Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | JORGE GONÇALVES | ||
| Descritores: | RECURSO PENAL RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ADMISSIBILIDADE DE RECURSO NULIDADE DE ACÓRDÃO ALTERAÇÃO DOS FACTOS VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL ANULAÇÃO DE JULGAMENTO REENVIO DO PROCESSO | ||
| Data do Acordão: | 02/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | JULGAMENTO ANULADO | ||
| Sumário : | I – Reconhecendo-se que ao legislador ordinário assiste, nesta matéria, um razoável espaço de liberdade de conformação normativa, tendo como limites a garantia da existência do duplo grau de jurisdição, a CRP não exige, nem os instrumentos internacionais que nos vinculam, a consagração de um 3.º grau de jurisdição em matéria de facto, uma vez garantida que se encontra a recorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que revertam, decisões absolutórias em 1.ª instância, ainda que limitado o recurso a matéria de direito, mas com a possibilidade (entendida como poder/dever) de conhecimento, por iniciativa oficiosa do STJ, dos vícios decisórios da decisão de facto previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP. II – Porque a decisão do tribunal de recurso, ao alterar a decisão de facto, não se centrou num juízo de credibilidade oposto ao da 1.ª instância, nem em qualquer diversa valoração das declarações do arguido em 1.ª instância sobre os factos imputados – que, por decisão própria, não as quis prestar, e nem indica, sequer, que as pretendesse prestar na Relação, para se pronunciar pessoalmente sobre as questões da sua culpabilidade ou inocência --, não se evidencia que tenha sido cometida a invocada nulidade insanável. III - Ainda que se afirme, reiteradamente, na jurisprudência, que o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação total do complexo da prova produzida que serviu de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgados, para o que deve especificar as «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», não se vê como poderia a Relação alterar a decisão de facto, no caso em apreço, sem proceder à audição dos restantes depoimentos que se reportam à mesma questão, e inclusivamente à visualização do vídeo mencionado na motivação da decisão de facto da 1.ª instância, como estava habilitada a fazer nos termos do artigo 412.º n.º6. | ||
| Decisão Texto Integral: | RECURSO n.º 286/23.2GBOAZ.P1.S1 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO 1. Por acórdão do Juízo Central Criminal de ..., foi julgada totalmente improcedente, por não provada, a acusação deduzida contra o arguido AA, com os restantes sinais dos autos, que foi absolvido da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º, n.º s 1, alínea b), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal, de que fora acusado. O Ministério Público interpôs recurso do acórdão absolutório, que veio a ser provido por acórdão da Relação do Porto que, revogando a decisão recorrida, decidiu nos seguintes termos: «Pelo exposto, os Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação concedem parcial provimento ao recurso, alterando o elenco da matéria de facto provada e não provada do acórdão, nos termos supra referidos, determinando condenar o arguido pela prática em autoria de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º, n.º s 1, alínea b) 2, alínea a), 4 do Código Penal, na pessoa da companheira BB, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão efetiva. Nos termos do art. 152º nº4 do CP condena-se o arguido na pena acessória de proibição de contacto com a vítima, por qualquer meio, e afastamento da sua casa e local de trabalho, pelo período de 3 (três) anos. Mais se condena o arguido, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 16º, nº 2, do Estatuto da Vítima (aprovado pela Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro), e 1º, al. j), 67º-A, nº 3, e 82º-A, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, a pagar à ofendida BB, a título de arbitramento oficioso de reparação da vítima, a quantia de € 3.000 (três mil Euros); (…).» 2. O arguido interpôs recurso do referido acórdão para este Supremo Tribunal, formulando as seguintes conclusões (transcrição): 1) Verifica-se a admissibilidade e recorribilidade para o STJ da decisão de condenação do Recorrente pelo TRP, em recurso, em caso de absolvição em 1ª Instância, ao abrigo do artigo 400.º, n.º 1 alínea e) a contrario do CPP (cfr. acórdãos n.ºs 595/2018, 412/2015 e n.º 429/2016 do Tribunal Constitucional, artigos 32.º, n.º 1, in fine e 18.º, n.º 2, da CRP, o n.º 5 do artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, Helena Morão supra citada)) e o direito de recurso do Recorrente para o STJ, quanto à matéria de facto, em caso de primeira condenação em 2ª instância, à luz do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, do artigo 6.º da CEDH, e da aplicação analógica dos artigos 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), do CPP por via da declaração parcial de inconstitucionalidade do artigo 434.º do CPP. 2) O STJ é garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito do Recorrente de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, e a reavaliação da culpabilidade do ora Recorrente pelo STJ, (em hipóteses de desacordo entre instâncias e, por isso, de indício de erro judiciário na atribuição de penas privativas da liberdade), à luz do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos, nomeadamente nos artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (cfr. Acórdão do STJ de 30/10/2019, processo n.º 455/13.3GBCNT.C2.S1). 3) In casu, a mera revista ampliada não possibilitaria a identificação e reparação de um leque significativo de erros de facto, não sendo razoável, à luz do princípio da igualdade e da proporcionalidade, que o ora Recorrente, condenado pela 1ª vez em 2ª instância tenha um direito de defesa da condenação em si, em recurso, de conteúdo mais reduzido – nomeadamente quanto à impugnação do julgamento de facto – do que o daquele que o teria tido no primeiro nível de jurisdição com o recurso para a Relação. 4) A revista alargada se mostra claramente insuficiente para garantir um exercício efectivo do direito ao recurso da condenação, o disposto no artigo 434.º do CPP não resiste a um juízo de inconstitucionalidade parcial, tendo o STJ de assumir alguns dos poderes de apelação das Relações em matéria de facto, por aplicação analógica das normas enunciadas nos artigos 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), do CPP e a função de uma autêntica terceira instância em matéria penal. (cfr. acórdão do TEDH de 25 de fevereiro de 2020, n.º 78108/14 Paixão Moreira Sá Fernandes c. Portugal, que decidiu que a garantia de fair trial do n.º 1 do artigo 6.º da CEDH impõe, em regra, que, em caso de condenação ex novo em recurso sobre matéria de facto, o tribunal de recurso avalie directamente a prova pessoal, voltando a ouvir as testemunhas ou o arguido em audiência). 5) A redação do artigo 434.º do CPP ao vedar a possibilidade de reapreciação da matéria de facto pelo STJ em caso de decisão do TRP de primeira condenação proferida em segunda instância, sem que tenha existido um duplo grau de jurisdição, comporta uma redução intolerável do direito ao recurso, violando, assim, o direito ao recurso por parte do Recorrente, ínsito no principio das garantias de defesa, afrontando ainda o principio da igualdade e da proporcionalidade, sendo manifestamente inconstitucional – inconstitucionalidade essa que ora se invoca para todos os devidos efeitos legais. 6) O Recorrente invoca a inconstitucionalidade dos artigos 434.º, 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), quando interpretados no sentido de em caso de condenação do Arguido pela primeira vez em segunda instância (decisão surpresa) lhe estar vedada a impugnação/reapreciação da matéria de facto pelo STJ (segundo grau de jurisdição), apenas sendo admitido recurso de revista alargado, nos termos do artigo 410.º, n.º 2 do CPP e invoca também a inconstitucionalidade dos citados artigos 434.º, 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), quando interpretados no sentido de que quando há alteração da matéria de facto pela Relação inovatoriamente não há direito a recurso da matéria de facto – inconstitucionalidades essas que ora se invocam para todos os devidos efeitos legais, por violação do direito fundamental a recorrer da defesa do Recorrente e de garantir plenamente a sua defesa, à luz dos artigos 32.º, n.º 1, in fine e 18.º, n.º 2, da CRP, do artigo 6.º da CEDH, do artigo 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, do artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais. 7) O disposto no artigo 434.º não resiste a um juízo de inconstitucionalidade parcial, por violação do direito ao recurso do arguido – inconstitucionalidade essa que ora se invoca – e que o Supremo Tribunal de Justiça terá de assumir alguns dos poderes de apelação das Relações em matéria de facto, por aplicação analógica das normas enunciadas nos artigos 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), e a função de uma autêntica terceira instância em matéria penal – cuja aplicação analógica ora se requer, devendo ser admitido pelo STJ a impugnação/reapreciação da matéria de facto, funcionando o STJ como segundo grau de jurisdição, por via da aplicação analógica dos artigos 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), do CPP, e da declaração de inconstitucional do artigo 434.º do CPP, atenta a alteração da matéria de facto operada pelo TRP, e a consequente condenação do mesmo em pena de prisão efetiva, pelo crime de violência doméstica do qual tinha sido absolvido em 1ª instância. 8) Atenta a jurisprudência do acórdão do TEDH de 25 de fevereiro de 2020, n.º 78108/14, Paixão Moreira Sá Fernandes c. Portugal e Dan c. Moldova, o TRP condenou o Arguido, ora Recorrente, pela primeira vez, em sede recurso, pelo crime de violência doméstica, em pena de prisão, alterando a qualificação jurídica, e dando como provado factos que não o haviam sido em primeira instância (ponto 17 referente à matéria fáctica da reciprocidade das injúrias e os pontos 14.1, 14.2 e 14.3 respeitantes ao dolo e consciência da ilicitude), sem ouvir as testemunhas e o arguido pessoalmente, não tendo o mesmo sido convocado previamente à condenação para o exercício dos direitos de defesa e de contraditório, mesmo que em audiência oficiosa, pela Relação, à luz do disposto no artigo 61.º, n.º 1, alínea a) do CPP, desrespeitando as exigências de um processo equitativo, o que deverá determinar nulidade insanável do Acórdão do TRP, prevista na alínea c) do artigo 119.º do CPP – nulidade essa que ora se invoca para todos os devidos efeitos legais, devendo o Douto Acórdão do TRP ser declarado nulo, nos termos da alínea c) do artigo 119.º, 379.º n.º 1 alíneas a), b) e c) do CPP, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 425.º n.º 4 do mesmo diploma, e por violação do disposto na primeira parte do n.º 1 do art. 6.º da CEDH, do artigo 61.º, n.º 1, alínea a) do CPP e do artigo 32.º, n.º 1 da CRP. 9) Ocorrência de nulidade do Acórdão por violação pelo TRP das regras que regulam o modo de formação da convicção, da livre apreciação da prova e do grau de convicção necessária para a decisão proferida, por violação do princípio da mediação, da sindicabilidade da não aplicação pelo TRP do princípio do in dubio pro reo, da presunção de inocência e da sindicabilidade do juízo prudencial baseado nas regras da experiência comum, por via da declaração de inconstitucionalidade dos artigos 127.º, 399.º, 400.º, n.º 1, 410.º, n.º 1 e 434.º do CPP. 10) É inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1 e 2 do CRP, por constituir uma restrição inadmissível às garantias de defesa do Arguido, ora Recorrente, e designadamente da garantia de recurso, a interpretação dos artigos 127.º, 399.º, 400.º, n.º1, 410.º, n.º 1 e 434.º do CPP, no sentido de insindicabilidade, em recurso, da não aplicação do principio do in dubio pro reo, bem como a insindicabilidade, em recurso, do poder de controlo das violações do grau de convicção necessário para a decisão e da presunção de inocência – inconstitucionalidade essa que ora se invoca para todos os devidos efeitos legais. 11) A convicção do Tribunal a quo para a determinação da matéria de facto dada como provada e consequente condenação do Recorrente não resultou da conjugação e análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade. 12) O Douto Tribunal a quo, violou as regras que regulam o modo de formação de convicção, mostrando-se violado o grau de convicção necessário para o proferimento da decisão de condenação (existência de convicção indubitável para além da presunção de inocência, na medida em que para além do juízo prudencial ter sido indevidamente baseado nas regras da experiência comum, também não foi feita prova suficiente e convincente de que o Recorrente, conforme refere o Tribunal a quo, fosse o “centro da agressividade” e de maior densidade e alcance das injúrias, por parte do Recorrente em face da Ofendida, negadora do condicionalismo da reciprocidade nas injúrias, admitido pelo Tribunal de 1ª instância. 13) Deve o Douto Tribunal ad quem proceder ao reexame do raciocínio usado pelo julgador a quo para fundar a convicção de condenação, por não sido produzida prova convincente sobre a realidade de um facto (de que o Recorrente fosse “o centro da agressividade”), pelo que na dúvida sobre tal realidade e em face da existência de prova nos autos do condicionalismo de reciprocidade nas injúrias, deveria o Douto Tribunal ter ficado na dúvida sobre tal realidade, fazendo funcionar em favor do arguido o principio do in dubio pro reo, e mantendo, decisão absolutória da 1ª instância. 14) O processo de formação de convicção do Tribunal a quo mostra-se inquinado, pois tribunal do recurso, ao contrário do tribunal de 1ª instância, não ouviu toda a prova testemunhal produzida, limitando-se a ouvir, de forma desgarrada e descontextualizada, os depoimentos de CC e DD. 15) A livre convicção do Tribunal a quo confunde-se com convicção íntima, arbitrária e imotivada, pré-concebido, com recurso indevido às regras da experiência comum, confundindo-se com pré-juízos e mesmo preconceitos, tendo sido retiradas ilações sobre a alegada coadunação da personalidade do arguido com os factos que lhe são imputados pelo teor das respostas dadas pelos depoimentos de CC e DD, chegando a afirmar que “acredita-se que nos eventos agressivos imperava a impetuosidade mostrada pelo arguido” e que “as discussões com agressões verbais eram da iniciativa do arguido próprio do caráter impetuoso que ficou demonstrado”, olvidando-se o principio na mediação, e a demais prova testemunhal produzida, e em vídeo (visionamento das imagens captadas no dia 13/03/2023 e dos fotogramas), que dá conta da existência clara de reciprocidade nas injúrias. 16) A livre convicção do Tribunal não é sinónimo de apreciação da prova meramente subjetiva ou arbitrária, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pela audição de apenas de parte da prova produzida nos autos, não se podendo bastar com a probabilidade de o arguido ser o autor do crime ou com a convicção moral ou subjectiva de que o tenha sido, já que é imprescindível que tenha atingido uma certeza jurídica, baseada em provas processualmente produzidas e inequívocas, valoradas através de um processo de reflexão judicial. 17) A decisão condenatória do TRP implicará que o Recorrente irá para a cadeia por injúrias, quando nem sequer foram provadas quaisquer agressões. 18) A existência de demais prova nos autos que deve ser conciliada e até em parte contraria os depoimentos de CC e DD, veja-se que as declarações do primeiro quanto à alegada maior agressividade do arguido quando alcoolizado, foi denegada por o problema de alcoolismo ter sido dado como não provado no ponto e), existência nos autos de um vídeo (visionamento das imagens captadas no dia 13/03/2023 e dos fotogramas) gravado relativo ao episódio do café em que praticamente só se ouve a ofendida a insultar o arguido, e dirigindo-se ao arguido, diz: “não tens onde cair morto, “vais pagar”, “liga aí para as outras putas que eu vou atrás delas”, “é que eu vi as mensagens. O que foram fazer?”, “metes nojo”, “cabrão”, “eu mato-te”, factos aliás vertidos no Acórdão da 1ªinstância, bem como a demais prova testemunhal (depoimento das testemunhas EE, FF, também filhos da Ofendida, GG, HH e II) bem demonstrativa que a ofendida tinha uma atitude idêntica ou equiparada à do arguido, e do condicionalismo da reciprocidade nas injúrias, sendo transversal a todos os depoimentos que o relacionamento entre o arguido e a ofendida pautava-se como um relacionamento atribulado, com frequentes discussões e insultos mútuos, ou seja, uma relação com falta de respeito de ambas as partes. 19) A Ofendida exerceu o seu direito de recusar prestar depoimento, não tendo ficado demonstrado que a mesma tenha sido atingida na sua dignidade enquanto pessoa humana, assim como, o arguido tenha adotado uma conduta de agressividade física e psíquica, controladora, persecutória, perturbando o sossego e tranquilidade da vítima, fragilizando-a na sua liberdade pessoal, numa relação de subordinação, de aniquilamento, de domínio, espezinhamento e subjugação face ao arguido. 20) O Tribunal a quo violou os limites à discricionariedade impostos pelo artigo 127.º do CPP e da imediação, na medida em que sendo a convicção do tribunal de 1ª instância possível e explicável pelas regras da experiência comum, deveria ter sido acolhida a opção do julgador de 1ª instância, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova. 21) Violação do princípio do in dubio pro reo, que emana do princípio da presunção da inocência, pelo Tribunal de recurso, por a prova produzida não ser de molde a permitir erradicar de forma segura a dúvida, sendo a prova manifestamente insuficiente, conforme, aliás, propugnado pelo tribunal de 1ª instância, na medida em que se demonstrou que o tribunal a quo deveria ter tido dúvidas sobre a culpa do Recorrente ou sobre a forma como os factos ocorrem, e não obstante, decidiu contra o mesmo. 22) O Douto Tribunal a quo, condicionou-se com pré-juízos, mesmo preconceitos, alterando a matéria de facto do ponto 17 e dando como provados os pontos 14.1, 14.2 e 14.3 tendo por base não factos, mas em função de regras de experiência comum e subjetivismo exposto não demonstrado pelos meios de prova, atentando contra as balizas de racionalidade, o princípio da imediação, do in dubio pro reo, da inocência e da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum – violação essa que ora se invoca para todos os devidos efeitos legais. 23) Nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do C.P.P., considera-se que foram incorretamente julgados, na medida em que da transcrição da matéria de facto dada como provada verifica-se que há factos como provados cuja redação enferma de erros, alguns dos quais grosseiros, existindo, também factos que carecem totalmente de prova, e erro da insuficiência da prova para a decisão de facto, designadamente: artigos 17.º, 14.1.º, 14.2.º e 14.3.º da matéria de facto dada como provada, os quais deverão ser dados como não provados ou ver a sua redação alterada, nos termos explanados supra. 24) Da globalidade da matéria de facto dada como provada, designadamente dos depoimentos das testemunhas DD, CC, EE e FF, todos filhos de BB, GG, HH e II, infra transcritos, resulta que apenas se pode extrair com segurança, que o relacionamento do Arguido e da Ofendida era pautado por instabilidade constante, agressões verbais mútuas, e frequentes discussões, num contexto de reciprocidade de condutas, com insultos mútuos nas discussões, sem que daí resulte qualquer relação de domínio ou subjugação, sendo antes a dinâmica relacional caracterizada como um relacionamento disfuncional e de conflitualidade. 25) A testemunha FF, filha menor de 13 anos, que vivia, à data dos factos com o Recorrente e com a Ofendida cujo relato, próprio da idade é revelador da honestidade relativamente aos factos ocorridos, referiu que ouviu discussões entre os pais, e quer o “pai” quer a mãe, chamam nomes um ao outro, apesar de não se recordar bem quais são, e que nessas situações, vai para o quarto e liga ao irmão CC que as vem buscar, a ela e à irmã JJ, o que já aconteceu várias vezes (as demais testemunhas, filhos da Ofendida, CC, DD e EE não viviam com àquela à data dos factos e como tal não puderam atestar se era ou não o Recorrente quem iniciava as discussões ou se os insultos proferidos eram em resposta). 26) A testemunha FF foi ainda questionada sobre quem iniciava as discussões, tendo afirmado diretamente que eram ambos, umas vezes era um, outras vezes era o outro, o que está em consonância com as regras da experiência comum. 27) A referida testemunha refere expressamente que havia insultos não só da parte do Recorrente, mas também da parte da Ofendida, que o chamava de “filho da puta” e “boi”, ou seja, que insultavam-se mutuamente, afigurando-se, assim, manifestamente incorreto, por não atender à realidade fáctica nos autos, a alteração operada pelo Tribunal a quo ao artigo 17.º dos factos provados. 28) Socorrendo-se das normas da experiência comum, deveria o TRP ter admitido, até também em função da prova produzida, que nas discussões do casal, incluindo aquelas com caráter mais agressivo, tanto o Recorrente, como a Ofendida iniciavam as discussões. 29) A testemunha CC é perentória ao afirmar que tanto a sua mãe como Recorrente se insultavam mutuamente, não obstante sempre haverá a dizer que é a própria testemunha que afirma que não sabe quem começava, por não estar presente, logo e tendo em conta as regras da experiência comum, também não poderá dizer se os insultos que a sua mãe proferia eram ou não em resposta aquilo que o Recorrente lhe dizia, mas refere ainda que sempre que há discussões há insultos, quer da parte do Recorrente, quer da parte da Ofendida. 30) A testemunha II, namorada do filho CC, questionada, inclusive, sobre se era a Ofendida quem começava a insultar o Recorrente e ele respondia ou se era ao contrário, afirmou perentoriamente que as duas situações aconteciam, que o Recorrente apelidava BB de “filha da puta”, mas esta também apelidava o Recorrente de “cabrão” e “boi”, o que mais uma vez está em consonância com as regras da experiência comum (depoimento infra transcrito). 31) A testemunha KK, vizinha há dez anos da Ofendida e do Recorrente, refere que os ouvia a discutir e a chamarem nomes um ao outro, sendo que era percetível a BB a chamar o Recorrente de “boi”, “vai para puta da tua mãe”, e o Recorrente a chamar “puta”, questionada se os insultos que a BB eram ou não em resposta aquilo que o Recorrente lhe dizia, responde que não sabe. 32) A testemunha HH, marido da testemunha KK, vizinho, referiu que ouvia discussões entre o Recorrente e a Ofendida, e que ouvia a mesma, muitas vezes, a chamar nomes, sendo certo que tanto o Recorrente, como a Ofendida insultavam-se mutuamente, tendo chegado a ouvir a mesma a insultar o Recorrente de “filho da puta”, “vai para a puta que pariu”, “vai para a cona da tua mãe, sai daqui que vens com a mãos a cheirar a cona”, sendo que os insultos proferidos por aquela eram em maior número. 33) As declarações da testemunha DD que o Tribunal a quo teve em conta para fundamentar a alteração do artigo 17.º encontram-se descontextualizadas, e não tem qualquer relação com o período temporal em causa nos autos (após meados de 2021) já que é o próprio que refere que as situações que relatou ocorreram há uns três anos, na altura em que ainda se encontravam emigrados em França, sendo que voltaram para Portugal em inícios de 2021. 34) Não resultou demonstrado que a Ofendida (que não prestou declarações) tenha sido atingida na sua dignidade enquanto pessoa humana, assim como, o Recorrente tenha adotado uma conduta de agressividade física e psíquica, controladora, persecutória, perturbando o sossego e tranquilidade da vítima, fragilizando-a na sua liberdade pessoal, numa relação de subordinação, de aniquilamento, de domínio, espezinhamento e subjugação face ao arguido, não se evidenciando pelas expressões que a Ofendida dirigia ao Recorrente que a mesma não se encontrava numa relação de subordinação em relação ao mesmo. 35) As imagens captadas no dia 12.03.2023 encontram-se juntas aos autos, a Ofendida fala dirige-se ao arguido e diz: “Não tens onde cair morto”, “Vais pagar”, “Liga aí para as outras putas que eu vou atrás delas”, “É que eu vi as mensagens. O que foram fazer?”, “Metes nojo”, “Cabrão”, “Eu mato-te”, bem demonstrativas que a Ofendida não se encontrava numa relação de subordinação em relação ao arguido, ou seja, da inexistência de uma vítima e de um vitimador, colocado numa posição de evidente dominação e prevalência sobre aquela, própria da génese e da caraterização da violência doméstica. 36) Não foi o produzida prova convincente sobre a realidade de um facto (de que o Recorrente fosse “o centro da agressividade”), pelo que na dúvida sobre tal realidade e em face da existência de prova nos autos do condicionalismo de reciprocidade nas injúrias, conforme alude o acórdão da 1ª instância, deveria o Douto Tribunal ter ficado na dúvida sobre tal realidade, fazendo funcionar em favor do arguido o principio do in dubio pro reo, e mantendo, na íntegra, a decisão absolutória da 1ª instância. 37) O processo de formação de convicção do Tribunal a quo mostra-se, desde logo, à partida inquinado, pois a livre convicção do Tribunal ad quo confunde-se com convicção íntima, arbitrária e imotivada, pré-concebido, com recurso indevido às regras da experiência comum, confundindo-se com pré-juízos e mesmo preconceitos, tendo sido retiradas ilações sobre a alegada coadunação da personalidade do arguido com os factos que lhe são imputados pelo teor das respostas dadas pelos depoimentos de CC e DD, chegando a afirmar que “acredita-se que nos eventos agressivos imperava a impetuosidade mostrada pelo arguido” e que “as discussões com agressões verbais eram da iniciativa do arguido próprio do caráter impetuoso que ficou demonstrado”, olvidando-se o principio na mediação, e a demais prova testemunhal produzida, e em vídeo (visionamento das imagens captadas no dia 13/03/2023 e dos fotogramas), que dá conta da existência clara de reciprocidade nas injúrias e do caráter demonstradamente agressivo da Ofendida, também em público. 38) Na apreciação crítica da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, confrontando-se a prova documental e testemunhal, resulta que a Ofendida insultava o Recorrente, apelidando-o de “boi”, “cabrão”, “filho da puta”, “vai para a puta da tua mãe”, “vai para a puta que te pariu”, “vai para a cona da tua mãe”, “sai daqui que vens com as mãos a cheirar a cona”, “não tens onde cair morto”, “vais pagar”, “liga aí para as outras putas que eu vou atrás delas”, “É que eu vi as mensagens. O que foram fazer?”, “Eu mato-te”, “vai ter com a porca da Brasileira”, “falar com a porca da brasileira”, “porcas lá do centro de ...”, sendo tais expressões bem demonstrativas que, ao contrário do alegado pelo TRP, a densidade e alcance das injúrias é idêntico, senão até mais agressivo do que as injúrias que o Recorrente retorquiu e dadas como provadas no artigo 5.º dos factos provados, verificando-se, alias, o condicionalismo da reciprocidade nas injúrias dada como provado pelo tribunal de 1ª instância, revelando-se, evidente o erro no juízo probatório efetuado pelo TRP ao proceder à alteração da matéria fática. 39) Existência de vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, havendo nos autos factos que o Douto Tribunal ad quo deveria ter apurado e que o mesmo se encontrava vinculado a averiguar, quer porque alegados pela defesa, quer porque constam dos autos (demais prova testemunhal e em vídeo) não tendo o Tribunal esgotado os seus poderes de indagação da matéria de facto, sendo tal apuramento necessário para a decisão, existe um lacuna, deficiência ou omissão onde não deveria, verificando-se que da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados para que pudesse formular um juízo seguro de condenação – não o foram – determinando a formação incorreta de um juízo. 40) Existência de vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ao dar como provado no artigo 17.º, quando a matéria de facto provada, nomeadamente no artigo 5.º, é insuficiente para fundamentar essa alteração, por o Tribunal ad quo ao invés de, atenta a prova produzida, proceder à investigação para a descoberta da verdade, apurando se as discussões eram ou não da iniciativa do arguido, decidiu, sem mais, recorrer às regras da experiência comum, não esgotando os seus poderes de indagação em matéria de facto, colhendo da decisão faltarem elementos necessários para proceder à alteração da matéria fáctica, necessária pata que se possa formular um juízo seguro de condenação do arguido. 41) Existência de vício de contradição insanável da fundamentação do Acórdão, por o Tribunal a quo, dar relevância ao depoimento de CC que alega a existência de problemas de alcoolismo do arguido e que quando estava embriagado era agressivo nas discussões, e ao mesmo tempo dá como não provado na alínea e) a inexistência de problemas de álcool. 42) Existência de vício de contradição insanável entre factos objetivos provados, e de erro notório na apreciação da prova por ofensa das regras da lógica, e por incompatibilidade entre factos, quando, no artigo 5.º dos factos provados dá-se como provada a existência de discussões entre o casal, ou seja, em que tanto o arguido, como a ofendida tomavam parte no acto de discutir, e no âmbito das quais o arguido dirigia à ofendida os epítetos ali elencados, mas ao mesmo tempo no artigo 17.º inculca que as discussões com agressões verbais eram da iniciativa do arguido, alterando a matéria fáctica e passando ali a constar que nas discussões a ofendida reagia, respondendo ao arguido, chamando-o dos epítetos ali constantes. 43) Existência de erro notório na apreciação da prova por incompatibilidade entre um facto subjetivo não provado do artigo ff) e os factos provados nos artigos 14.1.º, 14.2.º e 14.3.º. 44) Existência de erro notório na apreciação da prova, já que o Douto Tribunal a quo fez uma ponderação deficitária e pouco criteriosa das provas, que dispensou o esforço exigível de conjugação de todos os meios probatórios disponíveis (prova testemunhal e de vídeo), para proceder à alteração da matéria fáctica do artigo 17.º e dar como provados os artigos 14.1, 14.2 e 14.3, verificando-se uma deficiência no apuramento da matéria de facto, que se depreende da conexão lógica do texto da mesma e verifica-se da simples leitura do texto da sentença se constata erro de raciocínio na apreciação das provas. 45) Deverá, por isso, a redação do artigo 17.º ser alterada, em conformidade com a prova produzida nos autos, passando ali a constar o seguinte: “17. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 5., no âmbito das discussões que existiam entre arguido e ofendida, esta apelidava o arguido de “boi”, “cabrão”, “filho da puta”, “vai para a puta da tua mãe”, “vai para a puta que te pariu”, “vai para a cona da tua mãe”, “sai daqui que vens com as mãos a cheirar a cona”, “não tens onde cair morto”, “vais pagar”, “liga aí para as outras putas que eu vou atrás delas”, “É que eu vi as mensagens. O que foram fazer?”, “Eu mato-te”, “vai ter com a porca da Brasileira”, “falar com a porca da brasileira”, “porcas lá do centro de ...” e deverá ainda a matéria de facto aditada nos pontos 14.1, 14.2 e 14.3 ser dada como não provada – o que se requer. 46) Existência de errada qualificação normativo-jurídica dos factos e da prova produzida no crime de violência doméstica e do não preenchimento do tipo, sendo essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela o que não ocorre in casu. 47) Quanto ao tipo objetivo - inflição de maus-tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ex-cônjuge, resulta dos factos supra alegados, resulta inexistência de ofensa à integridade psíquica de modo especialmente desvalioso, grave e intenso, inexistência de lesão do bem jurídico protegido, ou seja de lesão de saúde psíquica e/ou insusceptibilidade de criar risco sério para a integridade psíquica da ofendida, inexistência sequelas/danos resultantes da conduta, isto porque, a ofendida não prestou depoimento, não resultando dos autos qualquer prova de que nas discussões havidas a mesma tenha se sentido espezinhada, aviltada, amesquinhada, menosprezada ou particularmente ofendida, decorrendo, pelo contrário, do seu depoimento uma personalidade que nunca se sentiu amedrontada, envergonhada, vexada, constrangida ou abalada na sua dignidade, que discutia de igual para igual com o recorrente, e que era agressiva. 48) Inexistência de relação de poder ou de dominação da vítima com consequente vulnerabilidade da vítima: emerge dos factos supra alegados, a inexistência de clima de relação de poder e inexistência de medo ou de vulnerabilidade, fragilidade ou de desproteção por parte da ofendida e que por esse meio, o recorrente quisesse infligir maus-tratos à ofendida, com o propósito de exercer, de forma abusiva, uma relação de poder e de pelo uso da violência dominar a vítima. 49) Existência de reciprocidade de condutas: Resulta dos factos, insultos recíprocos, com igual intensidade ofensiva, sem que dos factos resulte qualquer relação de domínio, subjugação, manipulação ou menorização de um dos agentes, antes caracterizando uma dinâmica relacional mais ou menos aceite (e em que, normalmente, as discussões são muitíssimo frequentes), não se pode concluir pelo preenchimento do crime de violência doméstica, antes devendo falar-se de um “modo de vida” disfuncional, muito pouco saudável e totalmente tóxico 50) Quanto ao tipo subjetivo – inexistência de dolo ou conhecimento e vontade por parte do agente de maltratar, nem a consciência da censurabilidade da sua conduta ou de que atuou com o propósito de maltratar, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, com especial intenção de humilhação, degradação e aviltamento da vítima. 51) Foram violados os artigos 127.º do CPP, 152.º do CP, 32.º, n.º 2 da CRP e no artigo 349.º do Código Civil. 52) Não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, designadamente da existência de um facto, ilícito, culposo, danoso e nexo de causalidade entre o facto e o dano, tendo sido violado o artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, 82.º-A do CPP e 483.º do Código Civil. 53) Sem prescindir, por mera cautela, e hipótese académica, foram violados os critérios de escolha da pena e da determinação da medida da pena, o disposto no artigo 70.º e 40.º do Código Penal, e os princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso. 54) Entende o Recorrente que, no caso concreto, que deveriam ser ponderados os seguintes factos correspondentes à prevenção geral e especial: a culpa não é intensa, e o arguido não agiu com dolo direto, pois que, conforme resulta do supra alegado, existia reciprocidade nas injúrias, inexistindo prova de danos, o recorrente encontra-se socialmente e profissionalmente integrado, os factos dados como provados nos artigos 18.º a 27.º; o Recorrente que ajuda a prover o sustento das filhas, sendo que caso viesse a ser determinado o cumprimento de prisão efetiva, as mesmas ficariam desamparadas, sendo que as finalidades de punição se mostram adequadas e suficientemente realizadas com a aplicação de pena de prisão suspensa na sua execução. Termos em que: Declarando-se nulo o acórdão proferido com fundamento nas nulidades e inconstitucionalidades supra apontadas, e sempre deve o recurso ser julgado procedente e consequentemente ser revogado o Douto Acórdão recorrido nos termos supra sufragados, e em consequência ser o arguido/recorrente absolvido do crime de violência doméstica de que foi condenado, tudo com as consequências legais, com o que farão, como sempre, a inteira e costumada, JUSTIÇA. 3. O Ministério Público, junto da Relação respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento, concluindo (transcrição das conclusões): 1.º O Ministério Público não questiona a admissibilidade do presente, atento o sentido da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto em 2 de agosto de 2024, de condenação, pela primeira vez, do arguido/recorrente e as disposições legais invocadas no despacho de admissão, nomeadamente, parte final da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 94/2021. 2.º Contudo, entende o Ministério Público que desta decisão, de condenação por parte do Tribunal da Relação do Porto, somente cabe recurso de revista alargada para o Supremo – ou seja, apenas relativo ao reexame da matéria de direito -, e não um pleno recurso sobre matéria de facto, como pretende o recorrente, já que das alterações introduzidas pelo art.º 11º da Lei n.º 94/2021 à alínea a) do n.º 1 do artigo 432.º e ao art.º 434º, ambos do CPP, resulta expressamente que o STJ não tem poderes de cognição sobre a matéria de facto fixada nas decisões condenatórias de primeira instância das Relações. 3.º Ou seja, a competência do STJ nestes casos cinge-se à apreciação da questão fundamental da culpa em hipóteses de desacordo entre instâncias, com possibilidade de conhecer da existência de contradição insanável na fundamentação, erro notório na apreciação da prova ou insuficiência da matéria provada para a decisão da decisão tomada. 4.º Por outro lado, e ao contrário do alegado pelo recorrente, não nos parece que sejam inconstitucionais os artigos do CPP por ele mencionados, nomeadamente, os artigos 432.º, n.º 1, al. a) e 434.º, quando interpretados no sentido de que, em caso de condenação do arguido pela primeira vez em segunda instância (decisão surpresa), lhe está vedada a impugnação/reapreciação da matéria de facto pelo STJ (segundo grau de jurisdição), apenas sendo admitido recurso de revista alargado, nos termos do artigo 410.º, n.º 2 do CPP, bem como quando interpretados no sentido de que, quando há alteração da matéria de facto pela Relação inovatoriamente, não há direito a recurso da matéria de facto, por alegadamente violarem o direito ao recurso por parte do recorrente, ínsito no principio das garantias de defesa, afrontando ainda o principio da igualdade e da proporcionalidade. 5.º Isto porque, tais disposições legais não impedem, nem limitam, o direito do arguido de interpor recurso para o STJ da decisão do Tribunal da Relação do Porto que o condenou pela primeira vez em segunda instância, independentemente da pena que lhe foi aplicada, já que o STJ terá, no presente caso, que apreciar, necessariamente, a questão da culpa e, também, se existiu indício de erro judiciário, não havendo, no entender do MP, qualquer violação do direito ao recurso do recorrente, nem inconstitucionalidade das citadas disposições legais. 6.º Quanto à invocada nulidade do acórdão recorrido – a prevista na alínea c) do artigo 119.º do CPP, aplicável ex vi do disposto no artigo 425.º n.º 4 do mesmo diploma, e por violação do disposto na primeira parte do n.º 1 do art.º 6.º da CEDH, do artigo 61.º, n.º 1, alínea a) do CPP e do artigo 32.º, n.º 1 da CRP, por considerar que que o tribunal da Relação do Porto não ouviu as testemunhas e o arguido pessoalmente, não tendo o mesmo sido convocado previamente à condenaçãoo para o exercício dos direitos de defesa e de contraditório ,mesmo que em audiência oficiosa, – a mesma não se verifica, primeiro, porque não integra nenhuma das previstas nos artigos 379º e 380º do CPP e, segundo, porque, no presente caso, se verifica não ter sido preterido o direito do recorrente a ser ouvido, já que o arguido/recorrente sempre foi ouvido, pessoalmente ou através do seu ilustre mandatário, ao logo de todo o processo, quer quando o mesmo se encontrava na 1ª instância, quer na fase de recurso para o Tribunal da Relação, em que teve oportunidade de responder ao recurso interposto pelo MP e expor os seus argumentos, de facto e de direito, como na realidade aconteceu. 7.º No que concerne ao mérito do recurso, e pese embora os argumentos invocados pelo recorrente, entende o Ministério Público que não lhe assiste razão, e que se deverá manter, na íntegra, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 2 de agosto de 2024, que julgou parcialmente procedente o recurso do MP, alterando a decisão da 1ª instância e, em consequência, condenou o arguido/recorrente pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º, n.º s 1, alínea b) 2, alínea a), 4 do Código Penal, na pessoa da companheira BB, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão efetiva e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima, por qualquer meio, e afastamento da sua casa e local de trabalho, pelo período de 3 (três) anos, bem ainda, foi condenado a pagar à ofendida BB, a título de arbitramento oficioso de reparação da vítima, a quantia de € 3.000 (três mil Euros). 8.º Assim, o Ministério Público subscreve integralmente a argumentação constante do acórdão recorrido, nomeadamente, a páginas 32 e segs., no sentido de que se deve manter integralmente a decisão condenatória do recorrente, já que não se deteta qualquer erro notório na apreciação da prova ou no processo de formação da convicção do Tribunal ad quo, ao qual, no presente caso, não cabe efetuar um segundo julgamento, nem ouvir toda a prova testemunhal produzida, não existe insuficiência da matéria de facto para a condenação efetuada, nem errada qualificação normativo-jurídica dos factos que levaram à condenação do recorrente pela prática do crime de violência doméstica, não tendo, por fim, sido violadas quaisquer normas legais ou constitucionais ou princípios gerais de direito, tal como, o princípio in dubio pro reo. 4. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, concluindo: «Examinados os fundamentos do recurso, e por todo o exposto, somos de parecer que a decisão recorrida não merece as críticas que lhe foram dirigidas pelo recorrente, pelo que deve ser mantida, rejeitando-se o recurso nas partes em que, como se assinalou, traz ao conhecimentos deste Supremo Tribunal questões que extravasam os seus poderes de cognição e negando-se provimento no demais, por manifestamente improcedente.» 5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, o recorrente reiterou as suas razões. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso. Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões que se colocam são: - Da possibilidade ou não de impugnação ampla da matéria de facto quando a Relação condene em recurso de decisão absolutória da 1.ª instância e inconstitucionalidade de interpretação normativa que negue tal possibilidade; - Da alegada nulidade insanável do acórdão da Relação do Porto por violação do princípio do contraditório ao não ter convocado o arguido para audiência; - Dos alegados vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP; - Da subsunção jurídico-penal dos factos; - Da responsabilidade civil e indemnização arbitrada; - Da pena. 2. Factualidade dada como provada e não provada na decisão de 1.ª instância e respetiva motivação 2.1. Factos provados: 1. O arguido AA e a vítima BB encetaram relação de namoro em 1999, e vivem em comunhão de mesa, leito e habitação na residência comum, desde, pelo menos, Agosto de 2017, residindo inicialmente em território francês e, posteriormente, desde Janeiro de 2021, na Rua da ..., .... 2. Por factos praticados entre 2018 e 28/02/2021 à pessoa da vítima BB (entre outros), foi o arguido AA acusado no âmbito do processo n.º 82/21.1... por crime (entre outros) de violência doméstica. 3. As menores, JJ e FF sempre residiram com a sua mãe BB e, após 2017, igualmente com o arguido. 4. Desde a convivência em comum do casal, que a mesma tem sido turbulenta. 5. Em datas não concretamente apuradas, situadas desde pelo menos entre 01/03/2021 e a presente data, por diversas vezes, com a frequência de, pelo menos, uma vez por semana, no interior da residência de ambos defronte dos filhos de BB, o arguido, nas discussões que teve com esta por motivos não concretamente apurados, a ela se dirigiu, em tom de voz alto e sério, e disse-lhe: “filha da mãe”, “vaca”, “puta”, “filha da puta”, “deves andar enrolada com os teus filhos”, “tens problemas mentais, tens de ser internada”, “deficiente”, “andas a dar a cona aos teus filhos”. 6. No dia 12/03/2023, pelas 11h50, no interior do estabelecimento Café..., sito na Rua ..., ..., o arguido aborrecido por CC ter ido buscar as irmãs menores JJ e FF à catequese, dirigiu-se à ofendida e disse-lhe: “És uma mãe de merda” e a CC disse-lhe: “Nem sabes quem é o teu pai”. 7. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido dirigiu-se a CC, DD e EE e, em tom de voz alto e determinado, disse-lhes: “ eu que não saia desta vivo. Vou-vos encontrar a todos, um a um (,,,)”. 8. Nesse seguimento, o arguido dirigiu-se a DD e, em tom de voz alto e determinado, disse-lhe: “vou-te enfiar o telemóvel pelo cú acima”. 9. As menores JJ e FF ficaram em estado de pânico e a chorar. 10. Em dia e hora não concretamente apurada, mas após as 21 horas e no ano de 2023, o arguido começou a bater violentamente na porta do quarto onde se encontravam as menores e a progenitora ao mesmo tempo que proferiu as seguintes expressões: “Abre a porta! Quero as portas da minha casa abertas! As portas não são para estar fechadas!”. 11. Neste ínterim, já após as 00h do dia seguinte, chegou ao local o filho da vítima, CC, alertado por uma vizinha que estariam a decorrer altercações, que introduziu as irmãs menores no seu veículo automóvel. 12. O arguido não era, à data dos factos, titular de licença de uso e porte da arma, nem de licença de detenção no seu domicílio. 13. O arguido sabia que afectava a ofendida na sua honra e consideração pessoal, o que logrou. 14. Actuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 15. O arguido tem, além do mais, os seguintes antecedentes criminais: No PCC n.º 82/21.1..., por acórdão transitado em julgado a 09-02-2023, o arguido foi condenado: - pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas d) e e), nº 2, alínea a), do Código Penal, sobre a ofendida LL, por factos praticados entre julho de 2019 e 30/09/2021, na pena de 2 [dois] anos e 6 [seis] meses de prisão; - pela prática de dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153º nº 1 e 155º nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente MM, por factos praticados, respectivamente, em 29/07/2019 e entre 30/07/2019 e 30/09/2021, na pena de 10 [dez] meses de prisão, cada um; - pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º nº 1 e 155º nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, perpetrados na pessoa de BB, por factos praticados em 28/02/2021, na pena de 10 [dez] meses de prisão; - pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 2, alíneas f), g) e ab), e pelo artigo 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006 de 23/02 [Regime Jurídico das Armas e suas Munições], por factos praticados em 28/02/2021, na pena de 1 [um] ano de prisão. - Em cúmulo jurídico, na pena única de 3 [três] anos e 10 [dez] meses de prisão, suspensa a sua execução, por igual período, sujeito a o regime de prova, e ao Plano de Reinserção Social a elaborar pela DGRSP. Mais resultou provado: 16. BB em 30.07.2021 recebeu tratamento hospitalar no Hospital..., em .... 17. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 5., no âmbito das discussões que existiam entre arguido e ofendida, esta apelidava o arguido de “boi”, “filho da puta”, “vai para a puta da tua mãe”. 18. Quer tal como ocorria à data dos presentes factos, quer na actualidade, não se observam alterações assinaláveis nas condições de vida do arguido, coabitando com companheira/ofendida BB e duas filhas desta (FF, nascida a .../.../2011 e JJ, nascida a .../.../2014). 19. Nesta morada desde 2005, o agregado ocupa o rés-do-chão de moradia unifamiliar inserida em meio semiurbano da freguesia de ... (concelho de ...), não conotada com problemáticas sociais relevantes, vivendo o casal em comunhão de mesa, leito e habitação desde 2017. 20. A dinâmica familiar e o relacionamento interpessoal são referenciados como instáveis e conflituosos. 21. Habilitado com o 6.º ano de escolaridade iniciou em tenra idade o seu percurso profissional, na área de moldes plásticos, área que viria a ser da sua profissionalização. 22. Manteve até ao passado mês de Janeiro actividade profissional na empresa P..., estando desde o passado dia 19/02/2024 integrado na empresa PL..., como técnico especialista de injecção, com horário das 08h00 às 17h00. A sua companheira/ofendida após período de inactividade laboral, insere-se na empresa I... com horário das 16h00 às 24h00. 23. No domínio económico não são referidos constrangimentos detendo uma situação financeira equilibrada, assente na eficaz gestão das economias do casal, proveniente dos rendimentos do próprio 1600 Euros e ofendida 820Euros, assumindo o casal encargos com habitação (290 Euros), agua (30 Euros), electricidade (40 Euros), comunicações (80 Euros) e alimentação. 24. De relação marital contraída aos 20 anos com MM, o arguido é pai de três descendentes – NN, OO e LL, respectivamente de 30, 28 e 20 anos na actualidade. 25. Nos tempos livres, AA direcciona esforço para a manutenção de actividade física desportiva, mantendo actividade de treinador de defesa pessoal a civis e agentes de segurança em Academia. 26. No meio sócio-residencial, o arguido não estabelece especiais relações de vizinhança, adoptando comportamento discreto e ajustado, beneficiando de uma imagem social adaptada, sem registos de outros ilícitos junto de OPC local – GNR de .... 27. Registam-se condições para aplicação de uma medida judicial de execução na comunidade, de molde a promover no arguido consciencialização para o desvalor da sua conduta. 2.2. Factos não provados: a) Dessa união entre o arguido e a vítima existem quatro filhos em comum: - JJ, nascida em .../.../2014, - FF, nascida em .../.../2011, - DD, nascido em .../.../2004, e - CC, nascido em .../.../1999. b) As menores JJ e FF residiram com ambos os progenitores desde o seu nascimento e até 26/08/2023, data em que juntamente com a vítima BB abandonaram a residência comum do casal. c) Nas circunstâncias de tempo referidas em 5 da factualidade provada, o arguido dirigiu à ofendida as seguintes expressões: “cabra”, “andas com todos”, “és uma puta de merda”, “não vales merda nenhuma”. d) O arguido dirigiu as expressões referidas em 5 da factualidade provada fora da residência de ambos. e) Os conflitos entre o casal são motivados por ingestão abusiva e exagerada de bebidas alcoólicas por parte do arguido de forma diária e, desde pelo menos o final do ano de 2022 motivada por grandes dificuldades financeiras e ciúmes. f) No dia 30/07/2022, no interior da habitação comum, o arguido abeirou-se da vítima e desferiu-lhe um número não concretamente apurado de pancadas com os pés nos braços, dorso e cabeça. g) Em consequência da actuação do arguido nessa ocasião, a vítima sofreu dores e sofrimento, bem como equimose no braço esquerdo e escoriações no braço direito tendo a mesma, nesta data sido socorrida no Hospital..., em .... h) No dia 12/03/2023, pelas 11h50, no interior do estabelecimento Café..., sito na Rua ..., ..., o arguido proferiu, em tom de voz alto e sério, as seguintes expressões dirigidas à vítima: “porque é que o mandaste ir buscar as meninas? És uma puta!”, tendo de seguida encostado a sua cabeça à cabeça da vítima BB mais lhe dizendo: “estás a falar alto para quem? Estás aqui no café para comer os clientes atrás do balcão”. i) No dia 24/03/2023, pelas 12h00, no interior da residência do casal e na presença das filhas menores de ambos, a vítima e o arguido encetaram discussão entre si por alegadas infidelidades por banda do arguido, tendo a vítima solicitado ao arguido que saísse de casa, tendo o arguido retorquido que quem deveria sair era a vítima com as menores. j) Desde então que a vítima deixou de pernoitar no mesmo quarto com o arguido, passando a dormir com as filhas menores. k)Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9. da factualidade provada, as menores encontravam-se a dormir e o arguido, tinha ingerido bebidas alcoólicas em excesso. l) Nessas mesmas circunstâncias, após alguns minutos a vítima abriu a porta tendo encontrado o arguido na cozinha, tendo este lhe dirigido, em tom de voz alto e sério, as seguintes expressões: “Quero que saias de casa! Sua filha da mãe queres-te separar de mim porque andas metida com outros! Tens que sair daqui de casa! Vaca! Vais sair daqui e amanhã meto aqui outra mulher! Já te disse para saíres daqui!”. m) Após a chegada de CC ao local, a vítima, aproveitando o facto de o arguido se encontrar no exterior da habitação, trancou-se no interior da mesma. n) Nesse contexto, o arguido dirigiu-se a CC e, em tom de voz alto e determinado, disse-lhe: “vou-te matar seu filha da puta”. o) Desde esta altura que quase diariamente o arguido dirigiu, em tom de voz alto e determinado, à vítima BB as seguintes expressões: “Mato-te a ti e depois mato-me a mim! Se for preso, mato-me!”. p) Nesse contexto, o arguido dirigiu-se a CC e, em tom de voz alto e determinado, disse-lhe: “vou-te matar seu filha da puta”. q) Desde esta altura que quase diariamente o arguido dirigiu, em tom de voz alto e determinado, à vítima BB as seguintes expressões: “Mato-te a ti e depois mato-me a mim! Se for preso, mato-me!”. r) Em data não concretamente apurada situada no início de agosto de 2023, pelas 02h, o arguido chegou à residência comum alcoolizado, dirigiu-se à vítima que se encontrava a dormir no quarto das filhas menores e levou a mesma para o quarto do casal. s) Nesse local, o arguido atirou a vítima para cima da cama e sem consentimento da mesma retirou-lhe a parte inferior do pijama e as cuecas, tendo a vítima referido que não pretendia qualquer envolvimento sexual com o arguido, tendo este retorquido “Tu não queres mas quero eu!” e encetou penetração vaginal. t) A actuação do arguido nessa ocasião causou, necessária e directamente, sofrimento e dores à vítima. u) No dia 25/08/2023, pelas 11h30, no interior da residência comum e defronte das filhas menores, o arguido encetou discussão com a vítima por esta não pretender cozinhar para si e proferiu-lhe, em tom de voz alto e sério, as seguintes expressões: “És uma vaca! És uma puta! Vou embora!”. v) De seguida, o arguido empurrou a mesa da cozinha na direção à vítima, tendo-a atingido na barriga e membros inferiores. x) No dia 26/08/2023, pelas 14h00, o arguido retornou à habitação, encontrando a vítima a estender a roupa, disse-lhe: “Ainda estás aí sua puta?”. y) Nesta altura, a vítima referiu ao arguido que retirasse os seus bens e não aparecesse mais na sua casa, tendo o arguido retorquido em tom de voz alto e determinado: “Tens meia hora para te ires embora desta casa. Vou ao café e quando voltar se ainda estiveres aqui meto a porta abaixo e vai tudo à frente!”, tendo saído da habitação. z) A vítima, em pânico, trancou-se no interior da habitação, tendo o arguido ali retornado passado 30 minutos. aa) Ao aperceber-se que a vítima se tinha trancado na habitação, o arguido desferiu pancadas com os mãos fechadas e com os pés na porta, ao mesmo tempo que proferiu as seguintes expressões em tom de voz alto e determinado: “Abre a porta senão ponho a porta abaixo! Corto-te o pescoço sua puta!”. bb) Neste dia, e em consequência destes factos, e temendo pela sua vida e integridade física, a vítima e as suas filhas menores viram-se forçadas a abandonar a residência familiar e mudaram-se para a residência do filho CC. cc) No dia 26/08/2023, pelas 14:30 horas, o arguido detinha e guardava no interior da sua residência sita na Rua da ..., ..., os seguintes objectos: a) Arma de fogo curta, marca Walther, modelo pp, de calibre 7,65mm, com o número de série ...29; b) Uma munição de calibre 7,65 mm. dd) No dia 28/08/2023, pelas 13h30, a vítima deslocou-se à sua habitação para recolher bens de primeira necessidade para si e para as menores não tendo conseguido entrar na residência porquanto o arguido tinha mudado as fechaduras. ee) O arguido não mais permitiu que a vítima e as menores regressem à habitação e sequer recolham os seus bens pessoais. ff) Mercê dos comportamentos do arguido, a vítima vive num clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação, receando que o arguido lhe tire a vida, volte a molestar o seu corpo ou lhe profira expressões que atentam a sua honra e consideração como ser humano. gg) Ao agir do modo acima descrito, o arguido previu e quis, no interior da habitação comum e na presença das filhas menores de ambos, importunar e ofender a saúde da vítima, bem como ofender a sua integridade física, honra, consideração e a sua liberdade de determinação, tratando-a de modo desumano, maldoso e humilhante, de forma reiterada e habitual, o que fez, não obstante saber que tinha para com a vítima especiais deveres de respeito e consideração decorrentes da relação amorosa que os uniu e da coabitação. hh) Em todas estas ocasiões, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que ao comportar-se da forma descrita relativamente à sua companheira, a submetia a um grande sofrimento físico, psicológico e a humilhação, resultado esse que quis produzir e efectivamente se verificou. ii) Mais sabia que, ao actuar na residência comum do casal e na presença das filhas menores de ambos, ampliava o sentimento de receio da vítima, sua companheira e mãe das suas filhas, o que arguido bem sabia, visto que violava o espaço reservado da sua vida privada e colocava em causa a capacidade de a vítima se proteger, o que representou, quis e conseguiu. jj). O arguido actuou nos termos supra descritos quanto aos actos de natureza sexual, valendo-se da sua superioridade física, do temor que estava a causar na vítima, do facto de a manter cerceada dentro do quarto de ambos, sem capacidade física para sair debaixo de si e resistir ao ato. kk)Bem sabendo que essa não era vontade da vítima, o arguido, conjugando a força física, o temor causado e a situação de vulnerabilidade em que se encontrava a vítima, da coabitação e da relação familiar que os une, quis e conseguiu manter relações sexuais com a mesma, com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos. ll) O arguido ao agir de modo acima descrito e ao proferir as expressões acima identificadas, nas circunstâncias em que o fez e do modo como as proferiu, sabia que eram adequadas e idóneas a provocar medo, inquietação, limitar a liberdade de determinação, perturbar o sentimento de segurança dos ofendidos CC, DD e EE, provocando-lhe receio quanto à sua vida e integridade física, o que o arguido quis e efectivamente logrou conseguir. mm) O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a detenção, posse da arma e munição descritas lhe era vedada, desde logo por não possuir licença de uso e porte de arma válida e legitimamente obtida para o efeito. nn) Não obstante, o arguido deteve tais objectos, conhecendo as suas características, bem sabendo que não estava autorizado a detê-los naquelas condições e que se encontravam em boas condições de funcionamento, o que quis e conseguiu. 2.3. Motivação da decisão de facto (transcrição parcial): «(…) In casu, na fixação da matéria de facto provada e não provada o tribunal colectivo baseou-se na apreciação crítica da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, confrontando-se a prova documental e oral e aferindo-se do conhecimento de causa, da isenção dos depoimentos prestados, das suas certezas e hesitações, da razão de ciência e da relação com os sujeitos processuais. Assim, a convicção do tribunal resulta, no caso concreto, da ponderação conjugada, à luz de regras de experiência comum, os depoimentos das testemunhas, depoimentos esses devidamente concatenados com os demais elementos de prova juntos aos autos, designadamente auto de apreensão e relatório fotográfico de fs. 7 a 10, documentação clinica de fls. 382 a 412, auto de visionamento e extração de fotogramas de fls. 414 a 439, exame do NAE de fls. 694 a 695 e 703, certidão do acórdão proferido no processo comum colectivo nº 82/21.1... Assim, quanto aos factos provados: 1. Quanto ao inicio do namoro entre o arguido e a ofendida, a sua vivência em situação análoga às dos cônjuges, com as menores FF e JJ, bem como a sua estada em França e o seu regresso a Portugal, o mesmo foi referido pelas testemunhas DD, CC, EE e FF, todos filhos de BB, as quais, pese embora algumas confusões, fixaram esse período temporal. 2. Certidão do acórdão proferido no processo comum colectivo nº 82/21.1... 3. Depoimento das testemunhas DD, CC, EE e FF, todos filhos de BB. 4. Depoimento das testemunhas DD, CC, EE e FF, todos filhos de BB, GG, HH, II. 5. Depoimento das testemunhas DD, CC, EE e FF, todos filhos de BB, GG, HH, II. 6. Depoimento das testemunhas EE, II. 7. Visionamento das imagens captadas no dia 13.03.2023 e dos fotogramas. 8. Visionamento das imagens captadas no dia 13.03.2023 e dos fotogramas. 9. Visionamento das imagens captadas no dia 13.03.2023 e dos fotogramas. 10. Depoimento das testemunhas CC e FF. 11. Depoimento das testemunhas CC, GG, II, EE e print das mensagens de fls. 183/184. 12. Comunicações da PSP de fls. 702 e 703. 13 e 14. Conjugação dos demais factos com as regras de experiência comum e do normal acontecer. 15. Certificado de Registo Criminal do arguido. 16. Elementos clínicos de fls. 382 a 412. 17. Depoimento das testemunhas DD, CC, EE e FF, todos filhos de BB, GG, HH, II. 18 a 27. Relatório social para determinação da sanção elaborado pela DGRSP, não contraditado pelo arguido. O arguido, no direito que lhe assiste, remeteu-se ao silêncio, referindo unicamente que vive em situação análoga às dos cônjuges com BB. Por seu turno, BB, igualmente no direito que lhe assiste, recusou-se a prestar depoimento, tal como já tinha acontecido no processo 82/21.1..., onde o arguido foi acusado pela prática de um crime de violência doméstica na sua pessoa, acabando por ser condenado pela prática de um crime de ameaça agravada. Foi ouvida a testemunha, CC, filho da ofendida, a qual, pese embora alguma emotividade, prestou um depoimento coerente, conhecedor, depondo acerca do que presenciou e por isso merecedor de credibilidade por parte do Tribunal. Começou por referir que a mãe e o arguido estão a viver juntos, mas já têm uma relação há cerca de 25 anos. Foi ele quem fez queixa em ... e desde essa altura evita de ir lá em casa. A vizinha (a aqui testemunha GG) ligava-lhe para ir tirar as irmãs do barulho, ouvia insultos de ambas as partes: puta, boi, vaca, queres ir dar a cona aos teus filhos, filho da puta (a mãe também chamava); diz que a mãe insultava em resposta aos insultos que o arguido; partiam coisas (garrafa, mesas, electrodomésticos), enfatizando que ouviu insultos de parte a parte. Nunca viu o arguido dar pontapés apesar de ter visto viu várias pisaduras no corpo da mãe nas costas, pernas, barriga. No dia 12.03.2023, após ter ido buscar as irmãs à catequese a pedido da mãe, chegou ao Café que explorava, para deixar as irmãs com a mãe, já estava lá o arguido. Este estava a discutir com a mãe mas não se lembra o que lhe disse, tendo-a empurrado, ao que aquela deu quatro passos atrás, mas não caiu. Recorda de ter ouvido insultos mas não se lembra quais. Refere que no meio da confusão que se instalou, o arguido encostou a testa dele, disse-lhe que ele estava cheio de peito porque estava ali com gente e disse-lhe “vamos ali os dois que a gente resolve isso”. Ainda foi para o carro mas depois o irmão, a mãe e a namorada não o deixaram sair. Refere que o arguido lhes disse a ele, ao DD e à namorada que lhes ia enfiar o telemóvel pelo cu, não se lembra de mais nada!!, porém, não era ele que estava a gravar. Não se recorda do arguido ter dito alguma coisa sobre quem era o seu pai. Ao que tem conhecimento, o arguido ficou dois dias a dormir na garagem, mas não sabe se houve algum período em que arguido e ofendida dormiram separados. Relatou o episódio em que mãe lhe ligou, como lhe ligava de todas as vezes que havia discussões, com a finalidade dele ir buscar as irmãs, dizendo-lhe que o arguido estava a bater à porta do quarto das irmãs, que ia deitar a porta abaixo se ela não abrisse, por ela não estar a dormir com ele; nesse dia levou as irmãs e a mãe para sua casa, quando estavam a sair o arguido não disse nada; apenas sabe que foi em 2023 e nesse dia não chamou a GNR. No dia em que chamou a GNR: a mãe ligou-lhe para ir buscar as irmãs porque estava a haver barulho; quando chegou lá as irmãs estavam à entrada na porta, colocou as irmãs dentro do carro e chamou a GNR; apenas ouviu muito barulho, não sabe o que estavam a dizer, ouviu o arguido chamar de filha da puta à mãe; nega que tenha sido ameaçado pelo arguido. Nesse dia o arguido foi detido. Ao que tem conhecimento, arguido e ofendida nunca estiveram separados, ou seja, a viver em casa separadas, excepto durante uma semana, foi a seguir a ele ter sido detido (o 1º interrogatório foi em Setembro de 2023). O arguido diz à mãe que é doente, que tem de se tratar, que precisa de um psicólogo, que ela queria foder com os filhos. Por seu turno, a testemunha PP, catequista da menor FF, apenas relatou ao Tribunal que estava com a FF na eucaristia, ela não estava a sentir-se bem, veio com ela cá fora, ligou à mãe mas como ela não atendeu e a FF sabia o número do irmão de cor, ela ligou-lhe para vir buscar a FF. Diz que assistiu a um confronto, houve troca de palavras entre o pai e o irmão da FF, o CC. Refere que o arguido estava nervoso mas não foi agressivo, só queria ser ele a levar as meninas, como sempre fazia. A testemunha GG, vizinha do arguido e da ofendida, a qual no inicio se mostrou superficial, referiu que nunca assistiu a nada, mas ouvia barulho, porém mas não dava para perceber o que diziam; chegou a chamar o CC porque as meninas estavam a pedir socorro. Porém, acabou por referir que nessa ocasião ouviu a ofendida dizer ao arguido boi, vai para a puta da tua mãe, ao que este lhe chamava de vaca e puta e que por mês havia pelo menos uma discussão e ouvia os insultos, de parte a parte. Confrontada com o ter de fls. 183, 184 confirma que trocou estas mensagens com o CC, filho da arguida. Pela testemunha HH, marido da testemunha anterior, foi referido que ouvia, da sua casa, discussões entre o arguido e a ofendida, principalmente ao fim de semana, embora nem todos. Ouvia a ofendida a proferir vários insultos ao arguido e este a insultá-la de puta, sendo que eram em maior número os insultos proferidos por BB. Nas declarações prestadas pela testemunha II, as quais se nos afiguraram desinteressadas e coerentes e por isso credíveis, esta esclareceu que vive em união de facto com a testemunha CC, desde 2021 e que, conhecendo a ofendida e o arguido desde 2020, presenciou troca de insultos entre ambos cerca de seis vezes, o arguido apelidava a ofendida de filha da puta e vaca e a ofendida de boi ao arguido. No dia da catequese, num Domingo, a catequista ou a mãe, ligaram ao CC para ir buscar as meninas, encontraram-se lá com o arguido que lhes disse que as meninas iam com ele. Após, foram para o café onde já se encontrava o arguido que se dirigiu ao carro deles para ir buscar as meninas, dizendo que não falava à beira de merda. O CC e o arguido envolveram-se em discussão, com insultos mútuos. Referiu que o arguido verbalizou que pegava no telemóvel e que o partia, pois ela estava a filmar o que se estava a passar (imagens juntas aos autos), disse ao CC que este não sabia quem era o pai, ao DD disse-lhe que sabia o caminho dele para o trabalho e ao EE disse-lhe que lhe batia. Mais referiu que não ouviu ameaças, apenas ouviu o arguido a dizer ao CC que iriam resolver aquilo de outra maneira, mas ela não o deixou arrancar com o carro. No final veio a GNR. Recorda-se de uma vez ter ouvido o arguido dizer à ofendida que ela se “metia” com os clientes do café e de uma outra vez que se fosse preso lhe cortava o pescoço. Porém, não conseguiu balizar temporalmente tais afirmações. Ouviu igualmente o arguido dizer, uma vez, que a ofendida “Andava a dar a cona aos filhos”. Não ouviu qualquer outra ameaça. Por seu turno, pela testemunha FF, filha menor de 13 anos da ofendida, prestou um depoimento adequado à sua idade, um pouco tímido denotando-se o desgaste provocado pelas várias discussões que presenciou. De referir que a menor fala do arguido apelidando-o de pai (a este aspecto voltaremos mais tarde), esclarecendo que vive com este há cerca de 7 anos. Esclareceu que ouve discussões entre o arguido e a mãe, e quando isso acontece, vai para o quarto e liga ao irmão CC que as vem buscar, a ela e à irmã JJ, o que já aconteceu várias vezes. No dia em que o irmão CC as foi buscar à catequese, o “pai” colocou o carro à frente do carro do irmão e disse que as meninas (referindo-se a ela e à irmã) iam com ele. Depois foram para o café, referindo que aqui se iniciou uma discussão entre o arguido, os seus irmãos CC e DD e a mãe (com o irmão mais velho, o EE não). Relatou o episódio em que a mãe vai para o quarto dela e da irmã, fecha a porta e o arguido disse que era para abrir a porta, bateu com força na porta e mãe nessa altura chamou o irmão. Recorda que nas discussões, quer o “pai” quer a mãe, chamam nomes um ao outro, mas não se recorda bem quais são. Por seu turno, a testemunha DD filho da ofendida, prestou um depoimento que se nos afigurou, desinteressado, coerente e por isso credível. Assim, referiu esta testemunha que nunca viveu com o arguido enquanto este vivia com a mãe, mas que visitava, pelo menos uma vez por mês, a casa daqueles e de quase todas as vezes que o fazia, ouvia discussões entre o casal, adiantando que as mesmas aconteciam por iniciativa do arguido, motivado por ciúmes. Nessas discussões ouviu o arguido dirigir à mãe as expressões: “filha da puta”, “vaca de merda”, “deficiente mental”, sendo que a mãe apelidava o arguido de “filho da puta”. Esclareceu ainda que na maioria das vezes, durante tais discussões aconteciam o arguido encontrava-se alcoolizado, mas chegou a acontecer mesmo sem o arguido estar sob o efeito do álcool. No que respeita ao episódio no dia 12 de Março do ano passado, referiu que se encontrava no café com a mãe, entretanto chega o irmão, as irmãs, de seguida o arguido, que se dirigiu à mãe, insurgindo-se quanto ao facto do irmão CC ter ido buscar as irmãs e discutiu com eles, chamando-os de filhos da puta, cabrões e dirigindo-se a ele disse que sabia o caminho que ele fazia para casa e quando ele estava a gravar disse que lhe enfiava o telemóvel pelo cu acima, também o disse para a namorada do CC que estava também a gravar. O arguido disse ao irmão CC “Anda, anda se és homem, anda que tu vais ver”, o irmão queria ir mas não o deixaram. Quando a mãe ligava ao irmão CC ele quase sempre ia junto, chegavam lá, chamavam as irmãs e ele ficava no carro com elas e o CC tentava trazer a mãe, que acabava por ir com eles, porém, no dia seguinte, voltava. Não se recorda de qualquer período em que a mãe e o arguido estivessem separados, excepto durante cerca de duas ou três semanas em que a mãe esteve na casa dele e depois regressou a casa. Por fim, pela testemunha EE, filho da ofendida, referiu, de forma que nos afigurou, globalmente, coerente, pelo que foi valorado, na parte em que encontrou arrimo na demais prova produzida. Declarou esta testemunha que ia poucas vezes a casa da mãe, cerca de uma vez por mês e que ouvia discutir, falar alto, mas nunca ouviu insultos nem ameaças em casa. Referiu que foi com o irmão CC e com a namorada deste (II), buscar as irmãs à catequese e o arguido pôs o carro à frente do carro deles para os impedir de sair, sendo que só o conseguiram fazer devido à intervenção da catequista (a aqui testemunha PP); depois no café Bairro, quando o arguido chega, dirige-se à mãe, disse que ela era uma mãe de merda, eles interpuseram-se, ao que o arguido terá dito que os matava e que lhes enfiava o telemóvel no cu e desafiado o seu irmão a ir a um descampado resolver o assunto. Alegou que já antes deste episódio tinha havido outro, onde se tinha gerado grande confusão no café motivada por ciúmes do arguido em relação ao seu pai (ex companheiro da ofendida). Referiu ainda que chegou a ver a mãe pisada, mas ela dizia-lhe que tinha sido ela que se tinha aleijado e que a situação entre arguido e ofendida acalmou desde que eles chegaram de França em 2021, mas não acabou. Procedeu o Tribunal à visualização das imagens e som captados no dia 12.03.2023, dia em que ocorreu a altercação entre a ofendida, os filhos desta e o arguido no café, cujos fotogramas e transcrição se encontram juntos a fls. 415 a 439. Dos mesmos é possível apurar que o arguido, dirigindo-se a quem estava presente, designadamente aos filhos da ofendida dizendo-lhes: “eu que não saia desta vivo. Vou-vos encontrar a todos, um a um”. Em nenhuma parte da gravação é perceptível o arguido dizer que os ia matar, nem tal, note-se, lhe é imputado na acusação pública. Pelas testemunhas de defesa, QQ e RR, amigos do arguido e que nada presenciaram, que depuseram essencialmente sobre a personalidade deste, foi referido que o arguido é uma pessoa cordial, pacifica, bem considerado pelas pessoas que o rodeiam, não tendo conhecimento que o arguido consuma bebidas alcoólicas em excesso. Quanto à situação pessoal, percurso e contexto de vida do arguido, bem como dos seus antecedentes criminais e a situação económica e social, atendeu-se ao teor do relatório social elaborado pela DGRSP e do CRC. * Relativamente aos factos indicados na factualidade não provada, a convicção negativa do Tribunal resulta da ausência de prova quanto aos mesmos e da sua contradição com a factualidade provada. Diga-se desde já que, no mínimo é peculiar, que alegadamente JJ, nascida em .../.../2014, FF, nascida em .../.../2011, DD, nascido em .../.../2004 e CC, nascido em .../.../1999, sejam filhos do arguido mas nenhum tenha registada tal paternidade na sua certidão de nascimento. Quem consta como sendo progenitor é o ex companheiro da ofendida e pai de EE, filho mais velho da ofendida. Ora, uma vez que tal paternidade não se encontrar registada, resultou não provado o facto elencado na alínea a). Tal como resulta da prova, as menores, no inicio de vida, viveram com a ofendida e com o seu ex companheiro, só passando a residir juntamente com o arguido após 2017 e nunca abandonaram a residência comum do casal, excepto em determinado período de cerca de duas ou três semanas, razão pela qual resultou não provado o facto elencado na alínea b). A factualidade descrita nas alíneas c) e d) resultou da ausência de prova segura da sua verificação, uma vez que as testemunhas inquiridas não referiram tais expressões e foram unanimes em afirmar que as discussões ocorriam no domicilio comum. No que respeita à factualidade elencada na alínea e), a mesma resultou não provada, uma vez que testemunha DD referiu que o arguido nem sempre se encontrava alcoolizado nas discussões tidas com a ofendida, nada tendo sido referido, quanto ao resto. No que respeita à factualidade descrita nas alíneas f) e g), a mesma resultou não provada quer por insuficiência de prova, quer porque dos registos clínicos juntos resulta que a ofendida foi assistida no Hospital..., em ... em 30.07.2021. Os factos descritos nas alíneas h) a nn) resultaram não provados face à ausência de prova, pois, tal como já referimos, a ofendida BB exerceu o direito a recusar prestar depoimento ao abrigo do disposto no artigo 134º nº 1, alínea b), do CPP, inexistido quaisquer outras testemunhas que tenham conhecimento directo quanto aos mesma, sendo transversal a todos os depoimentos que o relacionamento entre o arguido e a ofendida pautava-se como um relacionamento atribulado, com frequentes discussões e insultos mútuos, ou seja, uma relação com falta de respeito de ambas as partes. Na verdade, face a toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, não resultou demonstrado que a ofendida tenha sido atingida na sua dignidade enquanto pessoa humana, assim como, o arguido tenha adoptado uma conduta de agressividade física e psíquica, controladora, persecutória, perturbando o sossego e tranquilidade da vítima, fragilizando-a na sua liberdade pessoal, numa relação de subordinação, de aniquilamento, de domínio, espezinhamento e subjugação face ao arguido. Veja-se que no episódio do café, a ofendida fala dirige-se ao arguido e diz: “Não tens onde cair morto”, “Vais pagar”, “ Liga aí para as outras putas que eu vou atrás delas”, “É que eu vi as mensagens. O que foram fazer?”, “Metes nojo”, “ Cabrão”, “Eu mato-te”, bem demonstrativas que a ofendida não se encontrava numa relação de subordinação em relação ao arguido. De salientar ainda que durante toda a gravação do episódio ocorrido no dia 12.03.2023 é possível ver a expressão de pânico e ouvir o choro das crianças FF e JJ, com mais gravidade no caso da FF, ao qual todos os intervenientes foram indiferentes. Tal situação é deveras de lamentar, pois, face à relação de familiaridade que os unia às menores, tinham o dever de conter as emoções, e não se envolverem em discussões na presença daquelas, tanto mais que se tratam de duas crianças já desgastadas por assistirem às discussões entre o arguido e a sua mãe.» 3. Acórdão recorrido 3.1. Alteração da factualidade dada como provada e não provada operada na Relação. O ponto 17 passou a ter a seguinte redação: 17. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 5., no âmbito das discussões que o arguido mantinha com a ofendida, esta reagia, respondendo ao arguido, chamando-o de “boi”, “filho da puta”, “vai para a puta da tua mãe”. As alíneas gg), hh), e ii), foram excluídas dos factos não provados e foram aditados à factualidade provada os pontos 14.1, 14.2 e 14.3 , com a seguinte redação: 14.1 Ao agir do modo acima descrito, o arguido previu e quis, no interior da habitação comum e na presença das filhas menores de ambos, importunar e ofender a saúde da vítima, bem como ofender a sua honra, consideração e a sua liberdade de determinação, tratando-a de modo desumano, maldoso e humilhante, de forma reiterada e habitual, o que fez, não obstante saber que tinha para com a vítima especiais deveres de respeito e consideração decorrentes da relação amorosa que os uniu e da coabitação. 14.2 Em todas as ocasiões apuradas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que ao comportar-se da forma descrita relativamente à sua companheira, a submetia a um grande sofrimento psicológico e a humilhação, resultado esse que quis produzir e efetivamente se verificou. 14.3 Mais sabia que, ao atuar na residência comum do casal e na presença das filhas menores de ambos, ampliava o sentimento de receio da vítima, sua companheira e mãe das suas filhas, o que arguido bem sabia, visto que violava o espaço reservado da sua vida privada e colocava em causa a capacidade de a vítima se proteger, o que representou, quis e conseguiu.” 3.2. Motivação de facto do acórdão recorrido a sustentar a alteração da decisão de facto. Lê-se no acórdão recorrido (transcrição das partes pertinentes): «O Tribunal de recurso ouviu os depoimentos de CC e DD filhos da ofendida, que depuseram de forma objetiva, sem que se notasse qualquer efabulação, ou exagero da sua parte nas descrições que fizeram dos vários acontecimentos. Não pode deixar de se notar que as atitudes presenciadas e relatadas por estas testemunhas evidenciam um arguido impetuoso, violento, assumindo o domínio da violência verbal, ostensiva e psicológica nos momentos que relatam. De notar que, a testemunha CC, foi claro em identificar o problema do alcoolismo do pai, e quando estava embriagado era agressivo, sendo o mais agressivo nas discussões (o depoente afirma que passou a ficar com o medo). À questão “sobre quem começava?”, referiu não estar presente, e quando chegava retirava as irmãs do local e procurava também retirar a mãe, referindo expressamente que o arguido a tratava mal e ela respondia, esclarecendo, “infelizmente” a mãe não se ficava, respondia, era do feitio dela. A testemunha DD referiu que quem começava era o arguido (muitas vezes assistiu a inícios de discussões pelo arguido) e a mãe respondia, chamando nomes. Ora, sem excluir que algumas discussões possam ter iniciado pela ofendida (acontecimento comum entre “casais”), acredita-se que nos eventos agressivos, imperava a impetuosidade mostrada pelo arguido, até em público, assim como a contundência das suas atitudes. Já o feitio “responsivo” da ofendida, contudo, não determina que esta fosse o centro da agressividade, ou um dos centros geradores de conflitos, ou que visasse provocar e desgastar o arguido. Antes, as discussões com agressões verbais eram da iniciativa do arguido, próprio do carácter impetuoso que ficou demonstrado. Esta perceção que decorre da prova, em nada é infirmada pelos depoimentos das testemunhas II, HH e GG, quando as mesmas relatam ter presenciado discussões com injúrias de parte a parte. Com efeito, esses acontecimentos não significam a polarização de ambos, ou sequer a equiparação de violências verbais exercidas. Claramente, não resultou da prova produzida que a ofendida tivesse uma atitude idêntica ou equiparada à do arguido, a qual distingue-se de forma evidente pela rudeza da contundência deste, e da agressão psicológica que exerceu, como bem se apurou. Esta circunstância determinará a alteração da redação ao ponto 17 dos factos provados, porquanto o Tribunal “A Quo” desconsiderou injustificadamente o teor destes testemunhos com razão de ciência qualificada. Sublinha-se que, contrariamente, ao apurado caráter agressivo, violento e ostensivo do arguido, não se apura que a ofendida também o fosse, e que tivesse nos seus horizontes molestar o arguido. (…) Portanto, temos de entender que o Tribunal “A Quo”, no ponto 17 dos factos provados e na atitude subjetiva do arguido (que julgou não provada), fundou a sua convicção sem o apoio das normas da experiência comum, errando no juízo probatório, quando considerou o condicionalismo da reciprocidade nas injúrias, que não ocorre, dada a iniciativa contundente do arguido muito expressiva, mesmo no ponto 5, onde a densidade e alcance das injúrias é deveras muito superior ao que a ofendida pudesse retorquir. Com efeito, foram sobrevalorizadas as injúrias que a ofendida retorquiu ao arguido, num ponto sem qualquer apoio na prova testemunhal.» * 3. Apreciando 3.1. Da possibilidade ou não de impugnação ampla da matéria de facto quando a Relação condene em recurso de decisão absolutória da 1.ª instância. 3.1.1. Dispõe o artigo 432.º, sob a epígrafe “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”: «1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º; b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º; c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º; d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores. 2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º» Por sua vez, estabelece o artigo 400.º, n.º1, al. e), não ser admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância. In casu, o acórdão recorrido foi proferido, em recurso, pela Relação do Porto, determinando a condenação do arguido num caso em que a decisão da 1.ª instância tinha sido absolutória, inexistindo dúvidas, por conseguinte, quanto à recorribilidade para o STJ, que, porém, apenas conhece de matéria de direito, nos termos do artigo 434.º, do CPP. Estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito. Estabelece o artigo 434.º, do CPP, que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 432.º. Em contraponto, o conhecimento de facto e de direito pertence às Relações (artigo 428.º do CPP). A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121). No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP. Quer isto dizer que enquanto os vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, são vícios da decisão, evidenciados pelo próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada. No caso de condenação na Relação, em sede de recurso de decisão absolutória da 1.ª instância, a lei não prevê a impugnação da decisão de facto no STJ, ainda que este tenha sempre ao seu dispor o conhecimento oficioso dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2 (revista ampliada), caso sejam constatados e impeçam, por isso, a prolação da correta decisão de direito. Porém, argumenta o recorrente que a mera revista ampliada não possibilitaria a identificação e reparação de um leque significativo de erros de facto, não sendo razoável, à luz do princípio da igualdade e da proporcionalidade, que o ora recorrente, condenado pela 1.ª vez em 2.ª instância, não possa impugnar, no recurso para o STJ, o julgamento de facto efetuado pela Relação. Nessa linha de raciocínio, entende que, tratando-se de um recurso de condenação na Relação que reverteu a absolvição na 1.ª instância, o STJ tem de “assumir alguns dos poderes de apelação das Relações em matéria de facto, por aplicação analógica das normas enunciadas nos artigos 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), do CPP e a função de uma autêntica terceira instância em matéria penal”. Vejamos. 3.1.2. Não se ignora a existência de entendimentos como o de Helena Morão (“A revista penal em revista”, pp. 144 e ss, Revista do STJ, n.º2 julho a dez 2022), que critica a restrição da impugnação ampla da decisão de facto no recurso para o STJ. É sabido que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas – direito ao recurso que se traduz na sujeição de uma decisão judicial a um novo juízo de apreciação por parte de um tribunal hierarquicamente superior ao que a proferiu. Antes de o artigo 32.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), na 4.ª revisão constitucional (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro), ter consagrado, de forma expressa, o recurso como uma das garantias de defesa, já o Tribunal Constitucional afirmava que uma dessas garantias era, justamente, o direito ao recurso quanto a decisões penais condenatórias e, ainda, quanto a decisões penais que, durante o processo, tivessem como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Sublinhe-se que o Tribunal Constitucional afirmou, repetidamente, que o duplo grau de jurisdição imposto pelo artigo 32.º, n.º 1, da CRP, abrange tanto o recurso em matéria de direito, como o recurso em matéria de facto, com a salvaguarda de que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não tem, porém, de “implicar renovação de prova perante o tribunal ad quem, nem tão-pouco que conduzir à reapreciação de provas gravadas ou registadas” (Acórdão do TC n.º 573/98, tirado em plenário), tendo, aliás, o Tribunal Constitucional confirmado, por várias vezes, que o modelo da revista ampliada era quanto bastava, face à Lei Fundamental, para considerar assegurado o direito ao recurso em matéria de facto quando estivessem em causa acórdãos condenatórios de tribunais colegiais, permitindo detetar erros grosseiros no julgamento do facto (a saber: insuficiência da matéria de facto; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; erro notório na apreciação da prova), desde que o vício detetado resultasse do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, nos termos do artigo 410.º, n.º2, do CPP. Quer isto dizer que o núcleo essencial do direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, no entender do Tribunal Constitucional, era suficientemente garantido, quanto a decisões de tribunais colegiais, por um recurso dotado do sistema da revista alargada, importando salientar que, na versão originária do CPP, dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal coletivo recorria-se diretamente para o STJ, sendo que este tribunal, sem prejuízo do conhecimento dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º2, só conhece de direito. Com a Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, pretendeu-se assegurar um efetivo recurso em matéria de facto, mesmo relativamente a decisões finais do tribunal coletivo, passando o registo da prova a constituir um instrumento fundamental destinado a assegurar a sindicância da prova produzida, através de um efetivo recurso em matéria de facto. O regime de recursos para o STJ, como sublinhado em reiterada jurisprudência, efetiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, garantia que é reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais). O Tribunal Constitucional tem assinalado que o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, é muito lacónico quanto ao direito ao recurso em processos de natureza criminal, limitando-se a prescrever que entre as garantias de defesa conferidas ao arguido se inclui a possibilidade de “recurso”, o que não significa, prima facie, e perante tal laconismo, que deva ser sempre possível recorrer irrestritamente de toda e qualquer decisão proferida num processo de natureza criminal. Deste modo, e desde que não seja colocada em causa a dimensão essencial do direito ao recurso – que se cifra, em geral, na possibilidade de reapreciação da decisão final de um processo criminal por uma instância superior -, a CRP deixa uma larga margem ao legislador ordinário para restringir ou ampliar esse direito ao recurso, como sucede, de resto, no artigo 400.º do CPP. A este respeito, escreveu-se, no Acórdão do TC n.º 595/2018, o seguinte: «O direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal, encontrando-se expressamente inscrito entre os pilares constitucionais do Direito do Processo Penal da República Portuguesa. A identificação expressa no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição do direito ao recurso como garantia de defesa, resultante da revisão constitucional de 1997, não implicou novidade relativamente ao entendimento que já vinha sendo sustentado pelo Tribunal Constitucional face à sua redação anterior (cf., entre outros, Acórdãos n.ºs 8/87, do Plenário, ponto 6, 31/87, da 2.ª Secção, pontos 4, 5 e 7, 178/88, da 2.ª Secção, pontos 5 e 6, 259/88, da 2.ª Secção, ponto 2.2, 219/89, da 1.ª Secção, pontos 26 a 28, 401/91, do Plenário, ponto II.2 e 3, 132/92, da 2.ª Secção, pontos 6 e 7, e 322/93, da 2.ª Secção, ponto 6). Esta inscrição não deixou, contudo, de representar o reconhecimento explícito da autonomia conferida a uma tal garantia no contexto geral das garantias de defesa, isto é, um valor de garantia não amortizável pelo reconhecimento de outras garantias processuais, designadamente para defesa do arguido. Efetivamente, «tal explicitação constitucional tem por efeito a garantia (constitucional) da possibilidade de interposição de recurso de decisões que respeitem a direitos, liberdades e garantias, maxime que restrinjam tais direitos» (Acórdão n.º 686/2004, da 2.ª Secção, ponto 6). Constituindo uma garantia essencial de defesa, constitucionalmente reconhecida, o direito ao recurso representa, portanto, um inegável limite à liberdade conformadora do legislador quanto à delimitação das decisões de que cabe recurso e quanto à definição do regime de recursos em processo penal. (…) 14 - De outro lado, cabe ainda salientar que a garantia do direito ao recurso não deve ser confundida com a garantia de um duplo grau de jurisdição. Como se escreveu no Acórdão n.º 429/2016, ponto 16, estes são «conceitos autónomos e não confundíveis. Por "direito ao recurso" entende-se – de um modo geral – a faculdade conferida à parte vencida de suscitar o reexame de uma decisão que lhe foi desfavorável e da qual discorda com o intuito de corrigir erros e de ver proferida uma decisão que vá ao encontro das suas expetativas. Por seu lado, com a menção a "duplo grau de jurisdição" pretende-se significar a possibilidade de reexame efetuado por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao que apreciou a causa pela primeira vez, com prevalência sobre este». É certo que a existência de uma hierarquia de tribunais judiciais, constituída pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelos tribunais judiciais de primeira e de segunda instância, encontra também referência expressa no texto constitucional, designadamente anos artigos 209.º, n.º 1, alínea a), e 210.º Não merece igualmente contestação que existe «uma forte ligação entre o direito ao recurso e a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição», desde logo porque «pelo menos ao nível das exigências de um processo justo – [...] o "duplo grau de jurisdição" é pressuposto do exercício do direito ao recurso» e porque a jurisprudência do Tribunal Constitucional «reconhece também a possibilidade de o direito ao recurso se consumar através da existência desse duplo grau de jurisdição» (cf. Acórdão n.º 429/2016, ponto 16). De todo o modo, como se observou ainda no Acórdão n.º 429/2016, ponto 16, enquanto «a Constituição consagra expressamente o direito de recurso em processo penal, nada refere, todavia, sobre os graus de jurisdição exigíveis para concretizar o direito ao recurso. A garantia de defesa constitucionalmente prevista é, com efeito, autónoma em relação aos graus de recurso». Assim, apesar da forte ligação entre ambos os conceitos, esta «não significa que baste o duplo grau de jurisdição para se considerar sempre assegurado o direito ao recurso. Sendo conceitos interligados, eles não devem, porém, ser confundidos, sob pena de diluição do valor próprio e autónomo que a Constituição reconhece, no artigo 32.º, n.º 1, ao direito ao recurso no contexto das garantias de defesa». Efetivamente é de rejeitar uma leitura redutora de ambas as figuras, que reconduz o direito ao recurso à mera garantia de um duplo grau de jurisdição em matéria penal. Uma tal leitura implica uma interpretação restritiva do direito ao recurso, expressamente previsto na Constituição como uma garantia do arguido, que não encontra fundamento constitucional em qualquer outro texto normativo vinculativo da República Portuguesa. A distinção conceptual entre as figuras, aliás, tem resultado da jurisprudência do Tribunal Constitucional, como referido no Acórdão n.º 429/2016, ponto 16: «Assim, embora o direito de recurso, "imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição", deva ser entendido "no quadro das 'garantias de defesa' – só e quando estas garantias o exijam" (Acórdão n.º 30/2001, n.º 7), deve-lhe ser reconhecido "um valor garantístico próprio e não 'dissolúvel' em outras garantias de defesa" (Acórdão n.º 686/2004, n.º 4).» Como tem sido repetido pelo Tribunal Constitucional, em jurisprudência firme, o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, não consagra a garantia de um «triplo grau de jurisdição» ou de «um duplo grau de recurso», em relação a quaisquer decisões condenatórias, salientando que importa distinguir, como conceitos autónomos e não confundíveis, entre a garantia do direito ao recurso, como faculdade conferida à parte vencida de suscitar o reexame de uma decisão que lhe foi desfavorável e da qual discorda, com o intuito de corrigir erros e de ver proferida uma decisão que vá ao encontro das suas expetativas, e a garantia de um duplo grau de jurisdição, entendida como a possibilidade de reexame efetuado por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao que apreciou a causa pela primeira vez, com prevalência sobre este. Na sequência dos seus acórdãos n.º 412/2015 e 429/2016, entre outros, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 595/2018, de 13.11.2018, veio declarar, com força obrigatória geral, «a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição» (DR, 1.ª série, de 11.12.2018). Em função da jurisprudência constitucional, foi adotada a nova redação do artigo 400.º, n.º1, al. e), do CPP. Ora, admitida a recorribilidade para o STJ do acórdão da Relação que inovatoriamente condenou o arguido que havia sido absolvido na 1.ª instância, isso não significa que o recurso deva constituir um 3.º grau de jurisdição relativamente à decisão de facto e que o recurso em matéria de direito, conjugado com a possibilidade de “revista ampliada”, a exercer oficiosamente pelo STJ, não satisfaça o direito ao recurso. A este propósito, importa lembrar as normas relevantes do sistema internacional de proteção dos direitos fundamentais vigentes na ordem interna [Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e Protocolo n.º 7 a esta Convenção]. O artigo 14.º, n.º 5, do PIDCP estabelece que «Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença em conformidade com a lei». De acordo com a interpretação do Comité dos Direitos Humanos, a expressão «em conformidade com a lei» não visa «deixar a própria existência do direito ao exame à discrição dos Estados-Partes, uma vez que este direito é reconhecido pelo Pacto», devendo a referência à conformidade com a lei ser interpretada no sentido de que esta diz respeito às «modalidades do reexame, bem como ao tribunal competente para o efectuar, de acordo com o Pacto». Nesta interpretação, o artigo 14.º, n.º 5, é violado não só quando o condenado não tem direito ao recurso de uma condenação imposta «por um tribunal de 1.ª instância, mas também quando a condenação imposta por um tribunal de recurso ou por um tribunal de última instância, após absolvição por um tribunal de categoria hierárquica inferior, de acordo com o direito nacional, não pode ser revista por um tribunal de categoria superior», independentemente da gravidade da infração (do «Comentário Geral n.º 32» do Comité ao artigo 14.º do PIDCP, de 23.08.2007, 45 e 47, citando as comunicações 1095/2002, Gomaríz Valera c. Espanha, 64/1979, Salgar de Montejo c. Colômbia, e 1073/2002, Terrón c. Espanha, acessíveis em https://tbinternet.ohchr.org, também disponível no portal do Ministério Público). As comunicações do Comité dos Direitos Humanos não possuem a natureza vinculativa de uma decisão de um tribunal, ainda que possuam valor na interpretação do Pacto. Porém, como já se assinalou neste STJ (cf. acórdão de 30.10.2019, proc. 455/13.3GBCNT.C2.S1em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação), importa notar que, embora o Pacto vigore na ordem interna, por via da ratificação, o artigo 14.º, n.º 5, requer expressamente a adoção de medidas legislativas de regulamentação do direito ao recurso, em conformidade com a obrigação resultante do n.º 2 do artigo 2.º, segundo o qual «cada Estado-Signatário» se «compromete» a «adotar, de acordo com os seus procedimentos constitucionais e as disposições do presente Pacto, as medidas oportunas para implementar as disposições legislativas ou de outro género que sejam necessárias para tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto e que não estejam ainda garantidos por disposições legislativas ou de outro género». Donde decorre que, não se impondo que seja diretamente aplicável pelos tribunais, em caso de inconsistências entre a lei interna e as disposições do Pacto, estas devam ser resolvidas por via das medidas legislativas necessárias para garantir o direito ao recurso tal como é garantido pelo artigo 14.º, n.º 5 (como se esclarece, aliás, no «Comentário Geral n.º 31», de 29.03.2004, do Comité dos Direitos Humanos). In casu, como já se viu, o direito ao recurso está garantido e a circunstância de, na sua modulação legal, não consentir a impugnação ampla perante o STJ, não se traduz, a nosso ver, em qualquer violação desse direito. A CEDH não contém norma expressa sobre o direito ao recurso, mas o artigo 53.º dispõe que nenhuma das suas disposições pode ser interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis dos Estados-Partes ou de qualquer convenção em que estes sejam partes, como seria o caso do PIDCP, se aplicável nas condições anteriormente referidas. No entanto, o artigo 2.º do Protocolo n.º 7 da CEDH (1984), veio reconhecer o «direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal», consagrando no n.º 1 o direito de acesso de «qualquer pessoa declarada culpada de uma infração penal por um tribunal» a «uma jurisdição superior» que reexamine «a declaração de culpabilidade ou a condenação». Este direito pode, porém, ser limitado pelas exceções que estão previstas no n.º 2, em que se incluem as situações em que «o interessado [tenha sido] declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição». Ou seja, o citado artigo 2.º claramente exceciona o duplo grau de jurisdição nos casos de condenação em sede de recurso contra uma absolvição. Ainda assim, importa reforçar que, no presente caso, é inquestionável o direito ao recurso para o STJ por parte do arguido/recorrente, pelo que a única questão que se coloca é a de saber se esse direito, que a CEDH não impõe, terá de incluir nova impugnação ampla – um 3.º grau de jurisdição em matéria de facto -, possibilidade que o CPP claramente afasta. A nosso ver, no reconhecimento de que ao legislador ordinário assiste, nesta matéria, um razoável espaço de liberdade de conformação normativa, tendo como limites a garantia da existência do duplo grau de jurisdição, a CRP não exige, nem os instrumentos internacionais que nos vinculam, a consagração de um 3.º grau de jurisdição em matéria de facto, uma vez garantida que se encontra a recorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que revertam, decisões absolutórias em 1.ª instância, ainda que limitado o recurso a matéria de direito, mas com a possibilidade (entendida como poder/dever) de conhecimento, por iniciativa oficiosa do STJ, dos vícios decisórios da decisão de facto previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP. Não tem razão de ser a invocação pelo recorrente, a este propósito, do artigo do artigo 6.º da CEDH, que não consagra o direito ao recurso – apenas consagrado, como já se viu, no artigo 2.º do Protocolo n.º 7 -, sendo certo que o citado acórdão do TEDH, no proc. n.º 78108/14, Paixão Moreira Sá Fernandes c. Portugal, nada tem a ver com a questão dos limites do poder de cognição do STJ. Finalmente, assinale-se que o arguido teve conhecimento do sentido do recurso por parte do Ministério Público e dos argumentos defendidos por este. Foi notificado desse recurso e teve direito a resposta e de, na mesma, apresentar os seus contra-argumentos acerca da matéria de facto e de direito que esteve em discussão no julgamento em 1.ª instância, como teve a oportunidade de responder ao parecer do Ministério Público na Relação. Não tem, por isso, qualquer fundamento que se venha agora sustentar que a condenação do recorrente na Relação constituiu uma decisão “surpresa”, pois sendo conhecedor da interposição de recurso da sua absolvição, não podia deixar de contar, no quadro dos resultados possíveis, com a eventualidade desse recurso obter provimento. Como já se disse, a garantia de defesa constitucionalmente prevista é autónoma em relação aos graus de recurso, não exigindo um «triplo grau de jurisdição» em matéria de facto ou «um duplo grau de recurso», em relação a quaisquer decisões condenatórias, permitindo que, na sua modulação, o legislador ordinário tenha uma larga margem de atuação, o que, em casos como o que nos ocupa – de alteração da decisão de facto na Relação, com reversão de absolvição decidida na 1.ª instância - se satisfaz, como já se afirmou, com a recorribilidade para o STJ apenas em matéria de direito, com a possibilidade deste tribunal, oficiosamente, sindicar a decisão de facto da Relação na perspetiva dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP. A interpretação aqui sustentada em nada contende com os invocados artigos 32.º, n.º 1, in fine e 18.º, n.º 2, da CRP, artigo 6.º da CEDH, artigo 14.º, n.º 5 do PIDCP e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à CEDH, pelo que não se reconhece qualquer interpretação dos artigos assinalados pelo recorrente - 434.º, 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), do CPP – que seja contrária à CRP ou a qualquer daqueles instrumentos, ao vedar-se, como se disse, a possibilidade de impugnação ampla da decisão de facto no recurso para este STJ. 3.2. Da alegada nulidade insanável do acórdão da Relação do Porto por violação do princípio do contraditório ao não ter convocado o arguido para audiência. 3.2.1. Na sequência da absolvição do arguido na 1.ª instância, o Ministério Público recorreu para o Tribunal da Relação, pedindo a reversão da decisão, no sentido da condenação, não tendo requerido, porém, a realização de audiência. O arguido, na resposta ao recurso, nada disse quanto a qualquer pretensão de que se realizasse audiência na Relação – o que, apesar dessa possibilidade não estar consagrada no CPP, poderia ter feito, com a invocação das mesmas razões que agora apresenta, face à possibilidade, que não podia liminarmente afastar, de a sua absolvição vir a ser revertida. Apenas no recurso interposto para este STJ, o arguido/ora recorrente veio suscitar a nulidade do acórdão recorrido por não ter sido designada audiência para ser ouvido e às testemunhas, convocando, a esse respeito, a jurisprudência do TEDH, nos casos Paixão Moreira Sá Fernandes c. Portugal e Dan c. Moldova. Não se ignora que o TEDH tem vindo a pronunciar-se, ao longo do tempo, sobre casos de condenação por tribunal de recurso após absolvição em 1.ª instância, como nos casos invocados pelo recorrente. O TEDH, em diversos acórdãos e com diferentes modulações, tem entendido, à luz do artigo 6.º da Convenção, que importa, em matéria de recurso, ter em conta as particularidades do procedimento em causa, todo o julgamento realizado no ordenamento jurídico interno e o papel desempenhado pelo tribunal de recurso, distinguindo conforme estejam em causa questões de direito e questões de facto e indicando condições para que possa haver reversão do juízo sobre provas e sobre as declarações do arguido. No nosso sistema processual penal, o objeto do recurso não coincide com o objeto da decisão do tribunal de julgamento: este decide sobre a acusação; aquele decide sobre a sentença, na perspetiva dos concretos pontos de facto questionados. A 2.ª instância não se encontra em idêntica posição perante as provas – não dispõe de uma imediação total (embora a tenha relativamente às provas reais), não podendo interagir com a prova pessoal (está impedida de a questionar diretamente). Porém, mesmo que se aceite que existe uma impressão causada no julgador, um conhecimento de base subliminar, que só a imediação possibilita ao nível mais elevado e que, por isso, existirá sempre uma margem de insindicabilidade da decisão do juiz de 1.ª instância sobre a matéria de facto, em função de fatores que intervêm na apreciação da credibilidade de depoimentos que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os depoentes na audiência – como são os pertencentes à linguagem não-verbal -, temos como manifesto que outros há que são retidos na gravação áudio e percecionados na 2.ª instância, para além do juízo sobre a razão de ciência, a verosimilhança e plausibilidade das próprias declarações, importante para determinar a sua credibilidade, não depender da imediação, mas antes do raciocínio lógico que deve, aliás, ser explanado na fundamentação da decisão do tribunal de 1.ª instância. A convicção judicial não é fruto de uma epifania, de uma intuição inexplicável, mas antes o resultado de um processo de conhecimento desenvolvido de acordo com os instrumentos próprios do processo. Para além dos casos de renovação da prova, as Relações não estão totalmente desprovidas de imediação. Têm-na, na exata medida do juiz de julgamento, relativamente a todas as provas reais (no sentido de todas as outras provas, não pessoais: documentos, exames, perícias, apreensões, vigilâncias…). Têm-na, em parte, relativamente à prova gravada/escutada, através da audição das gravações que, não sendo audiovisuais, privam o tribunal ad quem da relação de proximidade com a imagem da pessoa que intervém no julgamento, mas facultam o acesso direto à sua voz, permitindo a apreensão de elementos que, no processo de comunicação, são transmissíveis através da voz (gravada): a segurança no discurso, as hesitações, a espontaneidade, coerência e verosimilhança das declarações. Como refere Rodrigo Morales, citando Perfecto Andrés Ibañez (La prueba: un análisis racional y práctico, Marcial Pons, 2011, p. 412 e ss. Com interesse, cfr. “Sobre a formação racional da convicção judicial”, de Perfecto Andrés Ibañez, em Julgar, n.º13, Janeiro/Abril 2011, pp. 155 e ss.), o que o juiz (de 1.ª instância) percebe diretamente não é o facto a provar, mas antes a declaração de alguém acerca da forma como o facto ocorreu. O contacto direto com as fontes de prova pessoal não coloca o julgador em contacto direto com os factos, apenas permitindo perceber enunciados de conteúdo fáctico que carecem de interpretação e valoração em função da sua credibilidade, coerência, conexão com outros dados externos e outros meios, com aplicação de regras lógicas e máximas de experiência, o que envolve dois juízos: um relativo à credibilidade e fiabilidade da prova e outro quanto à qualidade epistemológica dos elementos obtidos no que toca à sua correspondência com a realidade. Em todo o caso, para resolver a questão, naturalmente sensível, da condenação em sede de recurso de alguém absolvido em 1.ª instância, em Espanha, através da reforma processual penal operada pela Lei 41/2015, de 5 de outubro, foi estabelecido um sistema de recurso de apelação contra sentenças absolutórias arbitrárias, ou em que se pretenda o agravamento da pena aplicada, que, em caso de provimento, conduz à anulação da sentença recorrida e ao reenvio da causa ao tribunal a quo, não permitindo a condenação pelo tribunal superior (a menos que esteja em causa mera questão de direito). O sistema processual penal português não contempla tal solução. Ainda assim, casos houve em que se possibilitou fosse requerida pelo arguido/recorrido a realização de audiência na Relação, apesar de não requerida pelo recorrente, em situações de recurso de absolvição. Porque estas questões exigem sempre uma análise casuística, importa reter o seguinte: Em primeiro lugar, no caso em apreço, como se disse, o arguido, então recorrido e agora recorrente, sempre dispôs da possibilidade de se pronunciar sobre as mesmas provas analisadas em 1.ª instância, e nunca suscitou a questão da sua audição no tribunal de recurso, o que, apesar de não expressamente consagrado na lei, não estava impedido de fazer, com base nas razões que agora apresenta, perspetivando uma possibilidade de reversão da decisão (que não tinha como considerar “surpresa”). Em segundo lugar, a Relação não contrariou ou reverteu o juízo de credibilidade do tribunal de 1.ª instância quanto às testemunhas CC e DD, pelo que não se pode afirmar que houve um confronto entre o juízo de credibilidade firmado pela 1.ª instância, com base na imediação, e um juízo daquele diverso, firmado pelo tribunal de recurso, com base na audição da prova gravada. Realmente, na 1.ª instância e na Relação, os depoimentos das referidas testemunhas foram igualmente considerados dignos de crédito: da testemunha CC diz o tribunal de 1.ª instância que “prestou um depoimento coerente, conhecedor, depondo acerca do que presenciou e por isso merecedor de credibilidade por parte do Tribunal” e da testemunha DD diz o mesmo tribunal que “prestou um depoimento que se nos afigurou, desinteressado, coerente e por isso credível”. O tribunal da Relação corrobora o mesmo juízo. Porém, a partir das mesmas declarações e do mesmo juízo de credibilidade, alterou o ponto de facto provado 17, de modo que as palavras injuriosas da ofendida em relação ao arguido passassem a constar como uma resposta/reação às condutas deste. Por outro lado, relativamente aos factos não provados que transitaram para os factos provados, diz-se que à decisão da 1.ª instância faltou o apoio das normas da experiência comum, pelo que também aqui não se apela a qualquer juízo fundado na imediação. Não havendo, pois, qualquer contraposição entre diferentes ou opostos juízos de credibilidade relativamente às referidas testemunhas, de modo que se possa dizer que a Relação, sem imediação, inverteu o juízo sobre a prova do tribunal de 1.ª instância, não se vislumbra que seja pertinente a jurisprudência invocada. Por outro lado, quanto ao ora recorrente, importa lembrar que, no exercício de direito que lhe assiste, remeteu-se ao silêncio, em audiência de julgamento, quanto aos factos imputados, o mesmo tendo acontecido, aliás, com a ofendida, que se recusou a prestar depoimento. Neste conspecto, e porque a decisão do tribunal de recurso, ao alterar a decisão de facto, não se centrou num juízo de credibilidade oposto ao da 1.ª instância, nem em qualquer diversa valoração das declarações do arguido em 1.ª instância sobre os factos imputados – que, por decisão própria, não as quis prestar, e nem indica, sequer, que as pretendesse prestar na Relação, para se pronunciar pessoalmente sobre as questões da sua culpabilidade ou inocência --, não se evidencia que tenha sido cometida a invocada nulidade insanável por alegada violação do disposto na primeira parte do n.º 1, do artigo 6.º, da CEDH, do artigo 61.º, n.º 1, alínea a), do CPP e do artigo 32.º, n.º 1, da CRP. 3.3. Dos vícios do acórdão recorrido. 3.3.1. Alega o recorrente que o acórdão recorrido enferma de diversos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP. Como já se disse supra, o recurso não consente a invocação de tais vícios, mas apenas o seu conhecimento por iniciativa oficiosa do tribunal. Como veremos, o acórdão enferma de vício de nulidade de fundamentação que, no caso, se sobrepõe aos alegados vícios decisórios. De forma algo confusa, o recorrente refere a “declaração de inconstitucionalidade dos artigos 127.º, 399.º, 400.º, n.º 1, 410.º, n.º 1 e 434.º do CPP” e que é “inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1 e 2 do CRP, por constituir uma restrição inadmissível às garantias de defesa do Arguido, ora Recorrente, e designadamente da garantia de recurso, a interpretação dos artigos 127.º, 399.º, 400.º, n.º1, 410.º, n.º 1 e 434.º do CPP, no sentido de insindicabilidade, em recurso, da não aplicação do principio do in dubio pro reo, bem como a insindicabilidade, em recurso, do poder de controlo das violações do grau de convicção necessário para a decisão e da presunção de inocência – inconstitucionalidade essa que ora se invoca para todos os devidos efeitos legais”. Não ignorando a polémica doutrinal que envolve a fundamentação do princípio in dubio e a sua relação com o princípio da presunção de inocência – entre teorias uniformizadoras que identificam os dois princípios e teorias diferenciadoras que distinguem o seu alcance e conteúdo -, temos que perante uma dúvida sobre os factos desfavoráveis ao arguido, que seja insanável, razoável e objetivável, o tribunal deve decidir “pro reo”. Ensina, sobre a matéria, Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213): «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.» O estado de dúvida (insanável, razoável e objetivável) - valorado a favor do arguido por não ter sido ilidida a presunção da sua inocência - pressupõe que, produzida a prova, o tribunal, e só o tribunal, tenha ficado na incerteza quanto à verificação ou não, de factos relevantes para a decisão. Como diz Cristina Líbano Monteiro (Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», Coimbra Editoras, 1997, pág. 53): «O universo fáctico – de acordo com o “pro reo” – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza.» A questão da violação do princípio in dubio não se coloca nos mesmos termos na Relação e no STJ. Constituindo o in dubio pro reo um princípio geral do processo penal, a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição do STJ, cuja apreciação, porém, encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios decisórios da matéria de facto: há de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção (cf. acórdão de 25.10.2023, proc. 96/16.3T9ALD.C1.S1). Este o entendimento repetidamente afirmado por este STJ, não se identificando que comporte qualquer interpretação normativa contrária à CRP. Posto isto, entendemos que o acórdão recorrido merece, porém, reparo, pelas razões que passaremos a expor. 3.3.2. A tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tem em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática ou prático-jurídica e processualmente válida (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 194, 204-205; Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1968, Coimbra, p. 48-50), resultado de um convencimento do juiz sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. A reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta, essencialmente, na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é meramente marginal. Quer isto dizer que o cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e a decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem, impondo a definição de um “standard” de prova a adotar. Num caso como o que está em apreço, em que o tribunal de 1.ª instância absolveu o arguido e dessa absolvição foi interposto recurso para a Relação, não esquecendo a exigência do artigo 412.º, n.º3, al. b), do CPP, quanto à indicação pelo recorrente das concretas provas que impõem decisão diversa, afigura-se-nos que, tendo em vista que a prova além de toda a dúvida razoável ou “proof beyond any reasonable doubt” constitui o parâmetro em função do qual tem de ser resolvida a questão da prova para permitir a condenação, é necessário, para reverter a absolvição, que as provas indicadas imponham a insubsistência de qualquer dúvida razoável quanto à responsabilidade do arguido. Diz-se no acórdão recorrido que o tribunal procedeu à audição dos depoimentos de CC e DD. Mais adiante, referem-se os depoimentos das testemunhas II, HH e GG, mas nada se diz sobre a sua audição, pelo que se extrai que tal referência se reporta ao teor da motivação da decisão de facto do tribunal de 1.ª instância. Ainda que se afirme, reiteradamente, na jurisprudência, que o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação total do complexo da prova produzida que serviu de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgados, para o que deve especificar as «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», não se vê como poderia a Relação alterar a decisão de facto, no caso em apreço, sem proceder à audição dos restantes depoimentos que se reportam à mesma questão, e inclusivamente à visualização do vídeo mencionado na motivação da decisão de facto da 1.ª instância, como estava habilitada a fazer nos termos do artigo 412.º n.º6. O juízo do tribunal de 1.ª instância quanto aos pontos concretamente questionados foi suportado na análise de diversas provas e não se alcança como a Relação poderia alterar esse juízo tão somente pela audição de dois depoimentos que integram o complexo de provas que a 1.ª instância avaliou. A análise da prova é global e, enquanto seja reportada aos mesmos pontos questionados, afigura-se-nos que a Relação não poderia deixar de fazer essa mesma análise: como não considerar relevantes, para a reversão de uma absolvição, a audição ou visualização de outras passagens para além das indicadas pelo recorrente, tendo em vista a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, desde que referidas aos pontos de factos questionados? Não resulta do acórdão recorrido que tal tenha acontecido. Por exemplo: não terão qualquer interesse, mesmo no âmbito da decisão de facto, os registos do episódio do café, sobre os quais se diz na motivação da decisão da 1.ª instância que a ofendida se dirige ao arguido e diz: “Não tens onde cair morto”, “Vais pagar”, “ Liga aí para as outras putas que eu vou atrás delas”, “É que eu vi as mensagens. O que foram fazer?”, “Metes nojo”, “ Cabrão”, “Eu mato-te”? Além disso, se a alteração da factualidade tem por base a alegada circunstância de à decisão da 1.ª instância ter faltado o apoio das normas da experiência comum, deveriam ser precisadas quais são essas normas e regras de experiência que, sendo aplicadas, ditaram as alterações operadas. Acresce que o ora recorrente, na resposta ao recurso para a Relação, indicou provas, pelo que, independentemente do que já se disse, algo teria de ser dito a esse respeito - não nos cumpre adiantar o sentido do que devia ser dito -, tendo em vista o artigo 413.º, n.º4, do CPP. Como é evidente, não nos compete dizer que juízo sobre as provas deverá fazer o tribunal recorrido, pois ao mesmo compete conhecer de facto, enquanto ao STJ cumpre conhecer de direito. Mas pode e deve este STJ sindicar o cumprimento das exigências de fundamentação, legalmente impostas, que entendemos não foram asseguradas. Dispõe o artigo 425.º, n.º 4, do CPP, que é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto no artigo 379.º do mesmo diploma. De acordo com o n.º 1, al. a), deste preceito, é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º. Como tem sido sublinhado na jurisprudência deste STJ, as exigências de pronúncia e fundamentação da sentença prescritas no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não são diretamente aplicáveis aos acórdãos proferidos pelos tribunais superiores, por via de recurso, mas tão só por força de aplicação correspondente do artigo 379.º, ex vi, artigo 425.º, n.º 4, razão por que aquelas decisões não são elaboradas nos precisos termos previstos para sentenças proferidas em 1.ª instância, o que bem se compreende visto que o seu objeto é a decisão recorrida e não diretamente a apreciação do objeto do processo. Por força do dever de fundamentação, na dimensão que lhe é conferida enquanto princípio fundamental, exige-se ao tribunal da Relação que conhecendo das questões que lhe são colocadas, explicite os motivos pelos quais julga procedente ou improcedente o recurso. O que determina que, ao alterar a decisão de facto - alterando os factos provados e não provados - e, na sequência, reverter a absolvição decidida em 1.ª instância, explicite as suas razões procedendo ao exame crítico das provas – que, no caso, pelas razões sobreditas, não tinha como se cingir exclusivamente aos referidos dois depoimentos, isolados das restantes provas que, relativas aos mesmos pontos questionados, o tribunal de 1.ª instância valorou, de modo a dar a conhecer as razões da alteração da decisão de facto (matéria provada e não provada). Assim sendo, forçoso se impõe concluir que o acórdão recorrido se mostra ferido de uma nulidade de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), correspondentemente aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP, a qual, devendo ser declarada, manifestamente não pode ser suprida por este Tribunal, por respeitar a matéria de facto subtraída à sua competência. Em consequência, deverá ser proferido novo acórdão pelo tribunal recorrido tendo em vista o suprimento desta nulidade. * III - DECISÃO Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em: A) Negar provimento ao recurso na parte que se pretende que o STJ conheça, em impugnação ampla, da decisão de facto; B) Negar provimento ao recurso na parte relativa à alegada nulidade do acórdão recorrido por falta de audiência; C) Nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, correspondentemente aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP, julgar verificada e declarar a nulidade de fundamentação do acórdão recorrido, pelas razões sobreditas, devendo, em consequência, ser proferido novo acórdão pelo tribunal da Relação para suprimento dessa nulidade. No mais, fica prejudicado. Sem tributação. Supremo Tribunal de Justiça, 13 de fevereiro de 2025 (certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP) Jorge Gonçalves (Relator) Jorge Reis Bravo (1.º Adjunto) João Rato (2.º Adjunto) |