Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
158/17.0GATND.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: INCÊNDIO
PERIGO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA D APENA / REINCIDÊNCIA – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA A VIDA EM SOCIEDADE / CRIMES DE PERIGO COMUM / INCÊNDIO FLORESTAL.
Doutrina:
- Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque, O conceito de perigo nos crimes de perigo concreto, Direito e Justiça, volume VI, 1992, p 351 e ss.;
- Teresa Rodriguez Montañes, Delitos de Peligro, Dolo e Imprudencia, Universidad Complutense de Madrid e Centro de Estudios Judiciales, Madrid, 1994, p. 37-38.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 75.º, N.º 2 E 274.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA A).
Sumário :

I  -   Aceitando, como acontece com a generalidade da doutrina actual, o conceito normativo modificado do resultado de perigo", deveremos entender que o mencionado perigo, no caso, o perigo para bens patrimoniais de valor elevado (e não o perigo para a vida ou para a integridade física de outra pessoa, que aqui não estão em causa) existe a partir do momento em que não for possível assegurar a integridade do bem jurídico que entrou na esfera da acção típica, tendo a sua lesão ficado dependente do acaso".
II -  Existe perigo a partir do momento em que deixou de ser seguro impedir a lesão dos bens patrimoniais de valor elevado que podiam ser atingidos pelo incêndio provocado pelo arguido, dependendo a sua salvação de circunstâncias extraordinárias, nomeadamente da natureza ou do comportamento do próprio ameaçado. Ora, foi precisamente isto que sucedeu neste caso. O arguido provocou dolosamente o incêndio numa pluralidade de locais ocupados por floresta em condições de ele se propagar, estendendo-se às matas e aos matos vizinhos, que tinham um valor elevado, o que apenas não aconteceu porque as populações e os bombeiros, durante a noite, acorreram prontamente aos locais e extinguiram esses focos de incêndio. Estes, pela sua pluralidade e pelos locais em que ocorreram, criaram efectivamente o perigo de que viessem a ser consumidas e destruídas casas e floresta, provocando danos de elevado valor.
III - Não se pondo em causa a existência de dolo de perigo, a conduta do arguido integra, por isso, o tipo incriminador qualificado p. e p. pelo art. 274.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), do CP.
IV - O arguido foi considerado reincidente porque, devendo ser punido com uma pena de prisão efectiva superior a 6 meses, já tinha sido anteriormente condenado por sentença transitada em julgado, nas circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 75.º do CP, numa pena de prisão efectiva superior a essa mesma medida pela prática de vários crimes dolosos de incêndio e se entendeu que a anterior condenação não tinha servido de suficiente advertência contra o crime, decisão com que o recorrente se conformou.
V - Sendo o crime praticado pelo arguido, punível com pena de 4 a 12 anos de prisão, ponderando: a pluralidade de actos de deflagração praticados pelo arguido; a sua actuação durante a noite; a utilização de um veículo para a deslocação entre os locais em que o fogo foi ateado; a área total ardida; a intensidade do dolo, manifestada pela pluralidade de actos praticados; a influência do consumo de álcool na conduta do arguido; o acompanhamento clínico do arguido; a sua actividade laboral e a inserção familiar e social e as anteriores condenações que não foram consideradas para a decisão sobre a reincidência, não merece censura a pena de 7 anos de prisão aplicada pelo tribunal de 1.ª instância pela prática de um crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art. 274.º, n.º 1 e 2, al. a), do CP, ficando assim excluída a substituição da pena de prisão por uma pena não privativa da liberdade.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO
1 – O arguido AA foi julgado no Juízo Central Criminal de ... – Juiz ... – do Tribunal Judicial da Comarca de ... e aí condenado, por acórdão de 2 de Julho de 2018, pela prática de um crime de incêndio florestal p. e p. pelo artigo 274.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:

1) O arguido reside, há vários anos, na localidade de ..., conhecendo bem quer a referida povoação quer as suas imediações e as povoações limítrofes.

2) Por razões não concretamente determinadas, no dia 6 de outubro de 2017, a hora exata não apurada mas anterior às 21.15 horas, o arguido, que se encontrava embriagado, decidiu atear vários incêndios florestais na zona da área da sua residência e nas imediações da mesma.

3) Assim, com tal propósito, o arguido, entre as 21h15 do dia 6 de outubro de 2017 e as 00h01 do dia 07 de outubro de 2017, fazendo-se transportar num ciclomotor (scooter) de cor vermelha, circulou nas estradas que ligam várias localidades da freguesia de ..., concelho de ..., área desta comarca de ....

4) No dia 6 de outubro de 2017, pelas 21h15, o arguido dirigiu-se ao local denominado de ..., ...., e aí chegado, com recurso ao isqueiro (apreendido) que consigo trazia e que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um incêndio, ateou fogo à vegetação seca ali existente no solo junto à berma da estrada que é ladeada por uma mata constituída por povoamento de eucaliptal, pinheiro bravo e acácias, que desse modo logo ficou a arder em combustão autossustentada, do que o arguido se certificou, propagando-se à vegetação envolvente.

5) O local onde o arguido ateou o fogo estava inserido numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensas manchas florestais compostas essencialmente por eucalipto, mato, pinheiro bravo e acácias que se estendem por vários hectares e próximo de uma zona residencial, com várias casas de habitação, no valor de vários milhares de euros, muito superior a 5.100€.

6) Em consequência da atuação do arguido arderam cerca de 0,0266 ha de mato e pinheiros.

7) Logo de seguida a ter dado origem ao referido incêndio, o arguido saiu do mencionado local, e após ter percorrido umas centenas de metros, pelas 21h23, no lugar de ..., no talude superior da estrada que liga ... ao ..., com recurso ao referido isqueiro que consigo trazia e que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um novo incêndio, ateou fogo à vegetação seca ali existente no solo que desse modo logo ficou a arder em combustão autossustentada, do que o arguido se certificou, propagando-se à vegetação envolvente.

8) O local onde o arguido ateou o fogo estava inserido numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensas manchas florestais compostas essencialmente por eucalipto e pinheiro bravo que se estendem por vários hectares e próximo de uma zona residencial, com várias casas de habitação, no valor de vários milhares de euros, muito superior a 5.100€.

9) Em consequência da atuação do arguido arderam cerca de 0,0696 ha de mato.

10) Após ter dado origem ao incêndio referido em 7., o arguido saiu daquele local e deslocou-se para a localidade de ..., e pelas 21h43, junto à berma da estrada, mesmo em frente ao aviário da empresa "..., Lda.", com recurso ao referido isqueiro que consigo trazia e que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um novo incêndio, ateou fogo à vegetação seca ali existente no solo que desse modo logo ficou a arder em combustão autossustentada, do que o arguido se certificou, propagando-se à vegetação envolvente.

11) O local onde o arguido ateou o fogo estava inserido numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensas manchas florestais compostas essencialmente por pinheiro bravo e carvalhos que se estendem por vários hectares e próximo do referido aviário, no valor de vários milhares de euros, muito superior a 5.100€.

12) Em consequência da atuação do arguido arderam cerca de 0,0395 ha de mato.

13) Ainda não satisfeito com o resultado dos anteriores fogos a que deu azo com a sua conduta, logo a seguir o arguido saiu do local referido em 10. e dirigiu-se até à localidade de ..., e pelas 21h58, junto à berma da estrada, com recurso ao referido isqueiro que consigo trazia e que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um novo incêndio, ateou fogo à vegetação seca ali existente no solo que desse modo logo ficou a arder em combustão autossustentada, do que o arguido se certificou, propagando-se à vegetação envolvente.

14) O local onde o arguido ateou o fogo estava inserido numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensas manchas florestais compostas essencialmente por vinha e pinheiros bravos, que se estendem por vários hectares e próximo de construções agrícolas, no valor de vários milhares de euros, muito superior a 5.100€.

15) Em consequência da atuação do arguido arderam cerca de 0,0606 ha de mato.

16) Depois o arguido saiu daquele local e dirigiu-se para o lugar de .... Aí chegado, pelas 22h14, junto ao talude superior da estrada municipal, a cerca de 100 metros da localidade de ... e a cerca de 300 metros do entroncamento para ..., com recurso ao referido isqueiro que consigo trazia e que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um novo incêndio, ateou fogo à vegetação seca ali existente no solo que desse modo logo ficou a arder em combustão autossustentada, do que o arguido se certificou, propagando-se à vegetação envolvente.

17) O local onde o arguido ateou o fogo estava inserido numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensas manchas florestais compostas essencialmente por pinheiro bravo e carvalhos que se estendem por vários hectares e numa zona residencial, a própria localidade de ..., no valor de vários milhares de euros, muito superior a 5.100€.

18) Em consequência da atuação do arguido arderam cerca de 0,1003 ha de mato.

19) De seguida, deslocou-se para o lugar de ..., e pelas 23h10, junto à berma da estrada, com recurso ao referido isqueiro que consigo trazia e que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um novo incêndio, ateou fogo à vegetação seca ali existente no solo, essencialmente silvas e mato, que desse modo logo ficou a arder em combustão autossustentada, do que o arguido se certificou, propagando-se à vegetação envolvente.

20) O local onde o arguido ateou o fogo estava inserido numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensas manchas florestais compostas essencialmente por pinheiro bravo e eucalipto, que se estendem por vários hectares e numa zona residencial, a própria aldeia de ..., no valor de vários milhares de euros, muito superior a 5.100€.

21) Em consequência da atuação do arguido arderam cerca de 0,0109 ha de mato.

22) Depois o arguido saiu daquele local e dirigiu-se para o lugar de .... Aí chegado, pelas 00h01, já do dia 07/10/2017, junto a uma serventia em terra batida, no interior de um povoamento florestal composto essencialmente por pinheiro bravo e eucalipto, com recurso ao referido isqueiro que consigo trazia e que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um novo incêndio, o arguido ateou fogo em seis locais distintos, próximos uns dos outros, à vegetação seca ali existente no solo, que desse modo logo ficou a arder em combustão autossustentada, do que o arguido se certificou, propagando-se à vegetação envolvente.

23) Em consequência desta última atuação do arguido arderam 0,0035 ha de mato, quanto ao primeiro foco, 0,0043 ha de mato quanto aos 2.º e 3.º focos, 0,0360ha de mato quanto aos 4.º e 5.º focos e 0,0057 ha de mato quanto ao 6.º foco.

24) O local onde o arguido ateou o fogo estava inserido numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensas manchas florestais compostas essencialmente por pinheiro bravo e eucalipto que se estendem por vários hectares e numa zona residencial, a própria aldeia de ..., no valor de vários milhares de euros, muito superior a 5.100€.

25) Em toda a sobredita atuação o arguido sabia que ao atear os fogos pela forma descrita, nas condições e locais mencionados, punha em risco não apenas a referida mancha florestal envolvente, casas de habitação e construções próximas, o que sabia e quis, apesar de ciente do seu valor superior a centenas de milhares de euros, mas também, admitindo-o com indiferença, colocar em perigo a integridade física e a vida de terceiros dos habitantes das localidades onde levou a cabo os fogos, e das populações vizinhas, bem como de quem combatesse o fogo e de quem circulasse no local.

26) Não fora o facto de os incêndios terem sido detetados quase de imediato e prontamente combatidos pelos populares e pelos Bombeiros que acorreram ao local, a área ardida teria sido muito mais extensa e ter-se-ia propagado incontrolavelmente à mancha florestal contígua composta por vários hectares de eucaliptos, pinheiros bravos, acácias, carvalhos e mato denso e às várias casas de habitação e outras construções também contíguas das áreas ardidas, nas quais se incluem aquela onde o próprio arguido reside, no valor de vários milhares de euros, muitíssimo superior a 300.000€, o que o arguido sabia e quis.

27) Com a sua atuação, o arguido, em todas as situações, colocou em perigo as habitações e outras construções próximas dos locais onde ateou os fogos e a vasta mancha florestal envolvente, tudo de valor não concretamente apurado mas muito superior a 300.000€, o que o arguido sabia e quis, que apenas não arderam devido à pronta intervenção dos populares e dos bombeiros que acorreram aos locais e conseguiram debelar os fogos antes que estes se expandissem de forma incontrolada.

28) O arguido agiu, em todas as ocasiões, voluntária e conscientemente, e com o propósito, concretizado, de atear incêndios nas zonas florestais supra identificadas, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal como crimes.

29) O arguido já sofreu diversas condenações pela prática de crimes, a saber:

30) - no processo nº 9/04.5GATND foi condenado por sentença de 11.02.2004, transitada em julgado no dia 1.03.2004, pela prática em 1.02.2004 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo artigo 292º, nº 1, do C. Penal, na pena de multa que pagou;

31) - no processo nº 11/06.2GATND foi condenado por sentença de 17.03.2006, transitada em julgado no dia 3.04.2006, pela prática em 3.03.2006 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo artigo 292º, nº 1, do C. Penal, na pena de multa que pagou;

32) - no processo nº 26/10.6GCTND foi condenado por sentença de 12.02.2010, transitada em julgado no dia 17.03.2010, pela prática em 22.01.2010 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo artigo 292º, nº 1, do C. Penal, na pena de seis meses de prisão suspensa na sua execução e pena acessória de proibição de conduzir;

33) - no processo nº 479/09.5GCTND foi condenado por sentença de 13.10.2010, transitada em julgado no dia 2.11.2010, pela prática em 22.09.2009 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo artigo 292º, nº 1, do C. Penal, na pena de catorze meses de prisão suspensa na sua execução e pena acessória de proibição de conduzir, entretanto declarada extinta nos termos do artigo 57º do C. Penal;

34) - no processo comum coletivo n.º 781/10.3JACBR, do extinto Círculo Judicial de ..., atual Juízo Central de ... – Juiz 2, por acórdão de 09/06/2011, o qual foi, na sequência de interposição de recurso, confirmado pelo acórdão do Tribunal da Relação de ... de 28/09/2011, transitado em julgado a 20/10/2011, pelo qual foi condenado pela prática: no dia 09/09/2009, no dia 21/09/2009, no dia 23/09/2009, no dia 14/08/2010 e no dia 02/09/2010, de cinco crimes de incêndio florestal, sendo os quatro primeiros na forma consumada, previstos e punidos pelo artigo 274.º, nº 1 e 2, do Código Penal, cada um na pena de 2 anos e 4 meses de prisão efetiva, e o quinto (o levado a cabo no dia 02/09/2010), na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 274.º, nº 1 e 2, al. a), 22.º e 23.º, todos do Código Penal, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão efetiva, e na pena única de 5 anos e 7 meses de prisão, tudo conforme certidão de fls.93-139 que aqui se dá por inteiramente reproduzida.

35) Por acórdão cumulatório proferido no aludido PCC n.º 781/10.3JACBR, foi o arguido condenado, além do mais, nas penas únicas de 5 anos e 2 meses de prisão e 3 anos de prisão, a cumprir sucessivamente, na sequência de cúmulo jurídico das penas aplicadas nos Processos n.º 781/10.3JACBR, 26/10.6GCTND e 479/09.5GCTND, conforme certidão de fls. 128-134 que aqui se dá por inteiramente reproduzida.

36) O arguido esteve preso à ordem do citado processo comum coletivo n.º 781/10.3JACBR de 21/09/2010 a 08/11/2012, data em que foi libertado, situação em que se manteve até 24/03/2015, data em que voltou a ser detido à ordem do referido PCC n.º 781/10.3JACBR e à ordem do qual esteve preso até 26/11/2015, altura em que lhe foi concedida a liberdade condicional pelo período decorrente até ao termo da pena no dia 4.09.2018, conforme certidão de fls. 140-5 que aqui se dá por inteiramente reproduzida.

37) O arguido voltou a ser detido no dia 07/10/2017, à ordem dos presentes autos, e sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido no mesmo dia, findo o qual lhe foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva, à qual esteve sujeito até 14/12/2017, data em que foi substituída a medida de coação de prisão preventiva pelas obrigações decorrentes do TIR e proibição de usar quaisquer objetos suscetíveis ou capazes de provocar ou causar fogo.

38) Ora, vistas as anteriores condenações do arguido nomeadamente aquela do processo n.º 781/10.3JACBR em pena de prisão efetiva, nenhuma delas foi suficiente para o afastar do cometimento de novos crimes e conseguir a sua recuperação social, pois sempre se mostrou insensível às advertências contidas nas decisões que o condenaram, revelando assim uma personalidade com acentuada propensão para a prática de crimes, designadamente de perigo comum, cujos bens jurídicos protegidos são a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios, propensão essa que se mantinha à data dos factos.

39) O arguido levou a cabo os factos dos autos no decurso do período da liberdade condicional que lhe havia sido concedida no âmbito do PCC n.º 781/10.3JACBR.

40) I – Dados relevantes do processo de socialização

41) O arguido é proveniente de uma família estruturada, de baixo nível socioeconómico e cultural, sendo os pais agricultores. É o segundo elemento de uma fratria de quatro, estando os restantes bem integrados socialmente.

42) Frequentou a escola na idade normal, tendo concluído apenas a 4.ª classe devido às dificuldades económicas da família, a fim de ingressar no mundo do trabalho com cerca de 11/12 anos, como servente da construção civil. Manteve sempre esta atividade com relativa estabilidade até à altura em que foi preso em setembro de 2010.

43) O arguido casou há cerca de trinta e um anos, tendo quatro filhos.

44) A imagem que é dada tanto pelas pessoas contactadas no meio como pela mulher do arguido é que até 2004, havia estabilidade familiar, bem como profissional.

45) A partir de então, existem indicadores de alguns sintomas depressivos, eventualmente associados ao luto pela morte da mãe (a quem o arguido era muito ligado afetivamente), e a um período de vários meses de desemprego. Nesta altura, terá agudizado os consumos de álcool, o que introduziu alguma desorganização a vários níveis, nomeadamente ao nível pessoal, familiar e laboral.

46) Aparentemente encontrava-se estabilizado, tanto no período em que esteve preso, como em situação de liberdade condicional, usufruindo de acompanhamento clínico regular na Unidade de Alcoologia de ... desde 2009, tinha trabalho estável numa empresa de construção civil da região, onde já trabalhava antes de ser preso e parecia bem integrado na comunidade.

47) No meio, as pessoas contactadas tinham expectativas positivas face aos possíveis efeitos da anterior reclusão, no sentido de alteração do seu comportamento e integração social.

48) II – Condições sociais e pessoais

49) À data dos factos o arguido residia com a mulher, de 50 anos, a filha de 15 anos, estudante e o idoso de 92 anos, de quem a mulher cuida.

50) Os três filhos, maiores de idade, estão todos independentes da família.

51) A casa é uma moradia de dois andares, situada no centro da localidade de ..., propriedade daquele idoso, ocupando o mesmo o rés-do-chão e o arguido e a família o 1º andar. A habitação tem boas condições de conforto e habitabilidade, tendo todas as infraestruturas.

52) A nível económico, o casal tinha, na altura, uma situação económica equilibrada, pois o arguido recebia, em média, cerca de 600€/líquidos na empresa de construção civil, “...”, com sede em ..., sendo tido pela entidade patronal como um trabalhador empenhado, trabalhador, educado, assíduo e dinâmico.

53) e a esposa 800€/mês pela prestação de cuidados àquele idoso. Esta situação mantém-se desde que o arguido viu alterada a medida de coação e ficou em liberdade, apenas continuam a pagar a renda da outra casa onde viviam, em ..., no valor de 175€/mensais, onde cultivam um terreno agrícola.

54) Estava a ser acompanhado em relação aos consumos de bebidas alcoólicas em excesso na Unidade de Alcoologia de ..., tendo-lhe sido proposto em julho de 2017 internamento para desabituação, o que o arguido não aceitou, só vindo a fazê-lo entre 29/01/2018 e 17/02/2018, já após a alteração da medida de coação de prisão preventiva. Desde então, tem comparecido às consultas que lhe são agendadas, havendo indicadores de que se mantém abstinente.

55) III – Impacto da situação jurídico-penal

56) Relativamente à sua situação jurídico-penal, o arguido contextualiza o período em causa num quadro de consumos excessivos de bebidas alcoólicas, que, segundo admite, lhe alteram o seu comportamento e o desorganizam. Minimiza a gravidade do crime em causa, pese embora já tenha cumprido pena por crime da mesma natureza.

57) A nível familiar a própria mulher e os filhos ficaram surpreendidos, uma vez que o arguido mantinha o acompanhamento clínico à problemática do alcoolismo e uma aparente estabilidade pessoal.

58) As pessoas da comunidade local manifestam uma atitude de alguma insegurança face à presença do arguido no meio dada a natureza dos crimes em causa e o alarme social gerado na altura.

2 – O arguido interpôs recurso desse acórdão.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

1. Inconformado com o douto Acórdão do Tribunal Colectivo que condenou o Recorrente na pena de 7 (sete) anos de prisão efectiva dele vem interposto o presente recurso, restrito à reapreciação de matéria exclusivamente de Direito, que se impugna.

2. Comete o crime de incêndio florestal a que se refere a al. a) do n.º 2 e n.º 1 do art. 274.º do Cód. Pen. quem provocar incêndio em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios e criar desse modo perigo para a vida ou a integridade física de outrem ou de bens patrimoniais alheios de valor elevado.

3. Os bens jurídicos protegidos com esta incriminação são, pois, a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado.

4. Face ao teor literal do art. 274.º do Cód. Pen., o crime de incêndio é um crime de perigo comum e num caso abstracto e noutro caso concreto.

5. De perigo, porque não existe ainda qualquer lesão efectiva para a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de grande valor.

6. De perigo comum, porque é susceptível de causar um dano incontrolável sobre bens juridicamente tutelados de natureza diversa.

7. E, num dos casos (os do n.º 2), de perigo concreto porque, na construção do tipo, o perigo vale o mesmo que o dano, porque é o perigo que constitui a forma de violação do bem jurídico; o perigo é elemento do tipo legal, sendo os bens protegidos a vida, a integridade física e os bens patrimoniais de valor elevado.

8. Não basta, um mero atear de fogo, desencadeando uma combustão em materiais a tal adequados ou propensos a tal efeito, que, a qualquer momento, pode ser apagada ou, pelo menos, controlada, quer na duração, quer no objecto abrangido por tal combustão.

9. O acto de provocar um incêndio tem de representar mais do que um mero atear de fogo, tem de traduzir o abrasamento total ou parcial de edifício, mata, floresta, meio de transporte, etc.

10. Com a entrada em vigor da Lei 59/2007, de 04 de Setembro, o crime de incêndio tipificado no actual art. 272.º do Cód. Pen. mantém, na respectiva norma incriminadora os mesmos elementos constitutivos daquele tipo, mas, nesta nova norma incriminadora deixou de estar incluído o incêndio florestal que, à luz da nova lei, é agora configura como crime autónomo, o já citado art. 274.º do Cód. Pen.

11. Decompondo o art. 274.º do Cód. Pen., podemos afirmar que, o n.º 1 configura um crime de perigo abstracto – em que a lei apenas pressupõe o perigo e estabelece, na sua previsão, os sinais ou indícios de perigosidade que fazem presumir o perigo, caso em que o perigo não é elemento constitutivo do tipo, mas se apresenta como o motivo da proibição –, ao passo que, o n.º 2 configura um crime de perigo concreto – em que a lei exige, para a consumação do crime, a criação efectiva dessa probabilidade de dano, sendo, então, o perigo elemento constitutivo do tipo de ilícito penal, constituindo o seu resultado.

12. Face à matéria de facto provada, sob os pontos 1 a 24, resulta que o arguido, entre as 21h15 do dia 06/10/2017 e as 00h01 do dia 07/10/2017, usando um isqueiro, igniu diversos fogos e, tendo-o feito, em zonas de floresta composta de eucaliptos, pinheiros bravos e acácias.

13. Todos os focos de incêndio foram imediata e prontamente combatidos e debelados pelos populares e pelos Bombeiros que prontamente acorreram ao local, conforme facto provado n.º 26.

14. De contrário, não foi necessária a intervenção de mais do que uma corporação de bombeiros, além de viaturas de combate a incêndios e, inclusive, meios aéreos, o que ilustra bem a “pequena” dimensão e eminência do perigo eventualmente criado pelo arguido, para além do real dano que se traduziu na área total de sensivelmente 3.246 m2 de área ardida, conforme resulta dos pontos n.ºs 6.º, 9.º, 12.º, 15.º, 18.º, 21.º e 23.º da matéria de facto provada.

15. A matéria de facto dada por provada, compaginada entre si, em especial, com a área efectivamente ardida, a rápida e pronta debelação dos focos de incêndio e a ausência de qualquer outra circunstância agravante, não é suficiente para o preenchimento do elemento constitutivo do ilícito penal, isto é, a criação efectiva da probabilidade de dano a que se refere a norma incriminadora a que o Recorrente acabou por ser condenado.

16. Apesar de os focos de incêndio terem sido deflagrados em áreas florestais, logrou provar-se que os incêndios foram debelados pronta e rapidamente, apenas pelos populares e uma única Corporação de Bombeiros, e de forma quase imediata.

17. Sendo o crime de incêndio agravado (al. a) do n.º 2 do art. 274.º do Cód. Pen), um crime de perigo concreto, para a sua verificação é mister que os elementos desse perigo, não sendo previstos pelo legislador, sejam ajustados no caso concreto, de forma cabal e consistente, por forma a não restarem dúvidas que a conduta do Arguido é perigosa de molde à criação efectiva da probabilidade de dano, o que não se verifica in casu.

18. O perigo (concreto) a que se refere o legislador (al. a) do n.º 2 do art. 274.º) deve ser preenchido com diversos indicadores, nomeadamente: o tempo que o incêndio levou a ser debelado; o número de pessoas e instituições que intervieram no combate ao mesmo; o local exacto da ignição, se de difícil acesso/localização, se aleatória; a área efectivamente ardida; as condições atmosféricas, entre outros.

19. Descendo ao caso sub judice, nenhum destes indicadores consta do Acórdão recorrido, nem da matéria de facto dada por provada.

20. Apesar de muitos dos referidos indicadores não resultarem sequer da decisão recorrida, outros existem e são a favor do Arguido, tais como: a área efectivamente ardida; a rápida debelação dos focos de incêndio; o local das ignições (indefinido e aleatório…), donde resulta inelutavelmente não se verificarem os pressupostos para a condenação do Arguido na prática do crime de que foi condenado.

21. A factualidade dada por provada é de molde à verificação de um crime de incêndio florestal simples, ainda que, sob a forma de reincidência, p. e p. pelo n.º 1 do art. 274.º do Cód. Pen. e não o crime de incêndio florestal p. e p. pela al. a) do n.º 2 e n.º 1 do art. 274.º do mesmo diploma legal, pelo que, deve o acórdão recorrido ser revogado, nesta parte, e substituído por outro que qualifique juridicamente os factos nos moldes enunciados supra com as legais consequências.

22. A aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

23. Para a determinação da medida da pena o Tribunal deve cuidar de verificar das exigências de prevenção e da culpa do agente, bem como a todas as demais circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime possam depor a favor ou contra aquela.

24. A pena não pode em caso algum, ultrapassar a medida da culpa sob pena de violar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, subjacente a um Estado de Direito democrático e social como é o nosso.

25. Dentro da moldura penal abstracta deve o julgador achar a medida concreta da pena e após determinar a medida exacta daquela.

26. Se assim é, cremos que as medidas concretas das penas pelas quais o Recorrente foi condenado e recorre e concomitantemente a pena única fixada são desproporcionais ao que resultou provado e determinante para esse desiderato.

27. Assim, devem as medidas concretas das penas e respectiva pena única ser reduzidas por esse Venerando Tribunal, pois in casu as penas aplicadas ultrapassam em muito a medida da culpa e dessa forma se crêem excessivas aos fins que visam atingir, mormente a prevenção geral e especial.

28. Merecendo provimento o presente recurso na qualificação jurídica dos factos, deve o Arguido ser a final condenado como autor material de um crime de incêndio florestal simples e não agravado, ainda que, sob a forma de reincidência.

29. O CRC do Recorrente junto aos autos apenas pode ser sopesado para efeitos de escolha da pena e não para a graduação desta pena, isto é, o CRC do Recorrente apenas pode funcionar como circunstância agravante ou atenuante e com especial relevância ao nível da prevenção especial nortear o julgador a optar por uma pena privativa ou não privativa da liberdade, pelo que, sempre o Recorrente não rebate a opção pela pena escolhida, mas sim a sua concreta medida, tanto mais que, as condenações anteriores sofridas fazem elevar limite mínimo da pena a aplicar, pelo instituto da reincidência.

30. Tudo ponderado, entende o Recorrente que a medida concreta da pena respeitante ao eventual crime de incêndio florestal (simples) – art. 274.º, n.º 1 – não deve ultrapassar os 4 (quatro) anos de prisão, e no que concerne ao crime de incêndio florestal (agravado) – art. 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a) – (caso seja mantida a qualificação jurídica do acórdão recorrido) a pena não deve ultrapassar os 5 (cinco) anos de prisão, devendo V. Exas. revogar a sentença recorrida, nesta parte e substituí-la por outra que reduza as penas aplicadas.

31. Atenta a alteração da moldura penal supra enunciada e tendo em conta a conduta do Recorrente, conjugado com o que resulta dos autos, cremos que a pena deverá ser suspensa por igual período, caso venha a ser entendido manter a pena de prisão, ainda que, subordinada a deveres e/ou regras de conduta e bem assim a eventual obrigação de permanência na habitação sujeita a fiscalização.

32. Atenta a matéria de facto provada sob os pontos n.ºs 40.º a 56.º e não se tendo logrado demonstrar que o Arguido, à data da condenação tenha acentuada inclinação para o cometimento de crimes, que o mesmo se encontra familiar, social e economicamente integrada na sociedade, nada obsta, em nosso modesto entendimento a que a pena de prisão (quer numa, quer noutra situação) que venha a ser mantida possa ser suspensa na sua execução.

33. Não obstante, tal suspensão não deve ser pura e simples, conquanto, o próprio Arguido/Recorrente admite o seu problema aditivo de bebidas alcoólicas, que pretende continuar a tratar (note-se que o mesmo alega que os factos praticados foram dependência desse vício), tendo após prisão preventiva inicial à ordem destes autos, e por sua própria iniciativa sido internado na Unidade de Alcoologia de ..., de 29/01 a 17/02 de 2018.

34. Numa vertente de prevenção geral e mesmo especial, o legislador, com a criação do regime sancionatório do art. 274.º-A do Cód. Pen., veio ex novo prever a possibilidade de a suspensão da execução da pena de prisão poder ser subordinada à obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, no período coincidente com os meses de maior risco de ocorrência de fogos.

35. Merecendo provimento a reapreciação da medida concreta da pena aplicada a Recorrente (e sendo a mesma, como se espera, fixada em medida não superior a 5 anos de prisão – pressuposto formal da possibilidade de suspensão), deve a mesma ser suspensa na sua execução, condicionada à continuação pelo Arguido do tratamento da sua dependência de bebidas alcoólicas e bem assim na condição de durante o período da suspensão e nos meses de maior risco de ocorrência de fogos ser subordinada à obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, tanto mais que, a ameaça da prisão efectiva é de molde a realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

36. Ocorreu incorrecta interpretação e aplicação dos comandos legais dos arts. 40.º, 50.º, 71.º, 274.º e 274.º-A todos do Cód. Pen.

Termos em que deve merecer provimento o presente recurso e por via do mesmo, ser o douto acórdão recorrido revogado e substituído por outro que:

1. Na alteração da qualificação jurídica dos factos, condene o arguido como autor material da prática de um crime de incêndio florestal simples, p. e p. pelo n.º 1 do art. 274.º do Cód. Pen., ainda que, sob a forma de reincidência;

2. Na procedência da alteração da qualificação jurídica, ou em caso que a mesma soçobre – o que não se concede – reaprecie a medida concreta da pena aplicada ao recorrente e a reduza por ser excessiva e desproporcional e ordene a suspensão da execução dessa pena, nos termos legais, subordinada a regime de prova e à obrigação de permanência na habitação, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância nos meses de maior risco de ocorrência de fogos.

Mas como sempre, v. Exas. farão a esperada e acostumada, justiça!!!


3 – Este recurso foi admitido pelo despacho de fls. 399.

4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 402 a 406).

5 – Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu parecer pronunciando-se pela improcedência do recurso.

6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

7 – Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo arguido e os poderes de cognição deste tribunal, importa apreciar e decidir as seguintes questões:
− A qualificação jurídico-penal da conduta
− A escolha da natureza e a determinação da medida da pena.


II – FUNDAMENTAÇÃO
A qualificação jurídico-penal da conduta
8 – O arguido aceitou a decisão do tribunal de 1.ª instância de considerar que ele tinha provocado dolosamente um incêndio num terreno ocupado por floresta, ou seja, que tinha praticado um crime p. e p. pelo artigo 274.º, n.º 1, do Código Penal.
Porém, impugnou a decisão de considerar que, através dessa conduta, ele criou perigo para a vida, para a integridade física ou para bens patrimoniais de valor elevado, circunstância qualificativa desse crime prevista na alínea a) do n.º 2 desse mesmo preceito legal.
Pretende, por isso, ser apenas condenado pela prática do crime simples de incêndio florestal.
Apreciemos então a questão da qualificação jurídica da conduta, para o que é necessário precisar o conceito de perigo enquanto resultado da conduta previsto no tipo qualificado.
Aceitando, como acontece com a generalidade da doutrina actual, o conceito normativo modificado do resultado de perigo[1], deveremos entender que o mencionado perigo, no caso, o perigo para bens patrimoniais de valor elevado (e não o perigo para a vida ou para a integridade física de outra pessoa, que aqui não estão em causa) existe a partir do momento em que não for possível assegurar a integridade do bem jurídico que entrou na esfera da acção típica, tendo a sua lesão ficado dependente do acaso[2]. Concretizando. Existe perigo a partir do momento em que deixou de ser seguro impedir a lesão dos bens patrimoniais de valor elevado que podiam ser atingidos pelo incêndio provocado pelo arguido, dependendo a sua salvação de circunstâncias extraordinárias, nomeadamente da natureza ou do comportamento do próprio ameaçado.
Ora, foi precisamente isto que sucedeu neste caso. O arguido provocou dolosamente o incêndio numa pluralidade de locais ocupados por floresta em condições de ele se propagar, estendendo-se às matas e aos matos vizinhos, que tinham um valor elevado, o que apenas não aconteceu porque as populações e os bombeiros, durante a noite, acorreram prontamente aos locais e extinguiram esses focos de incêndio. Estes, pela sua pluralidade e pelos locais em que ocorreram, criaram efectivamente o perigo de que viessem a ser consumidas e destruídas casas e floresta, provocando danos de elevado valor.
Não se pondo em causa a existência de dolo de perigo, a conduta do arguido integra, por isso, o tipo incriminador qualificado p. e p. pelo artigo 274.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do Código Penal.
Para tal, não se exige, ao contrário do que sustenta o recorrente, qualquer «abrasamento total ou parcial de edifício, mata, floresta, meio de transporte, etc.», nem a intervenção de mais de uma corporação de bombeiros ou de meios aéreos, sendo também irrelevante o tempo que o incêndio levou a ser debelado, a natureza do local onde ele foi deflagrado, as condições atmosféricas e a área ardida.
Improcede, por isso, este fundamento do recurso.

A escolha da natureza e a determinação da medida da pena
9 – O crime praticado pelo arguido é punível, em abstracto, com a pena de 3 a 12 anos de prisão.
O arguido foi considerado reincidente porque, devendo ser punido com uma pena de prisão efectiva superior a 6 meses, já tinha sido anteriormente condenado por sentença transitada em julgado, nas circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 75.º do Código Penal, numa pena de prisão efectiva superior a essa mesma medida pela prática de vários crimes dolosos de incêndio e se entendeu que a anterior condenação não tinha servido de suficiente advertência contra o crime, decisão com que o recorrente se conformou.
O crime praticado pelo arguido é, portanto, punível com pena de 4 a 12 anos de prisão.
Para determinação da pena concreta, há que atender aos seguintes factores:
− A pluralidade de actos de deflagração praticados pelo arguido;
− A sua actuação durante a noite;
− A utilização de um veículo para a deslocação entre os locais em que o fogo foi ateado;
− A área total ardida;
− A intensidade do dolo, manifestada pela pluralidade de actos praticados;
− A influência do consumo de álcool na conduta do arguido;
− O acompanhamento clínico do arguido;
− A sua actividade laboral e a inserção familiar e social;
− As anteriores condenações que não foram consideradas para a decisão sobre a reincidência.
Os cinco primeiros factores são relevantes para a determinação do grau de ilicitude da conduta e, por esta via, o grau da culpa e a necessidade de pena para satisfazer a finalidade de prevenção geral, que se considera mediana.
O consumo de álcool atenua a culpa, mas, como factor ambivalente que é, incrementa a necessidade de pena para satisfazer a finalidade de prevenção especial, necessidade de pena que é algo mitigada pelo tratamento efectuado, sendo de notar que o internamento só ocorreu depois da prática destes actos.
A actividade laboral e a inserção familiar e social também mitigam essa necessidade de pena, o que é contrabalançado pelo passado criminal do arguido que não foi considerado para efeito de reincidência.
Tudo ponderado, entende este tribunal que a pena aplicada pelo tribunal de 1.ª instância reflecte adequadamente a culpa e as necessidades de prevenção, geral e especial, não merecendo qualquer censura.
Excluída fica, assim, a substituição da pena de prisão por uma pena não privativa da liberdade.
Improcede, por isso, o recurso interposto pelo arguido.

A responsabilidade pelo pagamento de custas
10 – Uma vez que o arguido decaiu totalmente no recurso que interpôs é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto o n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa a taxa de justiça varia entre 5 a 10 UC.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 5 UC.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 5.ª secção deste Supremo Tribunal em:
a) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) UC.

²

Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Novembro de 2018


Carlos Almeida (Relator)

Júlio Pereira

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[1] Ver, entre nós, ALBUQUERQUE, Paulo Sérgio Pinto de, desde logo in «O conceito de perigo nos crimes de perigo concreto», in «Direito e Justiça», volume VI, 1992, p 351 e ss.
[2] Neste mesmo sentido, MONTAÑES, Teresa Rodriguez, in «Delitos de Peligro, Dolo e Imprudencia», Universidad Complutense de Madrid e Centro de Estudios Judiciales, Madrid, 1994, p. 37-38.