Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
421/16.7T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: SEGURO MULTI-RISCOS
APÓLICE DE SEGURO
CONTESTAÇÃO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
DEFESA POR IMPUGNAÇÃO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 12/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, Almedina, 2018, p. 640, 641 e 645;
- António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2014, 4.ª edição, p. 718;
- Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, 4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, p. 444 e ss.;
- Ferrer Correia, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2001, 4.ª reimpressão, p. 188 e ss. e 196 e ss.;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 1983, p. 309, 311 e ss.;
- Paula Costa e Silva, Acto e Processo. O Dogma da Irrelevância da Vontade na Interpretação e nos Vícios do Acto Postulativo, Coimbra, Coimbra Editora, 2003;
- Rui Pinto Duarte, A interpretação dos contratos, Coimbra, Almedina, 2016, p. 84.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 236.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 571.º, 572.º, 573.º, N.º 1 E 574.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-04-2005, PROCESSO N.º 05B942, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-07-2012, PROCESSO N.º 1028/09.OTVLSB.L1.S1;
- DE 16-04-2013, PROCESSO N.º 2449/08.1TBFAF.G1.S1.
Sumário :
I. Tendo a ré seguradora alegado, na contestação, que o contrato de seguro era regulado pela proposta de seguro, pelas condições gerais, particulares e especiais e pela lei aplicável e reconhecido a ressarcibilidade de apenas alguns dos danos invocados pela autora, qualificando a restante verba peticionada como “totalmente injustificada e sem qualquer tipo de cabimento no âmbito das garantias de cobertura da apólice”, é de concluir, à luz do artigo 236.º, n.º 1, do CC, que a ré manifestou a sua discordância com a alegação da ressarcibilidade dos restantes danos, por considerar que não se encontravam cobertos por aquelas garantias.

II. Tendo a ré manifestado esta oposição parcial aos factos articulados pela autora e exercido cabalmente o seu ónus de impugnação (cfr., em especial, artigos 571.º, 572.º e 574.º do CPC), a junção posterior, admitida nos termos legais e sem a oposição da autora, das condições do contrato de seguro, não é contrária ao princípio da preclusão, consagrado no artigo 573.º, n. 1, do CPC, já que não representa um meio de defesa novo relativamente à contestação.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


AA, Sociedade Imobiliária, S.A., instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB Companhia de Seguros, S.A., peticionando pela procedência da acção a condenação da ré “a pagar à Autora a quantia de 121.664,79 euros (cento e vinte e um mil seiscentos e sessenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa comercial, desde esta data até integral pagamento e a incidir sobre 88.391,79 euros” (incluindo o valor total peticionado juros de mora contabilizados desde 31/03/2011 no valor de € 33.273,00).

Para tanto alegou, em suma, a autora:

- ser proprietária de um conjunto de imóveis descritos na petição inicial, nos quais está instalado um PT que foi atingido por um raio que destruiu o PT e toda a rede elétrica, para além de ter provocado um incêndio;

- tal ocorrência causou prejuízos à autora que a mesma quantificou em € 88.331,79;

- tendo com a ré celebrado contrato de seguro multi-riscos com cobertura nomeadamente de incêndio, queda de raios, etc., reclamou junto desta a indemnização do valor dos prejuízos sofridos ao abrigo do contrato de seguro com a mesma celebrado;

- tendo a ré aceite a obrigação de indemnizar a autora ao abrigo do citado contrato, discordaram autora e ré quanto ao valor dos danos.

Termos em que peticionou a condenação da ré ao pagamento dos danos por si quantificados nos termos acima referidos.


Contestou a ré, tendo excepcionado a ilegitimidade da autora e, no mais, tendo alegado:

- a autora dedica-se à reconversão de espaços industriais em “centros empresariais” (28.º da contestação);

- as instalações objecto do contrato de seguro dos autos resultam da recuperação e adaptação de antigas instalações em dois edifícios dedicados a escritórios, um edifício para armazéns e um aproveitamento dos silos para armazenamento de cereais de uma empresa terceira (29.º da contestação);

- o referido centro empresarial dispõe de posto de transformação (PT) próprio primitivo nas instalações fabris, sendo o abastecimento de energia elétrica efetuado pela EDP em média tensão (artigo 30.º da contestação);

- o PT é do tipo cabine e constitui uma unidade de risco independente uma vez que não estava incluído na lista de objectos a segurar (cfr. doc. 1 já adiante junto) (artigo 32.º da contestação);

- os danos passíveis de indemnização apurados são os elencados no artigo 41.º da contestação;

- a que a ré considerou ainda poder incluir no valor dos danos indemnizáveis os danos sofridos pelo transformador de 500 Kva (pese embora considerar tratar-se de dano não coberto pela apólice dos autos) (artigos 42.º e 47.º da contestação);

- perfazendo o valor total dos danos indemnizáveis, deduzida já a franquia a cargo da segurada – por o sinistro se dever a uma consequência indirecta da acção de um raio e não a uma “acção mecânica de queda do raio” – o valor global de € 12.207,38 que a ré colocou à disposição da autora e esta se recusou a receber (conforme doc. 3) (artigos 44.º, 49.º e 50.º da contestação);

- sendo a verba peticionada – € 88.331,79 – totalmente injustificada e sem qualquer tipo de cabimento no âmbito das garantias de cobertura da apólice (artigo 51.º da contestação);

- impugnando nestes termos (para além do mais), por não corresponderem à verdade, os factos constantes do artigo 7.º da petição inicial[1] (quanto ao fim que do mesmo se pretende retirar) (…) e mais impugnando (para além do mais), nos termos do artigo 577.º do CPC, o artigo 6.º da petição inicial[2] (…) (artigos 52.º e 53.º da contestação).

Termos em que concluiu pela procedência da invocada excepção de ilegitimidade e, sem prescindir, pela improcedência da acção na medida em que a ré colocou à disposição da autora o montante indemnizatório devido pelo sinistro; sem prescindir, concluiu ainda pela decisão da acção em conformidade com a prova a produzir.

Foi proferido despacho saneador, apreciada e julgada improcedente a invocada exceção; identificado o objecto do litígio e elencados os temas da prova (fls. 103 e s., em 15.11.2016).

Foi produzida prova pericial.

Por requerimento de 10.10.2017, já após a 1.ª sessão de audiência de julgamento, que viria a ser dada sem efeito para complemento de relatório pericial, juntou a ré as condições da apólice do contrato de seguro entre as partes celebrado, às quais, notificada, nada opôs a autora.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença (fls. 210 e s.), julgando:

“a ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

III. a) Condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 32.896,09 (trinta e dois mil, oitocentos e noventa e seis euros e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal dos juros moratórios relativos aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, contados desde 07/04/2016, até integral pagamento;

III. b) Absolve-se a Ré do demais peticionado pela Autora.

(…)”

Do assim decidido apelaram autora e ré, pugnando, a primeira, pela indemnização dos danos a que se reportam os factos provados 17 a 19 (fornecimento de energia elétrica alternativa até integral substituição do PT, através de um gerador) bem como pela isenção da franquia e, a segunda, pela exclusão do objecto do contrato de seguro do PT.

Por Acórdão proferido em 11.04.2019, acordaram os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar:

- parcialmente procedente o recurso interposto pela Autora, revogando a sentença recorrida na parte em que deduziu aos danos quantificados em 11 a 13 dos factos provados o valor da franquia.

Sentença recorrida que no mais se mantém;

- totalmente improcedente o recurso interposto pela R.

(…)”.

Inconformadas com o assim decidido recorrem uma vez mais autora e ré, tendo o recurso daquela sido admitido como revista excepcional e o desta não admitido por despacho da Exma. Senhora Relatora do Tribunal da Relação do Porto de 15.07.2019.

Subiu, assim, apenas o recurso da autora AA a este Supremo Tribunal de Justiça, onde uma vez, apreciados pela Formação os requisitos do artigo 672.º, n.º 2, do CPC, foi, por Acórdão de 31.10.2019, definitivamente admitido ao abrigo da al. a) desta norma.

Pugna a autora / ora recorrente, em síntese, pela alteração da decisão recorrida “por forma a incluir na indemnização a atribuir à Autora a quantia de 42.536,50 euros referida no facto provado 19 acrescida dos respetivos juros vencidos e vincendos”.

Finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1) Em momento algum da contestação, a Ré invocou, quer expressa, quer mesmo implicitamente, que os danos invocados na p i e que emergem dos factos provados 17 a 19 da sentença estivessem excluídos da cobertura do seguro em causa por uma concreta cláusula desse contrato.

2) Como emerge da leitura da douta contestação, relativamente a tais danos (invocados nos artº 6 e 7 no segmento “e com o aluguer do gerador e fornecimento de gasóleo..”) ambos da p i e agora fixados nos nºs 17 a 19 da sentença de 1ª instância, a Ré nada disse.

3) Limitando-se a Ré (para além de não impugnar o alegado pela Autora no art 2 da p. i.,) a concluir no art 5 da contestação, que o contrato em apreço era regulado pela proposta de seguro, pelas condições particulares, pelas condições gerais, pelas condições especiais e, ainda, pelas disposições legais aplicáveis ao contrato de seguro.

4) E acrescentando, no art 27 da contestação, que procurara indemnizar a Autora dos danos que esta comprovadamente apresentou como tendo sofrido com o sinistro dos autos.

5) Tais afirmações, conjugadas com o quadro constante do art 41 da mesma contestação, fizeram concluir à Autora (ou a qualquer intérprete medianamente capaz e avisado - art 236 nº 1 C Civil) que a Ré recusava indemnizar os danos ora em causa apenas por não terem sido “comprovados”.

6) Além disso, não juntou, sequer, com a contestação essas condições gerais e especiais, só juntando cópia das mesmas em 10/10/2017, muito após o decurso da réplica que a Autora apresentara

7) Condicionada pelo teor e âmbito da contestação, a Autora nada disse sobre tal documento quando ele foi junto até porque as concretas questões para que, em face da contestação, poderiam relevar, já tinham sido antecipadamente impugnadas na p i, na medida em que face à recusa, comunicada em fase pré-judicial, pela Ré à Autora, esta já sabia que a mesma iria esgrimir argumentos relacionados com a exclusão de indemnização de um PT e com a franquia.

8) Por isso “deduziu” a Autora que essa serôdia junção dessas condições gerais e especiais se reportava àquelas duas questões

9) Traduzindo um requerimento ou articulado junto a um processo judicial por uma das partes, uma declaração de vontade da emitente destinada a produzir efeitos jurídicos e, como tal, em matéria de interpretação, sujeita aos critérios legais interpretativos, entre os quais o previsto no art 236 nº 1 C Civil, nem a autora nem o tribunal poderiam interpretar a declaração da Ré constante do art 5 da contestação ou a simples junção, mais tarde, de um documento com 30 páginas e centenas de cláusulas, como pretendendo alegar que os tais danos, em concreto, não eram indemnizáveis por estarem excluídos através de uma concreta cláusula das muitas que integravam tal documento !

10) A não invocação dessa questão na contestação impediu a Autora desde logo de alegar em réplica que nem sequer lhe tinha sido comunicado e explicado o teor dessa alegada exclusão imposta através de uma cláusula contratual geral.

11) Os deveres de colaboração, cooperação, de boa-fé e lisura processuais que se impõem a cada uma das partes (artºs 7 e 8 C P Civil) conjugados com o disposto no art 5 nº 1 e com os artigos 572 b) e c) e 573 nº 1 do mesmo diploma que consagram os princípios do dispositivo e da preclusão impunham à Ré, se quisesse aproveitar essa alegada limitação contratual, que invocasse na contestação os factos e a cláusula contratual em causa para reduzir a indemnização pedida (art 571 nº 2 in fine C P C)

12) Alegar factos não é remeter para um documento, sobretudo se este contém dezenas ou centenas de normas contratuais e documento esse que, aliás, nem sequer junto naquele momento.

13) Tal exceção em causa não era do conhecimento oficioso do tribunal! – art 579 C P C

14) Tendo presente o teor da douta contestação, caso esta questão não tivesse sido expressamente abordada nas alegações finais de audiência de julgamento, o Ex.mo Juiz “a quo” nem sequer se teria apercebido da mesma e tal omissão na sentença seguramente que não acarretaria qualquer nulidade

15) Bem ao invés, o tribunal de 1ª instância, ao conhecer de tal questão que em lado algum foi invocada pela Ré no momento processual próprio, ou seja na contestação, (apenas a invocando oralmente em sede de alegações finais no final da audiência) e que não era do conhecimento oficioso do tribunal, cometeu a nulidade prevista no art 615 nº 1 d) C P Civil.

16) Por isso a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto violou o disposto nos artºs 236 nº 1 CCivil, 5 nº 1, 7, 8, 571, nº 2, 572 b) e c) e 573 nº 1 e 579 e 615 nº 1 d) C P Civil”.

A ré BB apresentou, por sua vez, contra-alegações, resultando das conclusões formuladas[3] que pugna, primeiro, pela inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente, pela sua improcedência.


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são, enunciando-as pela ordem de precedência lógica a que se refere o artigo 608.º, n.º 1, do CPC (cfr. artigo 278.º do CPC):


1.ª) se o Tribunal a quo incorreu em excesso de pronúncia, sendo o Acórdão recorrido nulo nos termos do artigo do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CC; e

2.ª) se, ao considerar excluídos da cobertura do seguro e, portanto, da obrigação de indemnizar os danos referidos nos factos enumerados nos pontos 17 a 19 da factualidade provada (respeitantes ao fornecimento de energia elétrica alternativa até integral substituição do PT, através de um gerador), o Tribunal recorrido violou as normas dos artigos 236.º, n.º 1, do CC e 5.º, n.º 1, 7.º, 8.º, 571.º, n.º 2, 572.º, als. b) e c), 573.º, n.º 1, e 579.º do CPC.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. A Autora é proprietária de um conjunto de imóveis, sitos na freguesia de …, concelho da …, com entrada pela Rua …, números (de polícia) … e … que formam um parque industrial, integrando:

1.1. Prédio urbano composto por um conjunto de corpos ou edifícios fabris de um, dois, três e quatro pavimentos anexos e logradouro, incluindo silos de armazenamento de cereais, sito na Rua …, …, …, com entrada pelo numero 406, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial da … sob o nº 01872 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1346; e

1.2. Prédio urbano composto por edifício de dois pavimentos destinado a habitação, três dependências de quintal, sito na referida Rua …, …, …, com entrada, agora, pelo número … e descrito na competente 2a Conservatória do Registo Predial da … pelo nº 01126, e inscrito na matriz sob os artigos 477 e 478.

2. Por contrato de seguro titulado pela apólice ME 8…1, a Seguradora CC assumiu perante a Autora, desde pelo menos 2001, a obrigação de a indemnizar por quaisquer danos que aquele conjunto predial viesse a sofrer decorrentes da verificação de vários riscos, mormente explosão, incêndio, inundação, queda de raio, etc..

3. A Seguradora CC foi entretanto incorporada por fusão, em 2013, conforme certidão permanente com o código 4…6-6…6-5…3, na BB - Companhia de Seguros S. A. que desse modo, assumiu a posição contratual da CC naquele contrato de seguro e as obrigações dele emergentes.

4. No dia 22/02/2010, aquele Centro Empresarial …, instalado naqueles imóveis, propriedade da Autora, foi atingido por um raio que destruiu o posto de transformação (PT) lá instalado, toda a rede elétrica e provocou ainda um incêndio;…

5. Esse raio com origem na atmosfera atingiu o ramal de média tensão que alimenta o PT do Centro Empresarial …, instalado naqueles imóveis, provocando um curto-circuito/sobretensão na canalização de alimentação do referido PT que alastrou a todo o seu equipamento eletromecânico (seccionador de média tensão, para-raios, rupto-fusível, transformador de potência, proteção do transformador, equipa de medida, quadro geral de baixa tensão, canalizações de média tensão e baixa tensão, circuitos auxiliares e acessórios do PT, Terra de proteção e Terra de serviço) destruindo-o completamente.

6. Em consequência desse curto-circuito/sobretensão, ocorreu um incêndio no PT.

7. Com a destruição do PT, todo o Centro Empresarial …, instalado naqueles imóveis, ficou privado de energia elétrica, pois o PT era o único equipamento responsável pela alimentação de toda a rede elétrica existente no citado Centro Empresarial … .

8. As instalações objeto do contrato de seguro dos autos resultam da recuperação e adaptação de antigas instalações em dois edifícios dedicados a escritórios, um edifício para armazéns e um aproveitamento dos silos para armazenamento de cereais de uma empresa terceira.

9. O referido Centro Empresarial … dispõe de posto de transformação (PT) próprio, primitivo nas instalações fabris, sendo o abastecimento de energia elétrica efetuado pela EDP em média tensão.

10. O PT é do tipo “cabine”, estando à data da ocorrência equipado com dois transformadores, um de 500 kVA e outro de 1.600 kVA, e respetivos acessórios de proteção e distribuição de energia, mas apenas estava em utilização o transformador de 500 kVA.

11. Para execução de ramal de média tensão entre o PS e o PT e execução de junção junto do PS, destruído nas circunstâncias supra referidas em 4) e 5), foi necessário despender € 4.415,48.

12. Para substituição do equipamento elétrico do PT, destruído nas circunstâncias supra referidas em 4) e 5), foi necessário despender € 25.276,23.

13. Para fornecimento e montagem de rede elétrica enterrada, com montagem de armário de distribuição e ligação de cabo para alimentação dos silos, destruídos nas circunstâncias supra referidas em 4) e 5), foi necessário despender € 7.568,00.

14. O incêndio causou danos no edifício onde está instalado o PT.

15. Para recuperar o edifício onde está instalado o PT foi necessário despender € 624,38.

16. A recuperação do edifício onde está instalado o PT foi avaliada pela Ré em € 1.870,00.

17. Desde 22/02/2010 e até ser recolocado em funcionamento o PT, a Autora teve de fornecer energia elétrica a todas as entidades instaladas no Centro Empresarial …;…

18. Pelo que teve de suportar os custos do aluguer de um gerador, do fornecimento e montagem de uma terra de proteção para o gerador funcionar e do preço do combustível com que aquele gerador foi abastecido, até à recolocação em funcionamento do PT;…

19. Custos esses que ascenderam a € 42.536,50.

20. O contrato de seguro celebrado entre A. e R. era regulado pela proposta de seguro, pelas condições gerais, especiais e particulares que constam dos documentos com o teor que consta a fls. 33-55 e a fls. 173-183, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos.

20. A) Após reclamação efetuada pela Autora, a Ré por carta de 4/4/2011, comunicou à Autora que aceitava a obrigação de a indemnizar decorrente do contrato de seguro e do incêndio, mas limitada a 12.207,38 euros que a A. recusou[4].


E são os seguintes os factos que vêm não provados:

a. Para a reconstrução do ramal de média tensão a montante do posto de transformação, para além da quantia de € 4.415,48 referida em 11., será necessário despender a quantia de € 7.500,00.

b. Por carta de 04/04/2011, a Ré comunicou à Autora que aceitava a obrigação de a indemnizar decorrente do contrato de seguro e do incêndio, considerando que o valor dos danos indemnizáveis se cifrava apenas em € 22.188,38 e que neles estava incluído o valor de um transformador de 1600 kva de 7.393,38 euros que estaria excluído da apólice, bem como 4.988,00 euros de franquia contratual, valores estes que como tal eram insuscetíveis de indemnização.

c. A Ré colocou à disposição da Autora, em 04/04/2011, a quantia de € 12.207,38.


O DIREITO


Alega, fundamentalmente, a autora / ora recorrente que o Tribunal recorrido violou as normas do artigo 236.º, n.º 1, do CC e dos artigos 5.º, n.º 1, 7.º, 8.º, 571.º, n.º 2, 572.º, als. b) e c), 573.º, n.º 1, 579.º e 615.º, n.º 1, al. d), do CPC (conclusão 16 das alegações).

Aprecie-se das alegadas violações, respeitando, como se disse, a ordem de precedência logica a que se refere a norma do artigo 608.º, n,º 1, do CPC, começando, assim, por aquela que, se respondida afirmativamente, daria origem à nulidade do Acórdão.


1. Da alegada violação, pelo Tribunal recorrido, do artigo 615.º, n,º 1, al. d), do CPC (excesso de pronúncia) e consequente nulidade do Acórdão

Como é do conhecimento geral, o excesso de pronúncia consiste no conhecimento, pelo tribunal, de questões de que não estava autorizado conhecer, por não terem sido suscitadas pelas partes e não serem do tipo de questões de que o Tribunal tem o dever de conhecer independentemente de terem sido suscitadas (de conhecimento oficioso).

Das conclusões das alegações extrai-se que a autora / ora recorrente localiza o vício na pronúncia do tribunal sobre a cobertura pelo contrato de seguro dos danos constantes dos factos provados sob os pontos 17 a 19 da factualidade provada

Ora, como resulta do relatório que antecede e bem salientou o Tribunal da Relação do Porto (a propósito do alegado excesso de pronúncia da sentença[5]), a ré / ora recorrida não só identificou, de forma expressa, quais os danos, de entre os reclamados pela autora, eram por si considerados indemnizáveis, como também alegou que, para além de tais danos, que contabilizou em € 12.207,38, nenhuns outros, reclamados no valor (total) de € 88.331,79, teriam cabimento no âmbito das garantias de cobertura da apólice.

Face a isto, não pode, manifestamente, proceder a alegação de que a ré não impugnou – ou, muito menos, de que reconheceu – a ressarcibilidade dos danos referidos nos factos enumerados nos pontos 17 a 19 da factualidade provada. Logo, ao pronunciar-se sobre a sua exclusão da cobertura do seguro e, portanto, da obrigação de indemnização, o Tribunal a quo não ultrapassou, de forma alguma, os poderes de cognição que a lei lhe confere.

Cumpre ainda observar que o modo como a autora / recorrente invoca este fundamento da revista, ou seja, o seu encadeamento dos fundamentos relacionados com a violação da lei substantiva e da lei processual [cfr. artigo 674.º, n.º 1, als. a) e b), do CPC] e sem as especificações que estão associadas a uma alegação desta natureza, indicia que aquilo que está em causa não é tanto uma genuína arguição de nulidade mas mais uma discordância quanto à decisão atingida pelo Douto Tribunal recorrido – a escolha e a interpretação das normas aplicáveis ao caso. Mas essa já não pertence ao domínio das nulidades do artigo 615.º do CPC; reconduz-se à questão que será apreciada de seguida.


2. Da alegada violação, pelo Tribunal recorrido, do artigo 236.º, n.º 1, do CC e dos artigos 5.º, n.º 1, 7.º, 8.º, 571.º, n.º 2, 572.º, als. b) e c), 573.º, n.º 1, e 579.º do CPC

A pretensão central da autora / ora recorrente, subjacente à presente alegação é, como se sabe, a de que os danos referidos nos factos enumerados nos pontos 17 a 19 da factualidade provada (respeitantes aos custos do aluguer de um gerador, do fornecimento e montagem de uma terra de protecção para o gerador funcionar e do preço do combustível com que aquele gerador foi abastecido, até à recolocação em funcionamento do PT, custos estes que ascenderam a € 42.536,50) não sejam excluídos da obrigação de indemnizar a cargo da ré.

Tal como tinha acontecido com o Tribunal de 1.ª instância, o Tribunal da Relação do Porto recusou provimento a esta pretensão. Fê-lo apoiando-se no seguinte raciocínio (que aqui se apresenta simplificado): os danos em causa, não sendo danos directos (“danos directamente causados aos bens seguros”), não estão abrangidos pela cláusula 3.ª das condições gerais do contrato de seguro; tão-pouco se integram em alguma das condições especiais ou particulares contratadas; face a isto, não podem considerar-se abrangidos pela cobertura do seguro e ser incluídos na indemnização a cargo da seguradora.

Vejamos mais de perto as alegações da autora / recorrente.


2.1. Alega a autora que, ao decidir como decidiu, o Tribunal incorreu, em primeiro lugar, em violação do artigo 236.º n.º 1, do CC, pois, a partir da contestação da ré, qualquer intérprete medianamente capaz e avisado formaria a convicção de que a ré se recusava apenas indemnizar os danos que não estivessem “comprovados”.

Segundo ela, na contestação, a ré não invocou que os danos que emergem dos factos provados 17 a 19 da sentença estivessem excluídos da cobertura do seguro em causa por uma concreta cláusula, tendo-se limitado a concluir que o contrato em apreço era regulado pela proposta de seguro, pelas condições gerais, pelas condições particulares, pelas condições especiais e, ainda, pelas disposições legais aplicáveis ao contrato de seguro e a acrescentar que procurara indemnizar a autora dos danos por ela comprovados; não juntou, sequer, com a contestação essas condições, só juntando cópia das mesmas em 10.10.2017, muito após o decurso da réplica que a autora apresentara.

Ela própria, autora, nada disse sobre tal documento quando ele foi junto, mas isso porque julgou que ele era relevante apenas para as questões invocadas na contestação e antecipadamente impugnadas na petição inicial, relacionadas com a exclusão de indemnização de um PT e com a franquia); caso contrário teria alegado em réplica que nem sequer lhe tinha sido comunicado e explicado o teor da alegada exclusão imposta através de uma cláusula contratual geral (conclusões 1 a 10 das alegações).

Dispõe o artigo 236.º do CC que “[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

Esta norma consagra aquilo que Manuel de Andrade designa como a “teoria da impressão do destinatário”, segundo a qual o sentido do negócio jurídico é o “sentido com que a declaração seria interpretada por um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário efectivo [6].

A teoria da impressão do destinatário é o critério acolhido pela esmagadora maioria da doutrina portuguesa para a interpretação dos negócios jurídicos (Ferrer Correia, Manuel de Andrade, Carlos da Mota Pinto, só para nomear alguns[7]).

Explica António Menezes Cordeiro que o “horizonte do destinatário” é composto dos seguintes elementos: (1) a letra do negócio; (2) os textos circundantes; (3) os antecedentes e a prática negocial; (4) o contexto; (5) o objectivo em jogo; e (6) elementos jurídicos extra-negociais”[8].

Ora, transpondo estas orientações para o domínio dos articulados processuais[9], logo se vê que, tanto a letra como o contexto como o objectivo em jogo conduzem à interpretação do Tribunal recorrido: de que, ao alegar, no artigo 5.º da contestação, que o contrato em apreço era regulado pela proposta de seguro, pelas condições gerais, pelas condições particulares, pelas condições especiais e, ainda, pelas disposições legais aplicáveis ao contrato de seguro, a ré “tom[ou] uma posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor”, como manda o artigo 574.º do CPC, e, simultaneamente, manifestou a sua oposição ao pedido, limitando o reconhecimento da sua responsabilidade aos danos cobertos, nos termos da lei e do contrato, pelo contrato de seguro.

A interpretação da contestação da ré pelo Tribunal recorrido não só não importa, assim, violação do artigo 236.º, n.º 1, do CC como está em absoluta conformidade com o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do CC.


2.2. Alega a autora que, ao decidir como decidiu, o Tribunal incorreu, em segundo lugar, em violação dos artigos 7.º e 8.º do CPC, que impõem deveres de colaboração, de boa fé e de lisura processuais às partes, e dos artigos 5.º, n.º 1, 571.º, n.º 2, 572.º, als. b) e c), 573.º, n.º 1, e 579.º do CPC, que consagram os princípios do dispositivo e da preclusão e limitam o conhecimento oficioso a certas questões (conclusões 11, 12 e 13 das alegações).

As normas do artigo 7.º e 8.º do CPC estabelecem, respectivamente, o princípio da cooperação, que deve ser observado pelos magistrados, pelos mandatários judiciais e pelas próprias partes, e o dever, estreitamente ligado àquele princípio, de boa fé processual.

Situando-se ainda no domínio dos princípios fundamentais mas referindo-se já ao ónus de alegação das partes e aos poderes de cognição do tribunal, o artigo 5.º, n,º 1, do CPC dispõe que “[à]s partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”.

Em particular sobre a contestação, dispõem os artigo 571.º, 572.º e 573.º do CPC.

O n.º 2 do artigo 571.º do CPC, cuja violação é alegada pela autora, determina, a propósito da defesa por impugnação e por excepção:

[o] réu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição ou quando afirma que esses factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor; defende-se por exceção quando alega factos que obstam à apreciação do mérito da ação ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido”.

O artigo 572.º do CPC refere-se aos elementos da contestação e preceitua:

[n]a contestação deve o réu:

a) Individualizar a ação;

b) Expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor;

c) Expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação (…)”.

Finalmente, o artigo 573.º, que regula a oportunidade de dedução da defesa, preceitua, no seu n.º 1:

[t]oda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado”.

Ora, como resulta do relatório antecedente, mas deve recordar-se, uma vez citada, a ré impugnou o valor indemnizatório peticionado e, em particular, sobre as diversas parcelas identificadas pela autora alegou:

- O PT é do tipo cabine e constitui uma unidade de risco independente uma vez que não estava incluído na lista de objetos a segurar (cfr. doc. 1 já adiante junto) (artigo 32.º da contestação);

- Os danos passíveis de indemnização apurados são os elencados no artigo 41.º da contestação;

- A ré considerou ainda poder incluir no valor dos danos indemnizáveis os danos sofridos pelo transformador de 500 Kva (pese embora considerar tratar-se de dano não coberto pela apólice dos autos) (artigos 42.º e 47.º da contestação);

- Perfazendo o valor total dos danos indemnizáveis, deduzida já a franquia a cargo da segurada - por o sinistro se dever a uma consequência indireta da ação de um raio e não a uma “ação mecânica de queda do raio” o valor global de € 12.207,38 que a R. colocou à disposição da A. e esta se recusou a receber (conforme doc. 3) (artigos 44.º, 49.º e 50.º da contestação);

- Sendo a verba peticionada - € 88.331,79 – “totalmente injustificada e sem qualquer tipo de cabimento no âmbito das garantias de cobertura da apólice” (artigo 51.º da contestação);

- Impugnando nestes termos (para além do mais), por não corresponderem à verdade, os factos constantes do artigos 7.º da petição inicial (quanto ao fim que do mesmo se pretende retirar) (…) e mais impugnando (para além do mais), nos termos do artigo 577.º do CPC, o artigo 6.º da petição inicial (…) (artigos 52.º e 53.º da contestação).

Chegados aqui, é razoavelmente claro que a ré exerceu o ónus de contestação que sobre ela impendia – e que o exerceu de forma a que os factos / elementos por ela aduzidos nos / juntos aos autos pudessem ser atendidos pelo Tribunal, autorizando-o a decidir, designadamente, sobre a inclusão ou exclusão da cobertura do seguro dos danos derivados do fornecimento de energia elétrica alternativa até integral substituição do PT, através de um gerador (enumerados nos pontos 17 a 19 da factualidade provada).

Quanto aos danos por si não reconhecidos, a ré defendeu-se, claramente, nos termos do artigo 571.º, n.º 1, do CPC, por impugnação (defesa directa)[10], em particular quando:

- discriminou os “danos passíveis de indemnização” no artigo 41.º da contestação;

- identificou o valor total dos danos passíveis de indemnização, deduzida já a franquia a cargo da segurada, nos artigos 44.º, 49.º e 50.º da contestação;

- qualificou a restante verba peticionada, respeitante aos restantes danos, como “totalmente injustificada e sem qualquer tipo de cabimento no âmbito das garantias de cobertura da apólice” no artigo 51.º da contestação.

Esta última alegação constitui, em particular, uma defesa por impugnação na modalidade da oposição de direito[11], visto que a ré, mesmo aceitando que os danos ocorreram, rejeita claramente que eles estejam cobertos pelas garantias do contrato de  seguro e sejam, portanto, por si indemnizáveis.

A ré apresentou, por outro lado, os elementos da contestação que a lei exige para esta defesa por impugnação, designadamente expondo as razões de facto e de direito por que se opunha à pretensão da autora[12] [cfr. al. b) do artigo 572.º do CPC].

Finalmente, não se vê que a junção do respeitante às condições do contrato de seguro documento ponha em causa o disposto no artigo 573.º, n.º 1, do CPC. O princípio da concentração da defesa na contestação e o seu corolário, a preclusão, impedem apenas que o réu invoque meios de defesa que não tenham sido invocados na contestação[13]. Ora, como se demonstrou, a ré usou, na sua defesa, o argumento do alcance ou da cobertura do contrato de seguro para justificar a delimitação dos danos que considerava ressarcíveis, pelo que não se encontra razão para considerar que a junção de tal documento, admitida nos termos do artigos 423.º e s. do CPC e sem a oposição da autora, constitui a apresentação de um meio de defesa novo e contraria, de alguma forma, o disposto na lei.

Em síntese, ao confirmar a decisão do Tribunal de 1.ª instância, concluindo pela exclusão da cobertura do contrato de seguro dos danos referidos nos pontos de facto 17 a 19, o Tribunal da Relação do Porto não incorreu em violação dos princípios e deveres gerais nem das regras aplicáveis à contestação consagrados nas normas dos artigos 5.º, n.º 1, 7.º, 8.º, 571.º, n.º 2, 572.º, als. b) e c), 573.º, n.º 1, do CPC.

Deixa-se uma última nota quanto ao artigo 579.º do CPC, incluído na enumeração final das normas alegadamente violadas pelo Tribunal recorrido (conclusão 16 das alegações). Dispõe este sobre o conhecimento das excepções peremptórias, determinando que “[o] tribunal conhece oficiosamente das exceções perentórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado”. Apesar de incluído na enumeração final das normas alegadamente violadas, ele é apenas específica ou individualizadamente invocado a propósito da actividade jurisdicional em 1.ª instância (conclusão 13 das alegações), como argumento no sentido da nulidade da sentença por excesso de pronúncia do respectivo Tribunal (conclusões 14 e 15 das alegações). Não podendo, este Tribunal, como é sabido, pronunciar-se sobre a nulidade da sentença, pôs-se ainda a hipótese de a norma ser invocada como argumento favorável à nulidade do Acórdão[14]. Mas questão já foi objecto de apreciação, tendo ficado demonstrado que não houve violação de qualquer norma.



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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.



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Custas pela recorrente.



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LISBOA, 5 de Dezembro de 2019


Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] Artigo 7.º da petição inicial, que aqui se reproduz: “Os custos suportados com a reconstrução da rede elétrica, da construção de um novo PT e aquisição de um transformador de 500kva e com o aluguer do gerador e fornecimento de gasóleo, no valor total de 88.331,79 euros encontram-se totalmente descriminados nas faturas que se juntam sob os documentos 1 a 28” (nota também constante do relatório do Tribunal recorrido).
[2] Artigo 6.º da petição inicial, que igualmente aqui se reproduz: “Para o efeito, teve de suportar os custos do aluguer de um gerador e do preço do combustível com que aquele gerador foi abastecido até à reconstrução e colocação em funcionamento do novo PT” (nota também constante do relatório do Tribunal recorrido).
[3] Que não se reproduzem aqui, não só por serem irrelevantes para a delimitação do objecto do recurso, mas, sobretudo, por se alongarem injustificadamente com a transcrição da factualidade provada.
[4] Este facto foi aditado à factualidade provada pelo Tribunal da Relação do Porto, na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto por parte da autora.
[5] Deixa-se, aliás, um esclarecimento a propósito desta alegação de nulidade da sentença por excesso de pronúncia, que vem reiterada no presente recurso de revista (cfr. conclusão 15 das alegações). A questão não pode ser conhecida aqui. Admitindo a sentença recurso ordinário, esta nulidade [cfr. artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC] só pode ser arguida no recurso interposto desta decisão [cfr. artigo 615.º, n.º 4, do CPC]. Foi isto, aliás, o que foi feito (cfr. conclusão 18 das alegações de apelação), tendo a questão ficado definitivamente decidida (cfr. pp. 19 a 23 do Acórdão).
[6] Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II – Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 1983, p. 309 (sublinhados do autor).
[7] Cfr. Ferrer Correia, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2001 (4.ª reimpressão), pp. 188 e s. e pp 196 e s. , Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II – Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, cit., pp. 311 e s., e Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2005 (4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), pp. 444 e s. Para mais referências aos autores portugueses que se pronunciaram sobre a matéria cfr. Rui Pinto Duarte, A interpretação dos contratos, Coimbra, Almedina, 2016, p. 84 (nota 51).
[8] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral – Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2014 (4.ª edição), p. 718. Estes elementos têm sido expressamente considerados pela jurisprudência portuguesa. Cfr., por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5.07.2012, Proc. 1028/09.OTVLSB.L1.S1, e de 16.04.2013, Proc. 2449/08.1TBFAF.G1.S1
[9] Sobre a tendencial coordenação dos articulados processuais (petição inicial, contestação, réplica ou outro articulado), na sua função primordial (propor uma acção, contestá-la, reconvir, responder a uma excepção, etc.), à categoria de actos postulativos (actos através quais é solicitada uma decisão do tribunal e cujos efeitos só se produzem mediante essa decisão) e a relevância da norma do artigo 236.º do CC como via para identificar um sentido normal da declaração cfr. Paula Costa e Silva, Acto e Processo. O Dogma da Irrelevância da Vontade na Interpretação e nos Vícios do Acto Postulativo, Coimbra, Coimbra Editora, 2003. Veja-se ainda o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21.04.2005, Proc. 05B942 (disponível em http:www.dgsi.pt), onde se pode ler que “[à] interpretação da petição inicial, porque ela se traduz em declarações escritas dirigidas ao tribunal, é aplicável o disposto nos artigos 236, nº 1 e 238, nº 1, do Código Civil”.
[10]A defesa por impugnação é uma defesa frontal ou direta. Tanto consiste em contrariar, refutar ou contradizer os factos alegados pelo autor como afirmar que tais factos têm um significado jurídico diferente do pretendido pelo demandante (…). Na defesa por exceção (que pode ser deduzida em termos subsidiários), o réu aceita a narração fáctica apresentada pelo autor, alegando, porém, novos factos suscetíveis de obstar á apreciação do mérito da causa (gerando a absolvição da instância ou a remessa do processo para outro tribunal) ou de impedir, modificar ou extinguir o direito que o autor pretende fazer valer ao intentar a ação (assim gerando a improcedência total ou parcial daquela. Trata-se de uma defesa lateral ou indireta, pois o réu não discute os factos alegados pelo autor nem o seu efeito jurídico, aportando ao processo outros factos a partir dos quais pretende obter certo resultado”. Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado – vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, Almedina, 2018, p. 640 (sublinhados nossos).
[11]Esta oposição, típica da impugnação, pode ser de facto ou de direito. Na oposição de facto, o réu não aceita (total ou parcialmente) os factos articulados pelo autor (…), Na oposição de direito, o que está em causa é a qualificação ou significação jurídica que o autor atribui aos factos narrados. Neste caso, aceitando embora os factos alegados na petição, o réu sustenta que deles não emergem os efeitos jurídicos pretendidos (o que equivale a afirmar a inconcludência da pretensão)”. Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado – vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, cit., p. 640.
[12] Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado – vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, cit., p. 641.
[13] Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado – vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, cit., p. 645.
[14] Embora sem grande convicção, visto que a reprodução, nesta parte, das conclusões das alegações de apelação foi uma opção da recorrente.