| Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | NUNO PINTO OLIVEIRA | ||
| Descritores: | ANULABILIDADE PRAZO DE ARGUIÇÃO CONTRATO DE ARRENDAMENTO CASA DE MORADA DE FAMÍLIA CONSENTIMENTO CÔNJUGE CADUCIDADE NEGÓCIO JURÍDICO TRANSAÇÃO INTERPRETAÇÃO DA LEI INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO ABUSO DO DIREITO | ||
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| Data do Acordão: | 05/28/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
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| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
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| Sumário : | O artigo 287.º, n.º 2, do Código Civil, deve aplicar-se ao caso de anulabilidade do negócio jurídico previsto nos artigos 1682.º-B e 1687.º do Código Civil. | ||
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| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Recorrente: AA Recorridos: BB e CC I. — RELATÓRIO 1. AA propôs acção declarativa com processo comum contra BB e CC, pedindo a condenação dos Réus: I. — a reconhecerem o direito de propriedade da Autora sobre o anexo 5, destinado a habitação, e sobre a arrecadação, do prédio urbano sito na R. das ..., 148, em ...; II. — a restituírem à Autora os locais reivindicados; III. — a pagarem a quantia de € 500,00 por cada mês decorrido desde 1 de Julho de 2021 até à data da restituição. 2. Os Réus contestaram, defendendo-se por impugnação e por excepção. 3. Alegaram que o contrato de transacção concluído entre a Autora AA e o 1.º Réu BB era anulável por a 2.ª Ré CC não ter consentido na revogação do contrato de arrendamento da casa de morada da família. 4. A Autora respondeu à excepção deduzida, deduzindo a contra-excepção de caducidade do direito de anulação. 5. O Tribunal de 1.º instância proferiu despacho saneador, julgando procedente a contra-excepção de caducidade do direito de anulação. 6. Inconformada, a Ré CC interpôs recurso de apelação. 7. A Autora AA contra-alegou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido. 8. O Tribunal da Relação julgou procedente o recurso, anulando o contrato de transacção concluído entre a Autora AA e o Réu BB. 9. O dispositivo do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação é do seguinte teor: Em face do exposto julga-se procedente o recurso e revoga-se a decisão recorrida, a qual se substitui por esta outra que, declarando anulada a transacção outorgada em 4/3/2014 pela A. e pelo R. marido, absolve os RR. do pedido de restituição do imóvel arrendado e do pagamento da quantia mensal de € 500,00 por cada mês decorrido até à restituição. Custas da acção e do recurso pela A. recorrida. 10. Inconformada, a Autora AA interpôs recurso de revista. 11. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões: 1ª A presente revista tem por objecto o douto Acórdão de fls. que decidiu o seguinte: DECISÃO Em face do exposto julga-se procedente o recurso e revoga-se a decisão recorrida, a qual se substitui por esta outra que, declarando anulada a transacção outorgada em 4/3/2014 pela A. e pelo R. marido, absolve os RR. do pedido de restituição do imóvel arrendado e do pagamento da quantia mensal de € 500,00 por cada mês decorrido até à restituição. Custas da acção e do recurso pela A. recorrida. 2ª O Acórdão fundamentou a sua decisão no seguinte: • o disposto no nº 2 do art.º 287º do Código Civil é aplicável ao direito de anulação do cônjuge que não deu o seu consentimento; • o negócio não está cumprido enquanto os seus efeitos não se produziram; • assim havendo que concluir que em relação ao negócio celebrado por um dos cônjuges em contrário ao disposto nos nº 1 e 3 do art.º 1682º, nos art.º 1682º-A e 1682º-B e no nº 2 do art.º 1683º, todos do Código Civil, cujos efeitos ainda não se tiverem produzido, pode o outro cônjuge arguir a anulabilidade do mesmo sem dependência do prazo a que respeita o nº 2 do art.º 1687º do Código Civil, tanto por via de acção como por via de excepção; • a transacção só operava os seus efeitos, no que à disposição do direito ao arrendamento por parte do R. marido arrendatário respeita, no momento em que não operasse a renovação, com a correspondente restituição do imóvel arrendado à A. senhoria; • De outro modo, e a interpretar-se o disposto no nº 2 do art.º 1687º do Código Civil apenas com recurso ao seu elemento literal e sem atentar à unidade do sistema, sempre haveria que recusar à A. senhoria o exercício do seu direito de oposição à renovação do contrato de arrendamento, por aplicação do disposto no art.º 334º do Código Civil, na medida em que o referido direito de oposição à renovação havia sido obtido pela mesma através da prática de um acto em violação das disposições legais destinadas à protecção da casa de morada de família (como é o caso do art.º 1682º-B do Código Civil), e que se apresentam como lei imperativa. 3ª O negócio considera-se não cumprido enquanto não estiver cumprida a obrigação ou obrigações dele emergentes. 4ª Logo, considera-se que um contrato está cumprido quando os seus efeitos essenciais se verificam. 5ª Da transacção homologada por sentença de 04-03-2014, transitada em julgado, proferida no processo que correu termos sob o número 155569/13.3... no então designado ...º Juízo Local Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de ..., resulta que as partes assumiram obrigações quanto: - ao reconhecimento do réu como arrendatário da casa de habitação e do anexo; - quanto ao prazo do contrato; e - quanto ao valor da renda. 6ª Daqui se retira a conclusão de que as obrigações assumidas se traduzem na manutenção de um contrato de arrendamento com um prazo de sete anos e com uma renda diferente da que se encontrava em vigor na data da celebração da transacção. 7ª Pelo que, cumprem o contrato de arrendamento as partes que asseguram o gozo da coisa (do lado do senhorio) e pagam a renda (do lado do inquilino). 8ª Nos presentes autos nada foi alegado quer quanto ao não cumprimento do gozo da coisa quer quanto não pagamento da renda, pelo que, não pode deixar de considerar que a transacção encontra-se cumprida e os efeitos dela emergentes produziram-se. 9ª Tendo as partes acordado num prazo certo de vigência do contrato de arrendamento, a faculdade da senhoria se opor à renovação é livre e da transacção nada consta quanto à proibição do exercício dessa faculdade. 10º Também do lado do réu marido não se pode afirmar que a transacção não foi cumprida, já que tem vindo a cumprir a obrigação dela decorrente que é a do pagamento da renda. 11ª Assim, verificados que estão os efeitos essenciais do contrato de arrendamento cujas condições resultam da transacção referida, carece de fundamento legal considerar que esta não se encontra cumprida. 12ª E, consequentemente carece, também, de fundamento a possibilidade de invocar a sua anulabilidade a todo o tempo, sob pena de colocar em causa a segurança e certeza jurídica essencial ao Estado de Direito. 13ª O regime jurídico relativo às ilegitimidades conjugais encontra-se previsto nos artigos 1682.º e ss. do Código Civil, estando o regime sancionatório consagrado no artigo 1687.º do mesmo código. 14ª Os actos praticados sem o necessário consentimento são, em regra, anuláveis a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros, embora se trate de uma anulabilidade com algumas especialidades. 15ª Em primeiro lugar, no tocante ao prazo, uma vez que o direito de anulação pode ser exercido nos seis meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos três anos sobre a sua celebração, ainda que o conhecimento seja muito posterior. 16ª Assim, o regime da anulabilidade decorrente da ilegitimidade conjugal tem carácter especial quanto ao prazo de arguição. 17ª Logo, tendo um regime especial, não são aplicáveis as regras decorrentes das disposições gerais e – em concreto – o disposto no nº 2 do artigo 287º do Código Civil. 18ª A especificidade do regime das ilegitimidades conjugais deve prevalecer sobre o regime geral aplicável à anulabilidade. 19ª O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não teve em consideração a necessidade de prova quanto à data do conhecimento da transacção pela ré. 20ª Sendo certo que cabia à ré o ónus da prova quanto à data do conhecimento da transacção e, também, que não a conheceu mais cedo por facto não imputável ao réu marido. 21ª A ré mulher veio alegar na sua contestação que só teve conhecimento da transacção na data em que foi citada para os presentes autos, isto é, no dia 16/12/2021. 22ª Em sede de resposta às excepções, a autora veio alegar que não só esse facto não é verdadeiro (porque a ré mulher recebeu a carta de oposição à renovação no dia 8/5/2020), mas também porque se assim não fosse, tal seria exclusivamente imputável ao réu marido. 23ª Pelo que, a data do conhecimento da transacção pela ré mulher constituía matéria controvertida. 24ª E, foi exactamente pela produção de prova que foi já proferida sentença final (ainda não transitada, mas que decretou a restituição do local dos autos) da qual resultaram os seguintes factos provados: 8. No dia 5 de Maio de 2020, a Autora enviou aos Réus a seguinte comunicação: Como vossa excelência bem sabe, a nossa transacção judicial determinou a fixação do prazo do seu arrendamento em mais sete anos até 20 de Fevereiro de 2021. Por não me interessar nova prorrogação do prazo deste contrato, venho nos termos do artigo 1097, número 1 alínea A do Código Civil, opor-me a sua renovação para o termo do respectivo prazo, ou seja, 28 Fevereiro 2021. Nesta data deverá vossa excelência devolver-me o imóvel livre e devoluto. 9. O Réu recebeu a missiva em 07-5-2020. 10. A Ré recebeu a missiva em 08-05-2020. 25ª Assim, daqui resulta que a ré sabia que o contrato ia terminar desde o dia 8 de Maio de 2020! 26ª Acresce também que o conhecimento da ré mulher quanto à oposição à renovação pela autora nem sequer implicava que esta conhecesse os termos exactos da transacção. 27ª Logo, aplicando-se o regime especial previsto no artigo 1687º, nº 2 do Código Civil, o direito de anulação deveria ter sido exercido nos seis meses subsequentes à data em que a ré mulher teve conhecimento da oposição à renovação comunicada pela autora. 28ª O Acórdão recorrido considerou o seguinte: De outro modo, e a interpretar-se o disposto no nº 2 do art.º 1687º do Código Civil apenas com recurso ao seu elemento literal e sem atentar à unidade do sistema, sempre haveria que recusar à A. senhoria o exercício do seu direito de oposição à renovação do contrato de arrendamento, por aplicação do disposto no art.º 334º do Código Civil, na medida em que o referido direito de oposição à renovação havia sido obtido pela mesma através da prática de um acto em violação das disposições legais destinadas à protecção da casa de morada de família (como é o caso do art.º 1682º-B do Código Civil), e que se apresentam como lei imperativa. 29ª No entendimento do douto Acórdão recorrido sempre haveria que recusar à autora o direito de oposição à renovação porque foi obtido pela mesma através da prática de um acto em violação das disposições legais destinadas à protecção da casa de morada de família. 30ª Nos presentes autos não foi apurado qualquer facto que demonstre que a autora actua com abuso de direito. 31ª Bem pelo contrário, foi apurado sim que o réu marido omitiu à ré mulher de forma intencional a celebração da transacção, facto do desconhecimento da autora. 32ª Não versando a presente revista sobre a matéria de facto, como é sabido, o douto Acórdão recorrido não podia aplicar a figura do abuso de direito sem que fossem apurados factos relativos à conduta da autora que demonstrassem a forma abusiva de exercer o seu direito. 33ª Na verdade, não basta que a transacção tenha sido celebrada sem a intervenção e conhecimento pela ré mulher para desde logo concluir que tal facto é imputável à autora. 34ª A autora celebrou a transacção de boa fé e fê-lo há cerca de 11 anos! 35ª Não é legítimo paralisar o direito da autora ao fim do decurso de onze anos, sob pena de lesar o direito de propriedade da autora, direito constitucionalmente garantido! 36ª Aliás, é legítimo concluir que com o decurso do referido período tempo foi criada na autora a expectativa legítima de que o direito não mais seria exercido. 37ª Ora, face às circunstâncias dos presentes autos, não resultam quaisquer factos que demonstrem um comportamento abusivo da parte da autora e que seja considerada uma situação de grave, chocante e reprovável injustiça. 38ª Acresce que o Acórdão recorrido constitui – na parte da aplicação do instituto do abuso de direito – uma decisão surpresa. 39ª Nenhuma das partes veio invocar o abuso de direito, não tendo sido um instituto discutido nos autos. 40ª O princípio do contraditório é, com efeito, um dos princípios estruturantes do processo civil, resultando do disposto no número 3 do artigo 3.º do CPC. 41ª Decorre do aludido princípio que cada parte é chamada a apresentar as suas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas e a pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras e, portanto, não é lícito ao juiz decidir sobre questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. 42ª O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio do contraditório integra o direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrado no artigo 20º da CRP. 43ª É pacífico na jurisprudência o entendimento de que se está perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou até quando a decisão coloca a discussão jurídica num diferente plano daquele em que a parte o havia feito. 44ª O douto Acórdão recorrido aplicou erradamente o disposto no número 2 do artigo 287.º do Código Civil. 45ª O douto Acórdão recorrido violou o regime especial previsto no artigo 1687º, nº 2 do Código Civil. 46ª O douto Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC e o artigo 342º do Código Civil. 47ª Em face do exposto, deve o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que declare extinto o direito da ré mulher de alegar a anulabilidade da transacção celebrada no processo que correu termos sob o número 155569/13.3... no então designado ...º Juízo Local Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de .... Assim decidindo, Venerandos Conselheiros, uma vez mais se fará a costumada e esperada JUSTIÇA! 12. Os Réus BB e CC contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso. 13. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código do Processo Civil), as questões a decidir, in casu, consistem em determinar. I. — se o acórdão recorrido é nulo, por violação do princípio do contraditório; II. — se o artigo 287.º, n.º 2, do Código Civil se aplica à anulabilidade prevista no artigo 1682.º-B, em ligação com o artigo 1687.º, do Código Civil; em caso de resposta afirmativa, IIi. — se a Autora AA incorreu em abuso do direito ao emitir a declaração de ... de ... de 2021; em caso de resposta negativa, IV. — se o contrato de transacção concluído entre a Autora AA e o Réu BB devia considerar-se cumprido em 5 de Maio de 2021. II. — FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS 14. O acórdão recorrido não contém uma enunciação dos factos dados como provados, dizendo tão-só que: I. — “[a] materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório”; II. — “o teor da transacção outorgada em 4/3/2014 e homologada por sentença proferida na mesma data [é o seguinte]. “1º A autora reconhece que o réu é titular de um direito ao arrendamento sobre o anexo 5, localizado na Rua das ..., nº 148, ...; 2º O ré aceita a existência do direito referido na cláusula que antecede e que até hoje pensou corresponder ao anexo 6; 3º O contrato de arrendamento existente e vincula as partes, passará a ter a duração de mais 7 anos, sendo que o ser términus ocorrerá em 28/Fevereiro/2021; 4º O prazo referido na cláusula 3.º abrange, quer o arrendamento relativo à casa de habitação, quer à arrecadação; 5º Até à renda vencida em Fevereiro de 2014, a quantia mensal a pagar pelo réu, pelo gozo do anexo referido na cláusula 1.º, à autora, é correspondente a € 24,94 ao qual acresce o valor de € 29,93 relativo ao arrendamento da arrecadação também existente entre as partes; 6º O réu autoriza a autora a proceder ao levantamento da quantia de € 209,51 depositado na conta nº ...........50 da CGD e o montante de € 174,79 depositado na conta nº ...........50, correspondente às rendas vencidas desde Agosto de 2013 até Fevereiro de 2014; 7º A partir da renda a vencer-se no dia 8 do mês de Março de 2014, a contrapartida mensal a pagar pelo réu à autora, passa a ser no montante de € 120,00, ao qual acresce o valor de € 29,93 relativo ao arrendamento da arrecadação; 8º As quantias referidas nesta última cláusula serão pagas pelo réu à autora até ao dia 8 do mês anterior a que respeita a renda e serão pagas por transferência bancária para o NIB a indicar pela autora ao réu no prazo de 2 dias; 9º A autora compromete-se nos próximos 6 meses a colocar contadores individuais e independente de água e luz no anexo referido na cláusula 1º., comprometendo-se o réu a dar toda a colaboração necessária para o efeito, ficando as despesas a cargo da autora; 10º O remanescente das quantias depositadas nas contas referidas na cláusula 6.º, será levantado pelo réu, após o levantamento pela autora das quantias aí referidas; 11º Até à colocação dos contadores independentes, o réu continuará a proceder da forma como até hoje tem procedido, pagando à autora o montante que a mesma lhe indique para o efeito; 12º Caso o prazo referido na cláusula 9.º seja ultrapassado, deverá a autora justificar junto do réu que tal não lhe é imputável, sob pena de o réu executar o incumprimento dessa mesma alínea; 13º As custas em dívida a juízo serão pagas em partes iguais, prescindindo ambas partes das custas de parte e das de procuradoria na parte disponível”. O DIREITO 14. A primeira questão relaciona-se com a violação do princípio do contraditório. 15. A Autora, agora Recorrente, alega que a aplicação ao caso sub judice do princípio da proibição do abuso do direito constituiu uma decisão-surpresa (conclusões 38.º-43.º do recurso de revista). 16. O artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é do seguinte teor: 3. — O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. 17. O acórdão recorrido refere-se ao abuso do direito na seguinte passagem, e só na seguinte passagem da sua fundamentação: “… sempre haveria que recusar à A. senhoria o exercício do seu direito de oposição à renovação do contrato de arrendamento, por aplicação do disposto no art.º 334º do Código Civil, na medida em que o referido direito de oposição à renovação havia sido obtido pela mesma através da prática de um acto em violação das disposições legais destinadas à protecção da casa de morada de família (como é o caso do art.º 1682º-B do Código Civil), e que se apresentam como lei imperativa”. Em primeiro lugar, não estava em causa decidir nenhuma questão, de direito ou de facto. O acórdão recorrido deduziu tão-só um argumento para reforçar uma solução encontrada através da articulação entre o artigo 1687.º e o artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Em segundo lugar, o argumento deduzido era tão-só um argumento subsidiário — só relevaria se devesse “interpretar-se o disposto no nº 2 do artigo 1687º do Código Civil apenas com recurso ao seu elemento literal e sem atentar à unidade do sistema”. 18. Face ao exposto, não houve nenhuma violação do princípio do contraditório. 19. A segunda questão relaciona-se com a aplicabilidade do artigo 287.º, n.º 2, do Código Civil à anulabilidade prevista no artigo 1682.º-B, em ligação com o artigo 1687.º do Código Civil. 20. O contrato de transacção concluído entre a Autora AA e o Réu BB e homologado por sentença de 4 de Março de 2014 era do seguinte teor: 1º A autora reconhece que o réu é titular de um direito ao arrendamento sobre o anexo 5, localizado na Rua das ... nº 148, ...; 2º O ré aceita a existência do direito referido na cláusula que antecede e que até hoje pensou corresponder ao anexo 6; 3º O contrato de arrendamento existente e vincula as partes, passará a ter a duração de mais 7 anos, sendo que o ser términus ocorrerá em 28/Fevereiro/2021; 4º O prazo referido na cláusula 3.º abrange, quer o arrendamento relativo à casa de habitação, quer à arrecadação; 5º Até à renda vencida em Fevereiro de 2014, a quantia mensal a pagar pelo réu, pelo gozo do anexo referido na cláusula 1.º, à autora, é correspondente a €24,94 ao qual acresce o valor de €29,93 relativo ao arrendamento da arrecadação também existente entre as partes; 6º O réu autoriza a autora a proceder ao levantamento da quantia de €209,51 depositado na conta nº ...........50 da CGD e o montante de €174,79 depositado na conta nº ...........50, correspondente às rendas vencidas desde Agosto de 2013 até Fevereiro de 2014; 7º A partir da renda a vencer-se no dia 8 do mês de Março de 2014, a contrapartida mensal a pagar pelo réu à autora, passa a ser no montante de €120,00, ao qual acresce o valor de €29,93 relativo ao arrendamento da arrecadação; 8º As quantias referidas nesta última cláusula serão pagas pelo réu à autora até ao dia 8 do mês anterior a que respeita a renda e serão pagas por transferência bancária para o NIB a indicar pela autora ao réu no prazo de 2 dias […]. 21. Entre o antes e o depois da transacção há uma diferença fundamental: antes da transacção, o contrato de arrendamento não tinha prazo; depois da transacção, desde que a transacção fosse válida e eficaz, teria um prazo de sete anos. 22. O artigo 1682.º-B do Código Civil é do seguinte teor: Relativamente à casa de morada de família, carecem do consentimento de ambos os cônjuges: a) A resolução, a oposição à renovação ou a denúncia do contrato de arrendamento pelo arrendatário; b) A revogação do arrendamento por mútuo consentimento; c) A cessão da posição de arrendatário; d) O subarrendamento ou o empréstimo, total ou parcial. 23. O contrato de transacção revogava o contrato de arrendamento concluído em Outubro de 1979, sem prazo, substituindo-o por um contrato com prazo — daí que, de acordo com o artigo 1682.º-B do Código Civil, a revogação do contrato de arrendamento dependesse do consentimento da 2.ª Ré CC. 24. O artigo 1687.º do Código Civil determina que os actos praticados contra o disposto no artigo 1682.º-B são anuláveis: 1. — Os actos praticados contra o disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 1682.º, nos artigos 1682.º-A e 1682.º-B e no n.º 2 do artigo 1683.º são anuláveis a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros, ressalvado o disposto nos n.ºs 3 e 4 deste artigo. 2. — O direito de anulação pode ser exercido nos seis meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos três anos sobre a sua celebração. […]. 25. Os prazos previstos no n.º 2 encontram-se esgotados: o prazo de 3 anos sobre a celebração do contrato terminou em 4 de Março de 2017 e, ainda que o prazo de 6 meses sobre o conhecimento cause maiores dificuldades, a Autora, agora Recorrente, alega que terá terminado em 8 de Novembro de 2020. A Ré CC terá tido conhecimento do contrato de transacção em 8 de Maio de 2020 — logo, o prazo para a anulação do contrato teria terminado em 8 de Novembro de 2020. 26. O problema está em averiguar se aos prazos do artigo 1687.º deverá aplicar-se o artigo 287.º, n.º 2, do Código Civil: Enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção. 27. A Autora, agora Recorrente, alega que não — que o regime especial dos artigos 1682.º-B e 1687.º derrogaria o regime geral da anulabilidade dos negócios jurídicos. 28. O argumento de que o regime especial dos artigos 1682.º-B e 1687.º derrogaria o regime geral da anulabilidade dos negócios jurídicos deve apreciar-se com algum cuidado. 29. Entre os pontos mais ou menos consensuais está o de que há algumas disposições do regime geral da anulabilidade dos negócios jurídicos aplicáveis à anulabilidade prevista nos artigos 1682.º-B e 1687.º — designadamente, o artigo 288.º do Código Civil, sobre a confirmação dos negócios jurídicos anuláveis 1. 28. O ponto está exclusiva ou essencialmente na compatibilidade das razões justificativas do artigo 287.º com as razões justificativas dos artigos 1682.º-B e 1687.º. 29. Manuel de Andrade apresentava duas razões para os prazos de anulação dos negócios jurídicos: I. — Da parte do contraente que pudesse prevalecer-se da invalidade do negócio jurídico, o prazo justificar-se-ia porque, “se a situação de facto está conforme a validade do negócio e lhe é desfavorável, tem ele todas as razões e estímulos para agir, sendo injustificável a sua inércia prolongada” 2. II. — Da parte do seu adversário, o prazo justificar-se-ia porque, se o contraente que pode prevalecer-se da invalidade não o faz, tem algumas razões para confiar na continuidade da situação de facto: “… é justo que a sua expectativa de validade do negócio não lhe seja prejudicada depois de decorrido muito tempo, uma vez que está na situação de facto correspondente e sobre tais bases pode ter organizado a sua vida e organizado planos de futuro” 3. 30. Enquanto o negócio não estivesse cumprido, nenhuma das duas razões para os prazos de anulação relevaria — explicar-se-ia e justificar-se-ia então “que a parte que tem legitimidade para arguir a [invalidade] não se [desse] pressa em o fazer” e não se justificaria então que o seu adversário confiasse na continuidade da situação de facto 4. 31. O facto de nenhuma das duas razões para os prazos de anulação dos negócios jurídicos relevar para os negócios não cumpridos explicará e justificará o artigo 287.º do Código Civil. 31. Esclarecida a lógica do artigo 287.º, n.º 2, do Código Civil, fica esclarecido por que deverá aplicar-se ao caso previsto nos artigos 1682.º-B e 1687.º do Código Civil. Em primeiro lugar, enquanto o negócio não estivesse cumprido, justificar-se-ia que o cônjuge que não deu o seu consentimento, como sujeito que tem legitimidade para arguir a anulabilidade, não se desse pressa em o fazer. O facto de o cônjuge que não deu o seu consentimento não ser parte só reforça o argumento — se se explica ou se justifica que o sujeito que participou no negócio, que é parte, não se dê pressa em arguir a invalidade, explica-se e justifica-se a fortiori que um sujeito que não participou no negócio, que não é parte, não se dê pressa em invocá-la. Em segundo lugar, enquanto o negócio não estivesse cumprido, não se justificaria que o seu adversário confiasse na continuidade da situação de facto. 32. Em resposta à segunda questão, dir-se-á que o artigo 287.º, n.º 2, do Código Civil se aplica à anulabilidade prevista no artigo 1682.º-B, em ligação com o artigo 1687.º, do Código Civil. 33. A terceira questão consiste em determinar se a Autora AA incorreu em abuso do direito ao emitir a declaração de 5 de Maio de 2021. 34. O acórdão recorrido sugere que sim — a Autora, agora Recorrente, AA teria adquirido ilicitamente o direito de fazer cessar a relação de arrendamento, de acordo com o artigo 1097.º do Código Civil: “… o referido direito de oposição à renovação havia sido obtido pela mesma através da prática de um acto em violação das disposições legais destinadas à protecção da casa de morada de família (como é o caso do artigoº 1682º-B do Código Civil), e que se apresentam como lei imperativa”. 35. O problema está em que nada sugere que haja alguma ilicitude no contrato de transacção concluído entre a Autora AA e o 1.º Réu BB ou, em todo o caso, que haja alguma ilicitude no contrato distinta daquela que o artigo 1687.º do Código Civil sanciona com a anulabilidade. 36. A Autora AA, ao exercer o direito de fazer cessar a relação de arrendamento, de acordo com o artigo 1097.º do Código Civil, está tão-só a exercer um direito resultante do contrato de transacção homologado em 4 de Março de 2014 — i.e., de um contrato anulável (ainda) não anulado. 37. O direito civil trata os contratos anuláveis (ainda) não anulados como contratos válidos — provisoriamente válidos. 38. O exercício de um direito resultante de um contrato anulável (ainda) não anulado não é, sem mais, contrário à boa fé, aos bons costumes ou ao fim económico e social do direito exercido 5 39. Em lugar de um exercício ilegítimo — logo, abusivo —, há tão-só o exercício legítimo do direito resultante de um contrato provisoriamente válido. 40. Em resposta à terceira questão, dir-se-á que a Autora AA não incorreu em abuso do direito ao emitir a declaração de 5 de Maio de 2021. 41. A quarta questão consiste em determinar se o contrato de transacção concluído entre a Autora AA e o Réu BB devia considerar-se cumprido em 5 de Maio de 2021. 42. A Autora, agora Recorrente, alega que sim — que o contrato de transacção não era um negócio obrigacional, no sentido de negócio constitutivo de relações obrigacionais, e que, não sendo um negócio constitutivo de relações obrigacionais, os seus efeitos se tinham esgotado. 43. O artigo 287.º, n.º 2, do Código Civil, ao dizer Enquanto… o negócio não estiver cumprido, pode interpretar-se declarativa ou extensivamente: pode interpretar-se declarativamente, de forma a que só se aplique a negócios obrigacionais, porque só os negócios obrigacionais constituem deveres de prestação susceptíveis de serem cumpridos, ou pode interpretar-se extensivamente, de forma a que se aplique a todos os negócios, ainda que não sejam negócios obrigacionais. Interpretado extensivamente, o artigo 287.º, n.º 2, ao dizer Enquanto… o negócio não estiver cumprido, estaria a dizer — enquanto não se produzir a situação de facto que desfavorável ao sujeito que pode prevalecer-se do direito de anulação. 44. Entre as duas interpretações do artigo 287.º, n.º 2, do Código Civil deve dar-se preferência à interpretação extensiva: se “[a] lei […] partiu do princípio de que […] o negócio está cumprido e alterado portanto o statu quo ante” 6, o factor decisivo para determinar se o negócio está ou não cumprido é a alteração do statu quo ante. 43. O acórdão recorrido chega a um resultado em tudo semelhante: “… quando o acto, pela sua própria natureza, não se destina a produzir de imediato qualquer um dos referidos efeitos de disposição do direito ao arrendamento, mas só decorrido determinado período de tempo, tal significa que o cônjuge que não deu o seu consentimento, por não ter estado presente na celebração do negócio respectivo, só tem a possibilidade de conhecer a prática do acto quando o mesmo produz os seus efeitos práticos, os quais se reconduzem à deslocação da casa de morada de família instalada no imóvel arrendado. Pelo que, nesta circunstância, a expressão legal ‘depois de decorridos três anos sobre a sua celebração’ deve ser interpretada restritivamente, no sentido de se reportar aos casos em que algum dos efeitos previstos no art.º 1682º-B do Código Civil desde logo se produz, por só assim estar respeitada a unidade do sistema, onde se integra igualmente o disposto no nº 2 do art.º 287º do Código Civil. Dito de outra forma, nas situações em que algum dos efeitos a que respeitam as diversas alíneas do art.º 1682º-B do Código Civil não se produz de imediato, pode o cônjuge que não deu o seu consentimento pedir a anulação do acto celebrado pelo outro cônjuge enquanto tal efeito não se produzir, e ainda que já tenham decorrido mais de três anos desde a sua celebração”. 44. Ora o statu quo ante só se alterou em termos relevantes para a 2.ª Ré CC desde que a Autora Autora AA denunciou o contrato de arrendamento, opondo-se à sua renovação. 45. Em resposta à quarta questão, dir-se-á que, em 5 de Maio de 2021, o contrato de transacção concluído entre a Autora AA e o 1.º Réu BB ainda não devia considerar-se cumprido. 46. Em consequência, ainda que tenha decorrido um prazo muito superior a seis meses desde a data em que a 2.ª Ré CC teve conhecimento do contrato de transacção e que tenha decorrido um prazo muito superior a três anos sobre a data em que a Autora AA e o 1.º Réu BB concluíram o contrato de transacção, o direito de anulação da 2.ª Ré CC não estaria caducado. III. — DECISÃO Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido. Custas pela Recorrente AA. Lisboa, 28 de Maio de 2024 Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator) José de Sousa Lameira José Maria Ferreira Lopes _______ 
 1. Francisco Manuel Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira (com a colaboração de Rui Manuel de Moura Ramos), Curso de direito da família, vol. I — Introdução. Direito matrimonial, 5.ª ed., Imprensa da Universidade, Coimbra, 2016, pág. 469. 2. Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II — Facto jurídico, em especial negócio jurídico, Livraria Almedina, Coimbra, 1974, pág. 422. 3. Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II — Facto jurídico, em especial negócio jurídico, cit., pág. 422. 4. Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II — Facto jurídico, em especial negócio jurídico, cit., pág. 422. 5. Cf. artigo 334.º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito”. 6. Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II — Facto jurídico, em especial negócio jurídico, cit., pág. 421. |