conclusões e no que mais aí se peticionar, sempre com o doutíssimo suprimento de V.Exªs.

Só assim se fará Justiça

Não foi apresentada resposta.


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O recurso foi admitido.

Refere o STJ no Ac. de 09-06-2016, proferido no proc. nº 6617/07.5TBCSC.L1.S1 que, “Ao abrigo do art. 671º, nº 1, do CPC, é suscetível de revista o acórdão da Relação que se abstém de apreciar o mérito da apelação com fundamento no incumprimento do ónus de alegação previsto nos arts. 639º e 640º do CPC”.

Cumpre apreciar e decidir.


*


Nas Instâncias foram julgados como provados e não provados, os seguintes factos:

“Fundamentação de facto

Factos provados

1. Autora e réu iniciaram um relacionamento amoroso em 2011.

2. Em 01-01-2012, autora e réu passaram a viver juntos, em comunhão de mesa, cama e habitação na casa do réu, sita na Rua ..., na freguesia ..., concelho ....

3. Essa relação manteve-se até 13-11-2017, tendo autora e réu partilhado a mesma habitação, tomado refeições em conjunto, fora e dentro do seu agregado familiar.

4. Partilharam o leito e relacionaram-se com terceiros como se de marido e mulher se tratassem e assim sendo por todos reconhecidos.

5. Do relacionamento entre autora e réu nasceram dois filhos, um menino em .../.../2013 e uma menina em .../.../2015.

6. Aquando do início do relacionamento entre autora e réu, este era proprietário do prédio urbano sito na Rua ..., em ....

7. Durante o seu relacionamento, autora e réu efetuaram obras no referido prédio por forma a nele beneficiarem de maior conforto.

8. Em data não concretamente apurada de 2012, no primeiro andar, foram realizadas obras numa sala, que consistiram na aplicação de chão flutuante, na pintura das paredes e colocação de pedra numa das paredes.

9. O rés-do-chão do prédio tinha uma parte ampla, cujas paredes estavam em bloco e o chão coberto de uma camada de cimento.

10. Em data não concretamente apurada de 2013/2014, mas após ter nascido o primeiro filho, autora e réu decidiram realizar obras nessa parte do referido prédio, que consistiram na criação de uma divisão destinada cozinha e outra a garagem, e na construção de um forno em anexo desse piso que ficou ligado ao mesmo através de uma porta.

11. Na divisão transformada em cozinha, foram colocados em toda a superfície do chão mosaicos de cor cinza-claro, numa parede foi aplicado azulejo de cor branca e as restantes três foram argamassadas e pintadas, e foi ainda instalada uma salamandra como sistema de aquecimento.

12. No anexo do forno, com área de cerca de 15 m², foram colocados em toda a superfície do chão mosaicos de cor cinza-claro, as paredes foram argamassadas e pintadas, foi construído um forno a lenha e foram ainda feitas a instalação elétrica e canalizações.

13. Na divisão transformada em garagem, com uma área de cerca de 60m², as paredes foram pintadas.

14. No final do verão do ano de 2017, autora e réu decidiram instalar no imóvel um sistema de aquecimento a pellets.

15. No período que durou a respetiva relação, foram adquiridos os seguintes bens:

a) Um automóvel da marca BMW, modelo 560L (5ER REIHE), matrícula ..-AU-.., de 03-11-2005, adquirido pelo valor de € 8.000,00, que se encontra registado em nome do réu;

b)Um trator da marca Lamborghini, modelo L10S704WVT SPRINT 674-70, matrícula ..-..-JF, de 02-12-1997, adquirido pelo valor de € 14.000,00, que se encontra registado em nome do réu;

c)Um automóvel da marca Microcar, modelo Lyra AG, matrícula ..-NJ-.., de 19-12-2012, adquirido pelo valor de € 600,00, que se encontra registado em nome da autora;

d)Um automóvel da marca Mitsubishi, modelo L-200, K74TGJENXFL6, matrícula ..-..-PU, de 27-06-2000, adquirido pelo valor de € 7.000,00, que se encontra registado em nome da autora.

16. À data do início relação entre autora e réu, aquela era trabalhadora por conta de outrem, numa loja de artigos de decoração na cidade ....

17. Auferindo pelo seu trabalho o ordenado mínimo nacional, acrescido do respetivo subsídio de refeição e subsídios de férias e de Natal.

18. E tendo-se mantido nesse emprego até finais de maio/2016 data na qual a entidade patronal procedeu ao seu despedimento.

19. Entre inícios junho/2016 e finais de junho/2017, a autora passou a auferir a prestação social de desemprego.

20. No período em que durou a relação entre autora e réu, aquela engravidou duas vezes, tendo ficado impossibilitada de trabalhar no período que perduraram essas gestações.

21. Nos anos em que viveu com o réu, a autora auferiu os seguintes rendimentos:

-2012- trabalho por conta de outrem €4.979,33 - Prestação de protecção na maternidade €2.148,98 – Total/Ano €7.128,31;

-2013- trabalho por conta de outrem €1.709,46 - Prestação de protecção na maternidade €4.479,14 – Total/Ano €6.188,60;

-2014- trabalho por conta de outrem €6.930,72 - Total/Ano €6.930,72;

-2015- trabalho por conta de outrem €1.242,01 - Prestação de protecção na maternidade €5.016,44 – Total/Ano €6.258,45;

-2016- trabalho por conta de outrem €759,55 - Prestação de protecção na maternidade €1.491,00 – Total/Ano €3.637,92;

-2017- prestação de desemprego €3.637 – Total/Ano €3.148,20; -2017- prestação de desemprego €3.637 – Total/Ano €3.148,20; Total €35.542,75.

22. Esses rendimentos foram canalizados, entre outros fins, para pagamento de despesas do agregado familiar, nomeadamente alimentos, produtos de higiene e de limpeza.

23. Anualmente, por altura do outono, a autora auferia um rendimento extra, não concretamente apurado, de cerca de €500,00 por ano, com a venda de castanhas provenientes de um souto que herdou do pai.

24. Enquanto vivia juntamente com o réu, a mãe da autora doou-lhe a quantia de € 6.000,00.

25. Quando começou a viver com o réu, a autora tinha depositada a quantia de € 4.386.44 numa conta com o NIB  ...14, junto do Banco Montepio – Caixa Económica Montepio Geral, resultante de poupanças de ordenados.

26. No tempo em que viveu com o réu, a autora realizava tarefas domésticas inerentes ao agregado familiar.

27. Nomeadamente, confecionava refeições, limpava a casa e tratava das roupas.

28. A autora dava banho, vestia, alimentava e brincava com os filhos e ia levá-los e buscá-los à escola.

29. Durante a convivência, autora e réu adquiriram cerca de uma dúzia de ovelhas.

30. O réu, durante o período em que durou a convivência com a autora, sempre trabalhou.

31. Nomeadamente, na empresa “S..., sociedade Unipessoal Lda.” trabalho pelo qual auferia mensalmente o ordenado mínimo nacional.

32. E na empresa “B..., Lda.”, na qual tem uma percentagem social de 50%, mas cujo trabalho que aí prestava não era remunerado.

33. Obtendo ainda o réu rendimentos das participações sociais que tinha nas empresas referidas nos artigos anteriores.

34. E dedicando-se, também, à realização de algumas tarefas        agrícolas, nomeadamente, apanha de fenos para os animais, sementeira e apanha de batatas.

35. O réu encontra-se na posse dos veículos automóveis Mitsubishi e BMW, do trator, da amassadeira, da televisão e da máquina de secar roupa.

6. O pai do réu, CC, sempre viveu com o filho, incluindo durante o tempo em que a autora viveu consigo (réu).

37. Entre 2012 e 2017, o pai do réu auferiu uma pensão mensal de ... que ascendia ao montante de € 232,32 no ano em 2012, e ao montante de € 234,87 nos anos de 2013 a 2017.

38. O trator Lamborghini foi adquirido com recurso a empréstimo bancário, tendo sido pagas 11 prestações, no valor global de € 2.872,80, entre novembro de 2017 e a data da contestação, sendo que, até ao final do contrato de mútuo, ainda tinham de ser pagas mais 13 prestações (num total de 72).

39. O Microcar foi oferta, pela autora e pelo réu, ao avô deste, que sempre o usou e fruiu.

40. O avô do réu emprestou-lhe a quantia de € 6.000,00.

41. O réu e a autora outorgaram contrato de mútuo, em 31 de agosto de 2017, por força do qual o Banco Millenium BCP lhes concedeu um empréstimo no valor de €40.000,00.

42. Desde a data da outorga do contrato em apreço e até ao dia 13-11-2017, o réu aplicou dinheiros próprios no pagamento das prestações de tal empréstimo no valor global de 630,00€.

43. Até ao presente, o réu já pagou sozinho a quantia global de € 5.880,00.

Factos não provados:

a)As obras do 1.º andar ocorreram no verão de 2012.

b) A sala tinha uma área superior a 30 m2.

c)As obras da sala abrangeram, também, a instalação elétrica e a aplicação de pedra em toda a superfície do chão e argamassa nas paredes.

d)As obras do 1.º andar, a preços atuais, valiam, no mínimo, a quantia de € 3.500,00, tendo sido custeadas por autora e réu.

e)As obras do 1. º andar foram realizadas pelo réu, nas suas horas vagas, tendo os materiais custado €250,00 e foram pagos pelo pai do réu, enquanto que as obras do rés-do-chão, foram realizadas pelo próprio réu, muitas vezes ajudado pelo seu pai, CC, e implicaram a colocação de materiais de valor não superior a € 300,00.

f)A quantia de € 4.386.44, que se encontrava depositada na conta bancária da autora no início da relação com o réu, foi utilizada na realização de obras de melhoria no identificado prédio do réu.

g)Das obras realizadas no rés-do-chão resultou a criação de uma divisão de dispensa, na qual foi colocada uma porta em alumínio.

h)As obras no rés-do-chão ocorreram no início do verão de 2013, tendo sido suportadas com rendimentos de autora e réu.

i)A divisão transformada em cozinha tinha uma área superior a 40,00 m2.

j)Na divisão da cozinha foram feitas a instalação elétrica e canalizações.

k)No rés-do-chão da casa já existia (antes de 2012) uma cozinha, com instalação elétrica e canalizações em funcionamento.

l)Na divisão transformada em garagem foi aplicada uma camada de cimento no chão.

m)As obras efetuadas no rés-do-chão, a preços atuais, valiam, no mínimo, a quantia de € 15.000,00, tendo sido custeadas por autora e réu.

n)O sistema de aquecimento a pellets custou € 4.386,44, tendo sido pago por autora e réu.

o)No período que durou a respetiva relação, a autora suportou, na proporção de metade, as seguintes aquisições:

- Três tapetes, quatro cortinas, um televisor, uma máquina do café, um fogão industrial, uma amassadeira em madeira, uma máquina de secar roupa em segunda mão, no valor global de € 1.100,00;

- Um reboque de trator, no valor de € 1.000,00;

- Umas charruas de trator, no valor de € 750,00;

- Um escarificador de trator, no valor de € 750,00;

- Uma enfardadeira de feno, no valor de € 2.000,00; - Um virador de feno, no valor de € 750,00;

- Um rachador de lenha, no valor de € 300,00; - A automóvel BMW no valor de € 10.000,00;

- O trator Lamborghini, no valor de € 10.000,00; - A viatura Microcar, no valor de € 1.500,00;

- O automóvel Mitsubishi.

p)Os rendimentos de trabalho, de subsídios de maternidade e desemprego da autora foram também canalizados para pagar água, luz, gás e televisão.

q)Anualmente e em média a autora auferia um rendimento mínimo € 1.500,00, com a venda de castanhas.

r)Enquanto viveu com o réu, a autora auferiu com a venda de castanhas um rendimento total no valor mínimo de € 9.000,00, que foi depositado na conta do Millennium BCP com o n.º 45321030447, da qual eram cotitulares a autora, o réu e o pai deste último.

s)Era a autora quem, exclusivamente, realizava as tarefas domésticas e cuidava dos filhos do casal.

t)As ovelhas foram adquiridas pelo réu antes de iniciar a relação com a autora e foram pagas com dinheiro que o avô lhe deu.

u)A autora ajudava a cuidar das ovelhas.

v)A autora ajudava o réu em determinadas  tarefas agrícolas, nomeadamente, na plantação e apanha de batatas.

w)O réu encontra-se na posse das alfaias agrícolas, do Microcar, de três tapetes, quatro cortinas, uma máquina de café e do fogão industrial.

x)Entre 2012 e 2017, o pai do réu retirava rendimentos de prédios rústicos que explorava e auferia ainda um salário, que correspondia, em 2016, a cerca de € 645,36, em 14 meses do ano.

y)Quem ajudava o réu nos trabalhos agrícolas eram os seus familiares, que com ele vivem na aldeia de ..., designadamente o avô e o pai.

z)O valor da prestação mensal do trator foi sendo paga com a ajuda do pai do réu.

aa)Durante o período que viveram juntos, autora e réu amealharam, em conjugação de esforços, a quantia de cerca € 30.000,00.

bb)Sendo que cerca de € 5.000,00 dessa quantia foram investidos pelo réu na empresa “S..., sociedade Unipessoal Lda. e utilizados por essa empresa na compra de um conjunto de bens móveis a “Massa Insolvente - S... Lda.”.

cc) E o restante valor, cerca de € 25.000,00, foi utilizado pelo réu na constituição e posterior aumento de capital da sociedade “B..., Lda.” Pessoa coletiva com o n.º ..., e na qual o réu tem uma participação social de 50%.

dd)Nos períodos de licença de maternidade da autora - desde finais de agosto/2012 a finais de setembro/2013 aquando do 1.º filho, e de meados de abril/2015 a finais de abril/2016 aquando do 2.º filho - a autora trabalhou na empresa “S..., sociedade Unipessoal Lda..”, constituída em 2009, e da qual o réu sempre foi o único sócio e gerente, trabalhando cinco dias por semana e cumprindo um horário das 09:30 às 12:30 e das 13:30 horas às 19:00 horas, contribuindo com o seu trabalho para um aumento da rentabilidade e consequente lucro da referida empresa.

ee) O automóvel BMW, ao tempo da separação, não valia mais do que €3.000,00

ff) O trator não vale mais do que € 700,00.

gg)O veículo Microcar não vale mais de € 300,00 e não circula. hh)O automóvel Mitsubishi já não circula há vários anos, tem uma avaria grave no motor, implicando um conserto superior ao seu valor venal.

ii)Ainda que seja vendido para peças, aquele veículo não originará um retorno monetário superior a € 2.000,00.

jj)As viaturas Microcar, Mitsubishi e BMW foram adquiridas com recurso a dinheiros dados ou emprestados pelos familiares do réu.


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Conhecendo:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações – artigo 635º e 639º, do Código de Processo Civil – as questões suscitadas pelos recorrentes, e que cumpre apreciar, são as seguintes:

-Junção de documentos com as alegações da apelação, documentos não tidos em conta pela Relação;

-Matéria das transcrições que fez com as alegações e não tidas em conta;

 - Que indicou factos que o juiz de 1ª instância deveria ter aquilatado mais prudentemente;

- Omissão do dever de convidar o recorrente a completar, esclarecer ou sintetizar as conclusões.


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Para compreender o objeto do recurso reproduzimos a decisão jurídica do acórdão recorrido.

“Fundamentação jurídica

 Junção de documentos.

Com as suas alegações a Apelante veio juntar alguns documentos, justificando a sua junção devido à decisão proferida que lhe é desfavorável, sem indicar especificamente quais os factos que pretende demonstrar, procedendo à análise do seu teor e factualidade a que respeitam.

Apreciando

Os art.°s 651.º, n.º 1 e 425.º, ambos do C.P.C., só excepcionalmente admitem a junção de documentos nesta fase processual de recurso, sendo duas as situações que a podem justificar: i) impossibilidade da sua apresentação em tempo oportuno, nos termos definidos pelo art.º 423.º do C.P.C.; e ii) a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª Instância.

Relativamente à necessidade motivada no julgamento da 1.ª Instância, que aqui nos importa, no seguimento do que vinha sendo entendimento consolidado face ao artº. 706º., nº. 1 do antigo C.P.C., (na redacção anterior ao Dec. Lei 303/2007, de 24 de Agosto), é pacífico que só uma decisão surpresa, imprevista, da 1ª. Instância justifica a junção de documentos nesta fase de recurso, não servindo de pretexto a surpresa quanto ao resultado” (cf. ABRANTES GERALDES in “Recursos em Processo Civil”, 3ª. edição, pág. 254 e AMÂNCIO FERREIRA, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª. edição, pág.215/216).

Como referem ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA “É evidente que a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª. instância”, cabendo na intenção legislativa apenas os casos em que “pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida” (in “Manual de Processo Civil”, 1984, pág. 517).

Na interpretação deste regime deve atentar-se em que a necessidade da junção de um documento que pode derivar do julgamento em primeira instância não corresponde à necessidade de suprir uma insuficiência instrutória anterior.

Pelo contrário, identificar-se-á uma tal necessidade quando o tribunal, oficiosamente, lance mão de um facto novo cognoscível, mas em desrespeito para com o princípio do contraditório”.

No caso concreto, não alegando e demonstrando a recorrente qual a circunstância concreta ocorrida para a junção dos documentos, para além de não alegar qual a utilidade deles decorrente, a não ser o desfecho da decisão lhe ser desfavorável, não é de admitir os documentos apresentados com as alegações de recurso, determinando-se a sua entrega à apresentante.

Já quanto à reapreciação da matéria de facto, impera o ónus de especificação de cada um dos pontos da discórdia do recorrente com a decisão recorrida, seja quanto às normas jurídicas e à sua interpretação, seja a respeito dos factos que considera incorrectamente julgados e dos meios de prova que impunham uma decisão diferente, devendo, neste caso, indicar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cf. Arts. 639.º, n.º 2 e 640.º, nºs 1 e 2 do NCPC).

Assim, face ao disposto no citado art.º 640.º, n.º 1, do NCPC, quando seja impugnada a decisão da matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados [alínea a)]; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [alínea b)]; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [alínea c)].

In casu, a A./Recorrente limitou-se, nas conclusões, a proceder à sua própria avaliação da prova com base em excertos de depoimentos sem explicar as razões e fundamentos que, em concreto, importariam uma alteração dos factos elencados como provados e não provados, elencando-os e justificando a sua pretensão com base num erro de apreciação e julgamento por parte do tribunal a quo.

Não se procede objectivamente a um qualquer relacionamento entre a referida factualidade e a prova produzida que impunham uma decisão diferente num determinado sentido.

É que tais exigências decorrem do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo e limitar os recursos às situações em que haja uma real discordância das decisões recorridas e para correcção de erros da decisão e não também às situações em que apenas se pretende diferir a decisão.

Nessa medida, há que ter em conta que, no domínio do nosso regime recursório cível, o meio impugnatório para um tribunal superior não visa propriamente um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas apenas uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida. Significa isto que a finalidade do recurso não é proferir um novo julgamento da acção, mas julgar a própria decisão recorrida.

Não basta, pois, vir requerer-se a alteração da decisão da matéria de facto, sem se apontar a concreta e precisa divergência na apreciação e valoração da prova, apontando qual o erro de julgamento que se verificou.

Erro de julgamento esse que não é apontado em face de todas as provas produzidas, analisadas, indicadas e avaliadas pelo tribunal a quo.

Pois, há que proceder a uma análise crítica de todos os elementos probatórios e não apenas daqueles que isoladamente favorecem uma parte ou outra, sem a devida conjugação e avaliação de toda a prova.

Acresce, ainda, que, visando os recursos, por via da modificação da decisão impugnada, alcançar a aplicação do direito que lhes é favorável, está a reapreciação da matéria de facto limitada ao efeito útil pretendido com essa impugnação da matéria de facto.

Acontece que, a recorrente não indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, apreciando criticamente as provas, nem a concreta decisão que deveria ser proferida quanto a cada um dos factos ou algum deles em particular, com base numa avaliação global de toda a prova, indicando qual o concreto erro cometido pelo tribunal a quo na apreciação feita, em conformidade com o que se encontra explanado na motivação constante da decisão proferida.

No essencial, a recorrente reproduz excertos do depoimento do R., com base nos quais retira as suas conclusões, que apontam para uma gestão das empresas pela A. quanto ao dinheiro que as mesmas geravam, esquecendo-se que, a ser assim, esses dinheiros eram das empresas e não seus.

Acresce que a factualidade vertida na alínea s), dos factos não provados é absolutamente inócua para a decisão final, no sentido em que foi proferida, tendo em conta os factos já dados como provados, concretamente nos pontos 26 a 28, dos factos provados, a que acresce o facto de não se ter também referenciado em que medida foi feita uma errada integração e interpretação do direito aplicável.

De qualquer das formas, o facto é que se rejeita a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto (cfr. neste sentido António Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., 2016, Almedina).

Pois, o que releva e é exigível é, tão só, que em função de critérios de razoabilidade essenciais à aplicação do Direito, o julgador forme uma convicção assente na certeza relativa do facto, ou, dito de um outro modo, psicologicamente adquira a convicção traduzida numa certeza subjectiva da realidade de um facto, existindo assim um alto grau de probabilidade (mas suficiente em razão das necessidades práticas da vida) da sua verificação.

Como refere Tomé Gomes, in “Um olhar sobre a demanda da verdade no processo civil”, in Revista do CEJ, 2005, nº 3, 158, o convencimento do julgador deve basear-se numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida, e sendo verdade que “p[P]ara a formação de tal convicção não basta um mero convencimento íntimo do foro subjectivo do Juiz“, basta porém para o referido efeito a formação de uma convicção“ suportada numa persuasão racional, segundo juízos de probabilidade séria, baseada no resultado da prova apreciado à luz das regras da experiência comum e atentas as particularidades do caso “.

Por outro lado, não é de atender apenas a parciais passagens da gravação dos depoimentos escolhidas cirurgicamente de acordo com a versão favorável de uma das partes, querendo impor, em termos mais ou menos apriorísticos, a sua subjetiva convicção sobre a prova.

Antes se deve efectivar uma concreta e discriminada análise objectiva, crítica, lógica e racional de toda a prova, por forma a proceder a uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida. Significa isto que a finalidade do recurso não é proferir um novo julgamento da acção, mas julgar a própria decisão recorrida.

Tem também de se ponderar que o julgador da matéria de facto tem um contacto directo com as pessoas e coisas que servem de fontes de prova, sendo, em conformidade com as impressões colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que a prova é apreciada, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, embora com a devida conjugação e avaliação de toda a prova.

Posto isto, considerando que as alegações da Recorrente não dão satisfação às mencionadas exigências legais, sendo que quanto ao recurso da matéria de facto não existe despacho de aperfeiçoamento ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, por aplicação do disposto no art. 639.º, n.º 3 do C.P.C, é de rejeitar o recurso no que se refere à impugnação da decisão que fixou a matéria de facto provada e não provada.

Assim, dependendo o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, por parte da recorrente, no que à interpretação e aplicação do Direito respeita, do prévio sucesso da procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto ali consubstanciada, a qual, porém, se mantém inalterada, fica necessariamente prejudicado o seu conhecimento, o que aqui se declara, nos termos do art.º 608º, n.º 2, aplicável ex. vi do art.º 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil.

Desta transcrição decorre que o acórdão recorrido conheceu das questões que lhe foram submetidas para apreciação, de forma legal, concordando com a fundamentação do mesmo.

Sintetizando temos que a recorrente pretendia com a apelação impugnar a matéria de facto apurada sendo que, para o efeito juntou documentos, com a alegação do recurso de apelação.


*


-Rejeição do recurso de apelação, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto:

- Por a apelante não indicar os pontos de facto que considera incorretamente julgados.

- Por a apelante não indicar as concretas provas que servem para impor uma decisão diferente da decisão da matéria de facto fixada pela 1ª Instância.

-Por a apelante não indicar a decisão que no seu entender deve ser proferida.

Tudo como preceitua o nº 1 do art. 640º, do CPC.

A matéria de facto apurada (factos provados e não provados) há-de resultar da prova produzida (depoimentos, pareceres, exames, documentos) conjugada com as regras da experiência comum.

O recurso não tem como funcionalidade reexaminar a matéria de facto, e o recurso não serve para um novo julgamento.

A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência. Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto. A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do recurso e à respetiva fundamentação.

No recurso da matéria de facto, a Relação, como se refere no Ac. do T. Constitucional nº 415/2001, citando Ac. da Rel. de Co. de 5-10-2000, apenas tem de “apurar da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau dessa mesma jurisdição, face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos… O Tribunal da segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção... “, que lhe está de todo em todo vedada.

E assim deve ser, no caso de o recurso observar, nomeadamente, o disposto no art. 640º do CPC, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”.

O recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir erros de julgamento sobre matéria apontada pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa e apenas isso. Não havendo erros patentes a apontar, vigora o princípio da livre apreciação das provas.

Está, essencialmente, em causa o incumprimento do ónus de alegação, previsto no art. 640º do CPC, relativo à impugnação da decisão da matéria de facto.

Como salienta o Acórdão do STJ de, 25-10-2018, proferido no Processo nº 28698/15.8YIPRT.G1.S2, “I. Em termos de impugnação da matéria de facto, a lei consagra um importante ónus de alegação, tendo por finalidade fundamental permitir, por um lado, o exercício eficaz do contraditório e, por outro, o julgamento adequado e seguro da impugnação da matéria de facto pelo tribunal ad quem.

II. É insuficiente a referência meramente genérica dos factos.

III. O incumprimento deste ónus de alegação acarreta, sem mais, a rejeição do recurso da impugnação da matéria de facto”.

É o que resulta do disposto no art. 640º do CPC.

Concordamos plenamente com o que se escreve no acórdão citado e por isso reproduzimos o seguinte excerto: “O recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640.º, n.º 1, do CPC).

Na verdade, em termos de impugnação da matéria de facto, a lei consagra um importante ónus de alegação, tendo por finalidade fundamental permitir, por um lado, o exercício eficaz do contraditório e, por outro, o julgamento adequado e seguro da impugnação da matéria de facto pelo tribunal ad quem, dando-se assim aplicação prática aos princípios da cooperação, lealdade e boa fé processuais.

Neste contexto, devem ser especificados ou concretizados os factos provados ou não provados considerados incorretamente julgados, sendo insuficiente a referência meramente genérica, origem de dúvidas e incertezas e a que se quis obstar.

Depois, o recorrente deve também especificar os meios de prova constantes do processo, designadamente a gravação dos depoimentos realizada, com a particularidade de indicar, com exatidão, as passagens da gravação em que se funda o recurso da impugnação da matéria de facto destinado à correção do erro na apreciação das provas.

Para além disso, e como inovação do atual CPC, o recorrente deve também ainda especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Em suma, no âmbito da impugnação da matéria de facto, o recorrente está obrigatoriamente vinculado a discriminar os factos mal julgados, preenchendo as conclusões, e os meios de prova do processo determinantes de um julgamento diverso, assim como a indicar o julgamento correto de tais factos.

Trata-se, pois, de circunstâncias clarificadoras da alegação tendo por fim a obtenção de um julgamento justo, que corresponda à realidade material dos factos, numa coincidência entre estes e a verdade.

O incumprimento do ónus de alegação na impugnação da matéria de facto acarreta, sem mais, a rejeição do recurso, não sendo admissível o aperfeiçoamento da alegação, em caso de deficiência ou irregularidade, diferentemente do que sucede noutro âmbito do recurso (art. 639.º, n.º 3, do CPC)”.

Cumpre o ónus imposto pelo art. 640º, do CPC, o apelante que nas suas alegações de recurso, tenha identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, tenha indicado a prova carreada aos autos, nomeadamente o depoimento de testemunhas ou teor de documentos apresentados, que entendeu mal valorada, tenha referido qual o resultado probatório que nos seu entender deveria ter tido lugar, relativamente a cada facto impugnado, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar.

No recurso de revista, como acontecia na apelação, a recorrente nada invoca demonstrativo de que a Relação deveria ter conhecido da matéria de facto impugnada e não concluir pela rejeição do recurso. Isso se nota das conclusões supratranscritas, sendo que na motivação, nada de relevante na matéria se diz.

E, respigando as alegações do recurso para a Relação, relativamente à matéria de facto, nada de útil vem alegado no sentido de se poder concluir que a apelante deu cumprimento ao ónus de alegação que lhe é imposto pelo já referido art. 640º, do CPC.

Assim, entendemos que bem andou a Relação ao rejeitar o recurso relativamente à impugnação da matéria de facto, porque não foi dado cumprimento ao ónus imposto à recorrente pelo art. 640º do CPC.

A recorrente não identifica, não concretiza os pontos da matéria de facto que pretendia ver alterados e como entendia dever ser alterada essa matéria, assim como não indica os concretos meios probatórios que impunham a alteração.

A ora recorrente, então apelante não impugnou corretamente (nos termos previstos na lei de processo) a matéria de facto, dado que desse seu recurso não constam os requisitos legais para o efeito, mesmo socorrendo-nos do corpo das alegações.

O recorrente não cumpre os seus ónus quando se limita a discorrer genericamente sobre o teor da prova produzida, sem indicar os concretos meios probatórios que, sobre cada um dos pontos impugnados, impunham decisão diversa da recorrida” – Ac. do STJ de 27-09-2018, proferido no processo nº 2611/12.2TBSTS.L1.S1. Aí se acrescenta “para que o ónus a cargo do recorrente seja cumprido é também necessário, isto é, exige-se ao recorrente, uma análise crítica da prova invocada, em confronto com o que consta da motivação da sentença, que permita justificar a alteração da decisão proferida sobre os factos”. Deve indicar-se a razão pela qual a decisão deve ser num sentido e não noutro.

Desde o regime originário do duplo grau de jurisdição no que respeita a conhecimento da matéria de facto, emergente do DL 329-A/95, sempre vigorou um rigoroso ónus de delimitação do objeto da impugnação deduzida pelo apelante e de fundamentação minimamente concludente de tal impugnação, traduzido na necessária e cabal indicação dos pontos de facto questionados e dos meios probatórios que imponham decisão diversa sobre eles, complementado entretanto pela vinculação do recorrente a indicar qual o exato sentido decisório que decorreria da correta apreciação dos meios probatórios em causa, assim mostrando claramente onde estava situado o invocado erro de julgamento.

É entendimento deste STJ que relativamente à inobservância do disposto no art. 640º, n.º 1, als. a), b) e c) implica a rejeição imediata do recurso na parte infirmada, enquanto o incumprimento ou o cumprimento deficiente do disposto no art. 640, n.º 2, al. a)) apenas acarreta a rejeição nos casos em que dificultem, gravemente, a análise pelo tribunal de recurso e/ou o exercício do contraditório pela outra parte.

E no mesmo sentido refere Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 165, “em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” e acrescenta “são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra geral que se extrai do art. 635º, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões” e reafirma na nota 274, a págs. 168 que “ainda que não tenha utilizado no art. 640º uma enunciação paralela à que consta do nº 2 do art. 639 sobre o recurso da matéria de direito, a especificação nas conclusões dos pontos de facto a que respeita a impugnação serve para delimitar o objeto do recurso”.

E no recente Ac. desta Secção se decidiu: “I - Os ónus primários previstos nas als. a), b) e c) do art. 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.   II - O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.” – Ac. de 02-02-2022 no Proc. n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1.

Face ao exposto temos que não merece censura o acórdão recorrido, ao não conhecer do recurso de apelação interposto no que concerne à reapreciação da matéria de facto, não se mostrando violados quaisquer preceitos legais.

A Relação, face ao objeto do recurso que lhe é apresentado, “deve alterar a decisão sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, e só nesses casos, tal como preceitua o art. 662º nº 1 do CPC.

- Omissão do dever de convidar o recorrente a completar, esclarecer ou sintetizar as conclusões.

Relativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto não há lugar ao despacho de aperfeiçoamento das respetivas alegações uma vez que o art. 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do art. 639.º”, ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto.

 A norma do art. 640º do CPC, relativa ao recurso de impugnação respeitante à matéria de facto é omissa (o legislador assim o quis), não contém uma norma semelhante à do nº 3 do art. 639º do mesmo diploma legal, relativa ao recurso que verse sobre a matéria de direito.

No recurso sobre a matéria de facto se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640º, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada.

Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640º do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento.

A interpretação da expressão “sob pena de rejeição” consagrada no art. 640, n.º 1, do CPC, inculca a ideia de que o desrespeito do cumprimento do respetivo ónus é sancionado com imediata rejeição do recurso, não havendo, neste particular, espaço para qualquer convite intercalar ao aperfeiçoamento – Cfr.   Acórdão do STJ de 24-05-2018 no Proc. n.º 4386/07.8TVLSB.L1.S1.

“III - Omitindo o recorrente o cumprimento daquele ónus processual fixado na al. c) do n.º 1 do art. 640, impõe-se a imediata rejeição do recurso, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento” –Cfr. Acórdão do STJ de 26-04-2018 no Proc. n.º 46/11.3TBBGC.G1.S1.

“III - A decisão referida em II, implicando a anulação do acórdão recorrido, prejudica a apreciação da segunda questão subsidiariamente colocada e consistente em saber da possibilidade de o tribunal convidar a parte a aperfeiçoar a alegação, no caso de insuficiência desta, o que, em todo o caso, mereceria resposta negativa, dado ser jurisprudência pacífica do STJ que a expressão legal “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte” implica que não há obrigação de, antes da rejeição, formular o referido convite” -  Acórdão do STJ de 20-03-2018, no Proc. n.º 2542/11.3TBOAZ.P1.S1.

E o acórdão do STJ de 08-03-2018, Proc. n.º 709/11.3TBBCL-A.G1.S2, refere: “A insatisfação do ónus de especificação dos requisitos previstos no art. 640 do CPC para a impugnação da decisão sobre a matéria de facto importa, irremissivelmente, a rejeição do recurso, nessa parte, pois a lei afastou a possibilidade da atuação, pela Relação, do dever de prevenção, lançando mão de um convite ao aperfeiçoamento da alegação”.

No que respeita ao recurso da matéria de facto, procurou inviabilizar-se a possibilidade de formulação de convites ao aperfeiçoamento, geradores de incidentes dilatórios, no que se refere ao adequado cumprimento dos ónus a cargo do apelante, cabal e claramente definidos pela lei de processo, por se considerar tal possibilidade geradora de possíveis abusos e potenciadora de atrasos processuais: a falta de cumprimento adequado pelo recorrente dos ónus, claramente definidos na lei, seria, pois, indício de uma falta de consistência e seriedade na impugnação da matéria de facto que, sem mais, deveria ditar o imediato insucesso do recurso, nessa parte – tal como se pronuncia o Ac. deste STJ de 29-10-2015, no Proc. nº 233/09.4TBVNG.G1.S1.

Junção de documentos com as alegações da apelação.

Da conjugação lógica entre o art. 651º, nº 1 e os arts. 425º e 423º, do CPC, resulta que a junção de documentos na fase de recurso, pode ser admitida, mas a título excecional, dependendo da alegação e da prova pelo interessado nessa junção, da impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso ou, o julgamento de primeira instância (que culmina na sentença) ter introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.

A recorrente/requerente da junção dos documentos apenas alegou: “Juntam-se alguns documentos dado que só devido à sentença recorrida fazem sentido. Isto é, tais documentos, nomeadamente os referentes a veículos automóveis, por nunca se ter, nem por longe, imaginado que se iria dispor do que só às partes respeita, cremos ser admissível que se juntem tais documentos. O recurso visa ex lege se sentença recorrida foi a que devia ter sido proferida. Não se trata, portanto de factos novos. Doc. Nº 1 composto por 3 fols , indicando o pedido monetário “pornográfico” pelo aparcamento.

Não se encontra preenchido qualquer dos requisitos que podem fundamentar a admissão de documentos nos autos depois do encerramento da discussão.

A junção de documentos ao abrigo do disposto no art. 651º, nº 1, do CPC (a junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum – cfr. Ac. da Rel. de Co., de 18-11-2014, no Proc. nº 628/13.9TBGRD.C1.

Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 242 escreve, “Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este seja  de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo”.

Assim que concordamos com o acórdão recorrido que refere, citando  Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “É evidente que a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª. instância”, cabendo na intenção legislativa apenas os casos em que “pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida” (in “Manual de Processo Civil”, 1984, pág. 517).

E, refere o acórdão recorrido, “Na interpretação deste regime deve atentar-se em que a necessidade da junção de um documento que pode derivar do julgamento em primeira instância não corresponde à necessidade de suprir uma insuficiência instrutória anterior.

Pelo contrário, identificar-se-á uma tal necessidade quando o tribunal, oficiosamente, lance mão de um facto novo cognoscível, mas em desrespeito para com o princípio do contraditório.

No caso concreto, não alegando e demonstrando a recorrente qual a circunstância concreta ocorrida para a junção dos documentos, para além de não alegar qual a utilidade deles decorrente, a não ser o desfecho da decisão lhe ser desfavorável, não é de admitir os documentos apresentados com as alegações de recurso, determinando-se a sua entrega à apresentante.”

E no sentido do que vimos sustentando, o Ac. do STJ de 30-04-2019, proferido no Proc. nº 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, que conclui: “No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.”

E acresce que, no caso vertente, sendo rejeitado o recurso de apelação por a impugnação da matéria de facto não cumprir o ónus especificado no art. 640º, do CPC, nenhum efeito útil teriam nos autos tais documentos.

Face ao que ficou dito, temos como improcedentes as conclusões do recurso e, consequentemente, a improcedência da revista.


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Sumário elaborado nos termos do disposto no art. 663 nº 7 do CPC:

I- Em termos gerais, pode afirmar-se que, na sua jurisprudência o STJ tem seguido, essencialmente, um critério de proporcionalidade e da razoabilidade, entendendo que os ónus enunciados no art. 640º do CPC pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objeto do recurso.

II- O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.

III- No recurso sobre a matéria de facto se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640º, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetiza-las, na parte afetada.

IV- Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640º do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento.

V-A apresentação de documentos com as alegações de recurso, quando a junção se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, apenas pode ocorrer quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.


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Decisão:

Acorda-se na 1ª Secção do STJ em julgar o recurso improcedente, nega-se a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas da revista pela recorrente.     


Lisboa, 14-02-2023

Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo - Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua - Juiz Conselheiro 2º adjunto