Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | GARANTIA BANCÁRIA GARANTIA AUTÓNOMA CADUCIDADE INSOLVÊNCIA AÇÃO DE CONDENAÇÃO INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO INTERPRETAÇÃO LITERAL NEGÓCIO FORMAL ARRESTO EMBARGOS DE EXECUTADO | ||
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Data do Acordão: | 10/19/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I – As garantias bancárias autónomas, constituídas com a finalidade afastar o risco do incumprimento e da insolvência do ordenante, caraterizam-se pelo primado da eficiência e da celeridade no pagamento ao credor beneficiário e só permitem ao Banco recusar o pagamento nos casos expressamente previstos no contrato de garantia. II – As regras constantes dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, relativas à interpretação das declarações negociais, visam auxiliar o intérprete a fixar o sentido juridicamente vinculante das cláusulas do contrato de garantia bancária, dando-se prioridade ao critério da impressão do declaratário e ao elemento literal de interpretação. III – O objetivo do elemento literal de interpretação e da regra interpretativa do artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil é, na verdade, proteger o credor beneficiário da eventual recusa injustificada (não prevista no contrato) do Banco em pagar a garantia e não proteger o Banco, que é aliás quem redige unilateralmente estes contratos, que funcionam para os outros intervenientes como contratos de adesão. IV – É do seguinte teor a cláusula 2.ª do contrato de garantia que define os pressupostos do seu acionamento pelo credor-beneficiário: «A presente garantia é assim emitida com o fim de caucionar a acção declarativa de condenação que a MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., na sequência do procedimento cautelar n.° 596/14.0… acima referido, instaurará contra a SOFISEQ-EMPREEND1MENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., tendo em vista a obtenção de título executivo relativamente às facturas n.° 9, 10, 11, 12, 13 e 14, todas emitidas, em 02/12/2010, pela MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., no âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado em 29/08/2007, cujo cópia será anexa ao presente documento dele fazendo parte integrante para todos os efeitos legais». V – Não constando do texto do contrato a exclusão do risco da insolvência, tal significa que o Banco garante o pagamento das faturas referidas no contrato de garantia mesmo nesta hipótese. Assim, a declaração de insolvência do ordenante não implica a caducidade da garantia bancária validamente constituída em momento anterior a essa declaração. VI – A inutilidade superveniente da lide da ação declarativa de condenação, por insolvência do devedor, não equivale a uma improcedência dessa ação, e, tendo o beneficiário da garantia suscitado, em tempo útil, a reclamação de créditos no processo de insolvência – o único meio processual em que lhe era possível obter o direito de crédito – e obtido o reconhecimento dos mesmos, está preenchido o requisito da cláusula 2. do contrato de garantia para o acionamento da mesma. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. MADEIRA PLUS - SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., embargada identificada nos autos, interpôs recurso de apelação da sentença proferida nos autos de embargos de executado em que é embargante BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., também identificado nos autos, sentença que julgou procedentes os embargos deduzidos por este, por apenso à execução ordinária que Madeira Plus -Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda. lhe moveu. 2. O Tribunal da Relação decidiu pela improcedência do recurso, confirmando, com um voto de vencido, a sentença do tribunal de 1.ª instância. 3. Novamente inconformada, a embargada, Madeira Plus, interpôs recurso de revista no qual formulou as seguintes conclusões: «i. O presente recurso tem como objecto a decisão de mérito do acórdão proferido a 03/12/2020, a qual considerou os embargos deduzidos pela Recorrida procedentes, com voto de vencido. ii. Resulta que, com o devido respeito, o acórdão a quo viola o princípio da tutela efectiva constante no artigo 268.º/4 da CRP, bem como a lei de processo, nomeadamente o artigo 128.º do CIRE, bem como os artigos 368.º/3, 373.º/1, al. d) e n.º 2, e o artigo 548º, todos do CPC. iii. A garantia bancária sub judice foi prestada no decorrer do procedimento cautelar, tendo-o substituído. iv. A causa de pedir do procedimento cautelar foram as facturas 9, 10, 11, 12, 13, cujo valor das mesmas foi o apurado para a prestação da própria garantia, que após prestada, extinguiu o procedimento cautelar e tinha por fim exclusivo o de garantir o pagamento pecuniário uma vez reconhecidas por decisão judicial transitada em julgado. v. Esta garantia foi prestada antes da interposição da acção declarativa, prevendo apenas a garantia que a acção seria interposta, já que, repete-se, uma sentença de condenação transitada em julgado seria necessária. vi. A primeira acção declarativa interposta pela Recorrente foi extinta por inutilidade superveniente da lide, devido à declaração de insolvência da SOFISEQ. – factos provados 3 e 4. vii. Não houve decisão de mérito nesta acção e a Recorrente reclamou os seus créditos no processo de insolvência, os quais foram reconhecidos por sentença proferida a 06/07/2018 – facto provado 8. viii. Entende-se que, por via do artigo 128º/3 do CIRE, a Recorrente teria sempre, perante a insolvência da SOFISEQ, de reclamar os seus créditos no processo de insolvência, pelo que, apenas esta e só esta sentença revela como decisão de mérito e cumpre com o ponto 5 da garantia. ix. Seguindo o processo declarativo do CIRE, os mesmos termos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, que eliminou a diversidade de formas de processo comuns declarativas, passando a haver apenas uma forma única de processo comum de declaração, pelo que, de uma acção declarativa de condenação igualmente se trata a reclamação dos créditos no processo de insolvência. x. Pelo que, o título executivo é válido (validade que não foi posta em questão pelo Banco Recorrido) e não caducou, sendo a interpelação efectuada por carta de 27 de Agosto de 2018 tempestiva e eficaz. xi. Não se verifica a caducidade da garantia, nem por via da insolvência da ordenante, porque a garantia foi validamente prestada em momento anterior, nem por via da al. c) do n.º 1 do artigo 373.º do CPC como entendeu o acórdão recorrido. xii. A inutilidade superveniente da lide não constitui uma improcedência da acção e assim decidir, expressamente violou o princípio fundamental da tutela jurisdicional efectiva, uma vez que, apenas restava à Recorrente, na sequência da insolvência da ordenante, reclamar os seus créditos naquele processo. xiii. Créditos que foram reconhecidos e graduados, sem qualquer impugnação e que se fundamentam, novamente, única e exclusivamente nas facturas que deram origem, quer à providência cautelar, quer à garantia e à acção declarativa de condenação. xiv. A garantia não caduca, considerando que a Recorrente reclamou os seus créditos tempestivamente, nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 373.º do CPC. xv. Por tais motivos, deve a douta decisão recorrida ser revogada, já que, foram violados os artigos 286.º/4 da CRP, o art. 128º/3 do CIRE e os artigos 368.º/3, 373.º/1, al. d) e n.º 2, e o art. 548º, todos do CPC. V. Exas. no entanto farão melhor justiça!» 4. O Banco recorrido apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela manutenção do decidido com os seguintes fundamentos: «1. A execução em causa apresenta, como título executivo, a garantia bancária nº ....74, emitida em 09.12.2014, pelo Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A. 2. A referida garantia teve como ordenante a Sofiseq – Empreendimentos Imobiliários, Lda., e como beneficiária a ora recorrente. 3. E, foi emitida com o fim de caucionar a acção declarativa de condenação que a ora exequente, na sequência do procedimento cautelar nº 596/14.0…, instaurou contra a dita Sofiseq, Lda. – vd. ponto 2 da garantia. 4. Sendo as responsabilidades a garantir todas aquelas que pudessem emergir para a Sofiseq, Lda. da decisão final, transitada em julgado, que viesse a ser proferida na referida acção declarativa de condenação – vd. ponto 5 da garantia. 5. Até ao montante máximo de € 100.000,00 – vd. ponto 4 da garantia. 6. A acção declarativa de condenação a que a garantia se refere correu termos sob o nº 4263/14.6…, no Juízo Central Cível do …, Juiz … – vd. ponto 4 da decisão quanto à matéria de facto. 7. Em tal processo foi, em 31.01.2017, proferida sentença, que julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide – idem. 8. Essa sentença transitou em julgado em 06.03.2017 - idem. 9. Sendo que, a recorrente viu posteriormente, por decisão de 06.07.2018, os seus créditos sobre a ordenante da garantia bancária reconhecidos no processo de insolvência daquela (Pº nº 5262/16.9…-B) – vd. pontos 6 e 7 da decisão quanto à matéria de facto. Posto isto, 10. Os embargos à execução deduzidos pelo BST foram julgados procedentes pela sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, a qual, para o efeito, entendeu o seguinte: “Do texto da garantia bancária surge-nos claro que a mesma tem a função de caução de uma determinada acção: a que iria ser instaurada como subjacente ao arresto decretado. Caução de substituição do próprio arresto. Uma caução prestada num determinado processo não tem a virtualidade de servir de caução a outro processo. Nem, como se referiu, uma garantia bancária destinada a garantir o pagamento que um determinado sujeito venha a ser condenado a pagar numa determinada acção judicial é passível de ser accionada se esta acção terminou sem que tivesse sido proferida decisão de condenação…. Não tem, pois, a garantia bancária dada à execução a virtualidade de garantir o crédito reconhecido no processo de insolvência. ….. O texto da garantia expressamente menciona que se destina a pagar a quantia pecuniária que eventualmente a arrestada pudesse vir a ser condenada no âmbito da acção declarativa subjacente à providência cautelar. O processo de insolvência, incluindo a reclamação de créditos, não assume as vestes de acção declarativa subjacente à providência cautelar. Em suma, por força de a acção declarativa subjacente à providência cautelar ter terminado sem a prolação de sentença de condenação da arrestada, a garantia bancária dada em execução deixou de poder ser accionada por faltar um dos seus pressupostos – a condenação da arrestada a pagar quantia pecuniária à arrestante proferida em acção declarativa sujacente ao arresto, ou seja, por apenso ao mesmo”. – vd. pags. 7 e 8 da sentença sob recurso, sublinhados nossos. 11. A referida sentença foi objecto de recurso de apelação, interposto pela exequente para o Tribunal da Relação de Lisboa. 12. Esse recurso (que, no essencial, assenta na argumentação já aduzida pela recorrente em sede de contestação aos embargos) foi julgado improcedente pelo acórdão ora recorrido. 13. Ou seja, a pretensão da recorrente foi já rejeitada em 1ª e 2ª Instância. 14. Não obstante, veio ainda a exequente interpor um novo recurso, agora para este Supremo Tribunal. 15. A tese em que a recorrente procurou assentar o seu recurso de revista é similar à já anteriormente formulada nestes autos (e por duas vezes rejeitada), ou seja, diz a recorrente que: A reclamação de créditos no processo de insolvência é uma acção declarativa, pelo que a garantia em causa se aplica à reclamação de créditos apresentada pela recorrente no processo de insolvência da ordenante da garantia. 16. Por outro lado, alega ainda a recorrente que não se verificou a caducidade da garantia, porque a recorrente reclamou os seus créditos tempestivamente, nos termos da al. d) do nº 1 do artº 373º do CPC. 17. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, entende-se que a argumentação da recorrente carece de qualquer fundamento. Assim: 18. No que respeita à tese essencial em que se funda o recurso da exequente (ou seja, saber se a reclamação de créditos pela mesma apresentada no processo de insolvência da ordenante da garantia é uma acção declarativa, pelo que a garantia em causa se aplicaria a tal reclamação de créditos, julga-se transparente a absoluta falta de razão da recorrente. 19. A esse propósito -e porque se trata de matéria já anteriormente julgada- julga-se essencial lembrar o a tal título decidido nas duas instâncias anteriores. 20. Assim, a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância entendeu que: “… é evidente que a garantia bancária se destinou a extinguir procedimento cautelar de arresto e substituir a providência cautelar decretada no mesmo que arrestou bem imóvel. … Naturalmente que substituindo uma providência cautelar, carecia de ser intentada a acção declarativa respectiva para poder ser accionada. Mais, carecia que na acção declarativa subjacente à providência cautelar a arrestada fosse efectivamente condenada a pagar à ora exequente determinada quantia. No fundo, caso não fosse proposta a acção declarativa subjacente à providência cautelar substituída, ou não fosse aí proferida decisão a condenar a arrestada a pagar quantia pecuniária à arrestante, a garantia bancária não seria susceptível de ser accionada. Esse é o contexto da constituição da garantia bancária em questão e que resulta das cláusulas 1, 2 e 5 do seu texto” – vd. págs. 5 e 6 da sentença, sublinhados nossos. 21. Ora, como supra se notou, e está provado nos autos, a acção declarativa de condenação a que a garantia se refere terminou por decisão que julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide. 22. Ou seja, não foi proferida, em tal processo, decisão de mérito. 23. Pelo que, como decidiu o Tribunal de 1ª Instância “a garantia bancária dada em execução deixou de poder ser accionada por faltar um dos seus pressupostos – a condenação da arrestada a pagar quantia pecuniária à arrestante proferida em acção declarativa sujacente ao arresto, ou seja, por apenso ao mesmo”. – vd. pag. 8 da sentença sob recurso. 24. Sendo que idêntico entendimento foi seguido pelo acórdão do Tribunal da Relação, ora recorrido. 25. Com efeito, tal acordão julgou o seguinte: “… apresenta-se com meridiana clareza que a garantia bancária foi emitida com a finalidade de caucionar a acção declarativa de condenação nº 4263/14.6T8FNC … tendo sido garantidas todas as responsabilidades que pudessem emergir para a Sofiseq – Empreendimentos Imobiliários, Lda. da decisão final transitada em julgado que viesse a ser proferida na referida acção declarativa de condenação … sendo esse o sentido que se extrai da clausula 10. da garantia bancária constante dos autos”. “Ora, mesmo que, antes de ser instaurada a acção declarativa de condenação nº 4263/14.6…, a ré Sofiseq –Empreendimentos Imobiliários, Lda. tivesse sido declarada insolvente, a garantia bancária dos autos não poderia ser accionada para garantir o pagamento do crédito reconhecido no processo de insolvência, face ao conteúdo da clausula 5 da garantia bancária, que expressamente menciona que as responsabilidades garantidas eram todas aquelas que pudessem emergir para a Sofiseq – Empreendimentos Imobiliários, Lda. da decisão final transitada em julgado que viesse a ser proferida na referida acção declarativa de condenação”. “A garantia dos autos deixou de funcionar, na medida em que não se verificaram os pressupostos que conduziram à sua prestação e bem assim a idoneidade que lhe foi reconhecida, na qual não foi contemplada a hipótese de a ré vir a ser declarada falida, não existindo um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento com tal hipótese, donde não pode a recorrente pretender responsabilizar o garante por uma obrigação que não assumiu, pois assim não foi previsto nem convencionado”. O Banco não assumiu o risco da insolvência. “A garantia bancária prestada como caução processual estava condicionada à finalidade que lhe foi atribuída na sua efectiva prestação, não podendo, por isso, o garante responder quando tal finalidade não se verifique como é o presente caso, uma vez que a acção declarativa instaurada na sequência do procedimento cautelar, foi extinta por inutilidade superveniente da lide”. - Vd. págs. 25, 26 e 28 do acórdão, negrito e sublinhados nossos. 26. Face a tudo o exposto, julga-se, sem necessidade de mais comentários, ser notória a falta de fundamento da tese da recorrente. 27. Sem conceder, ainda se aduz, por extrema cautela de patrocínio, que a garantia em apreço, na data em que foi accionada, já havia caducado. 28. Com efeito, no que respeita ao prazo de validade da garantia, ficou expressamente estipulado que a garantia seria válida “até vinte dias após o trânsito em julgado da decisão judicial que venha a ser proferida na referida acção declarativa de condenação” – vd. ponto 10 da garantia. 29. Essa sentença transitou em julgado em 06.03.2017 – vd. ponto 4 da decisão quanto à matéria de facto. 30. Consequentemente, a ora recorrente deveria, sob pena de caducidade da garantia, accionar a mesma até vinte dias após 06.03.2017, data do trânsito em julgado da dita sentença – vd. ponto 10 da garantia. 31. Ou seja, até 26.03.2017. 32. O que não fez! 33. Com efeito, a recorrente, como, aliás, reconhece, apenas accionou a garantia em causa por carta de 27.08.2018 – vd. ponto 5 da decisão quanto à matéria de facto. 34. Ou seja, muito para além do prazo de validade da garantia. 35. Prazo esse que, como vimos, havia terminado mais de ummano e cinco meses antes (em 26.03.2017). 36. Acresce que, o pedido de accionamento da garantia, que, reitera-se, a recorrente apenas efectuou em 27.08.2018, não veio (obviamente) acompanhado da documentação exigida, para o efeito, no ponto 7 da garantia. 37. Ou seja, não veio acompanhado de certidão judicial da decisão final condenatória transitada em julgado proferida na citada acção declarativa nº 4263/14.6T8FNC – vd. ponto 6 da decisão quanto à matéria de facto. 38. Ainda a propósito da caducidade da garantia relembra-se o que, a esse título, foi entendido pelo acordão recorrido: “Ao que acresce a circunstância de, e na consideração de que a acção declarativa de condenação nº 4263/14.6T8FNC foi subjacente à providência cautelar, tendo terminado sem a prolação de sentença de condenação da arrestada, tendo sido extinta por inutilidade superveniente da lide, sempre operária a caducidade da garantia bancária dos autos…” – vd. pags. 30 e 31 do acordão. 39. Face ao exposto, importa concluir que sempre a garantia, na data em que foi accionada, já não representava o reconhecimento de qualquer obrigação por parte do BST. 40. Pelo que, tal garantia não é título executivo – vd. artº 703º, nº 1, al. b), do CPC. 41. Pelo que, também por isso, sempre a pretensão da recorrente teria que ser indeferida. 42. Face a tudo o exposto, entende-se que o acórdão recorrido não merece qualquer censura, devendo, pois, ser confirmado. TERMOS em que deve ser julgado improcedente o recurso em apreço, com a consequente confirmação do acordão recorrido, como é de J U S T I Ç A !!!» 5. Sabido que o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, se delimita pelas conclusões do recurso, a questão de direito a decidir é a de saber se a garantia bancária prestada pelo Banco caducou, em virtude da declaração de insolvência da devedora, que provocou a extinção da ação declarativa de condenação por inutilidade superveniente da lide (artigo 277.º, al. e), do CPC) Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação A. Os factos A matéria de facto dada como provada na sentença recorrida (e que o Tribunal da Relação manteve), tendo por base “os elementos documentais juntos aos autos de execução — título executivo e requerimento executivo —, e a não impugnação dos mesmos, bem como a sua admissão por acordo (confessio ficta)”, é a seguinte: «1. A 29 de Março de 2019, foi apresentado à execução ordinária n.° 1883/19.6T8FNC, em apenso, um documento denominado de "Garantia Bancária N/NR ....74", datada de 09 de Dezembro de 2014. 2. Desse documento consta: «Em nome a pedido da sociedade comercial SOFISEQ EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., pessoa colectiva n.° 511.160.399, vem o BANIF-BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A. (...) prestar, pelo presente documento, uma garantia bancária nos seguintes termos e condições: 1. A presente garantia é emitida com o fim de extinguir procedimento cautelar n.° 596/14.0…, que corre os seus termos na Comarca da …, …-Instância Central, Secção Cível J… e substituir-se ao arresto ali decretado sobre o prédio misto situado na ......, descrito na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.° ........29, da freguesia ......, concelho ......, inscrito na matriz urbana sob os n.° ..92, ..97, ..42, ..43, ..44 e ..45 e na matriz rústica sob os artigos 4/2, secção F (parte) e 4/3 secção F (parte), em que é requerida a SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. (...) e requerente a MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA. (...), a qual será cumprida à primeira solicitação a este Banco, obrigando-se este a, nos termos e condições constantes do presente documento, pagá-la, como fiador e principal pagador, até ao seu montante máximo a seguir identificado, com renúncia ao beneficio da excussão prévia. 2. A presente garantia é assim emitida com o fim de caucionar a acção declarativa de condenação que a MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., na sequência do procedimento cautelar n.° 596/14.0… acima referido, instaurará contra a SOFISEQ-EMPREEND1MENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., tendo em vista a obtenção de título executivo relativamente às facturas n.° 9, 10, 11, 12, 13 e 14, todas emitidas, em 02/12/2010, pela MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., no âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado em 29/08/2007, cujo cópia será anexa ao presente documento dele fazendo parte integrante para todos os efeitos legais. 3. (...) 4. O montante máximo garantido é de €100.000,00 (cem mil euros), sendo esta irrevogável, quer pelo Banco quer pela afiançada, quer pela beneficiária, excepto com o consentimento expresso destas duas últimas referidas, afiançada e beneficiária. 5. As responsabilidades garantidas são todas aquelas que possam emergir para a SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., da decisão final transitada em julgado que vier a ser proferida na referida acção declarativa de condenação melhor identificada no precedente ponto 2. em que aquela sociedade assumirá a posição processual de Ré e a MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., assumirá a posição processual da Autora. 6. A MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., obriga-se a, no prazo de 5 (cinco) dias a contar da distribuição judicial, comunicar por escrito ao Banif-Banco Internacional do Funchal, S.A. o número do processo e respectivo tribunal onde a referida acção declarativa de condenação melhor identificada no precedente ponto 2. correrá os seus termos, devendo essa comunicação ser devidamente acompanhada da respectiva petição inicial contendo todos os seus documentos. 7. A reclamação do pagamento ao BANIF-BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A. pela MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., no âmbito da presente garantia, será feita através de comunicação escrita, acompanhada de certidão judicial da decisão final condenatória transitada em julgado, proferida na referida acção que vier a ser intentada, com os fundamentos acima identificados. 8. (...) 9. (...) 10. Esta garantia é válida até vinte dias contados após o trânsito em julgado da decisão judicial que venha a ser proferida no âmbito da referida acção declarativa de condenação a intentar com os fundamentos acima identificados.». 3. Na sequência do procedimento cautelar n.° 596/14.0…, a exequente instaurou acção de condenação de SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. peticionando que esta última fosse condenada a pagar-lhe os montantes referentes às facturas a que supra se alude na mencionada garantia bancária. 4. Essa correu sob o n.° 4263/14.6…, no Juízo Central Cível do …, Juiz …, que terminou com a prolação de sentença, oportunamente transitada em julgado, que julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, por a ré ter sido declarada insolvente. 5. A exequente pediu à executada o pagamento da garantia bancária por carta de 27 de Agosto de 2018. 6. Não acompanhou essa carta da certidão da sentença proferida no processo n.° 4263/14.6… . 7. A exequente reclamou no processo de insolvência o crédito proveniente das mencionadas facturas. 8. Esse crédito veio a ser reconhecido por sentença aí proferida a 06 de Julho de 2018. 9. Essa sentença foi remetida juntamente com a carta a que se alude em 5). 10. O executado sucedeu ao BANIF-Banco Internacional do Funchal, S.A. no que respeita às obrigações decorrentes da mencionada garantia bancária». B – O Direito 1. De acordo com os factos dados como provados nos autos, na execução ordinária n° 1883/19.6…, a que o presente processo de embargos de executado constitui apenso, foi apresentado, pela agora recorrente, MADEIRA PLUS, como título executivo, um documento denominado de ''Garantia Bancária N/NR ....74", datada de 09.12.2014, emitida pelo Banif-Banco Internacional do Funchal, S.A. Tal garantia teve como ordenante a SOFISEQ - EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. e como beneficiária a recorrente, MADEIRA PLUS, tendo sido emitida com o fim de extinguir o procedimento cautelar n.° 596/14.0…, que correu os seus termos na Comarca da …, …-Instância Central, Secção Cível J…, e substituir-se ao arresto ali decretado sobre o prédio identificado no ponto 2. da matéria de facto, para caucionar o pagamento de faturas correspondentes a serviços de mediação imobiliária prestados e não pagos. O pagamento das faturas foi exigido à devedora em ação declarativa de condenação que a MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., na sequência de tal procedimento cautelar, instaurou contra a SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., tendo em vista a obtenção de título executivo relativamente às faturas 9, 10, 11, 12, 13 e 14, todas emitidas, em 02.12.2010, pela MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., no âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado em 29.08.2007. (cfr. termos 1 e 2 da garantia constantes do ponto 2. dos factos provados). As responsabilidades garantidas eram todas aquelas que pudessem emergir para a SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. da decisão final transitada em julgado, que viesse a ser proferida na referida ação declarativa de condenação identificada na cláusula 5.ª do contrato de garantia. A reclamação do pagamento ao BANIF-BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A. pela MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., no âmbito da referida garantia, seria feita através de comunicação escrita, acompanhada de certidão judicial da decisão final condenatória transitada em julgado, proferida na ação declarativa de condenação que a MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA. instaurou na sequência de tal procedimento cautelar contra a SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. Na sequência do procedimento cautelar n.° 596/14.0…, a MADEIRA PLUS, agora recorrente/exequente, instaurou ação de condenação contra SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe os montantes referentes às faturas a que se alude na mencionada garantia bancária, tendo tal ação corrido termos sob o n.° 4263/14.6…, no Juízo Central Cível do …, Juiz …, que terminou com a prolação de sentença, proferida em 31-01-2017, transitada em julgado, onde se julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, uma vez que a ré, SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., foi declarada insolvente. A recorrente, MADEIRA PLUS reclamou no processo de insolvência o crédito proveniente das mencionadas faturas, o qual veio a ser reconhecido por sentença proferida em 6 de julho de 2018. 2. Invocou a beneficiária da garantia, MADEIRA PLUS, agora recorrente, que a extinção, por inutilidade superveniente da lide, da ação declarativa de condenação por si intentada, em virtude da declaração de insolvência da ré, não constitui uma improcedência do pedido, nem impede o seu direito a acionar a garantia contra o Banco, uma vez que dispõe de uma sentença de reconhecimento dos créditos com a ordenante, SOFISEQ, proferida no processo de insolvência. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação não deu razão à pretensão da MADEIRA PLUS, por maioria, com um voto de vencido, entendendo que a tal pretensão se opunha o clausulado no documento denominado de "Garantia Bancária N/NR ....74", datada de 09 de dezembro de 2014, interpretado à luz do critério geral da impressão do destinatário, consagrado no 236°, n° 1 do Código Civil, considerando ainda que faltava à tese da recorrente um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, nos termos exigidos pelo artigo 238°, n° 1 do Código Civil. Em síntese, o tribunal recorrido decidiu com base nos seguintes fundamentos: 1.º A extinção por inutilidade superveniente da lide da ação declarativa de condenação, por insolvência da ré, não preenche o pressuposto de acionamento da garantia fixado nas cláusulas 2.ª e 5.ª do contrato, que exigem a procedência da ação declarativa de condenação através de sentença de condenação transitada em julgado, o que não sucedeu. 2.º - Caducidade do direito da Madeira Plus, por inobservância do prazo de 20 dias fixado na cláusula 10.º da Garantia Bancária, segundo a qual “Esta garantia é válida até vinte dias contados após o trânsito em julgado da decisão judicial que venha a ser proferida no âmbito da referida acção declarativa de condenação a intentar com os fundamentos acima identificados”. O acórdão recorrido fundamentou a decisão nos seguintes termos, que se passam a transcrever: «A garantia bancária dos autos deixou de funcionar, na medida em que não se verificaram os pressupostos que conduziram à sua prestação e bem assim a idoneidade que lhe foi reconhecida, na qual não foi contemplada a hipótese de a ré vir a ser declarada falida, não existindo um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento com tal hipótese, donde, não pode a recorrente pretender responsabilizar o garante por uma obrigação que não assumiu, pois assim não foi previsto nem convencionado. A garantia bancária prestada como caução processual estava condicionada à finalidade que lhe foi atribuída na sua efectiva prestação, não podendo, por isso, o garante responder quando tal finalidade não se verifique, como é o presente caso, uma vez que a acção declarativa instaurada na sequência do procedimento cautelar n.° 596/14.0… - processo n.° 4263/14.6… - foi a mesma extinta por inutilidade superveniente da lide». Ao que acresce o facto do processo de insolvência, sendo "um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores " - cfr. art° 1.º, n° 1 do CIRE -o incidente de reclamação, verificação e graduação de créditos que for formado na sequência da sentença declaração de insolvência, assumindo a forma de acção declarativa e que culmina com a sentença de verificação e graduação de créditos, esta sentença, tendo "natureza jurisdicional porque dirime as controvérsias respeitantes aos direitos que são feitos valer no processo e contém um acertamento, positivo ou negativo, relativamente à existência, ao montante e à natureza do crédito e da eventual garantia: não contém a típica condenação, pois em sede de falência, é suficiente o reconhecimento do crédito para que o credor seja admitido ao concurso e pagamento." - neste sentido cfr. Ac. RP datado de 06.11.2012, proc. 901/10.8TBPNF-M.P1, disponível in www.dgsi.pt -, sendo que, apenas as sentenças condenatórias, ou seja, aquelas que impõem um dever de cumprimento de uma prestação são susceptíveis de execução, o que não sucede com a sentença datada de 06.07.2018, que julgou verificados os créditos que existem da insolvente, pois tal sentença limita-se a reconhecer a existência ou inexistência de direito, não impondo qualquer dever de cumprimento, sendo a referida acção declarativa de verificação de créditos uma acção de simples apreciação, tal como preceituado no art° 10°, n° 2 al. a), do Código de Processo Civil. A garantia bancária dos autos para ser acionada carecia que na ação declarativa n° 4263/14.6… a ré SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. fosse efectivamente condenada a pagar à ora recorrente determinada quantia, o que não ocorreu, "(...) por força de a acção declarativa subjacente à providência cautelar ter terminado sem a prolação de sentença de condenação da arrestada, a garantia bancária dada em execução deixou de poder ser accionada por faltar um dos seus pressupostos — a condenação da arrestada a pagar quantia pecuniária à arrestante proferida em acção declarativa subjacente ao arresto, ou seja, por apenso ao mesmo", não sendo tal garantia título executivo - vd. art° 703°, n° 1, al. b), do CPC». Concluiu o acórdão recorrido que a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, deve ser equiparada a um caso de improcedência da ação, fazendo assim caducar a garantia, nos termos do artigo 373°, n°s 1, al. c) e 2, do CPC). 3. Vejamos: O acórdão recorrido defendeu que do texto da garantia bancária resulta que a mesma tem a função de caucionar apenas uma determinada ação declarativa, a que correu termos sob o n.º 4263/14.6T8FNC, e que se extinguiu por inutilidade superveniente da lide, em virtude de a ré ter sido declarada insolvente. Já a recorrente pretende que a sentença proferida em 6 de julho de 2018, que julgou verificados os créditos no processo de insolvência, é uma decisão de mérito equiparada a uma sentença de condenação proferida em processo declarativo, cumprindo com o ponto 5 da garantia. Quid iuris? Estão em conflito duas teses, uma mais apegada ao significado literal e formal do texto e que protege a segurança jurídica do Banco que cauciona o pagamento, restringindo as situações em que a Garantia Bancária pode ser acionada e outra que atende à finalidade e razão de ser do instituto, permitindo raciocínios de analogia entre a situação expressamente prevista no clausulado do contrato para o acionamento da garantia e outra semelhante, assim conferindo um alcance mais amplo à responsabilidade do Banco. 4. Como contexto da resolução da questão de direito em apreço, faremos um breve percurso sobre o regime jurídico e a finalidade destes contratos de garantia bancária, tal como têm sido descritos, de modo pacífico, pela doutrina e pela jurisprudência. O contrato de garantia bancária surgiu espontaneamente da prática bancária e constitui um contrato atípico ou inominado, porque não previsto nem regulado na lei, resultando do princípio da liberdade contratual, que permite aos agentes económicos celebrar os contratos que entenderem, respeitados os limites legais (artigo 405.º, n.º 1, do Código Civil). Define-se como sendo o contrato, mediante o qual o garante, normalmente um banco, se obriga a pagar a um terceiro beneficiário certa quantia, verificado o incumprimento de um contrato-base por parte do mandante ou ordenante (devedor desse contrato), sem que o garante possa opor ao beneficiário (credor no contrato base) quaisquer exceções reportadas ao contrato fundamental, a menos que constem, expressamente, do próprio texto da garantia ou haja prova inequívoca e irrefutável de dolo, má fé, de abuso de direito ou de que o contrato-base foi cumprido, de que houve resolução do contrato-base por facto não imputável ao devedor ou incumprimento do beneficiário, quer por ter declarado que não está em condições de cumprir ou por ter modificado unilateralmente os termos do contrato (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-06-2021, Revista n.º 15932/16.6T8LSB-A.L1.S1 - 2.ª Secção). A interpretação do texto da garantia é essencial para determinar o seu alcance. Nos casos em que foi reduzido a escrito, como será o caso em virtude da natureza das obrigações assumidas, está sujeito aos critérios consagrados no artigo 236.º do Código Civil, bem como à regra interpretativa prevista do n.º 1 do artigo 238.º do mesmo diploma, segundo a qual não pode ser atribuído ao texto um sentido que não tenha na sua letra o mínimo de correspondência. Na sequência desta regra, decidiu-se, por exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-10-2019 (Revista n.º 4061/15.0TBLSB.L2.S1 - 1.ª Secção), que o garante não tem de pagar a garantia quando o dador da ordem não coincide com a parte interveniente no contrato base invocado pela beneficiária e mencionado no texto da garantia. Conforme se considerou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-06-2012 (proc. nº 14/06.7TBCMG.G1.S1) «As regras constantes dos arts. 236.º a 238.º do CC constituem diretrizes que visam vincular o intérprete a um dos sentidos propiciados pela atividade interpretativa, e o que basicamente se retira do art. 236.º é que, em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). No entanto, a lei não se basta com o sentido realmente compreendido pelo declaratário (entendimento subjetivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objetivo para o declaratário). Em termos práticos, o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição do declaratário real». Na prática bancária, temos duas grandes modalidades de contrato de garantia bancária autónoma: a garantia bancária automática (on first demand) e a garantia bancária simples. Nas garantias bancárias autónomas simples, o credor tem de provar para poder acionar a garantia o incumprimento da obrigação pelo devedor. Nas garantias bancárias automáticas (on first demand), que apresentam um grau mais elevado de autonomia, os contraentes apõem a cláusula à primeira solicitação, o que significa que o beneficiário tem direito a receber do garante a quantia pecuniária convencionada, pelo simples facto de o interpelar, isto é, sem ter de alegar e provar os pressupostos do seu direito de crédito sobre o banco (cfr. Maria do Rosário Epifânio, «Garantias Bancárias Autónomas. Breves Reflexões», Iuris et De Iure, Nos 20 anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, Porto, 1998, p. 334). Tem sido entendido pela jurisprudência (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-06-2018, proc. n.º 487/13.1TVPRT.P1.S1) que as Garantias Bancárias on First Demand ou garantias bancárias à primeira solicitação se destinam a garantir o pontual e o integral cumprimento das obrigações da ordenante no contrato a celebrar com a beneficiária, cobrindo também a insolvência daquela, mesmo na falta de reclamação do crédito pela beneficiária. Na garantia autónoma à primeira solicitação, o credor garantido, para acionar a garantia, não tem de fazer a prova do facto constitutivo do seu direito, bastando exigir o pagamento nos termos estabelecidos no contrato. Esta cláusula afasta, assim, o último elemento de litigância entre garante e garantido, que poderá operar na garantia autónoma simples: a discussão sobre a verificação ou não dos pressupostos do direito do credor (cfr. Miguel Pestana Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, Coimbra, 2013, p. 131, pp. 132-133). Na garantia autónoma à primeira solicitação, junta-se à autonomia a característica adicional da automaticidade, em moldes tais, que, logo que o pedido seja realizado nos termos acordados no contrato de garantia, o garante terá mesmo de cumprir sob pena de incorrer em mora, sendo a situação do credor semelhante à do sujeito que tem um depósito junto desse banco (cfr. Galvão Telles, «Garantia bancária autónoma», O Direito, 1988, p. 283). Estas garantias desempenham uma marcada função indemnizatória, consistindo a obrigação do garante numa obrigação de indemnização com um montante pré-fixado (cfr. Mónica Jardim, A garantia autónoma, Almedina, Coimbra, 2002, p. 231 e L. Miguel Pestana Vasconcelos, Direito das Garantias, ob. cit., p. 135). Estas cláusulas são sobretudo usadas nas trocas internacionais em que as empresas não se conhecem e têm dificuldade em obter informações sobre a reputação da contraparte (cfr. L. Miguel Pestana Vasconcelos, ob. cit., pp. 126-127). No mesmo sentido, a jurisprudência afirma que «O pagamento à 1ª solicitação (on first demand), assumido pelo garante, implica a sua obrigação de pagar ao beneficiário a indemnização objecto da garantia, não podendo opor-lhe quaisquer excepções reportadas à relação principal (contrato-base), a menos que haja evidentes e graves indícios de actuação de má fé, nela se incluindo a conduta abusiva do direito» (Acórdão de 20 de março de 2012, proc. n.º 7279/08.8TBMAI.P1.S1). É entendimento comum que, nas garantias “on first demand” se deve ser muito restritivo na admissão de exceções a apor pelo garante ao beneficiário, sob pena de se frustrar o escopo das garantias à primeira solicitação, as quais só viriam a ser pagas após longas e demoradas controvérsias, quando existem, precisamente, para evitar esse tipo de situações (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 12-09-2006, proc. n.º 06A2211). O regime jurídico da garantia bancária caracteriza-se pela autonomia, a qual significa que a obrigação do garante, além de não se moldar na obrigação garantida, é independente desta, ou seja, não é atingida pelas vicissitudes que possam atingir a obrigação garantida. Assim, o garante não pode opor ao credor/beneficiário qualquer meio de defesa decorrente da relação base donde emerge a obrigação garantida: a sua nulidade ou anulabilidade, a resolução, ou qualquer outra causa. Também não é possível ao garante recorrer a um meio de defesa decorrente da relação entre ele e o devedor/ ordenante. O garante não pode, por princípio, recusar a execução da garantia opondo exceções fundadas, seja na relação entre o credor (beneficiário) e o devedor (garantido) da relação principal, seja na relação (de mandato) entre o garante e aquele devedor. Como se afirma na doutrina, “A obrigação do garante de entregar uma determinada quantia pecuniária ao beneficiário depende exclusivamente da verificação das condições definidas no contrato de garantia” (cfr. Mónica Jardim, A garantia autónoma, ob. cit., p. 116); “(…) a função da garantia autónoma não é, tanto, assegurar o cumprimento dum determinado contrato. Ela visa, antes, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no próprio texto da garantia, uma determinada quantia em dinheiro” (cfr. Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª ed., Coimbra, 2006, p. 643). O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão datado 17-06-2021, Revista n.º 15932/16.6T8LSB-A.L1.S1) entendeu que «Diferentemente do que acontece na garantia bancária simples, em que o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação do garante desde que prove o incumprimento da obrigação do devedor ou a verificação do circunstancialismo que constitui pressuposto do nascimento do seu crédito face ao garante, na garantia bancária automática ou à primeira solicitação (on first demand) não é exigível essa prova, visto que o garante, ao primeiro pedido do beneficiário, está obrigado a entregar imediatamente a este a quantia pecuniária fixada». 6. No caso dos autos, apesar de, nas cláusulas do contrato em causa, se utilizar a classificação de “garantia à primeira solicitação”, estamos perante uma garantia bancária simples, porque o pagamento da garantia está condicionado pelo incumprimento da obrigação do devedor e o nomen iuris usado pelas partes não é vinculativo para o tribunal. Nas cláusulas 2.ª e 5.ª do contrato de garantia, estipulou-se o seguinte: «2. A presente garantia é assim emitida com o fim de caucionar a acção declarativa de condenação que a MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., na sequência do procedimento cautelar n.° 596/14.0T8FNC acima referido, instaurará contra a SOFISEQ-EMPREEND1MENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., tendo em vista a obtenção de título executivo relativamente às facturas n.° 9, 10, 11, 12, 13 e 14, todas emitidas, em 02/12/2010, pela MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., no âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado em 29/08/2007, cujo cópia será anexa ao presente documento dele fazendo parte integrante para todos os efeitos legais». (sublinhado nosso)
«5. As responsabilidades garantidas são todas aquelas que possam emergir para a SOFISEQ-EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., da decisão final transitada em julgado que vier a ser proferida na referida acção declarativa de condenação melhor identificada no precedente ponto 2. em que aquela sociedade assumirá a posição processual de Ré e a MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., assumirá a posição processual da Autora». Dos termos do contrato, entendemos que o objetivo da garantia é obter o pagamento do montante das faturas e não garantir o resultado de uma determinada ação judicial. As faturas juntas com o contrato de garantia, que correspondem à prestação de serviços de mediação mobiliária pela MADEIRA-PLUS, cujo pagamento se visava caucionar no contrato, não foram pagas pelo devedor, ordenante da garantia, a SOFISEQ. O credor-beneficiário, a MADEIRA PLUS, propôs uma ação declarativa de condenação (processo n.º 4263/14.6…) destinada a obter a condenação da SOFISEQ ao pagamento do capital de 70.638,75 euros, acrescidos de juros no valor de 21.196,50 euros, o que perfazia o montante global de 91.835,25 euros. Esta ação terminou com uma decisão de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, proferida em 31-01-2017, por efeito da declaração de insolvência do devedor, tendo o Tribunal do … justificado assim a decisão: «Na presente acção com processo comum é autora Madeiraplus – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda. e ré Sofiseq – Empreendimentos imobiliários, Lda., aquela pediu que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 70.638,75 euros, acrescida de juros. Entretanto veio a apurar-se que a ré foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado. Se é certo que o artigo 88º do C.I.R.E. estabelece que a declaração de insolvência obsta à instauração ou prosseguimento de execução ou contra o insolvente, não dispõe expressamente no que diz respeito ao destino das acções declarativas intentadas contra este, embora o artigo 86º do mesmo Código estabeleça que as mesmas podem ser apensadas à insolvência, caso o administrador o requeira, com fundamento na sua conveniência para os fins do processo. Não sendo tal apensação requerida, haverá que ter presente que, nos termos do disposto no artigo 128º do mesmo Código, devem os créditos ser reclamados no prazo fixado na sentença que decretou a insolvência, tendo tal prazo no caso concreto sido fixado em 30 dias. Ora, reclamados tais créditos, serão os mesmos objecto de verificação e graduação - artigo 130º, nº 3 do C.I.R.E.; e, posteriormente, só mediante a propositura de acção intentada contra os credores graduados poderá qualquer outro credor obter o reconhecimento do seu crédito para pagamento à custa da massa insolvente - artigo 146º do mesmo Código. De todo o exposto decorre, pois, que não tendo sido solicitada a remessa dos presentes autos para apensação aos autos de insolvência, somente reclamando o seu crédito por uma das referidas formas poderá qualquer credor ver satisfeito o seu crédito. Daí que, no caso em apreço, seja de concluir que ainda que obtenha ganho de causa, a sentença condenatória eventualmente proferida nestes autos é inexequível. Assim sendo, é inequívoco, que no caso dos autos a autora já não poderá através desta acção atingir o efeito jurídico que com a mesma pretendia (neste sentido veja-se o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 8 de maio de 2013, proc. n.º 170/08.0TTALM.L1.S1, 4ª secção, www.dgsi.pt). Pelo exposto, ao abrigo do estatuído no artigo 287º, al. e) do Código de Processo Civil, julgo extinta a instância nestes autos, por inutilidade superveniente da lide.» Nesta sequência, a MADEIRA PLUS veio reclamar os seus créditos no processo de insolvência (Processo n.º 5262/16.9…), no valor de 70.638, 75 euros acrescidos de juros no montante de 30.194,57 euros, perfazendo o valor global de 100.833,32 euros. Tendo a ação de condenação sido extinta por inutilidade superveniente da lide, em virtude de insolvência do devedor, e tendo o credor reclamado os créditos em causa, com sucesso, no processo de insolvência, terá ficado preenchida, ou não, a condição aposta no contrato para o acionamento da garantia? Entende a recorrente que a ação de verificação e graduação de créditos é uma ação declarativa, pelo que a garantia em causa se aplica tanto a uma ação declarativa de condenação como a uma reclamação de créditos apresentada pela recorrente no processo de insolvência da ordenante da garantia, estando assim preenchido o pressuposto para acionar a garantia. Por sua vez, defende o Banco recorrido que o elemento literal de interpretação exclui a possibilidade de equiparação entre ação de condenação e ação de reclamação de créditos, acrescentando que a extinção da instância da ação declarativa de condenação por inutilidade superveniente da lide equivale a improcedência desta ação, e impede que o beneficiário invoque a garantia bancária, por falta de preenchimento das suas condições, pois o que ficou estipulado no contrato de garantia reporta-se apenas à procedência de uma ação de declarativa de condenação para obtenção de títulos executivos e não a uma ação de reclamação de créditos, que, além do mais, é uma ação de simples apreciação e não de condenação. 7. Para solucionar a questão é necessário ponderar que a finalidade da garantia é precisamente a de proteger o credor das consequências económicas do incumprimento do contrato-base por parte do devedor, maxime, do risco de insolvência deste. Com efeito, tem sido reconhecido que as garantias visam precisamente acautelar o credor contra o risco de insolvência do devedor (cfr. Maria do Rosário Epifânio, ob. cit., p. 361). Por outro lado, os dois casos são distintos, na medida em que no caso dos autos o credor reclamou os créditos no processo de insolvência, os quais foram reconhecidos por sentença de 06-07-2018 (factos provados n.º 7 e n.º 8), enquanto no caso do citado Acórdão de 18-10-2007, o beneficiário da garantia não reclamou os seus créditos no âmbito do processo de falência do devedor, ou seja, não fez tudo o que estava ao seu alcance para obter a condenação do devedor (ou da massa insolvente) ao pagamento da dívida. 8. As garantias autónomas caraterizam-se pelo primado da eficiência e da celeridade no pagamento ao credor beneficiário e só permitem ao Banco recusar o pagamento nos casos expressamente previstos, por escrito, no contrato de garantia. Estas garantias visam afastar o risco do incumprimento e da insolvência do ordenante, promovendo, assim, o crescimento da economia na medida em que acabam por se realizar transações e negócios que de outro modo não se realizariam. Para que esta finalidade seja cumprida, a formulação contratual de exceções tem de estar expressamente prevista de forma clara e precisa. O garante só poderá opor ao beneficiário as excecões literais, que constem do texto da garantia (cfr. Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 850) O objetivo do elemento literal de interpretação e da regra interpretativa do artigo 238.º, n.º 1, do CC, segundo a qual ao texto do contrato não pode ser atribuído um sentido sem o mínimo de correspondência na sua letra, é, na verdade, proteger o credor beneficiário da eventual recusa injustificada (não prevista no contrato) do Banco em pagar a garantia e não proteger o Banco, que é aliás quem redige unilateralmente estes contratos, que funcionam para os outros intervenientes como contratos de adesão. Nas garantias autónomas simples, como a dos autos, que definem os pressupostos do incumprimento do devedor, para conhecer o âmbito da possibilidade de recusa do Banco em pagar, há que atender não só ao teor literal da cláusula, mas também à sua razão de ser, ao contexto das relações negociais e aos usos. Neste quadro, o que releva para o efeito não é a classificação conceitual da reclamação de créditos como ação declarativa de condenação ou como ação de simples apreciação, conforme disputam as partes, nem tão pouco as palavras exatas que foram utilizadas no contrato para definir os pressupostos da garantia, mas apenas saber se o beneficiário fez tudo o que legalmente estava ao seu alcance para obter a condenação do devedor, ordenante da garantia, ao pagamentos dos seus créditos, ou seja, se esgotou todas as possibilidades legais de obter o cumprimento coercivo das obrigações. Vejamos: A tese do banco recorrido segundo a qual a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide deve ser considerada como um caso de improcedência da ação de condenação, implicando o não preenchimento do pressuposto para a acionar a garantia nos termos das cláusulas 2.ª e 5.ª do contrato, não é de perfilhar. Com efeito, a inutilidade superveniente da lide não significa qualquer pronúncia sobre o mérito, muito menos uma improcedência do pedido feito pelo credor na ação de condenação. Reflete, apenas, um efeito legal da declaração de insolvência, consagrado no Código de Processo Civil (artigo 287.º, al. e), do CPC/2007 e artigo 277.º, al. e), do CPC/2013) por efeito do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, sobre os processos pendentes, em termos tais que «transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado». Esta decisão cria uma impossibilidade legal de prossecução da ação declarativa de condenação e afasta qualquer ideia de negligência do credor na tutela dos seus interesses – uma vez que intentou a ação de condenação e esta foi extinta por causa que não lhe foi imputável – ou qualquer possível má-fé no acionamento da garantia. O devedor, de facto, não cumpriu as suas obrigações, nem se perspetiva que o venha a fazer, uma vez que a partir da declaração de insolvência o seu património passa a ser administrado pela massa insolvente e é em sede de reclamação de créditos que o credor pode fazer valer os seus direitos. Ora, o credor beneficiário da garantia reclamou os créditos no processo de insolvência e esses créditos foram reconhecidos (factos provados n.º 7 e 8). Assim sendo, deve entender-se que a situação jurídica dos autos cabe perfeitamente nos requisitos da garantia tal como contratualmente estipulados. O beneficiário-credor, agora recorrente, intentou a ação declarativa de condenação conforme estipulado na cláusula 2.ª e só não obteve ganho de causa nesta ação porque, entretanto, produziu-se o efeito legal da declaração de insolvência sobre os processos pendentes, passando o credor a reclamar os créditos no processo de insolvência – o único meio processual admitido para fazer valer os seus direitos – tendo aí obtido por sentença o reconhecimento dos mesmos. Ou seja, pode, pois, considerar-se que a sentença de reconhecimento dos créditos reclamados é uma decisão de mérito no sentido em que reconhece que é devido ao credor o valor das faturas mencionadas na garantia. Invoca o Banco-garante, todavia, que, quando acordou na garantia bancária, não pretendeu correr o risco da insolvência da empresa devedora, e que não resulta do texto escrito qualquer referência a este risco, mais gravoso do que o risco do incumprimento. É certo que o risco da insolvência pode implicar que, pela circunstância de haver créditos concorrentes sobre a massa insolvente, o credor beneficiário acabe apenas a ser parcialmente pago (ou até nem seja pago), por haver credores privilegiados e/ou por força do princípio par conditio creditorum. Mas, nos contratos de garantia bancária, como vimos, o Banco apenas pode invocar as exceções expressamente previstas no texto, tanto mais que estes contratos são, em regra, redigidos pelos Bancos, que estão em posição de neles apor as exceções que entenderem. Ora, não constando do texto do contrato a exclusão do risco da insolvência, tal significa que o Banco quis garantir o pagamento das faturas referidas no contrato de garantia, prestando caução para substituir a providência cautelar de arresto dirigida contra o devedor, assim garantindo o não pagamento daquelas, qualquer que seja a causa do incumprimento. Neste sentido, tem sido também entendimento da jurisprudência que ficaria desvirtuada a utilidade prática das garantias bancárias se o Banco pudesse opor ao beneficiário a insolvência do ordenante, até porque a finalidade das garantias autónomas é precisamente a de transferir para o banco o risco da insolvência do ordenante, conforme se decidiu no já citado Acórdão de 28-06-2018, desta 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça. Na jurisprudência das Relações aderiu-se à mesma orientação, decidindo-se que a declaração de insolvência do ordenante não implica a caducidade da garantia bancária validamente constituída em momento anterior a essa declaração (vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30-06-2020 (proc. n.º 484/12.4TYLSB-CK.L1-1). 9. Mas, pergunta-se ainda: terá caducado a garantia com a extinção da instância da ação declarativa de condenação? A este propósito, resulta do texto do contrato que a garantia bancária foi prestada para substituir uma providência cautelar de arresto, procedimento admitido nos termos do artigo 368.º, n.º 3, do CPC. No momento de constituição da garantia não estava pendente qualquer ação declarativa de condenação. Esta era apenas, à data, um meio processualmente necessário para obter o valor que se garantia, destinando-se a apurar previamente se as faturas identificadas na garantia eram ou não devidas. Assim, salvo estipulação das partes em sentido diferente, o regime da garantia bancária, designadamente no que respeita à questão da sua caducidade, é o da providência cautelar que foi substituída. Ora, como se afirma no voto de vencido ao acórdão do Tribunal da Relação, numa situação como a dos autos, a providência cautelar de arresto não caducou por efeito da declaração de insolvência da devedora. O artigo 373.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe “Caducidade da providência” dispõe o seguinte: «1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 369.º, o procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca: a) Se o requerente não propuser a ação da qual a providência depende dentro de 30 dias contados da data em que lhe tiver sido notificado o trânsito em julgado da decisão que a haja ordenado; b) Se, proposta a ação, o processo estiver parado mais de 30 dias, por negligência do requerente; c) Se a ação vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado; d) Se o réu for absolvido da instância e o requerente não propuser nova ação em tempo de aproveitar os efeitos da proposição da anterior; e) Se o direito que o requerente pretende acautelar se tiver extinguido». Não se aplicam as causas de caducidade previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 373.º do CPC, pois o credor-beneficiário intentou a ação declarativa de condenação, que não esteve parada por negligência deste. Como vimos, a extinção da instância ficou a dever-se a um efeito legal da declaração de insolvência sobre os processos pendentes e não a uma causa imputável ao credor. Também não se pode considerar verificada a alínea c), uma vez que a extinção da instância não é uma improcedência do pedido, tanto mais que os créditos acabaram por ser reconhecidos no processo de reclamação. Ademais, tendo o beneficiário da garantia suscitado, em tempo útil, o único meio processual em que lhe era possível obter o direito de crédito – a reclamação de créditos no processo de insolvência – não se aplica a causa de caducidade prevista na al. d) do n.º 1 do artigo 373.º do CPC, pois a extinção da instância da ação declarativa foi substituída pela reclamação de créditos, processo em que o crédito acabou por ser reconhecido por decisão judicial transitada em julgado. Com o reconhecimento do crédito na ação de reclamação de créditos em processo de insolvência, o credor impediu a caducidade da providência cautelar de arresto, substituída por caução prestada por garantia bancária. A tese defendida pelo Banco recorrido e que foi adotada no acórdão do Tribunal da Relação, segundo a qual a garantia, no momento em que foi acionada, já teria caducado por decurso do prazo de 20 dias após trânsito em julgado da sentença proferida na ação de condenação, nos termos da cláusula 10.ª do contrato de garantia, também não é válida. Após a declaração de insolvência da devedora, esta ação de condenação extinguiu-se sem pronúncia sobre o mérito, passando a ser substituída pela única ação possível para o reconhecimento dos créditos – o processo de insolvência, em que foram verificados e graduados os créditos da beneficiária, Madeira PLUS, por sentença proferida a 6 de julho de 2018. Ainda que houvesse decisão de condenação na ação declarativa, sempre o credor teria que reclamar os créditos no processo de insolvência, como enuncia o artigo 128º, n.º 3, do CIRE: “A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.” Assim, não se pode considerar extinta, por caducidade, a garantia bancária, por não ter sido acionada no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da sentença proferida na ação de condenação. 10. Anexa-se sumário elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC: I – As garantias bancárias autónomas, constituídas com a finalidade afastar o risco do incumprimento e da insolvência do ordenante, caraterizam-se pelo primado da eficiência e da celeridade no pagamento ao credor beneficiário e só permitem ao Banco recusar o pagamento nos casos expressamente previstos no contrato de garantia. II – As regras constantes dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, relativas à interpretação das declarações negociais, visam auxiliar o intérprete a fixar o sentido juridicamente vinculante das cláusulas do contrato de garantia bancária, dando-se prioridade ao critério da impressão do declaratário e ao elemento literal de interpretação. III – O objetivo do elemento literal de interpretação e da regra interpretativa do artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil é, na verdade, proteger o credor beneficiário da eventual recusa injustificada (não prevista no contrato) do Banco em pagar a garantia e não proteger o Banco, que é aliás quem redige unilateralmente estes contratos, que funcionam para os outros intervenientes como contratos de adesão. IV – É do seguinte teor a cláusula 2.ª do contrato de garantia que define os pressupostos do seu acionamento pelo credor-beneficiário: «A presente garantia é assim emitida com o fim de caucionar a acção declarativa de condenação que a MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., na sequência do procedimento cautelar n.° 596/14.0… acima referido, instaurará contra a SOFISEQ-EMPREEND1MENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA., tendo em vista a obtenção de título executivo relativamente às facturas n.° 9, 10, 11, 12, 13 e 14, todas emitidas, em 02/12/2010, pela MADEIRA PLUS-SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., no âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado em 29/08/2007, cujo cópia será anexa ao presente documento dele fazendo parte integrante para todos os efeitos legais». V – Não constando do texto do contrato a exclusão do risco da insolvência, tal significa que o Banco garante o pagamento das faturas referidas no contrato de garantia mesmo nesta hipótese. Assim, a declaração de insolvência do ordenante não implica a caducidade da garantia bancária validamente constituída em momento anterior a essa declaração. VI – A inutilidade superveniente da lide da ação declarativa de condenação, por insolvência do devedor, não equivale a uma improcedência dessa ação, e, tendo o beneficiário da garantia suscitado, em tempo útil, a reclamação de créditos no processo de insolvência – o único meio processual em que lhe era possível obter o direito de crédito – e obtido o reconhecimento dos mesmos, está preenchido o requisito da cláusula 2. do contrato de garantia para o acionamento da mesma. 11. Em consequência, procedem as conclusões de recurso da recorrente, MADEIRA PLUS, e revoga-se o acórdão recorrido, condenando-se o Banco a cumprir a garantia bancária estipulada na cláusula 4.ª do contrato de garantia, pelo valor dos créditos reclamados (valor global de 100.833,32 euros) até ao montante máximo de 100.000 euros. III – Decisão Pelo exposto, decide-se conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, condenando-se o Banco Santander Totta, S.A. a pagar à Madeira Plus - Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda. o valor de 100.000 euros. Custas pelo recorrido.
Lisboa, 19 de outubro de 2021
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)
Fernando Samões (2.º Adjunto) |