Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
529/11.5TBPSR.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
SEGURO AUTOMÓVEL
CONDUTOR
DANO
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
Data do Acordão: 12/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA REVISTA À RÉ NEGADA REVISTA À AUTORA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / RESPONSABILIDADE PELO RISCO / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO ESTRADAL - TRÂNSITO DE VEÍCULOS / MANOBRAS EM ESPECIAL / TRÂNSITO EM CERTAS VIAS OU TROÇOS / COMPORTAMENTO EM CASO DE AVARIA OU ACIDENTE / RESPONSABILIDADE PELAS INFRACÇÕES.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., pp. 732 e 734.
- Diogo Leite Campos, Seguro da Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação (da Natureza Jurídica), Almedina, 1971, p. 66.
- Maria Manuela Sousa Chichorro, O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, pp. 143-144.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. I, 4-.ª ed., pp. 470/476.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, Nº 1, 483.º, 487.º, N.º1, 503.º, N.º1, 799.º
CÓDIGO DA ESTRADA: - ARTIGOS 48.º A 50.º ,68.º, N.º1, 72.º, N.º1, 87.º, NºS 1, 3 E 5, 135.º, Nº 3, AL. A).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 608.º, N.º2.
D.L. N.º 291/2007, DE 21-08: - ARTIGOS 4.º, N.º 1, 11.º, Nº 1, AL. A), 14.º, N.º1, 15.º, N.º 1,
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 22/04/08, PROC. N.º 08B742, 08/01/09, PROC. N.º 08B3722, E DE 14/02/13, PROC. N.º 705/08 TBPFR.P1.S1, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 10/01/12, PROC. N.º 189/04.0TBMAI.P1.S1,
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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE 5/06/14, PROC. Nº 108/08.4TBMCN.P1.S1-A.
Sumário :
I - O contrato de seguro obrigatório automóvel, no actual quadro normativo, não afasta, pelo contrário, exige a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil.

II - “Condutor” do veículo automóvel é não só quem está ao volante no exercício da pilotagem do veículo, mas também aquele que esteve nesse desempenho até à sua imobilização (paragem ou estacionamento).

III - Não sendo possível imputar o acidente a conduta de outrem nem a culpa do condutor falecido, nem mesmo a caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo, e não existindo dúvidas de que este tinha a direcção efectiva do veículo, por si conduzido até ao local, e o utiliza no seu interesse, forçosamente nos teremos de situar no âmbito da responsabilidade civil pelo risco, uma vez que ele era simultaneamente proprietário (art. 503.º, n.º 1), sendo indubitável que se reúnem na mesma pessoa as qualidades de lesado e de responsável pela lesão.

IV - O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é um seguro de responsabilidade civil que cobre só os danos causados a terceiros pela conduta do sujeito responsável, e não os sofridos por este, designadamente, os corporais e os que deles derivem. Esse responsável não pode ser considerado, simultaneamente, terceiro e beneficiário para efeito de ressarcimento de danos próprios.

V - Deste modo, estão excluídos da garantia do seguro os danos corporais e materiais sofridos pela vítima, simultaneamente condutor, proprietário e tomador do seguro do veículo e, consequentemente, as autoras, suas sucessoras, não têm direito a qualquer correspondente indemnização por via da transmissão mortis causa.

VI - No caso de morte do condutor do veículo em acidente de viação, sendo-lhe imputada responsabilidade pelo risco, de acordo com o art. 14.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21-08, estão excluídos da garantia do seguro todos os prejuízos decorrentes das lesões corporais por ele sofridas. Significa tal que estão abrangidos pelo contrato de seguro os danos indirectos sofridos pelo cônjuge, ascendentes e descendentes, como consequência das lesões corporais do condutor quando este não seja o responsável pelo acidente, isto é, quando este seja imputável a culpa de outrem.
Decisão Texto Integral:

             Recurso de Revista nº 529/11.5TBPSR.S1[1]



    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


          I - RELATÓRIO      

AA, por si e em representação da sua filha menor BB, e CC, residentes Rua ..., nº …, …, …, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra “DD – …”, com sede na Rua …, nº …, em Lisboa, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhes as seguintes quantias: à autora AA 130.181,52€, à BB 99.392,42€, e à CC 51.383,02€.

Para tanto, alegam, em síntese, diversos danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes da morte de EE, marido da 1ª autora e pai das restantes autoras, que ocorreu em virtude de um acidente que teve lugar a 22/09/10, no monte da …, ….

Referem que o EE conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, pick up, com a matricula -IV-, M..., estacionou-o numa barreira, saiu do mesmo e avançou a pé a apanhar madeira, quando, sem que nada o fizesse prever, o veículo resvalou na sua direcção apanhando-o e entalando-o entre o para-choques frontal e o solo, esmagando-lhe a perna direita.

Encontrado por familiares que foram à sua procura, foi levado para o Hospital de Abrantes e depois transferido para o Hospital de S. José, em Lisboa, onde foi reanimado, submetido a transfusões de sangue, a várias intervenções cirúrgicas, e amputação do membro inferior direito, vindo a falecer em 3/11/2010 devido a infecção generalizada.

O EE que utilizava o ligeiro de mercadorias transferira a responsabilidade civil emergente de acidente de viação através de contrato de seguro para a ré, que declina responsabilidades com o fundamento de que o falecido era também o tomador do seguro.

Contestou a ré alegando, em resumo, que a vitima era tomador do seguro, proprietário e condutor do veículo, nunca podendo ser considerado terceiro em relação ao contrato de seguro, e o seguro em apreço ter visado transferir para a ré a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros com a circulação do veículo e não cobrir os próprios danos do segurado.

Pronunciou-se ainda pelo excesso dos valores peticionados, concluindo pela improcedência da acção.

Responderam as autoras a matéria que entenderam de excepção, afirmando que o acidente não se deveu a culpa da vitima, mas à natureza do solo, tratar-se de um sinistro causado pelo risco de circulação de veículos, a vitima não era condutor mas um peão, e o seguro de responsabilidade civil obrigatório garante também a responsabilidade pelos risco próprios do veículo, mesmo que sem condutor.

Concluíram como na petição inicial.

Elaborou-se despacho saneador e procedeu-se à condensação dos autos, sem reclamação.

O Instituto de Solidariedade e Segurança Social, IP (ISSS, IP) deduziu contra a ré pedido de reembolso de prestações no valor de 13.946,40€, a que ela se opôs dando por reproduzida a sua anterior contestação e alegando nada dever pagar.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença que assim decidiu:

Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente, porque provada apenas em parte, e, em consequência, decido condenar a R., DD Sucursal em Portugal, a pagar às AA. os seguintes montantes indemnizatórios:

1. Pelos danos não patrominiais e patrimonais sofridos pela vitima € 61.029,60 (sessenta e um mil e vinte e nove euros e sessenta centimos)

2. Pelos danos não patrimoniais e patrimoniais sofridos pela A. AA FF, o valor global de 25.082,09 (sessenta e cinco mil e oitenta e dois euros e nove cêntimos)

3. Pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos peça A. BB e 18.000 (dezoito mil euros)

4. Pelo danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela A. FF € 5.000 (cinco mil euros)

Absolvendo a R. do demais peticionado”.

Inconformadas, recorreram autoras e ré, tendo esta, porque limitado à matéria de direito, requerido que nos termos do art. 678.º do CPC o recurso subisse per saltum a este Supremo Tribunal de Justiça, ao que as autoras deram a sua anuência nas contra-alegações que juntaram.

Nas alegações que apresentaram as recorrentes formulam as seguintes conclusões:

As autoras

A- Vem o presente recurso interposto da douta sentença, apenas e só no que toca aos valores em que condenou a R. no pagamento, e designadamente  dos seguintes montantes indemnizatórios ( e uma vez que no demais é absolutamente irrepreensível ):

1- Pelos danos não patrimoniais e patrimoniais sofridos pela vítima € 61.029,60;

2 – Pelos danos não patrimoniais sofridos pela A. AA FF, mulher, do valor de € 5.000

3 – Pelos danos não patrimoniais sofridos pela A. BB, filha menor, valorados em € 8.000

4 – Pelos danos não patrimoniais sofridos pela A., atribuídos pelo valor de €5.000 à filha maior FF.

B- Quanto a indemnização pela perda do direito à vida, atenta a idade da vítima, 51 anos, pessoa saudável e activa, entendem as AA. que o valor a fixar, conforme jurisprudência sobre a matéria, não deve ser inferior a 60.000 Euros ( sessenta Mil Euros ).

C - Quanto aos danos morais sofridos pela própria vítima, provado que ficou encarcerada durante parte de um dia, que ficou 42 dias internado, que teve várias intervenções cirúrgicas, incluindo uma amputação, primeiro, pelo terço da perna, e depois, outra pela raiz da coxa, e tendo um quadro de extrema violência física e psicológica, até acabar por falecer, e de acordo com abundantes referencias na doutrina e jurisprudência, seria ajustado o valor de 25.000 ( Vinte e Cinco Mil )Euros.

D) Relativamente aos danos patrimoniais da própria vítima, decorrentes do período de incapacidade para o trabalho enquanto esteve internada, 42 dias, existe mero lapso, de que se requer correcção, pois o valor arbitrado foram 1060,27 €, Mil e Sessenta Euros e Vinte e Sete Cêntimos, e no final da decisão foram apenas considerados 1.029,60 €(Diferença de 61.029,60 – 10.000 – 50.000).

E) Por danos morais da mulher e filhas da vítima, afigura-se adequado fixar a indemnização por danos não patrimoniais em 20.000 (Vinte Mil) Euros para mulher AA e filha maior FF, para cada uma, 30.000 (Trinta Mil) Euros para a filha menor de 11 anos, privada de pai numa altura em que muito dele precisaria.

F) Quanto a danos patrimoniais futuros, deve ser atribuída à mulher A. AA e à filha menor A. BB um valor para ambas de, respectivamente, € 79.746,00 para AA FF e € 39.039,00 para BB FF, a titulo de lucros cessantes, e a título de perda de rendimento – deduzindo naturalmente os valores pagos entretanto pela segurança social, e desobrigando esta de tal obrigação, até aos montantes arbitrados, nos termos legais.

Por todo o exposto, a douta sentença, decidindo de forma diversa, violou, por erro de interpretação e aplicação, entre outros, o disposto nos artigos 494º, 496º nº 1, 2 e 3, e ainda os arts.º 562º, 564º nº 2 e 566º do Código Civil.

A ré DD

1 – O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não prescinde da verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil.

2 – Conforme foi decidido no recente Acórdão do STJ nº 12/2014 de 8.7.2014:

“A inquestionável função social e económica do contrato de seguro obrigatório automóvel, no actual quadro normativo, não afasta, pelo contrário exige, a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil, todos e não apenas o dano”.

Contudo,

3 – Na douta decisão recorrida, apesar da ausência de pressupostos da responsabilidade civil, condenou-se a Recorrente a indemnizar os danos corporais que o agente (condutor do veículo seguro/tomador do seguro e proprietário do veículo) causou a si próprio!...

Não pode ser!...

4 – Sem a verificação de um facto (ilícito ou gerador de responsabilidade pelo risco) praticado por pessoa diversa do lesado, não pode haver obrigação de indemnizar.

5 – São completamente diferentes as situações em que o tomador do seguro/proprietário do veículo sofreu danos corporais quando seguia como passageiro do veículo (nesse caso, o facto ilícito não lhe é imputável) da situação dos autos em que o facto ilícito (ou gerador da responsabilidade pelo risco) é imputável à própria vítima.

Logo,

6 – A jurisprudência citada pelo tribunal “a quo” (longe de ser pacífica) não tem aplicação ao caso dos autos.

7 – A interpretação do nº1 do artigo 14º do Dec-Lei 291/2007 não pode ser feita isoladamente, mas dentro de todo o quadro normativo pertinente.

8 – Da interpretação conjugada dos artigos 4º, 11º, 14º e 15 do referido Dec-Lei, resulta claro que o regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel remete para as regras gerais da obrigação de indemnizar estabelecidas na lei civil.

Consequentemente,

9 – Citando o referido Acórdão do STJ nº 12/2014:

“a questão da obrigação de indemnizar pela seguradora tem de ser analisada no quadro dos pressupostos da responsabilidade civil para o qual as normas citadas expressamente remetem”

10 – Se o marido e progenitor causou a sua própria morte (por culpa sua ou como responsável pelo risco de circulação do veículo) não existe um terceiro a quem imputar este resultado (morte).

Ora

11 – Não havendo um terceiro responsável pela morte do condutor, é manifesto que os danos sofridos pelos filhos e viúva em consequência desta morte não são indemnizáveis.

Na verdade,

12 – No caso dos autos, o condutor, marido e pai das A.A., porque causador e responsável pela produção do acidente, não foi lesado de conduta ilícita de outrém – v. artigo 483º do CC.

13 – Como bem se vincou em douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa:

“O contrato de seguro tem uma característica necessária de alteridade, expressa nomeadamente pelo noção de terceiros, que implica a dissociação clara entre lesado e responsável”.

Deste modo,

14 – Não é fundada a posição sustentada na decisão recorrida que alicerça a obrigação de indemnizar da seguradora no citado artigo 14º, desconsiderando o quadro normativo respeitante aos pressupostos da responsabilidade civil.

15 – O contrato de seguro obrigatório automóvel é um seguro de responsabilidade civil (obrigação de indemnizar terceiros) e não um seguro de danos próprios.

16 –“ No seguro de responsabilidade civil, a seguradora cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros” – v. artigo 137º do Dec-Lei 72/2008 de 16/4, que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro”.

…”Indemnizar terceiros” e não o próprio segurado responsável pelo acidente.

17 – Antes apreciar a questão de saber se se verifica ou não a causa de exclusão do seguro (prevista no artigo 14º-1 do citado DL 211/2007) cumpre averiguar se se encontram presentes todos os pressupostos da responsabilidade civil.

18 – Compulsados os factos provados, forçoso será concluir que não se encontram presentes todos os pressupostos da responsabilidade civil.

19 – Para que houvesse obrigação de indemnizar, necessário era que se encontrasse provada a prática de um facto (ilícito ou gerador de responsabilidade pelo risco) praticado por pessoa diversa do lesado – v. artigos 483º e 503º-1 do C.C.

20 – Dos factos provados não resulta que o marido e pai da A.A. tivesse sido vítima de conduta ilícita de outrém.

Sendo certo que

21 – Competia às A.A. o ónus da alegação e prova dos factos constitutivos do direito de indemnização que alegaram – v. artigo 342º-1 do Código Civil.

22 – Em face da referida falta de pressupostos da responsabilidade civil, deve julgar-se a acção improcedente.

Sem prescindir:

23 – O tribunal “a quo” sustentou incorrectamente que o marido e pai das A.A. não pode ser entendido como o condutor do veículo seguro responsável pelo acidente.

Com efeito,

24 - Como se sabe, a expressão “condutor do veículo seguro responsável pelo acidente” não se restringe ao período de tempo em que esse condutor está aos comandos do volante do veículo.

25 - Se, por exemplo, um condutor abandonar um veículo (mal estacionado em local perigoso ou sem accionar o respectivo travão de mão), continua a ser responsável pelo risco de circulação desse veículo e pelos danos que eventualmente o veículo cause a terceiros, mesmo que este não se encontre em circulação – v. artigo 503º-1 do CC.

26 - Por força dos factos provados, dúvidas não existem de que o marido e pai das A.A. tinha a direcção efectiva do veículo por si conduzido e era responsável pelos danos provenientes dos riscos próprios desse veículo.

De resto,

26 – Em face dos factos provados, presume-se (v. artigos 349º e 351 do CC) que o falecido estacionou o seu veículo em local perigoso (“barreira”) e não tomou as precauções necessárias para evitar que o veículo resvalasse escorregando na sua direcção – v. F.P.S. 8 e 10.

28 – Donde se confirma que o marido e pai das A.A era o condutor do veículo seguro responsável pelo acidente dos autos e que sempre se verificaria a exclusão da garantia do seguro prevista no citado artigo 14º.

Pelo exposto,

29 – Ainda que se tivessem verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil automóvel – mas não se verificaram, como vimos –, estariam excluídos da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo referido condutor do veículo seguro responsável pelo acidente – v. artigo 14º-1 do citado DL 291/2007.

30 – A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 4º, 11º, 14º e 15º do Dec-Lei 291/2007 de 21/8, artº 137º do Dec-Lei nº 72/2008 de 16/4 e artigos 342º-1, 483º, 495º, 496º, 503º-1 do Código Civil.

Dado que

31 – As referidas normas deveriam ter sido aplicadas e interpretadas no sentido de se concluir pela inexistência da obrigação de indemnizar por parte da seguradora.

32 – Deve, por isso, alterar-se a douta sentença recorrida e absolver-se a Recorrente dos pedidos.

As autoras contra-alegaram, ao passo que a ré prescindiu  de tal.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



O objecto dos recursos acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, salvo as questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nº 1 do Novo Código de Processo Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 41/2013, de 26/06, aqui aplicável[2] – por diante NCPC.

São as seguintes as questões suscitadas que importa apreciar e decidir, de acordo com a sua sequência lógica:

a) se não há obrigação de indemnizar por parte da ré seguradora;

b) montantes indemnizatórios a satisfazer pela ré seguradora, assim sub-divididos:

- por danos não patrimoniais e patrimoniais sofridos pela vítima;

- por danos patrimoniais futuros;

- por danos não patrimoniais sofridos pelas autoras.



           II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Da instância vem tida por assente a seguinte matéria de facto:

1 - No dia 22 de Setembro de 2010, EE saiu de casa, para limpar alguns pinheiros e carregar lenha e pinhas, destinadas unicamente a seu uso pessoal, conduzindo o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula -IV-, M…

2 - EE faleceu em 3 de Novembro de 2010.

3 - EE nasceu em 10.05.1959.

4 - AA FF nasceu em 16.04.1965.

5 - BB nasceu em 12.01.1999.

6 - FF nasceu em 08.05.1986.

7 - EE, em 12.04.2010, transferiu a responsabilidade civil por danos resultantes da circulação do veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula -IV-, para a Ré, pelo contrato de seguro titulado pela apólice n.º ….

8 - Após o descrito em 1, EE dirigiu-se para o ... - ... e estacionou, o veículo de matrícula -IV-, numa barreira aí existente.

9 - Nesse momento, EE saiu da viatura e avançou, a pé.

10 - Quando o veículo resvalou, escorregando na sua direcção.

11 - O EE foi apanhado pela frente da viatura, ficando encarcerado entre o pára-choques frontal e o solo.

12 - EE ficou preso debaixo da viatura até às 18:30 horas.

13 - O que lhe causou dor, sofrimento e o esmagamento da perna direita.

14 - O EE foi assistido no local pela GG, e daí levado para o Hospital de Abrantes, onde foi submetido a fasciotomia da coxa e fasciotomia interna e externa da perna, em 22/9/2010.

15 - Foi transferido, em 23/9/2010, em ambulância, com hemorragias, para o Hospital de S. José, em Lisboa, onde foi reanimado, e sujeito a transfusões de sangue, revelando quadro politraumatizado, com choque séptico, insuficiência renal, rabdomiólise, e choque hipovolémico.

16 - Em 28/9/2010 e 6/10/2010, foi operado, por cirurgia plástica, para desbridamento de massas musculares necrosadas, e foi amputado pelo 1/3 distal da coxa direita, em 09/10/2010, entubado e ventilado, e sujeito a novas transfusões.

17 - A 19/10/2010 foi feita desarticulação do fémur direito pela coxofemural, tendo feito paragem cardíaca e sujeito a manobras de reanimação.

18 - A 20/10/2010 foi, novamente, ao bloco operatório por hemorragia de difícil controlo, e operado, em 26/10, 28/10, 30/10 e 1/11, para limpeza cirúrgica e desbridamento de tecidos necrosados.

19 - A 01/11/2010, veio, ainda, a ser-lhe amputado o membro inferior direito pela raíz da coxa.

20 - Vindo a falecer devido a infecção generalizada, que sobreveio como complicação das graves lesões traumáticas do membro inferior direito.

21 - EE era pessoa saudável e activa.

22 - A falta do pai e marido causou às autoras, e ainda lhes causa, grande desgosto e solidão.

23 - As AA. eram muito amigas da vítima, viviam juntos.

24 - O EE contribuía, anualmente, para o agregado familiar, com cerca de € 9.000, que auferia como agricultor por conta própria.

25 - Com base no falecimento, em 2010/11/03, do beneficiário nº …, EE, em consequência do acidente a que dizem respeito os autos, foram requeridas no ISSS, IP/ CNP, pela viúva do beneficiário falecido, AA, as respectivas prestações por morte, para si e em representação da filha menor de ambos, BB, as quais foram deferidas.

26 - Em consequência o ISS/CNP pagou à viúva AA e à filha menor do beneficiário BB, a titulo de subsidio por morte e pensões de sobrevivência no período de Dezembro/2010 a Novembro/2013, o montante de 13.946,40.

27 - O ISSS, IP/CNP continuará a pagar à viúva e à filha do beneficiário falecido a pensão de sobrevivência, enquanto estes se encontrarem nas condições legais, com inclusão de um 13º mês de pensão em Dezembro e um 14º mês em Julho de cada ano, pensão essa cujo valor mensal actual é de € 181,94 para a viúva e de € 60,65 para a filha menor do beneficiário.

28 - A primeira A. custeou € 82,09 em roupa de luto.

Acrescenta-se, nos termos dos arts.607.º, nº 4, 2ª parte, 663.º, nº 2 e 679.º do NCPC, por se revelar estarem as partes de acordo quanto a tal, que:

29 - O EE era o proprietário do veículo com a matrícula -IV-, M…[3].

DE DIREITO

A) Se não há obrigação de indemnizar por parte da ré seguradora

A recorrente seguradora inicia o seu insurgimento alegando, em síntese, resultar claro que o regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel remete para as regras gerais da obrigação de indemnizar estabelecidas na lei civil, daí que sem a verificação de um facto (ilícito ou gerador de responsabilidade pelo risco) praticado por pessoa diversa do lesado, não pode haver obrigação de indemnizar.

Na situação dos autos o facto ilícito (ou gerador da responsabilidade pelo risco) é imputável à própria vítima, e não havendo um terceiro responsável pela sua morte é manifesto que os danos sofridos pelas filhas e viúva não são indemnizáveis. Deste modo, não é fundada a posição sustentada na decisão recorrida que alicerça a obrigação de indemnizar da seguradora no art. 14.º do DL nº 291/2007, desconsiderando o quadro normativo respeitante aos pressupostos da responsabilidade civil.

Vejamos.

Como vem sendo decidido pacificamente neste Supremo Tribunal, o contrato de seguro obrigatório automóvel, no actual quadro normativo, não afasta, pelo contrário exige, a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil. É para este regime da responsabilidade civil que remetem as disposições dos artigos 4.º, n.º 1, 11.º, nº 1 e 15.º, n.º 1, do DL nº 291/2007, de 21/08, diploma legal aplicável em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em vigor à data do acidente. Particularmente, dispõe-se naquele artigo 11.º, nº 1, alínea a) que “O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange: a) Relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil ”, e no artigo 15.º, nº 1 que “O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo[4].

Sendo assim, o direito aplicável em matéria de responsabilidade civil por acidentes de viação tem o seu núcleo concentrado no Código Civil (a que pertencerão os normativos doravante citados sem menção expressa de origem). No domínio da responsabilidade aquiliana, em matéria de acidentes de viação, releva o preceito regra art. 483.º[5], no qual se encontram fixados os pressupostos da responsabilidade civil subjectiva, e onde, diversamente do que ocorre na responsabilidade contratual (n.º 1 do art. 799.º), não se presume a culpa a menos que a lei, expressamente, o declare. É ao lesado que, como regra, incumbe a prova da culpa do autor da lesão (art. 342.º, n.º 1 e n.º 1 do artigo 487.º). Na esfera da responsabilidade objectiva ou pelo risco (art. 503.º, nº 1[6]), sem prejuízo da culpa do lesado, a mesma só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (art. 505.º).

Como tal, reconhecendo assistir razão à recorrente seguradora, antes de se apreciar a questão de saber se se verifica, ou não, alguma das causas de exclusão da garantia do seguro previstas no artigo 14.º, nº 1 do citado DL nº 291/2007, cumpre averiguar se se encontram presentes todos os pressupostos da responsabilidade civil.

Deste modo, conferindo atenção ao circunstancialismo concreto envolvente do acidente mortal, temos por provado tão só que:

- no dia 22/09/2010, a vítima EE saiu de casa, para limpar alguns pinheiros e carregar lenha e pinhas, destinadas unicamente a seu uso pessoal, conduzindo o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula -IV-, M…, de que era proprietário;

- dirigiu-se para o ... - ... e estacionou o veículo numa barreira aí existente;

- o EE saiu da viatura e avançou, a pé, quando o veículo resvalou, escorregando na sua direcção;

- o EE foi apanhado pela frente da viatura, ficando encarcerado entre o pára-choques frontal e o solo, e preso debaixo da viatura até às 18:30 horas;

- o EE FF, em 12/04/2010, transferira a responsabilidade civil por danos resultantes da circulação do veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula -IV-, para a ré, pelo contrato de seguro titulado pela apólice n.º … (nºs 1, 7 a 12 e 29 dos factos provados).

Tal matéria de facto apurada significa, pura e simplesmente, e com exuberância, que não se encontram presentes todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

Com efeito, para que houvesse obrigação de indemnizar neste âmbito seria necessário, para além de outros pressupostos, que se encontrasse provada a prática de um facto ilícito praticado por pessoa diversa do lesado (cfr. art. 483.º, nº 1)[7]. É inquestionável não resultar dos factos provados que o marido e pai das autoras tenha sido vítima da conduta de outrem, e só havendo um “terceiro” que se houvesse constituído na obrigação de o indemnizar é que os danos decorrentes sofridos pela viúva e filhas poderiam ser compensáveis.

Todavia, não foi este o trilho seguido na decisão recorrida. O julgador alicerçou a obrigação de indemnizar da seguradora no art. 14.º, nº 1 do DL nº 291/2007, aparentemente desconsiderando boa parte do quadro normativo respeitante aos pressupostos da responsabilidade civil.

Com efeito, partindo da premissa, correcta, de que, nos termos do art. 14.º, nº 1 do DL nº 291/2007, o tomador do seguro e proprietário da viatura pode ser titular de direito de indemnização quando se tratar de lesões corporais e não for condutor do veículo, considerou, em face das circunstâncias concretas do caso e do muito pouco apurado[8], que o falecido EE não podia ser entendido como condutor da viatura, não sendo como tal excluída a garantia do seguro obrigatório quanto aos danos corporais.

Reforçou esse juízo, com a consideração de que “o seguro obrigatório responde também pelos riscos do veículo ainda que sem condutor”, e ser pressuposto essencial da obrigação de indemnizar a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano, pressuposto que é patente nos autos. A ré seguradora deveria, pois, responder por tais danos.

A recorrente seguradora discorda alegando que a expressão “condutor do veículo seguro responsável pelo acidente” não se restringe ao período de tempo em que esse condutor está aos comandos do volante do veículo.

Não podemos acompanhar o entendimento perfilhado na sentença recorrida.

As autoras alicerçaram o seu peticionado na desqualificação da vítima como “condutor do veículo”, no que encontraram eco na decisão em causa. Contudo, pelas razões que adiante se enunciarão, o nó górdio da questão em análise não reside nesse elemento, o que ainda assim não nos dispensa que a esse título teçamos as considerações que se seguem.

 O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é um seguro de responsabilidade e não um seguro de danos.

A cobertura do seguro obrigatório destina-se a garantir a responsabilidade daquele que possa ser civilmente responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais ou materiais causados a terceiros por veículos, nos termos do art. 4.º, nº 1 do DL nº 291/2007.

Esta, a regra geral que, no entanto, comporta exclusões, insertas no art. 14.º do mesmo diploma, de entre as quais, no que ora interessa, como consta no seu nº 1, “Excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles”.

Este conceito de “condutor” do veículo não tem um conteúdo restrito ao exercício da pilotagem ao volante do veículo, como preconiza a decisão impugnada. “Condutor” é não só quem está ao volante no exercício da direcção do veículo, mas também aquele que esteve nesse desempenho até à sua imobilização (paragem ou estacionamento).

Se o conceito fosse tão restrito quanto se entendeu na sentença proferida, com a concordância das recorrentes/autoras, então o condutor do veículo perderia essa condição sempre que saísse para o abastecer, substituir uma roda, levar ou buscar uma criança ou pessoa com dificuldades de locomoção, retirar uma criança do sistema de retenção no banco da retaguarda, examinar algum dos componentes do motor, remover um obstáculo na faixa de rodagem, ou se dirigir pelo exterior ao porta bagagens para tirar um qualquer objecto. Nomeadamente, por exemplo, o condutor de veículo avariado ou acidentado numa auto-estrada, enquanto aguardasse no exterior do mesmo pela chegada dos serviços de ajuda, seria considerado como peão, com a natural consequência de cair em desrespeito ao disposto no art. 72.º, nº 1 do Código da Estrada[9].

É como “condutor” que o legislador o considera e responsabiliza, por exemplo, quando, em caso de imobilização forçada de um veículo em consequência de avaria ou acidente, lhe impõe que promova a sua rápida remoção da via pública, e, enquanto o veículo não for devidamente estacionado ou removido, adopte as medidas necessárias para que os outros se apercebam da sua presença, usando para tanto os dispositivos de sinalização (art. 87.º, nºs 1, 3 e 5 e 68.º, nº 1 do Código da Estrada), e quando efectua uma paragem (ex. para carga ou descarga) ou estacionamento proibidos (arts. 48.º a 50.º do Código da Estrada).

Todas estas situações correntes estão marcadamente conexionadas com a pilotagem do veículo, com a sua circulação, por isso que o seu agente não perde a condição de “condutor” do veículo que detinha até elas ocorrerem. Com isso se harmoniza o art. 135.º, nº 3, al. a) do Código da Estrada ao determinar que a responsabilidade pelas infracções nele previstas e na legislação complementar recai no “Condutor do veículo, relativamente às infrações que respeitem ao exercício da condução”.

Portanto, o conceito de condutor de veículo não é tão restrito, não é aceitável a conceptualização adoptada na decisão recorrida, e defendida pelas recorrentes/autoras, excessivamente “tida à letra”, simplista, e perfunctoriamente valorada. Seguramente o falecido era o condutor do veículo que o vitimou.



Mas, esta condição de condutor nem importa assim tanto à solução a procurar, como aparenta. Isto, porquanto, face aos factos provados, tal como não é possível imputar o evento a conduta de outrem, como antes afirmámos, do mesmo modo não é possível imputá-lo a culpa do falecido EE FF, nem mesmo a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, nunca alegada.

E sendo assim, condutor ou não condutor, não existindo dúvidas de que o marido e pai das autoras tinha a direcção efectiva do veículo, por si conduzido até ao local, e o utilizava no seu interesse (ia limpar alguns pinheiros e carregar lenha e pinhas destinadas a seu uso pessoal), forçosamente nos teremos de situar no âmbito da responsabilidade civil pelo risco, uma vez que ele era simultaneamente proprietário do veículo (art. 503.º, nº 1).

Ou seja, mesmo que se aceitasse a tese de o falecido EE não poder ser considerado condutor do veículo, mas sim peão como pretendem as recorrentes/autoras, sempre seria ele o responsável pelos danos provenientes dos riscos próprios desse veículo. De facto, não se mostra quebrado o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo M… e os danos causados.

Em suma, de uma forma ou de outra, é indubitável que se reúnem na mesma pessoa as qualidades de lesado e de responsável pela lesão.

Perante esta constatação, temos que o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel garante a responsabilidade civil nos termos gerais, mas consagrou algumas excepções no já citado art. 14.º, do DL nº 291/2007. Assim:

 “1 - Excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles”.

2 - Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas:

a) Condutor do veículo responsável pelo acidente;

b) Tomador do seguro

c) (...);

d) Cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c), assim como outros parentes ou afins até ao 3.º grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando com elas coabitem ou vivam a seu cargo;

f) e g) (...)”.

Aqui chegados, é momento de recordar o que dispõe o art. 4.º, nº 1 do DL nº 291/2007. “Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor (...) deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei”.

Pressupõe o normativo a responsabilização por danos causados a “terceiros”, requisito que não se verifica no caso em apreço. “De uma maneira muito geral e modo muito sumário, pode dizer-se que são terceiros em relação a um contrato, todos aqueles que, por si, ou por intermédio de outrem, não participem na sua celebração. Ou seja, todos os que não possam ser qualificados de parte.

E é parte quem concorre para dar vida ao contrato e, simultaneamente, nele tem um interesse próprio em suportar os seus efeitos[10].

Destarte, assim como não há “terceiro” responsável pela morte do EE constituído na obrigação de indemnizar, igualmente não há responsabilização por danos causados a “terceiro”.

Reafirmando o que antes se disse, o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é um seguro de responsabilidade civil que cobre só os danos causados a terceiros pela conduta do sujeito responsável[11], e não os sofridos por este, designadamente os corporais e os que deles derivem. Esse responsável não pode ser considerado simultaneamente terceiro e beneficiário para efeito de ressarcimento de danos próprios.

Deste modo, estão excluídos da garantia do seguro os danos corporais e materiais sofridos pela vítima, simultaneamente condutor, proprietário, e tomador do seguro do veículo, e, consequentemente, as autoras, suas sucessoras, não têm direito a qualquer correspondente indemnização por via da transmissão mortis causa. Como refere Leite de Campos no estudo antes citado, o sucessor, a quem também, num sentido lato, se pode dar o nome de terceiro “substitui-se a outrem (autor, causante, «causam dans»), na titularidade de todas ou de parte das suas relações jurídicas patrimoniais a título derivado.

A aquisição do direito pelo sucessor é acompanhada da extinção subjectiva do direito do anterior titular, havendo entre os dois fenómenos um nexo causal. O sucessor ocupa em relação a esse direito a posição jurídica do autor”.

Ainda, como observa Maria Manuela Sousa Chichorro, “Está subjacente a estas exclusões a ideia de compropriedade e co-responsabilidade traduzida em ambos os casos num interesse directo no seguro, embora este não seja aquele que é primeiramente tutelado pelo contrato, mas apenas de modo mediato. Dado que o referido interesse tem uma natureza patrimonial, não faria sentido que os danos patrimoniais sofridos pelas mencionadas pessoas pudessem ser ressarcidos por um contrato que visa ressarcir os danos de terceiros e não daqueles que, de alguma forma, poderão vir a ter que responder concomitantemente ou subsidiariamente com o condutor[12].

Passando a uma outra vertente da mesma questão, acontece que as autoras também reclamam o ressarcimento de danos próprios de natureza não patrimonial que sofreram com a perda de seu marido e pai, peticionam indemnizações por direitos próprios, inexistentes na titularidade das relações jurídicas não patrimoniais daquele seu familiar, embora originado na consequência dramática que lhe adveio do acidente.

Ora, o ainda recente Acórdão Uniformizador de 5/06/14 já citado, resolvendo um longo diferendo jurisprudencial, veio precisar que “No caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no n.º 2 do art. 496.º do CC não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte “, mas no caso vertente estamos perante responsabilidade pelo risco. Poder-se-ia questionar se a solução seria a mesma, mas os elementos literal e histórico do preceito (nº 1 do citado art. 14.º) arredam qualquer dúvida a esse título.

Esclarece Maria Manuela Sousa Chichorro que no Anteprojecto do Decreto-Lei de Transposição 5ª Directiva sobre o Seguro Automóvel, versão II, fez-se referência ao “responsável subjectivo” para excluir o direito de indemnização, mas essa formulação não vingou. “Assim, o legislador alargou o âmbito pessoal da exclusão ao excluir os danos de terceiros e restringiu o seu âmbito material pelo que a exclusão só opera quando o condutor seja o responsável pelo acidente que esteve na origem dos seus próprios danos, sendo irrelevante se a sua responsabilidade é subjectiva ou objectiva.”[13].

Estão, portanto, excluídos todos os prejuízos decorrentes das lesões corporais sofridas pelo condutor responsável pelo acidente, seja essa responsabilidade subjectiva ou por risco. Significa tal que estão abrangidos pelo contrato de seguro os danos indirectos sofridos pelo cônjuge, ascendentes, e descendentes como consequência das lesões corporais do condutor apenas quando este não seja o responsável pelo acidente.

Concluindo, é de todo insustentável a sentença recorrida. A condenação que nela se decretou quanto à ré não pode ser mantida. Os danos próprios da vítima e os danos indirectos das autoras exigem a obrigação de indemnizar por outrem que não da própria vítima.

Assim, haver-se-á de concluir pela inexistência da obrigação de indemnizar pela ré seguradora, no âmbito do contrato de seguro celebrado e accionado, enquanto seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por tal obrigação de indemnizar accionada não resultar do regime jurídico do seguro obrigatório automóvel previsto no DL nº 291/2007.

Por outro lado, nos termos do artigo 342.º, nº 1, competia às autoras o ónus da alegação e prova dos factos constitutivos do direito de indemnização que alegaram. Não o tendo logrado é manifesto que não existe obrigação de indemnizar.

Destarte, não têm direito a indemnização pelo danos não patrimoniais e patrimoniais da própria vítima, que só por via sucessória lhes podia ser atribuído, assim como dos danos por elas directamente sofridos com a morte do seu marido e pai.

Colhe-se de tudo o que vem dito ser inaceitável a solução assumida na sentença recorrida.

B) Montantes indemnizatórios a satisfazer pela ré seguradora

As recorrentes/autoras interpuseram recurso da sentença apenas e só no que toca aos montantes indemnizatórios em que a ré seguradora foi condenada.

Face à solução encontrada na análise da anterior questão, é óbvio que o conhecimento desta está fatalmente prejudicado (cfr. art. 608.º, nº 2 do NCPC)



Resta sumariar:

I - O contrato de seguro obrigatório automóvel, no actual quadro normativo, não afasta, pelo contrário exige, a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil;

II - “Condutor” de veículo automóvel é não só quem está ao volante no exercício da pilotagem do veículo, mas também aquele que esteve nesse desempenho até à sua imobilização (paragem ou estacionamento);

III - Não sendo possível imputar o acidente a conduta de outrem nem a culpa do condutor falecido, nem mesmo a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, e não existindo dúvidas de que este tinha a direcção efectiva do veículo, por si conduzido até ao local, e o utilizava no seu interesse, forçosamente nos teremos de situar no âmbito da responsabilidade civil pelo risco, uma vez que ele era simultaneamente proprietário do veículo (art. 503.º, nº 1), sendo indubitável que se reúnem na mesma pessoa as qualidades de lesado e de responsável pela lesão;

IV -  O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é um seguro de responsabilidade civil que cobre só os danos causados a terceiros pela conduta do sujeito responsável, e não os sofridos por este, designadamente os corporais e os que deles derivem. Esse responsável não pode ser considerado simultaneamente terceiro e beneficiário para efeito de ressarcimento de danos próprios;

V - Deste modo, estão excluídos da garantia do seguro os danos corporais e materiais sofridos pela vítima, simultaneamente condutor, proprietário, e tomador do seguro do veículo, e, consequentemente, as autoras, suas sucessoras, não têm direito a qualquer correspondente indemnização por via da transmissão mortis causa;

VI – No caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação, sendo-lhe imputada responsabilidade pelo risco, de acordo com o art. 14.º, nº 1 do DL nº 291/2007, estão excluídos da garantia do seguro todos os prejuízos decorrentes das lesões corporais por ele sofridas.

Significa tal que estão abrangidos pelo contrato de seguro os danos indirectos sofridos pelo cônjuge, ascendentes, e descendentes como consequência das lesões corporais do condutor apenas quando este não seja o responsável pelo acidente, isto é, só quando este seja imputável a culpa de outrem.



III-DECISÃO


Pelos motivos expostos, acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça em:

- julgar procedente a revista da ré “DD – Sucursal em Portugal”, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se a mesma ré dos pedidos contra si formulados;

- julgar improcedente a revista das autoras.

Custas pelas recorrentes/autoras, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.

                                               Lisboa, 1/12/15

Gregório Silva Jesus (relator)

Martins de Sousa

Gabriel Catarino

________________
[1] Relator: Gregório Silva Jesus - Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.
[2] Atenta a data de instauração da acção em 1/10/11 e a da prolação da sentença recorrida em 16/04/15.
[3] Facto sempre presente na fundamentação jurídica da sentença recorrida, apesar de não integrar os factos dados por assentes.
[4] Cfr. neste sentido o Ac. Uniformizador de 5/06/14, Proc. nº 108/08.4TBMCN.P1.S1-A, e os Acs. de 22/04/08, Proc. nº 08B742, 08/01/09, Proc. 08B3722, e de 14/02/13, Proc. nº 705/08 TBPFR.P1.S1, no IGFEJ.
[5] Que assim dispõe no seu nº 1: “Aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.
[6] Segundo o qual “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
[7] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., págs. 470/476.
[8] Nela se refere: “Nada mais resultou apurado, designadamente quanto às razões pelo qual a viatura se moveu, nada que vá além da mera conjectura “.
[9] Por exemplo, no Acórdão deste STJ de 10/01/12, Proc. nº 189/04.0TBMAI.P1.S1, numa situação de atropelamento de um dos condutores que saíra do seu veículo, pouco antes interveniente num acidente, escreveu-se: “deve ser considerado, não como um peão, mas sim como mais um dos condutores que interveio no acidente, porquanto não deixou nunca de agir, mesmo quando já no exterior da viatura, como um seu detentor, no sentido visado pelo artº 503º, nº 1, do CC. “.
[10] Diogo Leite Campos, Seguro da Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação (da Natureza Jurídica), Almedina, 1971, pág. 66.
[11] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., pág. 732 e 734.
[12] In O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, pág. 144.
[13] In ob. cit., pág. 143.