Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
388/19.0PBPTG.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO
COAÇÃO
TENTATIVA
AGRAVAÇÃO
ARMA DE FOGO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 05/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I -    O arguido que, com o propósito de obrigar terceiro a permitir-lhe a entrada num estabelecimento de diversão, empunha uma arma e efetua pelo menos quatro disparos na direção da parte frontal do edifício, comete o crime de coacção p. e p. pelo art. 154.º, n.º 1 do CP, agravado por força do estatuído no art. 86.º, n.º 3, do RJAM.
Decisão Texto Integral:

            Acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça:


  I. O arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi julgado no Juízo central cível e criminal  ... (J…) e aí absolvido da prática de dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, agravados pelo uso de arma, previstos e punidos pelo disposto nos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, todos do Código Penal por referência ao disposto pelo artigo 86.º, n.º 3, do RJAM mas, convolada a acusação, foi o mesmo condenado:

- na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) de prisão pela prática contra BB de um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma e na pena de 4 (quatro) anos de prisão pela prática contra CC de um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, previstos e punidos pelos artigos 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, todos do Código Penal por referência ao disposto pelo artigo 86.º, n.º 3, do RJAM;

    tendo ainda sido condenado,

 - pela prática de um crime de coação agravada, na forma tentada, com uso de arma, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal, por referência ao disposto pelo artigo 86.º, n.º 3, do RJAM na pena de 2 (dois) anos de prisão;

 - pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelo disposto no artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

 - pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelo disposto no artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) do Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

 - pela prática de um crime, na forma consumada, de dano agravado, pelo uso de arma, previsto e punido pelo disposto no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal por referência ao disposto o artigo 86.º, n.º 3, do RJAM na pena de 8 (oito) meses de prisão;

 - em cúmulo jurídico das penas parcelares supra mencionadas, na única de 7 (sete) anos de prisão.

  Foi ainda o arguido condenado na pena acessória de proibição de frequência de estabelecimentos ou locais de diversão, pelo período de 3 (três) anos, nos termos do disposto no artigo 91.º, n.ºs 1, alíneas a) e b) e 2, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

Bem assim, na procedência total do pedido de reembolso deduzido pela Unidade Local de Saúde ..., EPE e, foi o arguido/demandado condenado a pagar-lhe a quantia de €92,91 (noventa e dois euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos, contados desde data da notificação do demandado para contestarem o pedido cível, até integral e efetivo pagamento; e na procedência parcial do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante CC foi condenado a pagar-lhe a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal anual de 4%, desde a data da presente decisão até integral e efetivo pagamento.


 Inconformado, recorreu o arguido para este Supremo Tribunal, pedindo a sua absolvição no que respeita ao crime de coacção agravada (subsidiariamente, a sua condenação pela prática de um crime de coacção simples), a redução das penas parcelares e única e, no que a esta última concerne, a sua fixação em montante não superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução.

 Extrai, da sua motivação, as seguintes conclusões (transcritas):

«1. O recorrente assumiu a generalidade dos factos que vinham imputados, com excepção de ter pretendido tirar a vida a BB e CC, e danificar o veículo de DD.

2. Reconheceu que utilizou as armas descritas, que efectuou múltiplos disparos e que podia efectivamente ter magoado alguém.

3. Adoptou uma postura de grande humildade, não se limitando a verbalizar arrependimento, mas efectuando um pedido de desculpas individual a todos os visados, predispondo-se a pagar todos os prejuízos causados.

4. Assumiu um problema com o consumo de álcool e aceitou submeter-se a tratamento;

5. Vem, pois, a este Supremo Tribunal insurgir-se, acima de tudo, contra a violência da reacção penal ao seu comportamento.

6. A pena única de 7 anos de prisão aproxima-se perigosamente dos casos em que se perdem vidas ou se revela um desprezo inaceitável pela vida humana, e das quais resultam sequelas físicas graves e permanentes.

7. Caberá a este Colendo Tribunal traçar com clareza a fronteira entre casos verdadeiramente graves e aqueles que, sendo graves e censuráveis, não deixaram consequências de relevo.

8. O recorrente veio condenado por um crime de coacção agravado, na forma tentada, com uso de arma de fogo, na pena de 2 anos de prisão.

9. Considerando a matéria de facto provada, não se vislumbra em que medida a realização dos disparos contra a parede do edifício tinha o objectivo de forçar DD a permitir a entrada no estabelecimento.

10. Não resultou apurada qualquer troca de palavras entre o recorrente e DD, qualquer ameaça com mal futuro, que a arma lhe tenha sido apontada ou que os disparos tenham sido efectuados na sua direcção.

11. A violência empregue não foi, pois, dirigida directamente à pessoa do ofendido, mas apenas expressão do seu desagrado pela contrariedade sofrida com a proibição de entrada no bar, exacerbada com o excesso de álcool.

12. Conclui-se que DD agiu conforme a sua vontade, negando ao recorrente a entrada no bar, não sofrendo qualquer limitação à sua liberdade de decisão.

13. Impõe-se, pois, a absolvição do recorrente pelo crime de coacção agravada em que veio condenado.

14. Sem prejuízo, caso não sejam acolhidos os argumentos supra, deverá improceder a circunstância agravante do artigo 155º/1 a) do Código Penal.

15. Com efeito, nenhuma ameaça foi dirigida a DD que configurasse a promessa de prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos.

16. Apenas resultou apurado que o recorrente efectuou disparos contra a parede do edifício, não resultando que a violência empregue tenha sido dirigida a DD.

17. Na pior das hipóteses, poderíamos falar do cometimento do crime de coacção na sua forma simples, ainda que agravada pelo uso de arma de fogo, na forma tentada,

18. Havendo que determinar a pena concreta entre um mínimo de 1 mês e um máximo de 2 anos e 8 meses de prisão.

19. Considerando o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal, e, em particular, a postura de grande humildade adoptada em julgamento, o pedido de desculpas individual apresentado, a disponibilidade imediata para reparar o dano e o exemplar comportamento posterior aos factos, entende-se que não deverá ser aplicada ao recorrente pena parcelar superior a 6 meses de prisão,

20. Respondendo-se, assim, eficazmente às necessidades de prevenção que no caso se fazem sentir.

21. A pena de 2 anos de prisão aplicada por cada um dos crimes de detenção de arma proibida não deixa, igualmente, de configurar uma reacção penal exagerada e injustificada.

22. Considerando a confissão integral e sem reservas nesta parte, a postura de arrependimento e espírito crítico manifestado, a inexistência de antecedentes criminais ligados à posse de armas, e a inexistência de consequências de relevo com a prática dos factos, justificar-se-ia uma maior contenção na determinação da pena.

23. Em face do exposto, consideramos adequada e proporcional a fixação de 1 ano de prisão por cada um dos crimes de detenção de arma proibida.

24. Acresce que a fixação em 2 anos de prisão por cada um destes crimes constitui uma aproximação perigosa e injustificada à pena concreta pelo homicídio tentado, fixada em 2 anos e 6 meses.

25. No que respeita ao crime de dano agravado, ainda que não se possa falar em manifesto exagero na medida concreta da pena, impor-se-ia, ainda assim, alguma contenção.

26. O recorrente pediu desculpas a DD pelo seu comportamento, manifestando vontade em pagar os danos no veículo, o que foi recusado, pois são pessoas conhecidas há muitos anos e o ofendido sabe que o recorrente tem filhos menores a cargo que precisam de comer.

27. Resulta dos autos que a seguradora ressarciu o ofendido nos danos do veículo, ficando a cargo do ofendido apenas o valor da franquia, pouco superior a uma unidade de conta.

28. Tudo ponderado, parece-nos adequada a fixação da pena parcelar em medida não superior a 4 meses de prisão.

29. Não obstante ter verbalizado em julgamento não ter pretendido tirar a vida a ninguém, o recorrente reconheceu o perigo que causou com o seu comportamento, pelo que não questiona a parte relativa ao crime de homicídio na pessoa de BB, cuja pena encontrada é justa e equilibrada.

30. O mesmo não se poderá dizer quanto ao crime de homicídio tentado na pessoa de CC.

31. Em face da dinâmica dos factos, da conduta, no mínimo, temerária do ofendido, que caminhou saiu do bar e caminhou na direcção do recorrente enquanto este efectuava múltiplos disparos com a espingarda que empunhava, poderemos obter um indicador fiel sobre a verdadeira intenção do recorrente - que seguramente não seria matar CC.

32. Não é conforme às regras da experiência que alguém caminhe na direcção de um agressor que o quer matar e que se encontra a disparar na sua direcção uma arma de fogo.

33. As características da arma (de dispersão com projétil de cargas de chumbo) e o único ferimento superficial provocado pelo embate de um bago de chumbo parecem apontar, na pior das hipóteses, para uma situação similar à do ofendido BB, em que o Tribunal concluiu pelo cometimento do crime de homicídio com dolo eventual.

34. Se o recorrente tivesse traçado um plano com vista a tirar a vida a CC, considerando a dinâmica dos factos, o posicionamento do ofendido e o número de disparos efectuados, certamente teria conseguido concretizar o seu intento.

35. Estamos, no entanto, cientes da limitação dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal.

36. A amplitude da moldura penal, que vai de um mínimo de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos, 2 meses e 20 dias permite ajustar a severidade da pena à gravidade objectiva dos factos aqui em apreço.

37. O espírito crítico revelado em julgamento, o pedido de desculpas individual a todos os ofendidos, e a diminuta gravidade das consequências que advieram da conduta levada a cabo - afinal, apenas um ferimento superficial com 3mm num membro inferior -justificam a redução da pena aplicada pelo crime de homicídio tentado na pessoa de CC.

38. Impõe-se, ainda assim, uma distinção entre estre crime e o praticado na pessoa de BB, que não sofreu qualquer ferimento.

39. Tudo ponderado, justifica-se que ao recorrente seja aplicada uma pena de prisão não superior a 3 anos.

40. Em cúmulo jurídico, e considerando o teor desta peça recursiva, a pena única que fará verdadeira Justiça à gravidade do caso vertente deverá situar-se em medida não superior a 5 anos de prisão,

41. Justificando assim a ponderação de uma pena de substituição.

42. A única pena de substituição passível de ser aplicada ao caso dos autos seria a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º/1 do Código Penal.

43. O reconhecimento do erro, a consciência da sua gravidade, os pedidos de desculpa individualmente apresentados a todos os visados, a privação da liberdade há quase um ano e o exemplar comportamento em meio prisional, os coesos laços familiares e a ausência de consequências irreparáveis com a prática dos factos justificam e sustentam a formulação de um juízo de prognose favorável, necessário à suspensão da execução da pena de prisão,

44. Ainda que sujeita a um apertado regime de prova, e com obrigação de sujeição a tratamento do consumo de álcool, a que o recorrente já aceitou submeter-se.

45. Assim se decidindo se fará Justiça à gravidade do caso vertente».


Respondeu o Exmº magistrado do MºPº, pugnando pelo não provimento do recurso e desta forma concluindo:

«1. A decisão do Tribunal “a quo” não violou qualquer norma legal e foi correctamente aplicada face à prova existente.

2. O Tribunal “a quo” apreciou e ponderou toda a prova relevante carreada aos autos, enumerando os factos provados e não provados, expondo, de forma completa, os motivos, de facto e de direito, que fundamentaram a decisão e indicando e examinando criticamente as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, cumprindo, assim, o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

3. Carece de fundamento a pretensão do recorrente quando pugna pela sua absolvição pelo crime de coacção agravada em que veio condenado ou, em alternativa, pelo cometimento do crime de coacção na sua forma simples, ainda que agravada pelo uso de arma de fogo, na forma tentada,

4. Revela a douta decisão ora recorrida cuidadosa fundamentação, quer quanto à matéria de facto quer no que concerne à matéria de direito.

5. Expressando uma acertada subsunção dos factos à lei.

6. E optando por penas que se julgam justas e adequadas face aos critérios consignados nos artigos 40.º, 70.º, 71.º e 77.º do Código Penal e atendendo a que a moldura legal ou abstracta dos crimes praticados pelo arguido é a seguinte:

o crime de coacção agravado, na forma tentada, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal e 86.º, n.º 3, do RJAM, é punível com pena de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos 5 meses e 10 dias;

o crime de dano, na forma consumada, agravado pelo uso de arma, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 212.º, n.º 1, do Código Penal e 86.º, n.º 3, do RJAM, é punível com pena de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos ou com pena de multa de 13 dias a 480 dias,

o crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto pelo disposto no artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do RJAM, é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos ou pena de multa até 600 dias;

o crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, do Código Penal e 86.º, n.º 3, do RJAM é punível com pena de prisão de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos 2 meses e 20 dias. do crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01, é punido com pena de prisão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos e o crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, nº 1, al. c) e d), da Lei nº 5/2006, de 23/02, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou multa até 600 dias.

7. A aplicação do instituto jurídico da suspensão da execução da pena de prisão está dependente, por um lado, das exigências de prevenção geral positiva, e, por outro lado, de um (concreto e circunstanciado) juízo de prognose, polarizado nas necessidades de prevenção especial positiva que, no caso concreto, se façam sentir.

8. Bem andou a decisão recorrida ao não aplicar um tal instituto jurídico ao recorrente, atento o facto de a sua aplicação, no caso vertente, ser legalmente vedada face ao preceituado no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal (o arguido/recorrente foi condenado em pena de prisão superior a 5 anos).

9. No caso, sempre a suspensão da execução da pena se não justifica por falta de um juízo de prognose favorável ao arguido, atendendo ao seu comportamento anterior, reflectido nos seus antecedentes criminais.

10. Nenhuma censura nos merece, pois, quer a medida da pena aplicada ao ora recorrente, quer a não suspensão na respectiva execução.

11. Louvando-nos, pois, no bem fundado do douto acórdão recorrido somos de parecer que o recurso dele interposto não merece provimento».


  II. Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido do não provimento do recurso:

«(…)

Do mérito

5 - Acompanhamos o entendimento preconizado pelo Magistrado do Mº Pº no Tribunal recorrido na resposta ao recurso que apresentou no sentido de que não assiste razão ao recorrente nas críticas que dirige à decisão recorrida.

6 - Desde logo no que concerne à subsunção dos factos ao crime de coacção agravada.

O recorrente discorda da ilação retirada pelo Tribunal e diz que:

- “as realizações dos disparos, sem qualquer outro dado concreto relativamente à sua intenção, mais não revelam do que a expressão do desagrado do recorrente com a posição assumida por DD, um descarregar de energia acumulada com a contrariedade que acabara de sofrer, exacerbada com o efeito do álcool”;

- “a “violência” empregue deveria ter sido dirigida à pessoa do ofendido, não se bastando, para preenchimento do tipo, a mera realização de disparos noutra direcção;

- “deveria ter improcedido a acusação na parte relativa ao crime de coacção agravada, na forma tentada, impondo-se a absolvição do recorrente nesta parte;

- “a improceder a argumentação supra, não se verifica a agravação do artigo 155º/1 a) do Código Penal, porquanto nenhuma ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos é feita à pessoa de DD;

- “no máximo, o crime em questão apenas poderia ser o de coacção simples, p. e p. nos termos do artigo 154º do Código Penal, ainda que agravado nos termos do artigo 86º/3 do RJAM”.

O Tribunal recorrido fundamentou a subsunção jurídica que efectuou, nos seguintes termos:

“Evidenciam os factos apurados em julgamento e descritos nos pontos 1 a 6 e 12, que no circunstancialismo de tempo e lugar descrito, o arguido depois de ser expulso do bar “Á.....”, ali regressou e porque DD se recusou a permitir-lhe a entrada no estabelecimento acima identificado, o arguido, com o propósito de o obrigar a permitir-lhe a entrada, empunhou a arma que trazia consigo e efetuou pelo menos quatro disparos na direção da parte frontal do edifício, de onde se conclui que o arguido procurou obrigar DD a permitir a sua entrada, mediante o recurso a violência, concretizada no uso de uma arma de fogo, o que só não aconteceu por razões alheias à sua vontade, sabendo o arguido que essa atuação lhe estava vedada e conhecendo o caráter ilícito e proibido das suas condutas.”

Assim e face à factualidade dada como provada e que o recorrente não põe em causa, afigura-se-nos que o respectivo enquadramento jurídico não poderia deixar de ser o efectuado na decisão recorrida.

Por outro lado, a decisão sobre a matéria de facto e em concreto no segmento que ora interessa, respeita, a nosso ver, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127, do CPP, e não está ferida por qualquer um dos vícios previstos no art. 410, nº 2, do CPP, designadamente o da al. c) – erro notório na apreciação da prova, que a existirem seriam de conhecimento oficioso por parte deste Supremo Tribunal, nos termos do que dispõe o art. 434, do CPP.

7 - O recorrente discorda também da decisão relativa à determinação da medida das penas parcelares e única em que foi condenado e pretende a redução de todas elas, com excepção da referente ao crime de homicídio na pessoa de DD.

Considera, ainda, que o “reconhecimento do erro, a consciência da sua gravidade, os pedidos de desculpa individualmente apresentados a todos os visados, a privação da liberdade há quase um ano e o exemplar comportamento em meio prisional, os coesos laços familiares e a ausência de consequências irreparáveis com a prática dos factos justificam e sustentam a formulação de um juízo de prognose favorável, necessário à suspensão da execução da pena de prisão, … ainda que sujeita a um apertado regime de prova, e com obrigação de sujeição a tratamento do consumo de álcool, a que o recorrente já aceitou submeter-se.”

Acompanhamos as considerações expendidas pelo Magistrado do Mº Pº no Tribunal recorrido neste segmento, bem como a fundamentação consignada na decisão recorrida relativamente ao quantum a fixar por cada um dos crimes e à pena do concurso, carecendo de qualquer sustentabilidade as pretensões do recorrente.

Com efeito, o Tribunal recorrido ponderou e valorou todas as circunstâncias que depõem a favor do arguido e a decisão sobre a medida das penas, parcelares e única, observa os critérios estabelecidos nos arts 40, 71 e 77, do Código Penal, pelo que as penas não são excessivas, antes adequadas e proporcionais, não havendo qualquer fundamento para a sua redução.

Em conformidade com o exposto, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido».


 Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não se registou qualquer resposta.


III. Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.

  São as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que delimitam o âmbito do recurso - artº 412º, nº 1 do CPP.

 No essencial, são as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente:

  A) a factualidade apurada não permite a imputação ao arguido da prática de um crime de coacção agravada, na forma tentada, com uso de arma, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal, por referência ao disposto pelo artigo 86.º, n.º 3, do RJAM?

 B) São excessivas e devem ser reduzidas as penas parcelares e única aplicadas ao arguido?


 IV. O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

 1. No dia … de novembro de 2018, cerca das 5:15 horas, o arguido encontrava-se no interior do estabelecimento de diversão noturna, Á..., sito no Largo …, …, em ..., e por motivo não concretamente apurado, iniciou uma discussão com HH.

 2. Nessa sequência, e porque o gerente EE e o segurança DD se aperceberam que o arguido tinha numa das mãos uma navalha, de caraterísticas não concretamente apuradas, retiraram-no do interior do estabelecimento de diversão noturna, Á....

  3. Depois de já se encontrar no exterior e, tendo o propósito de voltar a entrar no referido estabelecimento, o arguido dirigiu-se à sua residência, de onde retirou uma arma de fogo de calibre 6,35mm e, levando-a consigo, municiada e carregada com um número não concretamente apurado de munições de calibre 6,35mm Browning, regressou novamente ao referido bar.

  4. Ali chegado e permanecendo a uma distância não concretamente apurada da entrada do referido bar, disse para DD, que se encontrava junto à porta de entrada daquele estabelecimento noturno, que queria entrar, ao que este respondeu que ele não podia entrar.

  5. De seguida, porque DD se recusou a permitir-lhe a entrada no estabelecimento acima identificado, o arguido, com o propósito de o obrigar a permitir-lhe a entrada, empunhou a referida arma e efetuou pelo menos quatro disparos na direção da parte frontal do edifício, tendo os projéteis disparados atingido duas das janelas com vidro duplo localizadas por cima da porta de entrada do estabelecimento de diversão noturna, próximas da zona do bar e da zona da pista de dança, perfurando os vidros exteriores das referidas janelas.

  6. O arguido ao atuar da forma descrita agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito de, por essa forma, forçar a vítima a permitir-lhe a entrada no dito estabelecimento, o que representou e apenas não conseguiu por circunstâncias absolutamente alheias à sua vontade, concretamente porque DD fechou a porta do bar.

  7. O arguido efetuou ainda mais dois disparos na direção do veículo de matrícula ...-IU-..., da marca …, modelo 407, que se encontrava estacionado em local próximo do estabelecimento de diversão noturna, Á..., atingindo o farol frontal do lado esquerdo e a grelha do motor junto ao para-choques, perfurando-o, veículo este propriedade da vítima DD, o que arguido bem sabia.

 8. Em seguida, o arguido saiu do local em causa e fugiu para parte incerta, levando consigo a arma que havia utilizado momentos antes.

 9. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o uso, a detenção, guarda e posse da arma e das munições acima descritas lhe era vedada, desde logo por não possuir licença de uso e porte de arma válida e legitimamente obtida para o efeito.

10. O arguido sabia que a arma de fogo e as munições que teve na sua posse e que usou se encontravam em boas condições de funcionamento.

  11. O arguido ao atuar da forma supra descrita em 7. agiu de modo voluntário, livre e consciente, com a intenção de perfurar o veículo automóvel de matricula ...-IU-..., como efetivamente perfurou, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que estava a atuar contra a vontade do seu proprietário, com o que causou um prejuízo no valor de 2.262,95€.

  12. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.

 13. No dia … de dezembro de 2019, entre as 04:30 horas e as 05:00 horas, o arguido deslocou-se ao estabelecimento de diversão noturna Á... e, aí chegado, abordou BB, que ali se encontrava a desempenhar as funções de porteiro, e solicitou-lhe a entrada no referido estabelecimento, a qual lhe foi negada, devido à situação ocorrida no ano anterior e acima já descrita.

 14. Perante essa recusa de entrada, o arguido disse a BB que já lá aparecia e ausentou-se do local.

  15. Após alguns minutos, o arguido reapareceu no acima identificado local, trazendo consigo uma arma de características não concretamente apuradas, mas semelhantes às características de uma caçadeira de dois canos paralelos, previamente municiada com dois cartuchos de calibre 12.

 16. Nesse momento, BB encontrava-se no exterior do bar, encostado à parede junto à porta do bar e quando viu o arguido a aproximar-se com a arma disse-lhe “vai-te embora”.

 17. O arguido, com recurso à referida arma, efetuou um disparo para o ar, e após apontou-a em direção a BB que continuava no exterior do bar, a dizer-lhe para se ir embora e que ele não podia entrar.

   18. Na sequência de ter ouvido o disparo e gritos, CC, que se encontrava no interior do bar, veio para a porta, abriu-a e permaneceu no seu limiar, altura em que o arguido com a arma apontada na sua direção e dirigindo-se-lhe disse “eu mato-te ……”, ao que em resposta CC disse “força”;

  19. E de imediato, CC fechou a porta da entrada, ficando atrás da mesma, instante em que o arguido, encontrando-se a uma distância não concretamente apurada da porta do bar, mas não superior a três metros, efetuou novo disparo, que atingiu a dita porta e que apenas não atingiu CC porque este logrou refugiar-se atempadamente;

  20. E como também não atingiu BB que se encontrava no exterior do bar a uma distância de cerca de 1 a 2 metros da porta e na frente do arguido, na direção em que este efetuou o disparo.

  21. De seguida, CC saiu do referido bar, encaminhou-se na direção do arguido e ambos começaram a descer rua, sempre frente a frente e mantendo o mesmo distanciamento entre si, sendo que o arguido ainda municiou a referida arma pelo menos por duas vezes, com duas munições de cada vez, efetuando pelo menos mais quatro disparos na direção daquele, sendo que por imperícia do arguido apenas um desses projéteis acabou por atingir CC na perna do lado direito.

 22. Após, o arguido acabou por sair do local em causa e fugiu para parte incerta, levando consigo a arma que havia utilizado.

  23. Em consequência da conduta descrita em 21. o arguido AA causou direta e necessariamente à vítima CC a seguinte lesão: ferimento circular de 3 mm na perna direita, mais concretamente na face externa da coxa direita, o que lhe determinou 31 dias para a cura sem afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

  24. O arguido ao atuar do modo acima descrito agiu com o propósito direto de tirar a vida CC, só não o tendo conseguido por circunstâncias alheias à sua vontade, designadamente porque a vítima se escondeu por detrás da porta de entrada do acima identificado estabelecimento de diversão noturna e devido à imperícia do próprio arguido no manuseamento da acima identificada arma; sabendo que ao agir do modo descrito lhe conseguiria provocar a morte, o que quis, resultado que só não se verificou por razões estranhas à sua vontade.

 25. O arguido ao efetuar o disparo referido no ponto 19, sabia que BB se encontrava na direção em que efetuou o disparo, próximo da porta do bar e conhecendo as características da arma (arma de dispersão com munição com carga de chumbos) por si utilizada, previu como possível que em consequência daquele disparo poderia advir a morte de BB e assim agiu conformando-se com esse resultado, o que só não se verificou por razões estranhas à sua vontade.

 26. Ao agir como descrito o arguido demonstrou ser insensível ao valor da vida humana.

  27. O arguido era detentor da arma indicada em 15. e dos cartuchos acima identificados e como tal encontravam-se em seu poder e na sua disponibilidade, sem que fosse titular de qualquer licença de uso e porte de arma e sem que em seu nome estivessem registadas ou manifestadas quaisquer armas de fogo, bem sabendo que para deter, guardar, usar ou trazer consigo tais objetos, necessitava de obter previamente a respetiva licença.

 28. O arguido conhecia as características da arma e dos cartuchos que detinha e usou bem sabendo que a referida arma e munições estavam em boas condições de funcionamento.

  29. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime, e que revelavam censurabilidade e perversidade.

Mais se provou, com interesse para a causa:

 30. AA é oriundo de uma família ……, sendo o mais velho de quatro irmãos. Os progenitores dedicavam-se à… . O seu processo de socialização e de desenvolvimento decorreu de acordo com os costumes e valores …… a que pertence, num ambiente familiar condicionado pelo consumo abusivo de bebidas alcoólicas por parte do pai e pela precariedade económica.

 31. O arguido frequentou o Sistema de Ensino em ..., abandonando os estudos cerca dos 14 anos de idade, apenas com o 3.º ano completo. A nível laboral, AA efetuou alguns trabalhos na …, nas campanhas … em …… e na compra e…….

 32. Aos 19 anos de idade, o arguido iniciou uma relação de cariz conjugal com FF, tendo o casal fixado residência em ..., sendo que desta relação nasceram três filhos. À data da alegada prática dos factos subjacentes ao presente processo, AA vivia com a sua companheira e os três filhos de ambos, em casa arrendada, sita na cidade …..., mantendo com aqueles um relacionamento positivo, existindo coesão e inter-ajuda, existindo disponibilidade dos familiares para o acolher e apoiar no seu regresso ao meio residencial. O suporte familiar de que AA dispõe é propiciado essencialmente pela sua companheira e filhos, bem como pelos seus progenitores e irmão que também residem em .... AA recebe visitas da sua companheira e dos filhos no Estabelecimento Prisional  …, mantendo com estes contactos telefónicos regulares.

 33. O arguido à data dos factos encontrava-se inativo. O agregado familiar do arguido subsiste com recurso a apoios sociais, recebendo mensalmente 606 Euros de Rendimento Social de Inserção e 300 Euros de Subsídios Familiares atribuídos aos menores, sendo que também beneficiam do apoio dos seus progenitores. No meio social, AA encontra-se integrado na comunidade local, embora a sua vivência se mantenha essencialmente no grupo de pertença e de cariz familiar.

 34. O arguido revela imaturidade, evidenciando falta de capacidade de utilização de pensamento consequencial, ainda assim demonstra preocupação e ansiedade face à sua situação jurídica e às consequências penais que daí possam advir. Relativamente ao impacto da sua atual situação jurídico-penal, registam-se repercussões negativas essencialmente a nível pessoal e familiar. No meio, o presente processo é do conhecimento público, tendo causado forte repercussão de natureza negativa.

  35. No Estabelecimento Prisional, o arguido tem registado uma evolução positiva, sendo de realçar a sua preocupação em manter uma conduta adequada às regras institucionais, bem como o empenho em exercer atividades ocupacionais e em adquirir competências pessoais e formativas, encontrando-se a desempenhar as funções …… da Escola e a frequentar o Curso… .

 36. O arguido apresenta os seguintes antecedentes criminais:

- no processo n.º 17/15… do Juízo Local Criminal ..., por sentença proferida em 14.01.2016, transitada em julgado em 23.02.2016, o arguido foi condenado pela prática em … .01.2015, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203.º e 204.º n.º 1, al. f), do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €5,00; esta pena encontra-se extinta por cumprimento;

- no processo n.º 38/18… do Juízo Local Criminal ..., por sentença proferida em 09.04.2018, transitada em julgado em 09.05.2018, o arguido foi condenado pela prática em … .02.2018, de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.º, do Código Penal, um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º do Código Penal e um crime de injúria agravada, p. e p. pelo artigo 181.º e 184.º do Código Penal, na pena 1 ano de prisão substituída por 160 dias de multa, à taxa diária de €5,00 e 120 dias de multa à taxa diária de €5,00; estas penas encontram-se extintas por cumprimento.

 37. Em consequência das lesões sofridas, CC foi assistido no Hospital ..., em ..., sendo que o custo da assistência hospitalar prestada ascende a €92,91.

 38. CC vivenciou sentimentos de pânico, medo e angústia em consequência dos factos acima descritos.

 39. Ao ser atingido pelo disparo, o ofendido CC sofreu dor na zona atingida e sangrou, tendo sido transportado para o serviço de urgência do Hospital …... onde foi assistido em episódio de urgência.

  40. CC teve necessidade de fazer penso e medicação, sentiu dores durante cerca de 15 dias e durante esse período também ficou limitado nos movimentos, sofrendo incómodos e deixando de praticar desporto.

 41. Sentiu angústia e esta situação causou-lhe perturbação no seu estado emocional, sentindo receio por si e pela sua família.

 42. No decurso da audiência de discussão e julgamento, o arguido apresentou um pedido de desculpas a todos os ofendidos.


E o tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:

  a) No circunstancialismo descrito em 4 o arguido apontou a arma na direção de DD, a uma distância certamente não superior a dois metros e dirigindo-se a este, em tom de voz alto e determinado disse “sai da porta que eu vou entrar”.

  b) Nesse circunstancialismo o arguido efetuou cinco disparos em direção às janelas do bar, com o que as atingiu por cinco vezes.

   c) No circunstancialismo descrito em 13, BB negou a entrada do arguido no bar em virtude de o mesmo emanar um intenso cheiro a álcool, indiciando encontrar-se em estado de embriaguez, bem como pelo facto de se encontrar a sangrar de uma das mãos.

   d) Perante tal recusa de entrada, o arguido dirigiu-se a BB e, de viva-voz e com foros de seriedade, disse as seguintes expressões: “Não entro? Já vais ver se não entro?”

   e) Ali volvido, o arguido dirigiu-se a BB e, em tom de voz sério e determinado, disse: “Se não sais da frente dou-te um tiro é a ti!”; CC também ali se encontrava em auxílio de BB.

 f) O arguido colocou-se a cerca de um metro dos ofendidos, antes de efetuar o segundo disparo.

  g) O arguido regressou ao bar com o propósito de tirar a vida a BB, só não o tendo conseguido porque este se escondeu por detrás da porta de entrada do estabelecimento de diversão noturna, tendo o arguido agido com o propósito direto de tirar a vida àquele e motivado pela recusa de entrada no referido estabelecimento de diversão noturna.

  h) A arma referida em 15. tratava-se de uma caçadeira com os canos pretos e a coronha castanha.

i) Os disparos referidos no ponto 21. também foram dirigidos a BB e o arguido, enquanto se afastava do local e em tom de voz sério e determinado, disse: “Eu mato-os, eu mato-os! Vou-te matar ucraniano!”

 j) Desde a data dos factos, o demandante acorda várias vezes durante o sono, vive sobressaltado, receoso num estado de medo constante.

  k) O demandante deixou de sair à noite e de conviver socialmente, sendo que antes destes factos, o demandante era uma pessoa calma, alegre e divertida, mas desde então vive ansioso e é uma pessoa mais nervosa.

           

 Desta forma fundamentou o tribunal recorrido a sua convicção:

«CONVICÇÃO DO TRIBUNAL E EXAME CRÍTICO DAS PROVAS:

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência, bem como da prova documental que consta dos autos, com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.

Para a prova dos factos ocorridos no dia 25 de novembro de 2018, concretamente dos factos descritos nos pontos 1 e 2, o tribunal teve em consideração as declarações das testemunhas EE, DD, GG e HH, que presenciaram aqueles factos (o primeiro é o dono do bar “Á...”, o segundo à data era o porteiro/segurança do referido bar e os dois últimos por ali se encontrarem enquanto clientes). Estas testemunhas foram coincidentes no seu testemunho que foi igualmente corroborado pelo teor do auto de visionamento de registo de imagens junto a fls. 110/114 do apenso C, elementos de prova que comprovam ter existindo um conflito entre o arguido e HH, situação que suscitou a intervenção de EE e de DD, que se aperceberam que o arguido tinha uma navalha na mão, a qual lhe foi retirada e depois fechada pelo segurança do bar, e que de seguida levou o arguido para o exterior daquele estabelecimento.

As declarações das testemunhas acima indicadas mereceram total credibilidade, atenta a forma coerente, desinteressada e segura como relataram os factos que presenciaram, não evidenciando qualquer animosidade em relação ao arguido, antes pelo contrário, já que estes testemunhos se caracterizaram pela sua isenção e objetividade.

As concretas características da arma – não tendo a mesma sido apreendida não foi possível a sujeitá-la a exame pericial – resultaram provadas com base nas declarações do arguido, conjuntamente com o resultado do exame pericial do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária de fls. fls. 187/190 do apenso C, que examinou as cápsulas e munições recolhidas no local, e que permitiu determinar o calibre das munições e da arma utilizada.

Deste modo, o facto descrito no ponto 3 e bem assim a factualidade do ponto 10 foi afirmada pelo arguido, que disse que após ter sido levado para fora do bar por DD, ficou muito preocupado por o seu irmão continuar lá dentro e que por isso queria voltar a entrar, mas como não lhe abriram a porta, foi a casa buscar a arma que pertenceu ao seu avô e que estava municiada e, logo depois, voltou ao bar. Segundo o arguido, quando regressou ao bar, a porta estava fechada, por isso, gritou pelo DD e bateu na porta com pontapés, como ninguém o ouviu começou a disparar para as janelas.

Contudo, nesta última parte, a versão do arguido não logrou convencer o tribunal, na medida em que foi totalmente contrariada pelas declarações da testemunha DD. Esclareceu esta testemunha que 5 a 10 minutos depois de o arguido se ter ido embora, o mesmo voltou de carro, que parou a viatura e saiu, dizendo que queria entrar, a testemunha respondeu que ele não podia entrar, então, o arguido tirou a pistola e começou a fazer disparos, instante em que DD fechou a porta do bar para se proteger. Como acima já se disse, as declarações prestadas pela testemunha DD foram absolutamente credíveis e, além disso, foram corroboradas pelo testemunho de GG que, estava no interior do estabelecimento noturno, muito próximo da sua entrada, e que percecionou os acontecimentos acima descritos nos exatos termos relatados por DD. Assim e atenta a concordância destas testemunhas e a credibilidade evidenciada nas respetivas declarações, o tribunal teve por demonstrada a factualidade vertida em 4 e 5.

A determinação do concreto número de disparos direcionados para o edifício do bar e dos locais atingidos, resultou demonstrada com base no auto de apreensão de fls. 54 e 134 do apenso C (onde consta a apreensão de sete cápsulas, que foram recolhidas na rua onde se situa o estabelecimento noturno “Á...”), conjugado com o relatório do exame pericial de fls. 62/83 do apenso C, mais precisamente com os registos fotográficos desse relatório, de onde se extrai que foram duas as janelas atingidas com dois disparos cada, o que permite concluir que foram pelo menos quatro os disparos dirigidos contra o edifício do bar (note-se que foram dois os projéteis que atingiram o veículo de matrícula ...-IU-...); já quanto ao quinto disparo, não existindo evidencia concreta de que o mesmo foi efetivamente dirigido contra o edifício, concluiu-se negativamente quanto a essa factualidade, como decorre da alínea b).

As fotografias atrás referenciadas também permitiram comprovar as características exteriores do edifício onde funciona o referido bar “Á...”, bem como o posicionamento e dimensão das janelas atingidas pelos disparos; no que concerne às características do interior do referido bar atendeu-se igualmente à fotografia de fls. 41, complementada com o auto de visionamento de registo de imagens constante do apenso C, de onde se extrai que as janelas atingidas tinham vidros duplos e que as mesmas na parte de dentro do edifício se situam próximas do bar e da pista de dança.

No que concerne à factualidade descrita em 7 o arguido disse que depois de efetuar os disparos percebeu que tinha atingido um automóvel que estava estacionado do lado do bar, a cerca de meio metro, mas que naquele momento não viu tratar-se da viatura de DD (pese embora o arguido tenha admitido que à data conhecia o veículo de DD). Estas declarações, contudo, não convenceram o tribunal, por se mostrarem inverosímeis e incompatíveis não só com as regras da experiência comum, mas também, segundo julgamos, com as elementares leis da física.

Com efeito, a testemunha DD quando confrontada com as fotografias de fls. 64 do apenso C foi bastante segura ao indicar o local onde o seu veículo se encontrava estacionado naquela noite – ou seja, do lado oposto ao bar, concretamente no lugar onde se encontra aparcado o veículo de cor branca no sentido descendente da via que é visível na fotografia n.º 5 constante de fls. 64 do apenso C. A parte do veículo que foi atingida pelos disparos foi a parte frontal - para a determinação desse facto o tribunal teve em consideração as declarações do proprietário da viatura e bem assim o teor do relatório de exame pericial à viatura de matrícula ...-IU-..., a fls. 243/248 do apenso C.

Ora, concatenando todos estes dados entre si, ou seja, atendendo à configuração do local, à localização das janelas do edifício do bar e ao concreto posicionamento em que se encontrava estacionado o veículo de DD na altura dos factos, bem como à zona atingida pelos disparos (parte frontal do veículo), é absolutamente improvável (para não dizer impossível) que o referido veículo tenha sido atingido pelos projeteis que foram disparados na direção do bar e também por esse motivo é possível concluir, com um grau elevado de certeza, que o arguido, de forma deliberada, disparou e atingiu o veiculo automóvel de matricula ...-IU-..., com a intenção de o perfurar e sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu proprietário, DD.

Para a prova do valor da reparação da viatura, nos termos indicados no ponto 11, foram tidos em consideração os documentos juntos a fls. 101/106 do apenso C (peritagem elaborada pela seguradora do veículo).

O arguido reconheceu que após os factos fugiu do local, levando a arma consigo, conforme decorre do ponto 8.

A informação constante de fls. 105 dos autos principais atesta que o arguido não é titular de licença de uso e porte de armas.

Quanto aos factos subjetivos constantes dos pontos 6 e 9 a 12, a convicção do tribunal resultou de presunções naturais, porquanto os factos objetivos provados quanto à conduta perpetrada pelo arguido, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir aqueles factos subjetivos, designadamente que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntaria e consciente, sabendo que não podia deter a referida arma, conhecendo as suas características, e que com a sua atuação forçava a vítima a permitir-lhe a entrada no dito estabelecimento. Acresce que relativamente aos factos ínsitos em 6 não podemos deixar de salientar que foi o próprio arguido que reconheceu ter agido sempre o com o propósito final de voltar a entrar no bar.

A testemunha DD não afirmou que o arguido tivesse apontado a arma na sua direção, nem reproduziu a expressão imputada ao arguido e descrita na acusação, pelo que, se considerou não provado o descrito na alínea a).

Para a prova dos factos ocorridos no dia 22 de dezembro de 2019, o tribunal teve em consideração as declarações prestadas pela testemunha BB que referiu que na noite em que ocorreram os factos estava como porteiro no Á..., quando o arguido apareceu a querer entrar para ir ver do irmão que já havia entrado antes; como havia recebido indicações de que ele não podia entrar por causa do que havia acontecido no ano anterior, disse-lhe que não entrava. Nesse momento, CC estava consigo junto à porta e o arguido e CC ainda trocaram algumas palavras que a testemunha não logrou precisar, mas que, segundo se lembra, eram alusivas à naturalidade e ……. de cada um.

Então e como não lhe foi permitida a entrada, o arguido disse que já lá aparecia (ou outra expressão equivalente) e foi embora. Passados 5 a 10 minutos, a testemunha estava encostada à parede da porta do bar e encontrava-se já sozinha, quando viu o arguido a caminhar na direção do bar com uma caçadeira, dizendo que queria entrar; a testemunha disse “vai-te embora”, mas o arguido deu um disparo para o ar, depois disso BB continuou sempre a dizer ao arguido para se ir embora, até que surgiu à porta do bar CC e o arguido disparou na direção da porta, que foi efetivamente atingida. BB explicou ainda que nesse momento se encontrava-se a cerca de 1 ou 2 metros da porta, à frente do arguido e, portanto, na direção do disparo, mas que tal disparo não era diretamente para si. Depois disso, CC saiu do bar, o arguido recarregou a arma e começou a recuar, voltou a disparar e então BB refugiou-se junto aos veículos que ali estavam estacionados, sendo que a partir daí esta testemunha apercebeu-se que CC confrontou o arguido e foi atrás dele, mas depois já só ouviu o barulho de mais dois ou três disparos e os chumbos a bater nos veículos, até que o arguido acabou por ir-se embora.

Relativamente ao posicionamento de BB no momento em que o segundo disparo foi realizado, o depoimento desta testemunha mereceu particular relevância, na medida em que foi o único que logrou descrever com precisão o seu concreto posicionamento, quer em relação ao arguido quer em relação à porta do bar (onde estava CC), quando o arguido deflagrou o segundo disparo. Disse esta testemunha que se encontrava a cerca de 1 a 2 metros da porta do bar e em frente ao arguido quando este efetuou o disparo que acabou por atingir a porta do bar e relatou o seu posicionamento sempre dessa forma e com total coerência quando, por mais do que uma vez, o exemplificou na sala de audiência. A descrição dada por esta testemunha foi verosímil não só pela forma natural como depôs, mas também pelas características do local (que tem uma inclinação ascendente, atento o sentido de marcha do arguido, veja-se fotos de fls. 230) e pelo tipo de arma e munição usadas pelo arguido (arma de dispersão com munição com carga de chumbo- cf. exame de fls. 224/225), circunstâncias que conferem plausibilidade ao facto de BB, apesar de estar próximo (1 ou 2 metros) da porta e à frente do arguido, não haver sido atingido. BB depôs de forma desinteressada, credível e narrou os factos por si presenciados com total objetividade e isenção e apenas com o conhecimento que o mesmo efetivamente poderia ter.

Por sua vez, CC referiu que estava no interior do bar, quando ouviu gritos e um tiro e foi a correr para a porta, abriu-a, mas não chegou a sair, apercebeu-se que o BB estava fora do bar; viu o arguido com uma arma apontada na sua direção e aquele disse-lhe “mato-te ucraniano”, o demandante em resposta disse “força” e logo encostou a porta e ouviu o disparo, que atingiu a porta; de seguida, saiu para fora do bar e foi tentar falar com o arguido, viu que ele recarregou a arma, que a apontou na sua direção e disparou mais um tiro, que não atingiu o ofendido, sendo que o arguido e o ofendido começaram a descer a rua, de frente um para o outro, mantendo sempre mais ou menos a mesma distância, e o arguido realizou ainda mais disparos (em quantidade que não conseguiu determinar, mas contabilizou serem pelo menos seis o total dos disparos feitos pelo arguido); disse ainda que num desses disparos foi atingido na perna direita (cabe aqui referir que a testemunha não confirmou a versão dada pelo arguido que disse que o ofendido foi atingido quando o seu irmão lhe tentou retirar a arma); depois, o arguido acabou por ir-se embora juntamente com o seu irmão que o tentou acalmar. CC acrescentou ainda que já antes, ou seja, quando o arguido tentara entrar no bar, tinha havido uma troca de palavras entre ele e o arguido, que não logrou concretizar.

A reação do ofendido CC – ao enfrentar o arguido depois deste haver

feito um disparo na sua direção – não deixa de causar alguma perplexidade, mas a verdade é que esta reação foi explicada pelo ofendido no decurso das suas declarações, tendo o mesmo referido que se apercebeu do tipo de arma usada pelo arguido, que a mesma após o segundo tiro ficou descarregada e, por isso, saiu nesse momento para falar ele; disse ainda, de forma muito espontânea e casual, que fez parte de forças militares especiais, que pratica desporto, designadamente artes marciais e levantamento de pesos; assim e tendo em conta as características físicas e mentais deste ofendido, entende-se ser concebível a sua reação naquele momento, sem que daí se possa retirar que o ofendido tenha agido sem medo, porque como ele bem explicou teve medo (e tem medo), só que tal não o impediu de confrontar o arguido nos termos que relatou.

CC e BB coincidiram na descrição da dinâmica dos acontecimentos e da atuação de cada um dos intervenientes. CC e BB apenas não coincidiram quanto às palavras que o arguido terá dirigido ao primeiro quando o mesmo surgiu à porta do bar, imediatamente antes do segundo disparo, pois, segundo CC o arguido disse-lhe “eu mato-te ucraniano” e em reposta ele disse “força”, expressões que a testemunha BB não confirmou ter ouvido, contudo, esta falta de concordância a nosso ver não abala a credibilidade aos respetivos depoimentos, na medida em que perante aquele circunstancialismo e face ao inquestionável ambiente de tensão em que todos naturalmente se encontravam, por estarem perante a ameaça de uma arma, é compreensível que BB não tenha ouvido ou pelo menos não tenha retido na sua memória as palavras que o arguido dirigiu CC e que este, por sua, reproduziu com firmeza por a ele haverem sido diretamente dirigidas e, por esse motivo tais declarações se tiveram por bastantes para formar a convicção do tribunal neste conspecto.

Também relativamente ao concreto posicionamento de BB no momento do segundo disparo, CC mencionou que aquele se encontrava junto ao arguido, contudo, a visão e perspetiva que o ofendido interiorizou antes do disparo terá sido, necessariamente, fugaz e, por isso, imprecisa no que toca ao local onde os demais se encontravam (refira-se que CC também denotou grande imprecisão quando lhe foi pedido que situasse a intervenção e o concreto posicionamento do irmão do arguido) e, por essa, razão, quanto ao concreto posicionamento de BB o tribunal valorou exclusivamente o depoimento credível prestado pelo próprio, nos termos e pelas razões acima já explicitadas.

Na formação da convicção do tribunal foram ainda considerados os seguintes elementos de prova:

- Fotografias juntas a fls. 6/11, que registaram em imagem os invólucros recolhidos no local dos factos;

- Os autos de apreensão de fls. 4, 55 (referentes a quatro invólucros e 5 buchas recolhidas no local);

- Relatório de inspeção de fls. 36/40, que permite compreender a configuração do local e determinar o sítio onde foram recolhidos os vestígios registados nas fotografias que fazem parte do dito relatório;

- Relatório de urgência de 22.12.2019, junto a fls. 54, que descreve os ferimentos que o ofendido apresentava nessa data;

- Relatório de exame pericial do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, junto a fls. 223/240, que descreve o tipo de munição (cartucho calibre 12, com granulometria entre 6 e 8) apreendida no local;

- Exame médico de CC, constante de fls. 256/259, que atenta as lesões apresentadas pelo ofendido nos exatos termos referenciados no ponto 23 dos factos provados.

Foram ainda considerados os depoimentos de LL e MM, inspetores da polícia judiciária, que descreveram as diligências por si realizadas no âmbito da investigação, bem como os vestígios recolhidos nos locais onde ocorreram os factos aqui em análise.

Nestes termos, conjugadas as declarações de BB e de CC, valoradas nos termos supra descritos e complementadas com os restantes elementos de prova que acabámos de enunciar, foram tidos como demonstrados os factos descritos em 13 a 23.

Cabe ainda referir que o arguido admitiu alguns dos factos acima descritos, tendo afirmado que foi a casa do pai, pegou numa caçadeira e nos cartuchos e voltou a pé para o bar, levando a arma carregada; que efetuou um disparo dirigido ao BB e a CC que estavam junto à porta; disse ainda que carregou a arma mais uma ou das vezes e no total desferiu talvez 4 disparos; tendo-se apercebido que CC tinha sido atingido na perna. Reconheceu ainda que não é titular de licença de uso de armas (conforme já decorria da informação constante de fls. 105 dos autos principais).

Contudo, a verdade é que as suas declarações não lograram convencer o tribunal, na medida em que não é verosímil que o arguido se dirigiu ao bar apenas porque queria chamar o irmão e não para ali entrar, pois se assim fosse dificilmente se compreenderia todo o sucedido subsequentemente; acresce que também nenhuma das testemunhas ouvidas relatou que naquele primeiro momento tenha havido uma tentativa de CC agredir o arguido como foi por este dito; de igual modo quanto à sequência dos factos, e pese embora o arguido tenha admitido que efetuou um disparo para a porta do bar quando os ofendidos se encontravam do lado esquerdo dessa porta, a verdade é que a sua descrição em nada coincidiu com a de BB e CC as quais, complementadas com a restante prova objetiva, logrou convencer o tribunal nos termos acima já assinalados.

Relativamente ao elemento subjetivo – concretizado na intenção de o arguido pretender com a sua conduta pôr termo à vida do ofendido CC – importa desde logo salientar que esse propósito foi expressamente anunciado pelo arguido antes de disparar, quando afirmou “mato-te ucraniano”; afirmação que foi imediatamente sucedida de um disparo na direção do ofendido, circunstâncias que evidenciam, inequivocamente, que o arguido pretendeu com essa conduta provocar a morte daquele, não podendo o arguido desconhecer que essa sua atuação era de molde a provocar-lhe a morte, o que só não sucedeu porque aquele se refugiu atrás da porta do bar. Necessariamente o arguido também sabia que essa sua conduta era proibida e punida por lei, como aliás se infere do facto do mesmo haver fugido do local após os factos.

Dúvidas também não subsistem de que o arguido sabia que não podia deter, nem usar as armas acima descritas, na medida em que não é titular de licença que o habilite a deter essas armas, sabendo igualmente que essa conduta é vedada por lei penal, como foi aliás por si admitido.

Por fim, no que tange à formação da convicção do tribunal relativamente ao elemento subjetivo que enformou a atuação do arguido perpetrada contra BB, atendendo à factualidade supra descrita consideramos não ter resultado provado que o arguido tenha regressado ao bar com o propósito de matar BB, na verdade e face a todas as circunstâncias que antecederam os disparos deflagrados pelo arguido e acima já descritas, consideramos que não era esse o principal propósito do arguido, nem era essa a sua motivação quando regressou ao bar, concluindo-se, por conseguinte, nos termos vertidos na alínea g) (1.ª parte).

Os factos respeitantes à intencionalidade e ao concreto propósito de determinada conduta é matéria do foro interno do agente, que, por isso, só é possível comprovar através da confissão do próprio ou através de factos que permitam inferir a subjetividade de uma determinada atuação, segundo as regras da experiência comum e as regras da normalidade da vida.

No caso, como acima já se disse, o arguido disparou contra a porta do bar com o propósito de atingir o corpo de CC, importa então saber se de acordo com os ditames da experiência comum, da normalidade da vida e face a todo o restante circunstancialismo acima apurado – nomeadamente, o posicionamento de BB em relação ao arguido e em relação ao local atingido pelo disparo, bem como ao tipo de arma e munição utilizados pelo agente - é possível inferir que o arguido ao efetuar aquele disparo representou, como consequência possível da sua conduta, a morte de BB. E porque estamos no plano da intencionalidade e da representação subjetiva do agente também não podemos deixar de ponderar as declarações do próprio arguido, que disse que quando efetuou um disparo à porta ambos os ofendidos estavam na parte de cima da porta; tais declarações não podem deixar de ser valoradas pelo tribunal quanto à intencionalidade do arguido e à sua representação dos possíveis efeitos advenientes da sua ação.

Nestes termos, ponderando estas declarações e tendo igualmente ficado demonstrado que o arguido sabia o concreto posicionamento de BB no momento em que realizou o dito disparo e que conhecia as características da arma e munições que utilizava (tratando-se de uma arma de dispersão com munição com carga de chumbo), o mesmo previu, necessariamente, como possível que ao disparar aquela arma também poderia atingir o corpo de BB, nomeadamente nos seus órgãos vitais, tirando-lhe a vida, resultado com o qual se conformou, mas que apenas não se verificou por fatores alheios à sua vontade.

Confirmou o ofendido CC que na altura sentiu medo e sentiu a sua vida em perigo, referiu que sangrou e sentiu dores, tendo sido assistido no serviço de urgência do Hospital de ..., fazendo medicação e penso diário. No primeiro mês após os factos deixou de praticar desporto, exercendo a sua atividade profissional com um esforço acrescido, pois em determinados movimentos – como subir para o camião - sentiu dores e incómodos, situação igualmente confirmada por II, amigo e colega de trabalho do demandante. Esclareceu ainda que após os factos sentiu e sente medo pela família, teve receio que alguma coisa lhes acontecesse. Considerando estas declarações se mostram totalmente consentâneas com as regras da vida e da experiência comum, teve-se como demonstrada a factualidade narrada em 38 a 41.

Para a prova do facto 37 foi tido em consideração o documento junto a fls. 380 (fatura emitida pela ULS…)

O arguido, no decurso do julgamento, por sua iniciativa apresentou um pedido de desculpas a cada um dos ofendidos, conforme foi enunciado nos factos provados.

A convicção do tribunal quanto às condições e modo de vida do arguido fundou-se no relatório social elaborado pelos serviços de reinserção social.

Os antecedentes criminais do arguido encontram sustentação nos certificados criminais que se encontram nos autos.

A testemunha BB negou os factos descrito em c), d), e) a g) e i) (1.ª parte) descrevendo os factos como acima já se analisou, termos em que se concluiu negativamente quanto à prova da factualidade das mencionadas alíneas.

Os factos descritos nas alíneas h), i), j) e k) não foram mencionados por nenhuma testemunha, nem qualquer outro meio de prova foi produzido a esse respeito, pelo que, tiveram-se os mesmos como não demonstrados.

Em relação à motivação do arguido descrita na alínea g), a mesma não resultou suficientemente demonstrada, atendendo às expressões proferidas pelo arguido antes do disparo “mato-te ucraniano” e ao facto de momentos antes já ter havido uma troca de palavras entre ambos, conforme foi mencionado pela testemunha BB, circunstâncias que conjugadas entre si indiciam que o arguido não terá agido motivado apenas por lhe haver sido recusada a entrada no bar».


V. Decidindo:

  A) A factualidade apurada não permite a imputação ao arguido da prática de um crime de coacção agravada, na forma tentada, com uso de arma, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal, por referência ao disposto pelo artigo 86.º, n.º 3, do RJAM?

     Entende o recorrente que não.

  Mais concretamente, considera que da factualidade assente não resulta que a realização dos disparos contra a parece do edifício tinha por objectivo forçar DD a permitir-lhe a entrada no estabelecimento e que constituiu apenas expressão do seu desagrado pela contrariedade sofrida com a proibição de entrada no bar, exacerbada com o excesso de álcool.

   Porém, provado ficou (ponto 5 da matéria assente) que “porque DD se recusou a permitir-lhe a entrada no estabelecimento acima identificado, o arguido, com o propósito de o obrigar a permitir-lhe a entrada, empunhou a referida arma e efetuou pelo menos quatro disparos na direção da parte frontal do edifício, tendo os projéteis disparados atingido duas das janelas com vidro duplo localizadas por cima da porta de entrada do estabelecimento de diversão noturna, próximas da zona do bar e da zona da pista de dança, perfurando os vidros exteriores das referidas janelas” (subl. nosso).

   Por outras palavras: da factualidade assente não só resulta, como dela expressamente consta, que a realização dos disparos, por banda do arguido, tinha por objectivo forçar o dito DD a permitir-lhe a sua entrada no estabelecimento.

   O arguido, insatisfeito com o teor do acórdão proferido pelo tribunal a quo, que o condenou – entre o mais – pela prática do mencionado crime de coacção agravada, na forma tentada, recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça (que, sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artº 410º do CPP, limita a sua actividade ao reexame da matéria de direito – artº 434º do mesmo diploma legal), podendo fazê-lo para o competente Tribunal da Relação, caso pretendesse questionar a factualidade apurada.

   Os vícios elencados no nº 2 do artº 410º do CPP hão-de resultar do texto da decisão recorrida, como nesse dispositivo legal se determina.

    Lida e relida a decisão recorrida, não vemos que da mesma resulte qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão nem, tão-pouco, qualquer erro notório na apreciação da prova.

    O recorrente discorda, é certo, do entendimento do tribunal a quo, que resultou expresso no mencionado ponto 5 da matéria assente.

   Tal discordância, inteiramente legítima, não significa que o tribunal colectivo tenha cometido qualquer erro, muito menos notório, na apreciação da prova.

    Como claramente se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 18/2/2021, Proc. n.º 87/11.0GBSXL.L2. S2, o erro notório na apreciação da prova, consiste n”um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. Para ocorrer este vício, as provas evidenciadas pela simples leitura do texto da decisão têm de revelar claramente um sentido e a decisão recorrida extrair ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial. É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, mesmo o cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou (contraditórios) com a decisão tomada. Se a discordância do recorrente for apenas quanto à forma, isto é, como o tribunal valorou a prova e decidiu a matéria de facto, tal traduz-se em impugnação de matéria de facto apurada - que se integra em objecto de recurso sobre a matéria de facto”, a questionar perante o Tribunal da Relação.

    Sobre este concreto ponto da matéria de facto apurada, o tribunal colectivo fundamentou a sua convicção com base no próprio depoimento do arguido, que “disse que após ter sido levado para fora do bar por DD, ficou muito preocupado por o seu irmão continuar lá dentro e que por isso queria voltar a entrar, mas como não lhe abriram a porta, foi a casa buscar a arma que pertenceu ao seu avô e que estava municiada e, logo depois, voltou ao bar” e, bem assim, com base no testemunho de DD, que referiu que “5 a 10 minutos depois de o arguido se ter ido embora, o mesmo voltou de carro, que parou a viatura e saiu, dizendo que queria entrar, a testemunha respondeu que ele não podia entrar, então, o arguido tirou a pistola e começou a fazer disparos, instante em que DD fechou a porta do bar para se proteger”. Tais declarações foram “corroboradas pelo testemunho de GG, que estava no interior do estabelecimento noturno, muito próximo da sua entrada, e que percecionou os acontecimentos acima descritos nos exatos termos relatados por DD”.

    Ora, deste conjunto de depoimentos é naturalmente possível concluir da forma como o fez o tribunal a quo. Por outras palavras: os depoimentos indicados não exigiam – aos olhos do cidadão médio – uma conclusão distinta daquela a que chegou esse tribunal.

     E porque assim é, inexiste qualquer erro notório na apreciação da prova.

     Dispõe-se no artº 154º, nº 1 do Cod. Penal que “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com prisão até três anos ou com pena de multa”, sendo punível a tentativa (nº 2 do mesmo preceito).

      Quando os factos previstos no nº 1 do mencionado artº 154º forem realizados “por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos”, o agente é punido com “pena de prisão de 1 a 5 anos” – artº 155º, nº 1, al. a) do Cod. Penal.

    Como explica Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, T. I, 354, “o tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção ou suportar uma acção”.

      De outro lado, a violência a que se refere o artº 154º, nº 1 do Cod. Penal “pode consistir numa intervenção física sobre coisas, como, por ex., o furar os pneus do automóvel para impedir que o seu proprietário ou utente possa prosseguir viagem, ou danificar o telhado da casa para forçar o seu inquilino a desocupá-la”, sendo certo que as coisas sobre as quais o agente faz recair a violência “tanto podem ser do coagido como de terceiro” – autor, op. e loc. cit., 355.

     No mesmo sentido aponta Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 3ª ed., 605: “A violência pode incidir sobre as coisas da vítima, como meio indirecto de agressão física ou como meio de pressão psicológica (…)”.

       Ora, como provado ficou, o arguido, com o propósito de obrigar o DD a permitir-lhe a entrada no estabelecimento, empunhou uma arma e efetuou pelo menos quatro disparos na direção da parte frontal do edifício.

      Esse facto é, em abstracto, apto a produzir o efeito desejado: a permissão de entrada do arguido, de modo a impedir a continuação dos disparos e a destruição do estabelecimento ou mesmo, a lesão da integridade física dos seus ocupantes (porquanto os projécteis atingiram as janelas de vidro localizadas por cima da porta do mesmo), o que só não sucedeu por motivos estranhos à sua vontade.

      Daí que tenha o arguido praticado o crime de coacção, p.p. pelo artº 154º, nº 1 do Cod. Penal, naturalmente na forma tentada (agravado por força do estatuído no artº 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições: “As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”).

    Mas entende o arguido que, a ser assim, se não verifica a circunstância agravante do artigo 155º, nº 1 a) do Código Penal, porquanto “nenhuma ameaça foi dirigida a DD que configurasse a promessa de prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos”.

      A este propósito, escreveu-se no acórdão recorrido:

«Evidenciam os factos apurados em julgamento e descritos nos pontos 1 a 6 e 12, que no circunstancialismo de tempo e lugar descrito, o arguido depois de ser expulso do bar “Á...”, ali regressou e porque DD se recusou a permitir-lhe a entrada no estabelecimento acima identificado, o arguido, com o propósito de o obrigar a permitir-lhe a entrada, empunhou a arma que trazia consigo e efetuou pelo menos quatro disparos na direção da parte frontal do edifício, de onde se conclui que o arguido procurou obrigar DD a permitir a sua entrada, mediante o recurso a violência, concretizada no uso de uma arma de fogo, o que só não aconteceu por razões alheias à sua vontade, sabendo o arguido que essa atuação lhe estava vedada e conhecendo o caráter ilícito e proibido das suas condutas.

Deste modo, encontram-se preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos do crime de coação agravado na forma tentada, pelo que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, impõe-se a condenação do arguido, nos termos em que vinha acusado».

       Nada mais do que isto.

   É certo que, anteriormente, transcreve-se no douto acórdão recorrido o artº 155º, nº 1, al. a) do Cod. Penal.

     Qual seja, porém, o crime - punível com pena de prisão superior a 3 anos - com cuja prática o ofendido DD foi ameaçado, é algo que o tribunal a quo não esclarece, nem resulta do factualismo assente.

     Com efeito, não se mostra apurado, v.g., que o arguido tenha dirigido qualquer ameaça à integridade física (nem, naturalmente, à vida) do referido DD.

Note-se que consta do rol dos factos tidos como não provados que:

   a) No circunstancialismo descrito em 4 o arguido apontou a arma na direção de DD, a uma distância certamente não superior a dois metros e dirigindo-se a este, em tom de voz alto e determinado disse “sai da porta que eu vou entrar”; e

  b) Nesse circunstancialismo o arguido efetuou cinco disparos em direção às janelas do bar, com o que as atingiu por cinco vezes.

    A agravação do crime de coacção, por força do estatuído no artº 155º, nº 1, al. a) do Cod. Penal assentava, seguramente e na óptica da acusação, nesses factos que, após julgamento, resultaram não provados.

   E, não provado que o arguido tenha apontado a arma na direcção do DD, a uma distância não superior a 2 metros e que lhe tenha dirigido a seguinte expressão “saí da porta que eu vou entrar”, efectuando – nesse concreto circunstancialismo - os 5 disparos, não é possível concluir pela verificação da ameaça de crime punível com prisão superior a 3 anos.

     Tem, por isso e nesta parte, razão o recorrente.

   O crime por ele praticado – coacção agravada, na forma tentada, p.p. pelos artºs 154º, nºs 1 e 2, 22º, 23º e 73º do Cod. Penal e 86º, nº 3 da Lei 5/2006, de 23/2 – é punível com prisão até 2 anos e 8 meses ou multa até 320 dias.

  Adiante – em apreciação da segunda questão suscitada neste recurso – nos pronunciaremos sobre o quantum da pena a fixar.


  B) São excessivas e devem ser reduzidas as penas parcelares e única aplicadas ao arguido?

    A este propósito, consta do acórdão recorrido:

«O crime de coação agravado, na forma tentada, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal, por referência ao disposto pelo artigo 86.º, n.º 3, do RJAM, é punível com pena de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos 5 meses e 10 dias.

O crime, na forma consumada, de dano agravado pelo uso de arma, previsto pelo disposto no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal por referência ao disposto o artigo 86.º, n.º 3, do RJAM, é punível com pena de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos ou com pena de multa de 13 dias a 480 dias.

Os crimes de detenção de arma proibida, na forma consumada, previstos pelo disposto no artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do RJAM, são puníveis com pena de prisão de 1 a 5 anos ou pena de multa até 600 dias.

Cada um dos crimes de homicídio simples, na forma tentada, agravados pelo uso de arma, previstos pelo disposto nos artigos 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, todos do Código Penal por referência ao disposto no artigo 86.º, n.º 3, do RJAM são puníveis com pena de prisão de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos 2 meses e 20 dias.

(…)

Dispõe o artigo 40.º, do C.P., que a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente (nº 1) e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2).

A função primordial da pena consiste na proteção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos. Por sua vez, a culpa – salvaguarda da dignidade humana do agente – não sendo fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir.

Se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro lado, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, parece evidente que – dentro da moldura legal – a moldura da pena aplicável ao caso concreto – “moldura de prevenção” – há-de ser definida entre o mínimo indispensável à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente. Entre estes limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.

Por imperativo decorrente do disposto no artigo 70.º do Código Penal, se a um crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade deve o Tribunal privilegiar esta última, sempre que assim se realizem adequada e cabalmente as finalidades da punição.

Como decorre da factualidade acima exposta, o arguido já possui antecedentes criminais em virtude de já ter praticado um crime de furto qualificado, um crime de dano qualificado, um crime de injúria agravada e um crime de resistência de coação sobre funcionário, tendo sido condenado três vezes em pena de multa, sem que tal o demovesse de voltar a praticar os crimes acima assinalados.

Nessa medida e ponderando igualmente a gravidade dos comportamentos adotados pelo arguido nas situações em análise, urge concluir que os interesses fundamentais da comunidade, protegidos pelas normas infringidas, não serão suficientemente salvaguardados com a aplicação ao mesmo de uma pena não privativa da liberdade, termos em que se julga ser necessário e mais adequado ao caso em apreço, a aplicação ao arguido de uma pena de prisão relativamente aos crimes de dano qualificado e de detenção de arma proibida.

A medida concreta das penas é determinada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção (artigo 71º, nº 1 do C.P.), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo preceito).

Ora, neste âmbito, deverá considerar-se no caso em análise:

a) Grau de ilicitude do facto: que é muito intenso, particularmente em relação aos crimes de coação, de detenção de arma proibida e homicídio na forma tentada, atento o local onde o arguido praticou os factos e a energia evidenciada pelo arguido no cometimento dos crimes – em cada uma das situações acima descritas o arguido abandonou o local com o fito de se munir de uma arma e depois regressou; em ambas as situações fez uso de armas de fogo na via pública, disparando contra um estabelecimento noturno que se encontrava em funcionamento; saliente-se que na situação ocorrida em 2018 o arguido foi expulso, na sequência de uma discussão e nessa ocasião foi-lhe retirada uma navalha e, ainda assim, o arguido foi a casa buscar uma arma, evidenciando o mesmo uma forte inclinação para o uso de armas;

b) Modo de execução e gravidade das consequências: Reveste-se de gravidade elevada o modo de execução face ao meio utilizado no cometimento dos crimes – uso de arma de fogo municiada com várias munições - bem como às consequências da sua conduta, atendendo às lesões que o arguido causou no ofendido atingido pelo disparo, como supra se descreveu; ainda de realçar valor dos danos causados pelo arguido na viatura de DD, que não é despiciendo;

c) Intensidade do dolo: no crime de homicídio na forma tentada, agravado pelo uso de arma, contra BB o arguido agiu com dolo eventual; em todos os restantes ilícitos criminais o arguido agiu sempre com dolo direto, com uma intensidade que se afigura elevada;

d) Conduta anterior aos factos: o arguido tem os antecedentes criminais que supra se descreveram, por factos cometidos em 2015 e 2018; não está profissionalmente inserido; possui família nuclear, tem três filhos menores, com os quais tem laços de afetividade;

e) Conduta posterior aos factos: o arguido apresentou um pedido de desculpas a todos os ofendidos; em contexto prisional, o arguido tem registado uma evolução positiva, sendo de realçar a sua preocupação em manter uma conduta adequada às regras institucionais, bem como o empenho em exercer atividades ocupacionais e em adquirir competências pessoais e formativas, encontrando-se a desempenhar as funções .......... da Escola e a frequentar o Curso ..........

No que tange às necessidades de prevenção geral as mesmas são elevadas em relação a todos os crimes, sendo de realçar o alarme social e insegurança que episódios desta natureza suscitam na comunidade, principalmente numa cidade pacata do interior do país, sendo esse alarme mais intenso em virtude de entre cada um dos episódios haver decorrido pouco mais de um ano, gerando por isso um maior impacto e intranquilidade na comunidade, sendo, pois, premente que as penas aplicadas sejam suficientemente dissuasoras da prática, pelos demais indivíduos, de condutas similares. De salientar que no que se refere à detenção de arma proibida, este tipo de ilícito exige cada vez mais uma maior relevância e está, geralmente, associado a criminalidade violenta, pelo que, as necessidades de prevenção respeitantes a este crime são, a nosso ver, bastante acentuadas.

As necessidades de prevenção especial são muito elevadas, em face dos antecedentes criminais do arguido, cabendo aqui ponderar, principalmente, a gravidade de toda a atuação do arguido, a proximidade temporal entre os episódios violentos protagonizados pelo arguido, que evidenciam uma personalidade temperamental, violenta e a aparente facilidade com que o mesmo acede a armas, designadamente armas de fogo. Acresce que o arguido não está inserido profissionalmente e tem fraca integração fora da comunidade a que pertence.

Em benefício do arguido cabe ponderar o comportamento positivo que o mesmo evidencia em contexto prisional e o facto de haver apresentado um pedido de desculpas a cada um dos ofendidos.

De realçar, no entanto, que este comportamento - apresentação de desculpas aos ofendidos – por si só não permite concluir que efetivamente o arguido tenha interiorizado a censurabilidade das suas condutas ilícitas, cuja prática o arguido admitiu apenas parcialmente, dando versões (nunca comprovadas) que o desresponsabilizavam ou tentavam justificar a sua atuação.

Assim, sopesando as descritas circunstâncias, reputa-se como justa, adequada e proporcional, a condenação do arguido, nos seguintes termos:

a) Pela prática de um crime de coação agravado, na forma tentada, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal, por referência ao disposto pelo artigo 86.º, n.º 3, do RJAM, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

b) Pela prática de um crime, na forma consumada, de dano agravado, pelo uso de arma, previsto pelo disposto no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal por referência ao disposto o artigo 86.º, n.º 3, do RJAM, na pena de 8 (oito) meses de prisão;

c) Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previstos pelo disposto no artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do RJAM, referente ao dia 25.11.2018, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

d) Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previstos pelo disposto no artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do RJAM, referente ao dia de 22.12.2019, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

e) Pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, na pessoa de BB previsto pelo disposto nos artigos 131.º, 22.º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, todos do Código Penal por referência ao disposto pelo artigo 86.º, n.º 3, do RJAM na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

f) Pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, na pessoa de CC previsto pelo disposto nos artigos 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, todos do Código Penal por referência ao disposto pelo artigo 86.º, n.º 3, do RJAM na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

Estabelece o artigo 77.º do Código Penal que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. A pena a aplicar tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Verificando-se no caso concreto que o arguido violou normas destinadas a proteger bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal, atendendo aos limites máximos - 13 (treze) anos e 2 (dois) meses de prisão - e mínimos - 4 (quatro) anos de prisão - das penas aplicadas, considerando a gravidade dos factos praticados pelo arguido, o grau de ilicitude e da culpa e, bem assim, as elevadas necessidades de prevenção geral e as de prevenção  especial acima analisadas, considera-se justo e adequado aplicar ao arguido pela prática dos crimes enunciados a pena única de 7 (sete) anos de prisão».


  O arguido entende, por seu turno, que sendo justa e equilibrada a pena aplicada pela prática do crime de homicídio na forma tentada que teve por ofendido DD, são excessivas as demais penas parcelares aplicadas, entendendo como justas e equitativas as seguintes penas:

 - pela prática do crime de coacção agravada, na forma tentada, 6 meses de prisão;

- pela prática de cada um dos crimes de detenção de arma proibida, 1 ano de prisão;

  - pela prática do crime de dano agravado, 4 meses de prisão;

  - pela prática do crime de homicídio na forma tentada, que tem por ofendido DD, a aplicada pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

   - pela prática do crime de homicídio na forma tentada, que teve por ofendido CC, 3 anos de prisão;

  - em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, uma pena única não superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução.


      Vejamos:

   O crime de coacção agravada, na forma tentada, p.p. pelos artºs 154º, nºs 1 e 2, 22º, 23º e 73º do Cod. Penal e 86º, nº 3 da Lei 5/2006, de 23/2 – é punível com prisão até 2 anos e 8 meses ou multa até 320 dias.

   O crime de dano, agravado pelo uso de arma, p.p. pelo artº 212.º, n.º 1, do Código Penal por referência ao disposto o artigo 86.º, n.º 3, do RJAM, é punível com pena de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos ou com pena de multa de 13 dias a 480 dias.

     Os crimes de detenção de arma proibida, p.p. pelo artº 86.º, n.º 1, alínea c), do RJAM, são puníveis com pena de prisão de 1 a 5 anos ou pena de multa até 600 dias.

    Cada um dos crimes de homicídio simples, na forma tentada, agravados pelo uso de arma, p.p. pelos artºs 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, todos do Código Penal por referência ao disposto no artigo 86.º, n.º 3, do RJAM são puníveis com pena de prisão de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos 2 meses e 20 dias.

    O recorrente não questiona a aplicação de penas de prisão, nas situações em que os ilícitos são puníveis alternativamente com prisão ou multa, insurgindo-se apenas quanto ao quantum das penas fixadas.

    A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artºs 40º, nºs 1 e 2 do Cod. Penal.

   No que concerne à determinação da medida da pena, estatui-se no artº 71º do Cod. Penal que a mesma é feita “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente (nº 2) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências (al. a)), a intensidade do dolo ou da negligência (al. b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c)), as condições pessoais do arguido (al. d)), a sua conduta anterior e posterior ao facto (al. e)) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, quando a mesma deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f)).

   Como refere Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, III, 130, “a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento, aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena. (…) Mas para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas – de protecção de bens jurídicos – e de reintegração do agente na sociedade”.

            Posto isto:

   Com excepção do crime de dano (cujo bem jurídico tutelado é a propriedade), os demais crimes cometidos pelo arguido violam, directa ou indirectamente, bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal: a liberdade de decisão e de acção, no crime de coacção, a segurança da comunidade face aos riscos da livre circulação e detenção de armas proibidas, no crime de detenção de arma proibida e a vida, no crime de homicídio.

  O crime de homicídio constitui objecto de manifesta reprovação geral e gera um compreensível sentimento de insegurança, sendo certo que a frequência com que vem ocorrendo eleva as necessidades de prevenção geral.

   Como justamente se assinala no Ac. deste STJ de 13/12/2018, Proc. 83/17.4GAARC.P1.S1, da 5ª secção, “a criminalidade contra a vida tem um efeito devastador e potencialmente desestruturante da tranquilidade social comunitária. Os crimes de homicídio constituem um dos factores que maior perturbação e comoção social provocam, designadamente em face da insegurança que geram e ampliam na comunidade. As exigências de prevenção geral são pois de acentuada intensidade”.

  E a vida – como todos, por certo, o reconhecemos - é o bem jurídico mais valioso, aquele de cuja preservação dependem todos os outros.

  São, por isso, especialmente elevadas as necessidades de prevenção geral, no que aos crimes de homicídio, na forma tentada, diz respeito.

  Como são, aliás – e como bem se refere no douto acórdão recorrido – no que diz respeito aos crimes de detenção de arma proibida, posto que normalmente associados a criminalidade violenta. Em anotação ao anterior artº 275º do Cod. Penal (que, como é sabido, acautelava, então, os bens jurídico-criminais, cuja protecção é agora tutelada pelo art. 86.º da Lei n.º 5/2006), entendia Paula Ribeiro de Faria (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 891):

“Com este tipo legal o legislador pretendeu evitar toda a actividade idónea a perturbar a convivência social pacífica e garantir através da punição destes comportamentos potencialmente perigosos, a defesa da ordem e segurança pública contra o cometimento de crimes, em particular contra a vida e a integridade física (cf. TRABUCCHI, Comentario breve al Códice Penale 695; ANTOLISEI 112; CARLO MOSCA, EncG, Armi II Armi e Munizione – Dir. Pen. 1). O bem jurídico protegido é por conseguinte a segurança da comunidade face aos riscos (em última instância para bens jurídicos individuais), da livre circulação e detenção de armas proibidas, engenhos e matérias explosivas. Aprofundadas investigações sobre a matéria elaboradas com base em dados estatísticos têm comprovado que existe uma relação directa entre as manifestações de violência criminal (política ou comum), e a detenção incontrolada de armas e explosivos, enquanto que a intervenção legislativa, administrativa, e penal, respeitando embora os direitos e garantias constitucionalmente consagrados, se revelou de particular eficácia na contenção deste fenómeno”.

    Simas Santos e Leal-Henriques, “Noções Elementares de Direito Penal”, 2ª ed., 169, escrevem:

  “(…) a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida”.

            Posto isto:

 Assumem significado de relevo as necessidades de prevenção especial, na situação em apreço: o arguido tem antecedentes criminais (pela prática de crimes de furto qualificado, dano qualificado, resistência e coacção sobre funcionário e injúria agravada) e, como bem se refere no acórdão recorrido, se bem que tenha apresentado desculpas aos ofendidos, de tal facto não é possível concluir, com segurança, que interiorizou a gravidade dos actos que praticou, porquanto apenas os admitiu parcialmente, apresentando versões dos factos “(nunca comprovadas) que o desresponsabilizavam ou tentavam justificar a sua atuação”.

  No ensinamento de Taipa de Carvalho, “Direito Penal, Parte Geral”, Publicações Universidade Católica, 87 - na determinação da medida e espécie da pena o “critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral. Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à medida da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo-especiais (…). Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores juridíco-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima. Em síntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial”.

  O arguido agiu com dolo eventual, daí que de menor intensidade, no que concerne ao crime de homicídio na forma tentada, que teve por ofendido DD. Nas demais situações, agiu sempre com dolo directo, daí que intenso.

É intenso o grau de ilicitude dos factos, expresso na forma como foram cometidos: nas duas ocasiões, o arguido fez uso de armas de fogo na via pública, disparando contra um estabelecimento de diversão que se encontrava em funcionamento, aparentemente indiferente às consequências que desses disparos poderiam advir.

  São graves as consequências das infracções, particularmente no que respeita ao crime de homicídio tentado que teve por ofendido CC: este sofreu ferimento circular de 3 mm na perna direita, mais concretamente na face externa da coxa direita, o que lhe determinou 31 dias para a cura sem afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional; vivenciou sentimentos de pânico, medo e angústia em consequência dos factos acima descritos; sentiu dores durante cerca de 15 dias e durante esse período também ficou limitado nos movimentos, sofrendo incómodos e deixando de praticar desporto; sentiu angústia e esta situação causou-lhe perturbação no seu estado emocional, sentindo receio por si e pela sua família.

  As consequências da infracção, no que concerne ao crime de coacção, traduzem-se nos estragos provocados nos vidros exteriores das janelas situadas sobre a porta do estabelecimento em causa.

   E, no que respeita ao crime de dano, traduzem-se nos estragos produzidos no farol frontal do lado esquerdo e na grelha do motor junto ao para-choques, do veículo propriedade de DD, causando um prejuízo no valor de 2.262,95€.

  O arguido não está profissionalmente inserido (à data dos factos encontrava-se inativo, subsistindo o seu agregado familiar com recurso a apoios sociais, recebendo mensalmente 606 Euros de Rendimento Social de Inserção e 300 Euros de Subsídios Familiares atribuídos aos menores, sendo que também beneficiam do apoio dos seus progenitores); tem estabilidade familiar e, em contexto prisional, tem registado uma evolução positiva, encontrando-se a desempenhar as funções .......... da Escola e a frequentar o Curso ...........

      Posto isto:

  O crime de coacção, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, p.p. pelos artºs 154º, nºs 1 e 2, 22º, 23º e 73º do Cod. Penal e 86º, nº 3 da Lei 5/2006, de 23/2 – é punível com prisão até 2 anos e 8 meses ou multa até 320 dias (posto que não verificada a agravação prevista no artº 155º, nº 1, al. a) do Cod. Penal, que determinava uma moldura penal de 40 dias a 4 anos, 5 meses e 10 dias de prisão, em função da qual o tribunal a quo determinou a pena concreta de 2 anos de prisão).

   Presentes os critérios de determinação da medida concreta da pena supra elencados, temos por justa e adequada uma pena concreta de 10 meses de prisão.

   No que respeita às demais penas parcelares, o tribunal recorrido fixou-as em medida bem próxima do limite mínimo aplicável, situadas no primeiro quarto ou no primeiro terço das penas abstractamente aplicáveis.

     Mesmo no que respeita ao crime de homicídio tentado que teve por ofendido CC, a pena de 4 anos de prisão aplicada, assente numa moldura penal que parte de um mínimo de 2 anos, 1 mês e 18 dias de prisão, mas tem por máximo 14 anos, 2 meses e 20 dias de prisão, se por algo peca não será, claramente, por excessividade.

   Daí que, considerando as penas parcelares aplicadas pelo tribunal colectivo justas e adequadas (com a natural excepção da relativa ao crime de coacção, agravado pelo uso de arma, mas não por força do estatuído no artº 155º, nº 1, al. a) do Cod. Penal), outra solução não reste que não seja a de as manter, nos seus exactos termos.


     No que concerne à pena única:

  “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” – artº 77º, nº 1 do Cod. Penal – sendo certo que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.

  No caso, portanto, a moldura penal aplicável parte de um mínimo de 4 anos de prisão, não podendo ultrapassar os 12 anos de prisão.

  Como se refere no Ac. STJ de de 08-07-2020, Proc. n.º 1667/19.1T8VRL.S1 - 3.ª Secção, “I - A medida da pena conjunta deve definir-se entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente. II - Em sede de cúmulo jurídico a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. III - À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. IV - De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente- exigências de prevenção especial de socialização”.

   De outro lado, “a proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global (do concurso de crimes enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente nele revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a intensidade ou gravidade da medida da pena conjunta no âmbito do ordenamento punitivo” – Ac. STJ de 08-07-2020, Proc. n.º 74/14.7JAPTM.E1.S1 - 3.ª Secção.

     Ora, efectuada uma avaliação global dos factos, ponderadas as exigências de prevenção especial e geral e a situação pessoal do arguido, considerando que estamos perante uma pluriocasionalidade, é nosso entendimento que uma pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, situada no primeiro terço da pena abstractamente aplicável, se mostra justa e adequada.

     Como é evidente e dispensa grandes considerações, tal pena – desde logo, porque é superior a 5 anos de prisão – não é susceptível de suspensão na sua execução.


 VI. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, revogando o acórdão recorrido no segmento em que o condenou pela prática, na forma tentada, de um crime de coacção, agravado pela circunstância enunciada na al. a) do nº 1 do artº 155º do Cod. Penal, condenando-o pela prática de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p.p. pelos artºs 154º, nºs 1 e 2, 22º, 23º e 73º do Cod. Penal e 86º, nº 3 da Lei 5/2006, de 23/2, na pena de 10 meses de prisão e, em cúmulo jurídico com as demais penas parcelares, que se mantêm, na pena única de 6 (seis) anos  e 6 (seis) meses de prisão, no demais negando provimento ao recurso.

  Sem custas.


Lisboa, 26 de Maio de 2021 (processado e revisto pelo relator)           


 Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

Atesto o voto de conformidade da Exmª Srª Juíza Conselheira Ana Maria Barata de Brito