Processo n.º 3465/17.8T8VIS.C1.S1
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça,
I - Relatório
1. No autos identificados supra, Colt Resources Inc (doravante CRI), inconformada com a decisão proferida, deduziu oposição ao arresto requerido por Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda., decretado a 22 de julho de 2017, e que teve por objeto:
“I. Todos os imóveis pertencentes à Q……, Unipessoal, Lda., à Requerida ou a qualquer das sociedades participadas;
II. O estabelecimento agroindustrial e comercial da Quinta ………, em …, …, com todos os seus pertences;
III. Os saldos de todas as contas bancárias tituladas em nome da Q……, Unipessoal, Lda., da Requerida ou de qualquer das sociedades suas participadas;
IV. A quota de capital da Q………, Unipessoal, Lda., matriculada sob o n.º ……, titulada em nome da C………– SGPS, SA, matriculada sob o n.º ………;
V. As 5.000 ações de que a Requerida é titular na C............ – SGPS, SA.”.
2. Alega, em síntese, que:
“- O sócio da Requerente é a verdadeira parte no contrato celebrado, em causa nos autos, tendo o contrato sido celebrado com a requerente sociedade por mera conveniência fiscal;
- A requerida CRI desenvolve unicamente negócios mineiros, tendo adquirido a sociedade vitícola Q……. para procurar tungsténio no subsolo da quinta, continuando a atividade de produção de vinho de forma totalmente autónoma da atividade da requerida, com administração distinta das restantes sociedades do grupo;
- A atividade da CRI em Portugal foi desenvolvida pelo sócio único da requerente, conhecedor de todas as circunstâncias da atividade das empresas do grupo e das dificuldades económicas ocorridas;
- O CA da CRI decidiu em ………2014 diminuir as remunerações dos membros dos órgãos sociais, tendo o vencimento do sócio da requerente sido diminuído para € 8.000, com o seu acordo, valor que a requerida lhe pagou desde fevereiro de 2014 e por 2 anos;
- A partir do início de 2016 a requerida deixou de ter meios económicos para pagar vencimentos, situação ainda imputável ao sócio da requerente, pelas elevadas despesas em que incorria por conta da requerida, nunca tendo o sócio da requerente invocado esse motivo como fundamento para rescisão do contrato celebrado;
- Em ……… de 2016 a requerida teve conhecimento que todo o dinheiro dos seus investidores havia sido aplicado pelo sócio da requerente e por AA na………, com a constituição de uma subsidiária da E............, a T............, sem autorização da requerida, tendo o sócio da requerente, CEO da E............, transferido um valor de cerca de mais 400.000 euros (pertença da requerida e de um seu investidor) para aquela sociedade turca, dinheiro esse cujo destino se ignora, mas sobrando em ……. de 2017 a quantia de € 7;
- Sabia o sócio da requerente que os poderes conferidos pelas funções exercidas ao abrigo do contrato celebrado com a requerida, em causa nos autos, não lhe permitiam atuar da forma referida, constituindo uma sociedade subsidiária na .............. sem autorização do board of directors da requerida, tendo agido em concertação com AA;
- Em ………. 2016 o CA da CRI demitiu AA de CEO, por causa da T............ e da perda de cerca de 500.000 €, tendo nesta sequência sido suspensa a negociação em bolsa das ações da CRI, em ……2017;
- Nesta data, foi dada instrução ao sócio da requerente para deixar de reportar a AA, surgindo a demissão do primeiro logo a seguir a tomar conhecimento que a requerida sabia da existência de uma fraude através da criação da T............ – pretendendo a requerida intentar no ……. uma ação de indemnização contra AA e Valente devido aos danos causados com a constituição daquela sociedade turca;
- Decorrendo daqui um crédito da requerida sobre o sócio da requerente de valor não inferior a € 500.000, por atuação ao abrigo do contrato em causa nos autos, que pretende compensar com o crédito de Valente/da requerente;
- O eventual crédito ao abrigo do contrato não é superior a € 129.888,00, face à alteração acordada da remuneração do sócio da requerente, não sendo devida a cláusula penal constante do contrato, por inexistência de culpa da requerida – ou, a entender-se que é devida, devendo a mesma ser substancialmente reduzida.
- Considerando-se, de qualquer forma, aquele crédito da requerente compensado, nos termos referidos. Conclui então a Requerida pela procedência da oposição e, em consequência, que seja levantado o arresto decretado”.
3. A 8 de julho de 2019, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu o seguinte:
“Pelo exposto, nos termos do artigo 372.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, determino a redução do arresto decretado para a quantia de € 298.000,00 (duzentos e noventa e oito mil euros), com as legais consequências.
A taxa de justiça da oposição é da responsabilidade da Requerida, sem prejuízo de ser atendida, a final, na ação respetiva.
Fixo o valor do procedimento cautelar de arresto na importância de € 711.778,31 (crédito invocado no requerimento inicial).
Registe e notifique.”
4. Inconformada, Valente – Consultoria, Engenharia, Projectos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal Lda., Requerente nos presentes autos, interpôs recurso de apelação, pedindo fosse alterada a matéria de facto indiciariamente apurada e indiciariamente não apurada e, consequentemente, se mantivesse a decisão inicial de 8 de julho de 2019, que tinha decretado o arresto e ordenado a prestação da correspondente caução em sua substituição no valor de € 800.000,00, revogando-se, assim, a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por acórdão que mantivesse a providência de arresto, procedente, por provada, devendo a decisão recorrida estatuir o seguinte: nos termos do art. 372.º, n.º 3, do CPC, determino a manutenção do arresto nos exatos termos em que foi decretado.
5. Segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de dezembro de 2019:
“Pelo exposto, os Juízes, na 1ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Coimbra:
1) Julgam improcedente o recurso.
2) Mantêm a decisão recorrida.
Custas pela recorrente”.
6. Irresignada, Valente – Consultoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda., interpôs recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:
“1.ª O presente recurso de revista tem por objeto o Acórdão, datado de ……. de 2019, proferido pelo Tribunal da Relação ……, que julgou improcedente a Apelação, relativamente ao teor dos Factos Indiciariamente Provados e dos Factos Indiciariamente Não Provados, porquanto não se mostra ter sido violado o disposto nos art.ºs 607º, nº 4 e 640º, nº 1 , al. b). do C. P. Civil, ou em quaisquer outros – e, em consequência, mantém integralmente o teor dos factos ora impugnados;
5.1. SOBRE A ADMISSIBILIDADE DA REVISTA:
2.ª Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos;
3.ª Os fundamentos invocados pelo Tribunal da Relação de Coimbra, colados às Alegações de Apelação da Recorrida, contêm uma fundamentação essencialmente diferente, da decisão proferida na 1.ª instância, além de várias nulidades e inconstitucionalidades;
4.ª Com efeito, para além das nulidades a que se referem o nº 2, 2ª parte do Artigo 608º e as alíneas d) e e) do nº 1 do Artigo 615º do Código de Processo Civil, o Acórdão recorrido viola o direito à tutela jurisdicional efetiva, a que o Artigo 20º da Constituição da República Portuguesa atribui a dignidade de Direito Fundamental, um verdadeiro Jus Cogens, consagrado pelo Direito Internacional, e, especificamente, pelo Direito Europeu e pelo Direito do Investimento Estrangeiro (inconstitucionalidade);
5.ª A presente Revista tem por fundamento o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, por ter havido ofensa de disposições expressas na lei exigindo certa espécie de prova para a existência dos factos e fixando a força de determinados meios de prova.
5.2. SOBRE A QUANTIFICAÇÃO INDICIÁRIA DA DÍVIDA
5.2.1. UMA REDUÇÃO TEMPORÁRIA E RECUPERÁVEL
6.ª Relativamente aos Honorários, da Recorrente, estipulados no Contrato de Consultoria as Instâncias deveriam ter tido o cuidado de averiguarem:
a. Se se verificou a sua divisão em duas partes: uma com vencimento nas datas do normal vencimento desses honorários, ficando a parte restante sujeito a uma cláusula do tipo salvo regresso de melhor fortuna;
b. Se se verificou uma efetiva redução temporária desses honorários, sem direito ao reembolso da parte não paga;
c. Se se verificou uma redução definitiva dos honorários devidos.
7.ª Como elementos de prova apenas se encontram referenciados os seguintes:
a. O Contrato de Consultoria;
b. Depoimento prestado pela testemunha BB;
c. Declarações dos legais representantes da Recorrente, CC e da Recorrida, DD.
8.ª O apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes é matéria de direito, porque visa a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial;
9.ª Sem prejuízo do disposto no Contrato de Consultoria, parece que, quer a testemunha, BB, quer o legal representante da Recorrente, CC confirmam o seguinte facto:
Os honorários pagos pela Recorrida, à Recorrente, sofreram, depois de ……. de 2014, uma redução, de € 12.000,00 para € 8.000,00, com o consentimento do legal representante da ora Recorrente.
10.ª Não houve uma redução definitiva dos honorários devidos à Recorrente, porque:
a. Competia à Recorrida, de acordo com as regras da distribuição do ónus da prova, ter feito a alegação e a prova de que essa alteração era definitiva e foi, como tal, aceite pela Recorrente.
b. Foram celebrados acordos escritos com todos os colaboradores da Recorrida, afetados por reduções, o que não aconteceu com a Recorrente, por vontade de ambas as partes;
c. O Contrato de Consultoria manteve-se em vigor, na sua totalidade;
d. O legal representante da Recorrente é um engenheiro de minas world class, que só aceitou a diminuição dos honorários da Recorrente, na perspetiva de recuperar o perdido quando surgisse um novo ciclo de fulgor da Requerida, altura em que perspetivava receber a parte dos honorários que não iriam ser recebidos;
e. A situação da Recorrente, relativamente à Recorrida, era diferente da dos demais colaboradores da Requerida, porque como legal representante da Recorrente a sua contribuição era essencial, como representante da Recorrida, em Portugal, e o líder local de toda a sua estrutura mineira;
f. A Recorrente é uma empresa unipessoal, detida por uma empresa estrangeira, sujeita a regras específicas de corporate governance, que a impediriam, por certo, de aceitar uma redução dos honorários cobrados à Recorrida, caso essa redução fosse definitiva e não conjuntural;
g. A Recorrente não considera que a situação se configurasse como constituindo uma justa causa para a rescisão do Contrato de Consultoria, dado a natureza transitória e circunstancial da situação;
11.ª Foi prevista, no Contrato de Consultoria, a possibilidade de redução do valor dos honorários, contudo, também ficou claro, porque expresso numa cláusula contratual, que os honorários da Recorrente não poderiam ser reduzidos, devendo, antes, ser atualizados, anualmente, de acordo com a taxa de inflação indicada pelo Instituto Nacional de Estatística de Portugal;
12.ª O Contrato de Consultoria é um documento particular em que a respetiva autoria (partes contratantes) e o seu conteúdo (substância) não foram postos em causa pela Recorrida, que não arguiu a sua falsidade, pelo que faz prova plena quanto às declarações aí constantes;
13.ª Os factos compreendidos no conteúdo das disposições do Contrato de Consultoria consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses da Recorrida;
14.ª A forma ad probationem (documento escrito, como é o caso do Contrato de Consultoria) requer-se para demonstrar a existência do negócio;
15.ª A regra é a de que o documento escrito (autêntico, autenticado ou particular) é exigido como forma ad substantiam, pelo que apenas quando se refira, clara e expressamente, à prova do negócio, é que o documento se considera exigido como formalidade ad probationem;
16.ª À falta de impugnação, expressa, pela Recorrida, do Contrato de Consultoria, verifica-se que todas as suas disposições se encontram em vigor;
17.ª Mantendo-se o anteriormente acordado, expresso no Contrato de Consultoria, verificou-se, na prática, uma sua alteração circunstancial e não definitiva, ao contrário do que se decidiu nas Instâncias;
18.ª É do senso comum que nenhuma empresa aceita, definitivamente, reduções significativas no preço dos seus serviços, sobretudo se essa redução afetar, para além dos lucros, os respetivos custos;
19.ª Também é do senso comum que nenhuma empresa aceita prescindir, definitivamente, dos lucros da sua atividade empresarial, porque isso contraria a affectio societatis dos titulares do seu capital;
20.ª A sócia da Requerente não se conformaria com a corporate governance do legal representante da Recorrente se este tivesse aceitado prescindir dos lucros da empresa, em termos definitivos, responsabilizando-o, porque isso contraria o fundamento primordial da atividade societária e empresarial;
21.ª Não há, nos autos, nada, absolutamente nada, que nos permita extrair a conclusão de que se verificou uma efetiva redução temporária desses honorários, sem direito ao reembolso da parte não paga, porque se houvesse, teria sido alegada e, eventualmente, provada pela Recorrida, o que, de todo, não aconteceu;
22.ª A interpretação mais correta, à falta de qualquer outro documento, para além do Contrato de Consultoria, depoimento de testemunha ou declaração, é a de que se verificou a divisão dos honorários devidos à Recorrente, em duas partes: uma parte, com vencimento nas datas do normal vencimento desses honorários; e, a outra parte, sujeita a uma cláusula, não escrita, do tipo salvo regresso de melhor fortuna;
23.ª É esta, seguramente, a interpretação mais certa e segura, em face dos interesses em presença, até porque se trata de uma prova indiciária da existência de um direito de crédito, a favor da Recorrente, e não de uma prova que leve a uma condenação definitiva e irreversível da Recorrida;
24.ª O Acórdão recorrido apurou, de uma forma ilógica, ilegal e sem fundamento, a vontade psicologicamente determinável da Recorrente e da Recorrida, relativamente à redução, temporária, e recuperável dos honorários devidos à Recorrente, porque está no Contrato de Consultoria e nos dados da corporate governance, a determinação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial;
25.ª O Acórdão recorrido é, nessa parte, nulo e de nenhum efeito.
5.2.2. TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
5.2.2.1. PERDA DA GARANTIA PATRIMONIAL
26.ª A interpretação resultante das decisões das Instâncias levará, por certo, em termos definitivos, à perda da garantia patrimonial expressa na caução prestada pelos Recorrentes - já que a Recorrida não tem património, nem em Portugal nem no ………, que lhe permita pagar o devido – caso a Recorrente venha a obter uma decisão favorável na ação principal, já em curso, pelo Tribunal de ……;
27.ª Caso a Recorrida consiga obter a libertação, ainda que parcial, da caução prestada, não deixará, por certo, de dispor dos valores libertados, com plena liberdade, em seu próprio proveito, em Portugal ou no Canadá;
28.ª Se isso acontecer, o Acórdão recorrido determinará o resultado final da ação principal, em termos de satisfação dos créditos da Recorrente, porque não haverá mais património a responder pela dívida, para além do valor residual da caução depois de reduzida;
29.ª Desta forma, não estarão as Instâncias a assegurar uma tutela jurisdicional efetiva aos direitos de crédito da Recorrente, o que torna as respetivas decisões inconstitucionais;
30.ª O surgimento do princípio da tutela jurisdicional efetiva prende-se com a necessidade básica de, num Estado de direito, se conceder aos cidadãos todas as condições necessárias para que possam fazer valer, perante os Tribunais os seus direitos ou interesses legalmente protegidos;
31.ª Por isso é que a interpretação que a Recorrente defende, no caso concreto, é aquela que conduz a um maior equilíbrio nos interesses divergentes da Recorrente e da Recorrida: a caução prestada mantém-se nos valores atuais, para garantia dos créditos da Recorrente; caso esses créditos sejam confirmados, na ação principal, a Recorrente não perde a garantia prestada para a satisfação desses créditos; caso esses créditos não seja confirmados, na ação principal, a Recorrida poderá fazer seus os valores correspondentes à diferença entre o valor caucionados e o valor devido;
32.ª No fundo a perda da tutela jurisdicional para os créditos do Recorrente, traduzida na diminuição dos valores da caução prestada, tal como foi decidido pelas Instâncias, traduzir-se-ia na violação de um direito fundamental da Recorrente, que é o direito à realização, efetiva, dos créditos que a Recorrente tem sobre a Recorrida, o que é uma inconstitucionalidade;
33.ª O Acórdão recorrido é, nessa parte, nulo e de nenhum efeito.
5.2.2.2. A QUESTÃO DO IVA
34.ª Foi acordado, entre Recorrente e Recorrida, que os honorários seriam acrescidos de IVA e/ou outros impostos, quando devidos;
35.ª Se o IVA é devido ou se este não é devido é questão que ultrapassa a vontade da Recorrente e da Recorrida, porque a cobrança do IVA é matéria que diz respeito à Autoridade Tributária e Aduaneira, como direito indisponível e irrenunciável do Estado Português;
36.ª O fato das Instâncias terem decidido que o IVA não é devido, não impede a Autoridade Tributária e Aduaneira de liquidar e cobrar o IVA, à Recorrente, se entender, dentro dos seus próprios critérios (legais), que este imposto é devido;
37.ª Prevalecendo a decisão das Instâncias, a Recorrente corre o risco de ter de entregar ao Estado o valor do IVA que foi, judicialmente, impedido de cobrar à Recorrida;
38.ª Mais ajuizado seria que se considerasse o valor do IVA, nos créditos reclamados pela Recorrente, com a salvaguarda prevista contratualmente, se devido;
39.ª A Recorrida só poderia obter uma decisão favorável, nas Instâncias, isto é que desconsiderasse o IVA nos créditos da Recorrente, caso tivesse solicitado e obtido uma informação vinculativa da Autoridade Tributária e Aduaneira declarando não ser devido o IVA, neste caso concreto;
40.ª Só perante essa informação vinculativa poderiam as Instâncias ter decidido como decidiram (não ser devido o IVA), porque:
a. O Estado não é parte na presente relação processual;
b. A liquidação, cobrança ou reconhecimento de eventuais situações de não incidência ou isenção do IVA, são matérias excluídas da jurisdição dos Tribunais Comuns,
41.ª Até prova em contrário, nos créditos da Recorrente, sobre a Recorrida, deverão ser considerados os valores do IVA, tal como se encontram previstos no Contrato de Consultoria;
42.ª Só dessa forma será assegurada uma tutela jurisdicional efetiva a esses créditos, nos termos acima expostos.
43.ª O Acórdão recorrido é, nessa parte, nulo e de nenhum efeito.
5.2.3. NULIDADES
5.2.3.1. INDEMNIZAÇÃO PELA MORA
44.ª O Acórdão recorrido incorre em grave erro de julgamento ou num manifesto equívoco, porque:
a. O pedido no Arresto é a apreensão de bens suficientes para a garantia de créditos e não o pedido em condenação de qualquer quantia;
b. O presente processo é uma Oposição a Arresto, em que a iniciativa processual é do ora Recorrido, que é quem faz o pedido, e que não se pode confundir com o ora Recorrente.
45.ª A indemnização pela mora integra os créditos da Recorrente, como direito acessório ao capital correspondente aos créditos a que tem direito;
46.ª Por via da Oposição ao Arresto, a Recorrida só poderia por em causa a taxa utilizada para o cálculo da indemnização pela mora, mas não esta indemnização, acabando por não fazer nem uma coisa nem a outra;
47.ª A não consideração, na Sentença de ……. de 2019, dos créditos correspondentes à indemnização pela mora foi uma omissão de pronúncia - o que importa a nulidade da respetiva decisão - que o Acórdão de ……. de 2019 tentou resolver, mas de uma forma distraída e totalmente desajustada;
48.ª O que é certo, porém, é que a Recorrente tem direito a essa indemnização, como crédito a ser considerado, indiciariamente, porque contratualmente previsto, em caso de mora no pagamento do devido;
49.ª Também neste caso as Instâncias decidiram sem terem presente as disposições do Contrato de Consultoria, uma vez que se trata de matéria que não foi objeto da Oposição ao Arresto;
50.ª Quer isto dizer que as Instâncias julgaram, agora sim, ultra petitum - o que importa a nulidade das respetivas decisões proferidas - porque a Recorrida não fez nenhuma alegação sobre a indemnização pela mora, na Oposição ao Arresto, tendo as Instâncias, oficiosamente, omitido esses juros no cômputo dos créditos da Recorrente;
51.ª Agindo dessa forma as Instâncias violaram as disposições legais referidas no próprio Acórdão de que se recorre.
52.ª O Acórdão recorrido é, nessa parte, nulo e de nenhum efeito.
5.3. SOBRE A T............
5.3.1. O INTERESSE ……. E ………. DA Q…….
53.ª Existe falta absoluta de lógica na relação entre os seguintes dois factos, em face de documentos autênticos constantes dos autos:
a. A ideia de retirar a Q……. do Universo C............, SGPS, já antes havia sido equacionada, devido ao facto do objeto social da Q……. nada ter a ver com a atividade mineira (…);
b. Foi por esse motivo que, no universo de um grupo mineiro, se passou a encontrar uma empresa vinícola, continuando esta empresa a sua atividade de produção de vinho, autónoma da atividade de prospeção mineira, e mantendo uma administração distinta das restantes sociedades do grupo, cujos administradores não sabiam nada da produção de vinhos;
54.ª A ideia de retirar a Q............ do Universo C............, SGPS é uma mera intenção, absolutamente irrelevante, porque não foi concretizada, valendo, para todos os efeitos, o que consta do registo comercial, que faz prova plena, relativamente à Recorrente.
55.ª A razão foi outra: a descoberta de um importante depósito de tungsténio no subsolo da área abrangida pela Q............, porque a C............, tinha todo o interesse em adquirir a Q............ para que a TT............, Unipessoal, Lda, não tivesse constrangimentos ou custos adicionais na execução das operações mineiras objeto das concessões mineiras denominadas ……. e ……, para prospeção e exploração experimental de tungsténio e de outros recursos minerais associados;
56.ª A Q............ surge no universo dos interesses empresariais da Recorrida como uma vantagem ou um mal menor decorrente da sua atividade mineira e não por qualquer outra razão lógica ou ligada a qualquer outro interesse empresarial relevante;
57.ª Por outro lado, BB, para além de ser gerente da Q............, é gerente ou administrador da holding C............ e das suas subsidiárias, A………, E............ e EU............r, que são empresas mineiras, de acordo com os respetivos objetos sociais;
58.ª Os administradores designados pela Recorrida, AA, EE e FF, sabiam da atividade mineira e sabia, também, da produção de vinhos;
59.ª Não se pode, por isso, dar como provado, como o fizeram as Instâncias, que os administradores das empresas mineiras da Requerida não sabiam nada da produção de vinhos.
5.3.2. IDONEIDADE DOS MEIOS DE PROVA
5.3.2.1. OS TESTEMUNHOS E AS DECLARAÇÕES
60.ª A Recorrente não aceita que tenham sido dados como indiciariamente provados os seguintes factos:
a. A T............ tinha como administradores AA, CC e GG,
como resulta de uma ata do Conselho de Administração da T............ datada de ……. de 2016;
b. (…) e a T............ foi constituída e registada por AA e CC, sem qualquer conhecimento da CRI, em ……. de 2016.
61.ª O certificado do registo comercial da T............, emitido pela entidade pública Turca competente, legalizado e traduzido para Português, junto como documento n.º 6 pela Recorrida, é um documento autêntico que, na ausência de impugnação e de prova em contrário, faz prova dos seguintes factos:
a. A T............ R............ é uma subsidiária da E............, de que dela foi fundadora, juntamente com a sociedade U............(U……. Incorporated);
b. Foi registada na .............. a 22.07.2016;
c. O capital social é o equivalente a € 2.000.000,00 (dois milhões euros);
d. O seu conselho de administração, eleito por 3 anos, era composto pela E............ e U…… Holding, agindo em nome e representantes das mesmas, AA, na qualidade de presidente do Conselho de Administração, e GG na qualidade de vice-presidente
62.ª A ata não prova os factos que nela sejam narrados e, seguramente, não se sobrepõe a documentos oficiais, que fazem prova plena;
63.ª O registo comercial junto como documento n.º 6, tem dois efeitos:
a. Um declarativo e, em consequência, a presunção legal dele decorrente é meramente iuris tantum, podendo ser ilidida mediante prova em contrário;
b. Um constitutivo originando uma presunção iuris et de iure, como por exemplo a constituição de sociedades.
64.ª A alegada ata do conselho de administração, datada de 28 de junho de 2016, apenas assinada por GG, não é um meio de prova idóneo para ilidir a presunção do registo comercial, quer no tocante à gerência quer no tocante à determinação dos responsáveis pela constituição da T............;
65.ª Por seu turno, duas das pessoas arroladas pela Recorrida, com alegado conhecimento da matéria de facto, foram BB, na qualidade de diretor jurídico da Colt, e DD, na qualidade de seu representante legal, ambas com manifesto interesse no desfecho da causa, e sem conhecimento direto dos factos;
66.ª É duvidoso que, nem o Diretor Jurídico, nem o Conselho de Administração da Recorrida, tivessem tido conhecimento da constituição da T............, na ……, porque é normal que, visando a formalização desse ato, fosse exigida, na ………:
a. Uma prova da existência jurídica da Requerida, nomeadamente um certificado da sua constituição e vigência nessa data, correspondente, em Portugal, à escritura pública de constituição e respetiva matrícula na Conservatória do Registo Comercial; e,
b. Uma deliberação do Conselho de Administração da Recorrida, autorizando a subscrição e a realização de cinquenta por cento (50%) do capital social da T............,
67.ª É normal, em termos de senso comum, que o Diretor Jurídico da Recorrida, a testemunha BB, tivesse intervindo na obtenção desses documentos, na apreciação do respetivo pacto social e na estruturação do negócio, em si, porque a T............ era, por certo, um mero instrumento para a realização das atividades económicas que constituem o seu objeto;
68.ª Por outro lado, também é normal, em termos de senso comum, que o Conselho de Administração, vigente à data, liderado pelo próprio AA, CEO da empresa, tivesse tido conhecimento da constituição da T............;
69.ª As funções desempenhadas por BB (Diretor de Serviços Jurídicos, Secretário, Consultor, Chefe da Logística – CLO) pressupõem uma grande proximidade de atuação com o CEO da Recorrida, AA, pelo que não é plausível que aquele só teria ouvido falar da T............, em ……. de 2016, cerca de quatro (4) meses depois da sua constituição;
70.ª Alguém está a tentar escapar a uma eventual responsabilização, pela constituição da T............, e esse alguém só poderá ser o Diretor Jurídico, BB, que é uma pessoa omnipresente e atuante em tudo o que se refira à Recorrida;
71.ª O conhecimento de DD, prestado em sede de declarações de parte, é posterior aos factos, porque só ocorreu após ……… de 2016, após a sua designação como CEO da Recorrida, pelo que se trata de um conhecimento por ouvir dizer, e não um conhecimento direto dos factos, como razão de ciência;
72.ª Relativamente à fundamentação da matéria de facto o tribunal de 1ª Instância teve única e exclusivamente em consideração os depoimentos prestados pelas testemunhas da Recorrente, mormente, de BB e as declarações de parte de DD, as quais considerou coerentes, isentas, sinceras e conhecedoras dos factos e do local objeto dos autos, desconsiderando o interesse dos dois no desfecho da causa, a força de documentos autênticos e os depoimentos e declarações de parte da Recorrente.
5.3.2.2. FORÇA PROBATÓRIA DOS DOCUMENTOS
5.3.2.2.1 OS FACTOS E A SUA ANÁLISE CRÍTICA
73.ª A Recorrente também não se aceita, que o Tribunal recorrido tenha dado, como indiciariamente provado, que a T............ foi constituída e registada por AA e CC em 22 de julho de 2016;
74.ª Isto porque, mais uma vez, o nome e a assinatura de CC não consta em nenhum dos documentos oficiais da T............, nomeadamente dos estatutos e do certificado de registo comercial juntos sob documento n.º 6 pela Recorrida;
75.ª O Tribunal da Relação de Coimbra não procedeu, pelo menos objetivamente, à análise crítica dos concretos meio probatórios convocados pelas partes, mormente nos indicados documentos, depoimentos das testemunhas bem assim como das declarações de parte, de modo a ajuizar sobre o invocado erro de valoração dessas provas e a formar a sua própria convicção sobre os factos constantes dos pontos impugnados, limitando-se a sufragar formalmente a decisão da 1ª Instância e a tomar como acertadas as considerações, fabulações e presunções da Recorrida vertidas nas suas contra-alegações, com direito a decalque para o texto do acórdão, sem qualquer juízo crítico;
76.ª Não faz sentido que da menção do nome de CC num documento, não subscrito pelo próprio, se retire a ilação de que o seu nome foi ali aposto com o seu consentimento;
77.ª Tudo, porque no entender da Recorrida, se trata de um documento levado ao conselho de administração da T............, por um ilustre desconhecido de nome GG, desconsiderando que no certificado do registo comercial desta sociedade, a gerência é de GG e de AA, e de acordo com o artigo 9.º dos estatutos da sociedade, junto pela Recorrida como documento n.º 6, a gerência pode ser constituída por 1 a 3 membros;
78.ª A Recorrida não fez qualquer outra prova da gerência de direito e muito menos do exercício da gerência de facto pelo representante legal da Recorrente: a prova da gerência de direito faz-se com a certidão do registo comercial; e, a prova da gerência de facto com a alegação e prova de que aquela pessoa exercia, de facto, poderes de gestão determinantes na atividade da sociedade;
79.ª Fica por explicar a razão do afastamento da prova resultante de um documento com força probatória plena face a uma suposta ata de uma alegada reunião do conselho de diretores, não assinada pelo visado;
80.ª Da análise crítica dos documentos 6, 27, 10 a 15, 16, 17, 4 e 18, não resulta documentalmente provado nenhum dos factos que a Recorrida refere. O documento 19 é uma mensagem de correio eletrónico de CC, datado de 27 de setembro de 2016, que não tem como destinatários a administração da CRI, e em cujo assunto, e corpo, é referido o envio de um projeto, completo e definitivo, que a Recorrida não juntou aos autos e cujo teor é desconhecido. No mesmo documento 19, AA, e não CC, terá reencaminhado o aludido projeto para BB, por e-mail de 29 de janeiro de 2018.
81.ª A identificação dos movimentadores das contas, não faz prova de que CC tenha movimentado as contas para efetuar transferências para a T............. São dois atos e, por conseguinte, dois factos, totalmente distintos;
82.ª Nunca a Recorrente pôs em causa os poderes de CC para movimentar as contas bancárias da E............, contudo nunca a Recorrente aceitou que este tivesse movimentado fundos dessas contas para a T............. O facto, provado, de ter poderes para o fazer não significa que CC tenha efetivamente ordenado tais transferências;
83.ª Uma leitura atenta dos documentos juntos pela Recorrida leva necessariamente à conclusão de que CC não fez qualquer transferência de fundos da E............, muito menos das contas bancárias da Colt, para a T............;
84.ª Ademais, os depoimentos prestados, em audiência de julgamento, assentam em meros juízos presuntivos, sem qualquer aderência à realidade, pois apenas uma pessoa com uma mente fantasiosa pode afirmar que CC assinou as transferências, uma vez que não há nos autos qualquer documento relativo a transferências bancárias assinado pelo representante da Recorrente;
85.ª Só um raciocínio eivado de má-fé processual e ódio visceral pelo representante legal da Recorrente, pode levar a Recorrida a defender que se deve dar como provado, com base nos documentos (e-mails) 10 a 15, e no documento n.º 6, refira-se mais uma vez, certificado do registo comercial da T............, sem qualquer referência a CC, que “a T............ foi, como já se referiu e consta do Doc. n. °6, constituída e registada por AA e CC”;
86.ª Até porque também tal facto não resulta nem do documento n.º 6 nem dos depoimentos prestados em audiência, mas ainda que resultasse dos depoimentos, tal como referido e reiterado, não participaram, não viram, não acompanharam, nem estavam em Portugal ou na .............., não passam de testemunhos de ouvir dizer, com uma idoneidade muito duvidosa;
87.ª O representante da Recorrida não afirmou não ter tido qualquer intervenção. Este declarou que a sua intervenção foi restrita a duas ou três situações, a pedido de AA, CEO da Recorrida a quem Valente reportava, pessoa que geria, de facto, o negócio da Recorrida;
88.ª Declarações que em nada contendem com a verdade dos factos, nem com a realidade da gestão das sociedades do grupo Colt, voluntariamente deixada nas mãos de AA, que tudo decidia, com a colaboração de HH na área financeira e com BB nas seguintes áreas: Serviços Jurídicos, Secretariado, Consultoria e Logística;
89.ª O relatório 3T não comprova o conhecimento pela Recorrida da constituição da T............, porque embora da autoria de quem tinha poderes para a vincular, é da responsabilidade de quem o redigiu e não da própria, como se os órgãos das sociedades não manifestassem a sua vontade;
90.ª Não é credível que os membros do Conselho de Administração da CRI, não tenham tido conhecimento da constituição da T............, cuja iniciativa é do seu CEO, AA;
91.ª Está indiciariamente provado que, o representante da Recorrente nunca teve poderes para sozinho, vincular a sociedade, precisando sempre de assinar conjuntamente com outro administrador os atos relevantes que praticasse, e a partir de janeiro de 2010 passou a agir ao abrigo de procurações com poderes detalhados;
92.ª O acima alegado e transcrito pela Recorrente foi no sentido de demonstrar a falta de base probatória indiciária suficiente para se concluir pela prova daqueles factos.
5.3.2.2.2 O DIREITO APLICÁVEL
93.ª O princípio da livre apreciação da prova, não se confunde, na verdade, com a arbitrariedade dessa apreciação, não podendo o julgador decidir “sem prova ou contra a prova”. Embora consagrada a liberdade na formação da convicção do julgador, esta deverá, contudo, assentar em elementos probatórios, em presunções judiciais, em regras da experiência comum e/ou em critérios lógicos que, de forma sustentada e segura e tendo em conta as regras da repartição do ónus da prova, permitam uma fundada convicção quanto à verificação dos factos que se tenham como provados;
94.ª O princípio da liberdade da apreciação da prova tem, naturalmente, em conta as situações em que impera o princípio da liberdade de apreciação da prova, não incluindo, por consequência, aquelas em que a prova seja vinculada e/ou aquelas em que o facto se deva considerar como plenamente provado.
5.3.2.2.2.1. Meios de Prova
95.ª Não tendo sido feita prova em contrário, através de documento com idêntica força probatória, a gerência da empresa Turca só poderá ser provada através do certificado do registo comercial da T............, onde o legal representante da Recorrente não figura como gerente ou administrador desta sociedade;
96.ª A força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respetivo subscritor, e não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta;
97.ª Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações, dele, constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos;
98.ª Um documento não assinado, cuja autoria não é demonstrada, não tem qualquer força probatória;
99.ª E nesta medida, a quase totalidade dos documentos particulares juntos pela Recorrida, não têm qualquer valor probatório porque não se encontram assinados, e ademais foram impugnados pela Recorrente, também com esse fundamento;
100.ª Acresce o facto de que nem as testemunhas nem a parte conhecimento direto dos factos a que aludem tais documentos;
101.ª A prova da gerência de direito só pode ter como suporte a certidão do registo comercial, que é um documento autêntico;
102.ª Pelo que, não constando do registo comercial que uma pessoa tem a qualidade de gerente, a presunção resultante do registo, iuris tantum, só pode ser afastada por meio de prova idóneo a afastar tal presunção;
103.ª Tal meio de prova não se reconduz, certamente, a uma ata não assinada, de uma suposta reunião de diretores alegadamente realizada em data anterior ao registo da sociedade, uma vez que não constitui um documento particular com suficiente força probatória;
104.ª Pois, a presunção legal da verdade do registo implica a inversão do ónus da prova, e a necessidade de produção de prova em contrário (e não de mera contraprova);
105.ª A prova em contrário poderia ter sido feita mediante prova testemunhal credível, ou de outro documento autêntico. Sucede que nenhuma das testemunhas arroladas pela Recorrida disse que CC era gerente da T............, nem foi apresentado documento autêntico com teor diverso do documento n.º 6;
106.ª A presunção da verdade da situação jurídica resultante dos factos registados pode ainda ser atacada mediante ação de declaração de nulidade do registo;
107.ª Por outro lado, a qualidade jurídica de gerente, resultante do registo comercial, não faz presumir o exercício efetivo, ou de facto, das funções correspondentes ao cargo;
108.ª Mas também neste particular – exercício das funções correspondentes ao cargo de gerente - a Recorrida não fez qualquer prova, embora recaia sobre si esse ónus;
109.ª E, face à prova realizada nos autos, não era lícito operar-se a presunção judicial, baseada nas regras da experiência;
110.ª Donde se conclui que, o ponto 48 dos factos indiciariamente provados: “A T............ tinha como administradores AA, CC e GG, como resulta de uma acta do Conselho de Administração da T............ datada de 28 de junho de 2016.”, deve ser eliminado dos factos indiciariamente provados, por manifesta violação, pelas Instâncias, das normas substantivas que fixam a força probatória dos documentos autênticos, e das regras sobre o ónus da prova;
111.ª No que concerne à prova por presunção judicial, a sua força persuasiva pode ser afastada por simples contraprova, bastando à parte contrária produzir contraprova no sentido de haver razões para, no caso concreto, refutar a suposta regra da experiência comum ou regra técnica que, do facto conhecido, permite extrair o desconhecido, ou alinhar contraindicações probatórias concretas tendentes a afastar o resultado a que a sua aplicação, por regra, conduz, isto é, sendo seu ónus (ónus de contraprova) produzir prova destinada a tornar duvidoso, incerto, o facto presumido, o que é diferente de se exigir prova do contrário não produzindo, pois, tal presunção a inversão do ónus da prova;
112.ª Caso fosse necessária contraprova, o que não se aceita, porque a gerência não está registada nem foi provada pelos depoimentos prestados nas audiências de julgamento, para efeitos de contraprova seriam mais do que suficiente as declarações de parte do legal representante da Recorrente;
113.ª O vigente sistema de julgamento da matéria de facto assenta no “princípio da aquisição processual das provas”, segundo o qual o Tribunal para formar a sua convicção acerca da prova, “deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las”, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado;
114.ª Para que a presunção judicial seja admissível, seria imperioso que, na decisão de que se recorre, houvesse uma relação direta e segura, sem necessidade de elaboradas conjeturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que, por presunção, se pretende atingir;
115.ª A testemunha é chamada para narrar ao tribunal os factos que tem conhecimento e para indicar a fonte desse conhecimento. É chamada a referir as suas perceções de factos passados: o que viu, o que ouviu, o que sentiu, o que observou;
116.ª Mas o que releva, como prova por si trazida ao processo, é a parte objetiva dessa perceção, e já não a subjetiva, assim se excluindo a interpretação que a própria testemunha atribui aos factos;
117.ª Para além disso, não releva tão pouco o testemunho indireto, ou seja, o testemunho que foi obtido através de outrem e já contém em si uma versão e interpretação dos factos feitas por esse último;
118.ª Por conseguinte, o conhecimento direto sobre os factos é aquele que é adquirido pelo próprio, objetivamente, através dos sentidos, o que viu, o que ouviu, sentiu e observou.”
119.ª BB declarou que só tomou conhecimento da constituição da T............ em ……2016. Portanto, relativamente à totalidade dos factos relativos à constituição da T............, estamos perante um testemunho indireto ou de ouvir dizer. Não acompanhou, nem presenciou os factos;
120.ª DD assumiu o cargo de CEO da Colt CRI em dezembro de 2016, pelo que também não tem conhecimento direto dos factos;
121.ª Ambos não têm conhecimento direto dos factos, e ambos prestaram depoimentos tendenciosos e condicionados pelo objetivo manifesto e declarado de obter, por esta via, a compensação de um crédito que julgam ter sobre CC;
122.ª Leitura dos factos e dos acontecimentos, condicionada pela Recorrida nas suas alegações, a que o Tribunal da Relação deu acolhimento na sentença. Pois, só isso justifica que no âmbito de uma providência cautelar de arresto, para acautelar o pagamento dos honorários e despesas devidos à Recorrente, se estejam a discutir factos relativos à constituição de uma sociedade na ..............;
123.ª Estes factos foram trazidos à liça pela Recorrida, no âmbito de uma estratégia global por ela definida, de imputação de responsabilidades patrimoniais ao representante legal da Recorrente, com o objetivo claro de se alijar do pagamento dos honorários e despesas devidos à Recorrente;
124.ª A prova por testemunhas não abala nem afasta a força probatória do certificado do registo comercial da T............;
125.ª O Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão. Nos casos em que ocorra confissão, há que sublinhar a imprescindibilidade de efetuar a correspondente assentada a fim de que a confissão passe a beneficiar da força probatória plena;
126.ª No segmento em que não constituem confissão, as declarações de parte são – na definição legal – livremente apreciadas. Esta liberdade de valoração, todavia, nada nos diz sobre os concretos parâmetros de valoração das declarações de parte nem sobre a função da mesma como meio de prova no processo;
127.ª A Recorrente entende que a posição mais correta radica na tese mais ampla, repudiando o pré-juízo de desconfiança e de desvalorização das declarações de parte;
128.ª De resto, a prova testemunhal, a prova pericial e a prova por inspeção estão também sujeitas à livre apreciação do tribunal, sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, no limite, só com base num depoimento;
129.ª Por conseguinte, as declarações de parte estão ao mesmo nível dos demais meios de prova livremente valoráveis, não havendo nada que impeça ao Tribunal, dar um facto por provado com base nas declarações da parte;
130.ª As declarações de parte são, por si, suficientes para suportar uma decisão sobre um facto, sempre que a natureza dos factos, e mesmo das circunstâncias, torne inviável outra prova;
131.ª E nesta ação em particular, a única pessoa com conhecimento diretos dos factos relacionados com a constituição da gerência da T............, bem como da sua constituição, é o representante legal da Recorrente;
132.ª O Acórdão recorrido violou as disposições legais citadas, em notas de pé de página, ao longo das presentes alegações.
6. PEDIDO:
Termos em que, deve:
a. Ser admitida a Revista;
b. Ser concedido provimento à Revista, com a consequente emissão de Acórdão declarando a nulidade do Acórdão recorrido, por inconstitucionalidade e violação da lei, relativamente aos meios de prova trazidos aos autos, e errado apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes, visando a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial, objeto da Apelação e, agora, da Revista, ordenando-se, em consequência, a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Coimbra, para que profira Acórdão que não padeça dos vícios que o tornaram inválido.
Pois só assim se fará JUSTIÇA!”
7. A CRI (Requerida e Recorrida) pronunciou-se sobre a (in)admissibilidade do presente recurso de revista e deu como reproduzidas as contra-alegações por si apresentadas em sede de recurso de apelação.
8. Ao abrigo do art. 655.º do CPC, a Senhora Relatora, ponderando, nos termos então expostos, rejeitar o recurso de revista interposto por Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda., convidou as partes a dizer o que tivessem por conveniente dentro do prazo legalmente previsto.
9. Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda. (Requerente e Recorrente) apresentou a seguinte “Manifestação”:
“1. OBJETO DA MANIFESTAÇÃO DA RECORRENTE
A Recorrente congratula-se, antes de mais, pelo cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 655.º do Código de Processo Civil (CPC), permitindo aos sujeitos processuais, contribuír e ativamente para a boa administração da justiça. Essa contribuição é materializada, pela Recorrente, na presente Manifestação.
Com efeito, a proibição da revista não se aplica no presente caso, porque está em causa fundamentalmente a realização de um Direito Fundamental, de acordo com o Direito da União Europeia (UE ou EU).
1.1. VALORES DEPOSITADOS EM SUBSTITUIÇÃO DO ARRESTO
1.1.1. VIOLAÇÃO DO DIREITO DA EU
1. Independentemente do que se pretende fique consignado no Despacho objeto da presente Manifestação, resulta das decisões das Instâncias a seguinte situação:
A Recorrente corre o risco de, depois de julgado o periculum in mora, e de ter sido decretado o Arresto, perder a garantia patrimonial do seu crédito3, por via da redução das quantias depositadas, decidida pelas Instâncias, caso os pedidos formulados na Ação Principal venham a ser julgados procedentes, por provados, na sua totalidade.
2. Com efeito, o Tribunal não pode, em face das decisões das Instâncias, reduzir os valores depositados pela Recorrida, em substituição do Arresto, porque, se tal acontecer, a Recorrente ficará, com toda a certeza, em face da situação económica e financeira em que a Recorrida se encontra, em Portugal e no estrangeiro, em situação de não poder obter a plena satisfação dos seus créditos, caso estes venham a ser reconhecidos, na sua totalidade, na Ação Principal.
3. Este risco é real e atual, por tudo quanto se decidiu na Providência Cautelar, e ainda pelo que resulta da seguinte e recente iniciativa do Ministério Público: juntou à Ação Principal um documento comprovativo do cancelamento da matrícula da participada da Recorrida, C............ – SGPS, SA. (Requerimento de ……. de 2020 com a Referência ………, que se junta por cópia, que aqui se dá por reproduzida (Doc. 1 ID ……).
4. De acordo com o teor da inscrição 5, AP. ……. UTC - DISSOLUÇÃO E ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO, procedeu-se em simultâneo à dissolução e ao encerramento da liquidação matrícula, em virtude de não ter sido apurado qualquer ativo ou passivo a liquidar, nos termos e para os efeitos do respetivo procedimento administrativo.
5. A Recorrida, que era a única acionista da C............, deixou de ter, assim, desse ……. de 2020, qualquer controlo sobre a Q……, Unipessoal, Lda., que, por seu lado, também não tem qualquer património, por ter vendido, entretanto, o seu único bem, a Quinta de ……, em …….
6. A C............ – SGPS, S.A., era a sociedade titular das participações sociais das demais sociedades ou empresas do grupo empresarial da Recorrida, como resulta da matéria dada como provada pelo Tribunal de 1ª Instância.
7. Acresce que a Recorrente fez, nesta data, uma consulta às matrículas das sociedades ou empresas do grupo empresarial da Recorrida, através do Portal MJ – Publicação de Atos Societários on line, tendo constatado que:
a. A sociedade A.............. Unipessoal, Lda. detida exclusivamente, pela C............, foi dissolvida administrativamente;
b. Outras sociedades ou empresas do grupo empresarial da Recorrida, com exceção da Q............, não publicam as suas contas, desde o exercício de 2015.
8. Ao decidir, como decidiram, as Instâncias violaram Direitos Fundamentais da Recorrente, especialmente protegidos pelo Direito da EU, que prevalecem sobre as normas do Direito Português, invocadas no Despacho.
9. É, sobretudo, através das inconstitucionalidades e nulidades suscitadas que a Recorrente pretende fazer valer os direitos que lhe assistem, com fundamento na violação do Direito da EU.
10. Com efeito, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, implica que a tutela contenciosa, a conferir aos particulares - o direito de ação e o direito ao recurso - não sofra qualquer restrição, e por conseguinte, essa tutela estende-se à adoção de medidas cautelares, que garantam o efeito útil da ação principal que este possa ser posto em causa.
11. Com significativo atraso, relativamente a outros Estados-Membros, os Tribunais Portugueses têm vindo a aderir, embora com uma excessiva contenção, relativamente ao tradicional império do Direito Nacional, aos princípios enunciados, pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de cumprimento obrigatório, relativamente ao tema da tutela jurisdicional efetiva, do direito ao recurso, e da proteção que devem merecer os Direitos, Liberdades e Garantias dos particulares, nomeadamente por via da adoção de providências cautelares.
12. Só isso pode explicar as decisões das Instâncias e o Despacho objeto da presente Manifestação, que desconsideram o Direito da UE, no que se refere aos direitos fundamentais invocados pela Recorrente, abrangendo o Direito comum dos Países aderentes ao Conselho da Europa (47) e os Países que constituem a EU (27).
4 A tutela cautelar tem por função garantir a eficácia do direito à tutela jurisdicional efetiva, que pode ser colocado em causa pela perda do efeito útil da ação. Nesse sentido, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2.ª edição, Lisboa, 1997, pp. 226 e ss justifica a obtenção da “composição provisória” do litígio pela necessidade de “assegurar a utilidade da decisão e a efetividade da tutela jurisdicional”
13. No Acórdão proferido no caso Antonissen, o TJUE, ao referir os Acórdãos proferidos nos casos Zuckerfabrik e Factortame, fazendo apelo ao direito à tutela jurisdicional efetiva, nas providências cautelares, afirma que esta implica que se assegure uma tutela judicial provisória sempre que esta se mostre necessária para a “plena eficácia da futura decisão definitiva”.
14. Esta tutela cautelar abrange, quer os casos em que estão em causa atos de direito nacional incompatíveis com o Direito da UE (Acórdão do caso Factortame), quer quando estejam em causa atos nacionais de execução de atos de Direito da UE, inválidos (Acórdão dos casos Zuckerfabrik e Atlanta).
15. Respondeu-se, assim, no § 23 do Acórdão proferido, pelo TJUE, no caso Factortame, acima referenciado, à questão prejudicial suscitada, por via do reenvio:
O direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que, quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o direito comunitário, considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma do direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma.
16. Esta orientação jurisprudencial, de cumprimento obrigatório, por ser fonte de Direito, quer por via do TEDH, quer por via do TJUE, é a de que não pode ser proferida uma decisão, no âmbito de uma providência cautelar, como é o caso da presente Providência Cautelar, havendo o risco de ocorrer um fato consumado suscetível de tornar inútil a eventual procedência da Ação Principal, na sua totalidade ou parcialmente.
17. Do direito da UE fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a CEDH (Convenção Europeia dos Diretos Humanos) e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros. Quer isto dizer que a CEDH também faz parte do acervo comunitário, a par da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE).
18. A CEDH reconhece o direito fundamental a um processo equitativo e constitui a expressão do que hoje em dia é o direito a uma tutela jurisdicional efetiva. Esta norma estabelece a garantia de justiça e o reconhecimento dos meios judiciais para a proteção dos direitos e liberdades da pessoa, que, em conjunto com o direito a um recurso efetivo, constituem um elemento básico do sistema jurídico.
19. O direito a um processo equitativo é um direito de conteúdo complexo que inclui um amplo catálogo de direitos e garantias processuais, de natureza formal e substancial, mas também de natureza subjetiva, referida à pessoa, que se refere, basicamente, ao direito de acesso aos tribunais e a um julgamento justo. Este direito, assim como os demais, incluindo os que implicitamente fazem dele parte integrante, formam o conjunto de elementos constitutivos da noção de processo equitativo ou direito à tutela judicial efetiva.
20. Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que atuem no exercício das suas funções oficiais.
21. Se o direito de recorrer estiver, obviamente, sujeito a condições legais, os tribunais devem, ao aplicar as regras processuais, evitar um excesso de formalismo que poderia atentar contra a equidade do procedimento e uma flexibilidade excessiva suscetível de eliminar os pressupostos processuais estabelecidos por lei (Walchli v. França, 35787/03, § 29, 26 de julho de 2007). O direito de acesso a um tribunal é violado em substância quando os seus regulamentos deixam de servir os objetivos da segurança jurídica e de uma adequada administração da justiça e constituem uma espécie de barreira que impede os litigantes de verem a matéria de fundo do seu litígio resolvido pelo tribunal competente. É o que resulta do Despacho objeto da presente Manifestação.
22. O princípio da efetividade, que impõe aos tribunais nacionais que garantam o efeito útil das normas de Direito da UE é uma expressão do princípio da tutela jurisdicional efetiva, que é um princípio estruturante do ordenamento jurídico Europeu.
23. O princípio da tutela jurisdicional efetiva implica que a tutela contenciosa a conferir aos particulares, o direito de ação, não sofra qualquer restrição, e por conseguinte, essa tutela estende-se à adoção de medidas cautelares, mesmo nos casos em que estejam em causa atos de direito nacional, incompatíveis com o Direito da EU, como resulta do Acórdão proferido no caso Factortame.
24. O efeito direto do Direito da UE acarreta obrigações para os países da UE, mas também direitos para os particulares: os particulares podem, assim, prevalecer-se destes direitos e invocar diretamente normas europeias perante jurisdições nacionais e europeias.
25. Da aplicação do princípio do primado, consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP)22, resulta que o Direito da UE tem um valor superior ao dos direitos nacionais dos Estados-Membros: o direito proveniente das instituições europeias integra-se nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros, sendo estes obrigados a respeitá-lo. O Direito da UE tem, assim, o primado sobre os direitos nacionais.
26. Deste modo, se uma regra nacional for contrária a uma disposição europeia, as autoridades dos Estados-Membros (incluindo os Tribunais) devem aplicar a disposição europeia. O direito nacional não é nem anulado nem alterado, mas a sua força vinculativa é suspensa.
27. Os Tribunais Nacionais devem, em caso de dúvida sobre a prevalência de determinadas normas do Direito da EU sobre normas do Direito Nacional, suspender de imediato a aplicação da referida norma, na pendência da solução preconizada pelo TJUE, bem como da sentença que o órgão jurisdicional proferir sobre a questão quanto ao mérito, ou seja, no que se refere às providências cautelares, quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o Direito Comunitário considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma de direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma. Não é isso o que resulta do Despacho objeto da presente Manifestação.
28. Importa frisar, pois, que o TJUE estabeleceu que compete às jurisdições nacionais assegurar a proteção jurídica dos particulares decorrentes do efeito direto do Direito da UE. Não é isso o que resulta do Despacho objeto da presente Manifestação.
29. No âmbito da aplicação do princípio da autonomia institucional, ficou esclarecido que compete à ordem jurídica interna de cada Estado-membro definir as jurisdições competentes e regular as formas processuais26. Este princípio postula, por conseguinte, que os tribunais dos Estados-Membros regem-se pela lei de processo nacional, ainda que estejam no âmbito de aplicação do Direito da UE.
30. A este princípio foram impostos limites, destinados a não pôr em causa a eficácia dos princípios do primado e da aplicação direta: o direito processual nacional não pode fazer distinções entre pretensões dos particulares que tenham por fundamento o Direito da EU, das pretensões com fundamento no direito nacional (princípio da equivalência); e, não pode impedir ou dificultar o exercício de um direito fundado no Direito da EU (princípio da efetividade). Decorre, portanto, desse princípio que cabe aos tribunais nacionais a proteção dos direitos derivados do Direito da UE, garantindo a sua efetividade. E, a proteção desses direitos abrange, por força do princípio da tutela jurisdicional efetiva, os meios processuais necessários à adoção de medidas cautelares. Não é isso o que resulta do Despacho objeto da presente Manifestação.
31. O princípio da interpretação conforme com o Direito da UE, impõe que o intérprete ou aplicador do Direito Nacional atribua às disposições nacionais um sentido conforme ou compatível com as disposições do Direito da UE28. Essa obrigação existe não só relativamente às disposições nacionais que visam dar cumprimento a uma determinada diretiva, mas relativamente a todo o Direito Nacional29. Não é isso o que resulta do Despacho objeto da presente Manifestação.
32. É manifesto que o despacho judicial objeto da presente Manifestação, constitui uma limitação de natureza processual ou uma barreira processual (procedural bar) que condiciona, de uma forma decisiva, o exercício, pela Recorrente, do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva, incluindo o direito ao recurso, o que viola o nº 1 do Artigo 6º e o Artigo 13º da CEDH, em conformidade com o que se decidiu nos seguintes acórdãos do TEDH: caso Fayed c. Reino-Unido, § 6530; caso Al-Adsani c. Reino Unido [GC], §§ 46-47; caso Fogarty c. Reino Unido[GC], § 25; e, caso Roche c. Reino Unido [GC], § 119).
33. Sobre essa mesma matéria, o TJUE declarou que O Direito Comunitário deve ser interpretado no sentido de que, quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o Direito Comunitário considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma de direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma34, decisão esta que o Despacho objeto da presente Manifestação não respeitou.
34. Da jurisprudência do TJUE em matéria cautelar, resulta claramente o reforço dos poderes dos tribunais nacionais, a quem cumpre garantir a tutela jurisdicional efetiva dos particulares no âmbito do Direito da EU, de uma forma ampla (respeitados que sejam as condições impostas pelo TJUE), quer quando esteja em causa a desconformidade do Direito Nacional com o Direito da UE, e até mesmo quando estão em causa atos nacionais de execução de atos de Direito da UE, cuja legalidade é posta em causa. Ora, o Despacho objeto da presente Manifestação não cumpre com o seu papel de garante da tutela jurisdicional efetiva dos particulares no âmbito do princípio da tutela do Direito da EU.
35. O Supremo Tribunal de Justiça (STJ), assim como as Instâncias, não poderiam, em circunstância alguma, ter admitido, como admitiram, a redução dos valores depositados pela Recorrida, na Providência Cautelar, em substituição do Arresto, incluindo, como acontece no Despacho objeto da presente Manifestação, a não admissão, por via recursiva, da apreciação da inconstitucionalidade e da ilegalidade dessas decisões, com os fundamentos invocados, que têm a ver, nitidamente, com o entendimento, errado, de que a jurisprudência nacional - que nem sequer constitui fonte de direito - prevalece sobre princípios estruturantes do Direito Português e do Direito Europeu.
36. Saliente-se, contudo, que, na presente Manifestação, não vem referida nenhuma norma Portuguesa contrária ao Direito da UE, pelo que tudo se passa ao nível da interpretação normativa, feita pelo Tribunal, ao arrepio da Lei Portuguesa e da Lei Europeia.
37. O Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) impõe35, aos tribunais nacionais, a obrigação ou o dever, quando estes decidam em última instância, de colocarem questões relacionadas com a validade e a interpretação dos Tratados, junto do TJUE, através do mecanismo de reenvio prejudicial: porém, não resulta do Despacho objeto da presente Manifestação que o STJ pretenda proceder ao reenvio prejudicial, estando a isso obrigado, por estar a decidir em última instância.
38. Essa obrigação existe, mesmo que só esteja em causa a interpretação normativa dos fundamentos legais que permitiram, de acordo com as decisões das Instâncias, a redução dos valores depositados, em substituição do Arresto, no âmbito da providência cautelar, para garantia do pagamento dos valores peticionados na Ação Principal, segundo o Direito Nacional, porque essa interpretação é, de acordo com a convicção da Recorrente, contrária à interpretação dos Tratados, feita pelo TJUE.
39. A obrigação do reenvio prejudicial impõe aos órgãos jurisdicionais, que decidem em última instância, o dever de consultar o TJUE no tocante à interpretação de questões de direito comunitário, excetuados os casos em que:
a. A respetiva resolução resulte diretamente de jurisprudência assente daquele Tribunal; ou,
b. Não exista margem para qualquer dúvida razoável.
40. Assim, quando da decisão do órgão jurisdicional nacional não caiba recurso judicial no âmbito do direito interno, os tribunais estão obrigados ao reenvio prejudicial, a não ser que se esteja perante um caso abrangido pela doutrina do Ato Claro (acte clair) ou do Ato Esclarecido (acte éclairé), situações estas que não se verificam no caso dos autos.
41. A omissão da obrigação de reenvio prejudicial é, por isso, suscetível de dar lugar a responsabilidade do Estado, pelo que a avaliação das circunstâncias que permitam ao tribunal nacional dispensar o reenvio prejudicial tem de ser efetuada com muita cautela, e com a fundamentação necessária à demonstração desses pressupostos, o que parece não ter sido preocupação do Despacho objeto da presente Manifestação.
1.1.2. O DIREITO DE ACESSO AOS TRIBUNAIS E AO RECURSO
42. Segundo a mais recente jurisprudência do TEDH (Caso Dos Santos Calado e Outros c. Portugal, Processo nº 55997/14 e 3 outros, de 31 de Março de 2020) as Autoridades Nacionais não gozam de um poder discricionário e ilimitado no que se refere às restrições processuais de acesso aos tribunais. É necessário ter em consideração o processo no seu conjunto e o papel que o Tribunal aí exerceu.
43. Para determinar a proporcionalidade das restrições legais aplicadas, nomeadamente, ao presente processo, devem ser tomadas em consideração os três fatores que, a seguir, se desenvolvem:
44. Primeiro - Previsibilidade aos olhos das partes:
a. Não era previsível a redução, para mais de metade, dos valores depositados, em substituição do Arresto, em face da prova sumária que foi feita no Requerimento Inicial da Providência Cautelar;
b. A Oposição da Recorrida não tem a ver com a relação jurídica objeto da Providência Cautelar, como vem escrito e é demonstrado nas Alegações de Revista, mas com outras relações empresariais totalmente estranhas à Recorrente;
c. Por outro lado, é claro que de acordo com as disposições legais citadas, não existe revista relativamente às decisões proferidas no âmbito de procedimentos cautelares, por se considerar que não são habitualmente considerados processos que decidem litígios sobre direitos ou obrigações de carácter civil, não beneficiando, por isso, normalmente, da proteção do Artigo 6º da CEDH;
d. Todavia, o TEDH afastou-se recentemente da sua anterior jurisprudência para adotar uma nova abordagem. No acórdão Micallef e. Malta [GC], §§ 83-86, o Tribunal considerou que a aplicabilidade do artigo 6º às medidas cautelares depende do respeito de certas condições. Primeiro, o direito em questão, tanto no processo principal como no procedimento cautelar, deve ser de "caráter civil" no sentido da Convenção. Segundo, a natureza, o objeto e o fim da medida cautelar, bem como os seus efeitos sobre o direito em questão, devem ser examinados de perto. O artigo 6.º tem aplicação sempre que se possa considerar que uma medida é determinante para o direito ou a obrigação de carácter civil em causa, seja qual for o tempo em que vigorou. O artigo 6º é aplicável a um procedimento cautelar que tenha o mesmo objeto que o processo principal pendente, quando a decisão cautelar é imediatamente exequível e visa pronunciar-se sobre o mesmo direito (RTBF e. Bélgica, §§ 64-65);
e. Estas orientações jurisprudenciais, do TEDH, são obrigatórias, nos termos da CEDH, que constitui Direito da EU, pelo que era previsível, aos olhos da Recorrente, a inaplicabilidade da restrição ao acesso ao Recurso de Revista, alegada no Despacho objeto da presente Manifestação;
f. Por outro lado, a violação dos Direitos Fundamentais invocados, pela Recorrente, nas Alegações de Revista, e as respetivas nulidades decorrentes dessas violações, prevalece sobre todas as limitações invocadas no Despacho objeto da presente Manifestação, que pretendem impedir a Recorrente de fazer valer os seus direitos, com base no Direito da EU.
45. Segundo – Ónus a suportar pelas partes:
a. A autorização para o levantamento, ainda que parcial, das quantias depositadas em substituição do Arresto, decorrente das decisões das Instâncias, colocará a Recorrente em situação de poder não realizar a totalidade dos seus créditos, porque a Recorrida irá utilizar esses valores para outros fins, o que é um dado que se poderá dar por adquirido, sendo certo que esta empresa não tem no seu património, em Portugal ou no estrangeiro, qualquer outro bem, suscetível de penhora;
b. Mantendo-se a integridade do depósito, tal como ele se encontra, presentemente,
a Recorrida não perderá os valores depositados, caso a Recorrente não venha a obter ganho de causa, total ou parcial, na Ação Principal. É tudo uma questão de tempo: o que não levantar agora poderá ser levantado quando a Ação Principal for julgada, definitivamente;
c. O ónus que é atribuído à Recorrente, decorrente do Despacho objeto da presente Manifestação, coloca a Recorrente e a Recorrida numa situação de profunda desigualdade, a favor da Recorrida. O ónus que se atribui à Recorrente é, por isso, excessivo e injusto.
46. Terceiro – Excesso de formalismo:
a. O Despacho objeto da presente Manifestação valoriza, de uma forma particular, o formalismo processual, relativamente às matérias que importa resolver no âmbito da tutela jurisdicional que é reconhecida à Recorrente.
b. Importa, em primeiro lugar, esclarecer um equívoco do Despacho objeto da presente Manifestação, no que se refere às inconstitucionalidades invocadas, em face da citação que se faz da Lei do Tribunal Constitucional:
i. Os tribunais constitucionais são, verdadeiramente, os Tribunais Comuns, tendo à cabeça o STJ, à falta de um verdadeiro Recurso de Amparo, que decida, em última instância, situações de flagrante injustiça ou de inconstitucionalidade, como é o caso;
ii. O Tribunal Constitucional é um tribunal especial, criado e funcionando de acordo com motivações políticas, a quem é confiada a resolução de determinadas situações de inconstitucionalidade normativa, com um acesso muito limitado, por parte dos particulares, devido à teia formalista que a caracteriza e que determinou uma recente condenação da República Portuguesa, por violação da CEDH, pelo TEDH;
iii. Vingando a tese defendida no Despacho objeto da presente Manifestação, a Recorrente fica sem Tribunal, por inexistente, para fazer valer os seus direitos emergentes da violação dos Direitos Fundamentais que lhe assistem, incluindo o Direito da EU, devidamente enunciados e fundamentados nas Alegações de Revista, a não ser por via do Reenvio Prejudicial, que é obrigatório quanto o Tribunal julga em última instância. A falta de acesso a um Tribunal não é permitida pela CEDH e pelo Direito da EU, para não falar no Direito Português, que também não a admite;
iv. As inconstitucionalidades arguidas perante os Tribunais Comuns não estão sujeitas às formalidades a que se referem os parágrafos 14, 15, 16 e 17 do Despacho objeto da presente Manifestação, e podem ter por objeto normas, o sentido interpretativo de normas, e as próprias decisões, desde que contrárias à CRP, à CEDH e ao Direito da EU;
v. Considerando que a Revista não se confunde com o recurso para o Tribunal Constitucional, é evidente que a explicitação das inconstitucionalidades não requer maior pormenorização do que aquela que consta das próprias Alegações de Revista, já em si extensas, pelo pormenor a que se chegou na análise de cada um dos temas tratados.
c. Em segundo lugar, o Despacho objeto da presente Manifestação coloca a Recorrente numa situação contrária ao direito, que lhe assiste, a uma tutela jurisdicional efetiva, no que se refere às nulidades, pelas seguintes razões:
i. Ou a decisão recorrida está sujeita a Recurso de Revista, caso em que as nulidades arguidas são decididas no STJ, ou, não é admissível o Recurso de Revista e as nulidades são decididas pelo Tribunal da Relação de Coimbra,como se escreveu nos parágrafos 19, 20 e 21 do Despacho objeto da presente Manifestação;
ii. Como, no entender do Despacho objeto da presente Manifestação, as decisões do Tribunal da Relação de Coimbra não são recorríveis para o STJ, as nulidades em causa não irão ser julgadas, porque não foram submetidas à decisão daquele Tribunal em tempo. Esse raciocínio não realiza o direito ao recurso da Recorrente, que é um Direito Fundamental que lhe assiste.
iii. Com efeito, o Tribunal da Relação de Coimbra deveria ter-se pronunciado, relativamente às nulidades arguidas pela Recorrente, no Despacho de Admissão do Recurso, antes da sua remessa ao STJ;
iv. Também, neste caso, o Despacho objeto da presente Manifestação, pretende atirar a Recorrente para uma teia formalista de meias decisões em que a resolução das questões de fundo se perderão, por certo. Isso não é o pretendido pelo Direito que assiste à Recorrente, que é o de que as suas pretensões sejam decididas, em definitivo, por um Tribunal independente e diferente daquela que proferiu a decisão recorrida.
v. Não é aceitável que as nulidades imputáveis ao Tribunal da Relação de Coimbra não sejam objeto de decisão ou, caso o Despacho objeto da presente Manifestação seja alterado nesse sentido, a decisão sobre as nulidades arguidas sejam confiadas a quem assim decidiu.
47. Verifica-se, assim, que não são proporcionais as restrições legais impostas ao acesso, pela Recorrente, à Revista, a que se refere o Despacho objeto da presente Manifestação, por constituírem restrições processuais inadmissíveis ao acesso aos tribunais e ao exercício do direito ao recurso, sobretudo no presente caso, onde há flagrantes violações de Direitos Fundamentais da Recorrente e do Direito da EU.
48. Em situações idênticas, o TEDH considera ter havido uma violação do direito de acesso ao tribunal. Segundo o TEDH, se o direito de acesso a um tribunal estiver sujeito a condições legais, os tribunais devem, ao aplicar as regras processuais, evitar um excesso de formalismo que poderia atentar contra a equidade do procedimento. O direito de acesso a um tribunal é violado em substância quando os seus procedimentos deixam de servir os objetivos da segurança jurídica e de uma adequada administração da justiça e constituem uma espécie de barreira que impede os litigantes de verem a matéria de fundo do seu litígio resolvido pelo tribunal competente.
49. Resulta do exposto, que o Despacho objeto da presente Manifestação viola a CRP, a CEDH e o Direito da UE.
50. A tutela jurisdicional efetiva, a nível cautelar, destina-se, fundamentalmente, a assegurar o efeito útil da decisão a ser proferida na ação principal.
51. Já se escreveu supra que o efeito útil dos pedidos formulados na Ação Principal está em risco, através do invocado periculum in mora, que determinou a procedência do Arresto, porque a redução do valor depositado em substituição do Arresto, pode desaparecer por efeito do Acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
52. Este risco, que tem a ver com o justificado receio, já decidido, da perda, pela Reclamante, da garantia patrimonial do seu crédito, para além da proteção que tem no Ordenamento Jurídico Português59, também está coberto pela garantia que o Direito da UE assegura, às pessoas singulares e coletivas dos Estados-Membros, através da CEDH, da CDFUE, do TUE e do TFUE, nos termos supra expostos.
53. Neste caso, não está em causa o Arresto, por já ter sido decretado, mas sim a redução do valor depositado, em substituição do Arresto, que tem por efeito, direto e necessário, a perda (parcial) da garantia patrimonial, relativamente aos valores não considerados como garantidos por via das decisões das Instâncias.
54. A Recorrente ficará, assim, impedida de realizar os créditos que lhe vierem a ser reconhecidos, por via da Ação Principal, caso venham a ser julgados procedentes, por provados, todos os pedidos aí formulados.
55. Poderemos concluir que, apesar de tudo quanto a Recorrente alegou, nomeadamente nas Alegações de Revista, o Despacho objeto da presente Manifestação está a incorrer em erro, suscetível de responsabilizar a República Portuguesa, no exercício da sua função jurisdicional, caso não se opte, pela suspensão do processo, para o cumprimento da obrigação de Reenvio Prejudicial para o TJUE, uma vez que se está a decidir em última instância.
2. PEDIDOS
Nestes termos, requer a V. Exa. a reavaliação dos pressupostos de Admissibilidade da Revista, alterando-se, em consequência, o Despacho objeto da presente Manifestação, no sentido da admissão da Revista.
Caso, porventura, assim se não entenda – o que não aceita e apenas conjetura por mero dever de patrocínio - requer a V. Exa. que, antes da prolação de decisão o processo seja suspenso a fim de se poder dar cumprimento à obrigação do reenvio prejudicial para o TJUE, para que se possa assegurar, também neste caso, o cumprimento uniforme do Direito da UE, no que se refere à tutela jurisdicional efetiva e ao direito ao recurso, por constituírem Direitos Fundamentais da Recorrente.
JUNTA: Um documento
Espera deferimento”.
10. Colt Resources Inc. (Requerida e Recorrida), por sua vez, veio dizer o seguinte:
“Vem dizer o seguinte:
1. O despacho da Ex.ma Relatora em que pondera não admitir o recurso não merece qualquer reparo.
2. Com efeito, aquele despacho adere, no essencial, à posição e aos argumentos que a Recorrida já tinha transmitido no seu requerimento datado de 24.01.2020, em que pugnou pela não admissão do recurso.
3. Pelo que se dá aqui por reproduzida a argumentação ali já aduzida.
4. Entretanto, a Recorrida foi notificada da resposta dada pela Recorrente
quanto a esta questão, pelo que se passa a pronunciar sobre tal resposta, que traz nova (e muito inesperada…) argumentação.
5. Com efeito, a “Manifestação” apresentada pela Recorrente tem o mérito de ser surpreendente, por imaginativa.
6. Mas tem o demérito de ser totalmente desprovida de razão.
7. Pretende a Recorrente que o recurso deve ser admitido por a sua não admissão violar o direito comunitário.
8. Ou, subsidiariamente, que deverá este Supremo Tribunal de Justiça proceder a reenvio prejudicial, de forma a obter decisão sobre a recorribilidade da decisão.
9. Lembremos alguns aspectos que demonstram, de forma simples, o infundado da pretensão da Recorrente:
a) A acção não tem qualquer conexão com questões de direito comunitário.
b) A acção não tem qualquer conexão com questões de direitos fundamentais.
c) Não está em causa qualquer violação do direito ao recurso, pois a Recorrente já o exerceu – da decisão proferida na primeira instância recorreu para o Tribunal da Relação.
d) Não está em causa qualquer desrespeito ou perigo para os direitos da Recorrente, pois as decisões que lhe foram desfavoráveis foram-no, precisamente, por esta não ter conseguido provar, nem sequer indiciariamente, ser titular de tais direitos.
Desenvolvendo,
10. Alega a Recorrente que o Direito Comunitário garante a tutela cautelar dos direitos, tutela que a decisão de não admissão do recurso poria em causa.
11. Ora, o direito nacional prevê um sistema de tutela cautelar, sistema de que a Recorrente fez uso na obtenção de um arresto.
12. Contudo, é evidente que, para que a tutela cautelar seja admitida, não basta que o requerente de tal tutela “tenha vontade” de a obter, é preciso que demonstre, ainda que sumariamente, ser titular dos direitos que visa tutelar.
13. E foi aqui que a Recorrente falhou – a primeira instância, e depois a Relação, não deram por demonstrado, ainda que indiciariamente, que a Recorrente fosse titular dos direitos a que se arroga.
14. Contrário a todos os mais elementares princípios jurídicos, nacionais e comunitários, seria a consagração do direito a obter cautelarmente qualquer tutela que a alguém apetecesse obter, mesmo sem demonstrar qualquer fundamento.
15. Por outro lado, invoca a Recorrente que a não admissão do recurso violaria o direito comunitário, pois este determinaria que deve sempre haver possibilidade de recurso.
16. Desde logo, não é correcto que exista qualquer imposição comunitária no sentido de todas as decisões serem recorríveis (será violadora do direito comunitário a impossibilidade de recorrer, por ex., de despachos de mero expediente ou de acções de valor inferior ao da alçada da primeira instância?).
17. Além disso, nos casos em que o princípio do processo equitativo impõe o direito ao recurso, tal direito satisfaz-se com a existência de um duplo grau de jurisdição.
18. Duplo grau de jurisdição que o CPC português consagra, tendo a Recorrente já visto a decisão de que se queixa ser apreciada por um tribunal superior.
19. O que a Recorrente parece querer é a consagração de um sistema em que tenha direito a tantos recursos quantos forem necessários à obtenção de uma decisão que a satisfaça. Caso esta revista fosse admitida, e fosse julgada improcedente, a Recorrente poderia fazer o mesmo discurso para exigir a possibilidade de ainda recorrer para nova instância…
Evidentemente que não pode ser.
20. Quanto à violação dos direitos fundamentais, o direito que é invocado é o direito à tutela jurisdicional efectiva, direito esse que, como já visto, em nada foi beliscado nos autos.
21. Mas a Recorrente ignora que, se algum direito fundamental está a ser indevidamente comprimido no presente momento, é o direito da Recorrida à propriedade privada.
22. Por força do decretamento do arresto sem audição da Requerida (como é de lei), a Recorrente obteve arresto (substituído por caução) de quantias que são propriedade alheia.
23. Deduzida, com sucesso (ainda que parcial), oposição a tal arresto, a consequência natural é que o direito de propriedade da Recorrida sobre os montantes dados em caução deixe de se encontrar limitado, uma vez que, reitera-se, a Recorrente não fez prova, ainda que indiciária, de ter direito àquelas quantias (na sua totalidade).
24. Atentatório de direitos fundamentais seria decidir-se que a Recorrente, que não demonstrou qualquer direito ao património da Recorrida (na parte em que decaiu no arresto), pudesse limitar a livre disposição desse património por parte do seu titular.
25. A “Manifestação” da Recorrente, e a própria interposição de recurso, contra normas cuja interpretação não oferece dúvidas, mais não é do que uma tentativa de protelar o trânsito em julgado de uma decisão que não lhe agrada.
26. Numa clara actuação de má fé, pois basta ver que o motivo de ter decaído em parte do seu pedido cautelar foi ter sido dado por provado que o crédito peticionado, calculado com base em serviços remunerados à razão de 12.000,00€ por mês, deveria ser reduzido para um montante calculado à razão de apenas 8.000,00€ mensais.
27. E tal foi dado por provado, nomeadamente, por ter resultado de declaração do próprio representante legal da Recorrente, que não só admitiu ter passado a receber apenas 8.000,00€, como até disse ao tribunal que a redução de retribuições fora ideia sua, para acorrer à difícil situação da Recorrida, como resulta do trecho da sentença da primeira instância que se transcreve:
“CC representante legal da requerente, referiu que antes de constituída a empresa unipessoal colaborava já com a Colt, em nome individual, passando a ser pago pela empresa após a sua constituição; que passou a receber € 8.000 após fevereiro de 2014, por acordo verbal, tendo sido o próprio declarante que sugeriu a diminuição de remuneração, face às dificuldades financeiras;”
28. Foi tendo por base essa diminuição da remuneração (sendo que o direito alegado pela Recorrente é o crédito por remunerações não pagas) que as instâncias decidiram reduzir o valor da caução, deixando esta de ser pelo valor da remuneração peticionada, e passando a ser pelo valor da remuneração calculada na base de 8.000,00€ mensais.
29. Ou seja, a Recorrente não só não fez prova de ter direito ao valor peticionado, como admitiu que só seria credora de valor inferior.
30. É, pois, um despudorado exercício de má fé vir dizer que a redução da caução é atentatória dos seus direitos fundamentais, e que as decisões que assim determinaram, bem como a não admissão de (mais um recurso) para apreciação destas decisões, contraria o direito comunitário na vertente do acesso a um processo justo e equitativo.
Nestes termos, não deverá ser admitido o recurso de revista interposto pela Valente – Consultoria, Engenharia, Projectos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal Lda., nem ser efectuado qualquer reenvio prejudicial, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação ……. nos seus exactos termos”.
11. Segundo o despacho da Senhora Relatora, de 1 de outubro de 2020:
“Pelo exposto, decide-se não admitir o recurso de revista interposto por Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda. nos presentes autos de procedimento cautelar, sem que as razões ora apresentadas alterem a respetiva fundamentação”.
12. Ao abrigo do art. 652.º, n.º 3 do CPC, Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda. veio, nos termos e para os efeitos dos arts 652.º, n.º 3, apresentar a sua reclamação para a conferência, oferecendo as seguintes Conclusões:
“1.ª A presente reclamação tem por objeto a Decisão Singular da Exma. Conselheira Relatora[1], de ……. de 2020 (Referência ………)[2], que não admitiu o Recurso de Revista interposto pela Recorrente contra o Acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação ……;
2.ª A Decisão Singular proferida pela Exma. Conselheira Relatora, que não configura despacho de ero expediente, prejudica os direitos e legítimos interesses da aqui Recorrente e impõe a intervenção da Conferência desse Venerando Tribunal Supremo, por meio de Acórdão que recaia sobre a referida Decisão Singular;
3.ª As matérias objeto da Decisão Singular da Exma. Conselheira Relatora são: (i) as que fundamentam o Despacho da Senhora Relatora, de ………. de 2020 (Referência ……); e, (ii) As que fundamentam o Despacho da Senhora Relatora, de ……. de 2020 (Referência……), tendo em consideração a Manifestação da Recorrente, datada de 10 de setembro de 2020 (Referência ………);
4.ª Quanto ao primeiro dos Despachos da Senhora Relatora, já a Recorrente se pronunciou, através da sua Manifestação, que se encontra junta aos autos e aqui dá por integralmente reproduzida;
5.ª Na génese da presente Reclamação está o confronto entre duas filosofias e duas atitudes: a dos Tribunais Portugueses, focadas no cumprimento da Lei, sobretudo de natureza processual; e a do Direito da UE, que, focado na defesa dos direitos fundamentais dos particulares, manda não aplicar a Lei interna dos Estados-membros, sempre que esteja em causa a violação desses direitos dos particulares;
6.ª A Recorrente queixa-se de que as decisões objeto de recurso, por sua iniciativa, nos presentes autos, violam o direito, que lhe assiste, de não ser reduzido o valor da caução prestada por uma das Recorridas, no âmbito da Providência Cautelar de Arresto, uma vez que as Recorridas já não dispõem, em Portugal ou no estrangeiro, de quaisquer bens ou direitos suscetíveis de penhora;
7.ª Concretizando-se a redução do valor da caução prestada, a Recorrente perderá uma parte significativa, cerca de dois terços, dos seus créditos, caso venha a ser julgada procedente, no seu todo, a Ação Principal;
8.ª Não pode deixar de se ter em consideração que o direito da Reclamante, acima caracterizado, conflitua com o direito das Recorridas, exercida por via da Oposição ao Arresto, e reconhecido pelas decisões objeto do presente recurso;
9.ª Contrariamente ao entendimento perfilhado pela Exma. Conselheira Relatora, importa, por isso, que se verifique quais são as consequências, para cada uma das partes, do pleno exercício dos respetivos direitos, à luz do princípio da proporcionalidade, que se pode definir como um princípio geral de direito, constitucionalmente consagrado, conformador dos atos do poder público e, em certa medida, de entidades privadas, de acordo com o qual a limitação instrumental de bens, interesses ou valores subjetivamente radicáveis se deve revelar idónea e necessária para atingir os fins legítimos e concretos que cada um daqueles atos visam, bem como axiologicamente tolerável quando confrontada com esses fins[3];
10.ª Da aplicação do princípio da proporcionalidade, de acordo com todos os fatores a serem tidos em consideração, é forçoso concluir que o sacrifício que irá ser imposto, à Recorrente, caso não seja admitida e julgada a Revista, é desproporcionalmente, maior do que o sacrifício que irá ser imposto à Recorrida, Q............, que é bem menor e praticamente irrelevante.
11.ª Caracterizado o direito reclamado pela Recorrente e ultrapassado o potencial conflito de direitos, importa determinar qual é o seu fundamento legal: o direito da Reclamante é um direito de crédito, emergente de um contrato de prestação de serviços, de natureza mercantil, coberto pela proteção dada aos proprietários na CRP[4] e no CC[5];
12.ª Ao socorrer-se de um Tribunal Judicial (Público), para fazer valer os seus direitos, a Recorrente espera, legitimamente, obter uma tutela jurisdicional efetiva, tal como a CEDH[6] e a CRP[7] o asseguram;
13.ª A forma como esses direitos são assegurados pelos Tribunais, nem sempre é pacífica, quer ao nível dos Estados-membro da EU, quer ao nível da própria EU, pelo que são muitas as orientações dadas pelos Tribunais desses Estados[8] e pelo TJUE, sobre a forma como os Tribunais devem interpretar o Artigo 6º da CEDH, que é uma norma do Direito da EU;
14.ª No âmbito dessas orientações interpretativas, o TJUE tem entendido que as providências cautelares requeridas, por particulares, têm de ser necessariamente adotadas, pelos Tribunais, mesmo que as Leis internas dos Estados-membros o não admitam, sempre que, da não adoção da providência cautelar, resulte o risco de poder não ser viabilizado, no seu todo, o direito exercido por via da Ação Principal[9];
15.ª Este é um princípio jurisprudencial orientador da interpretação do Direito da EU, de cumprimento obrigatório, que é uniforme e inclui o Direito Interno dos Estados membros[10];
16.ª O Direito Português é Direito da UE, ou seja, é direito comunitário; e a jurisprudência do TJUE é de cumprimento obrigatório em Portugal, como Estado-membro da EU;
17.ª Diversamente ao raciocínio que subjaz à Decisão Singular, proferida pela Exma. Conselheira Relatora, os direitos reclamados pela Recorrente têm fundamento nas citadas disposições da CEDH, da CRP, do CC e também na jurisprudência interpretativa do TJUE, nomeadamente nos Acórdãos proferidos nos casos Antonissen, Zuckerfabrik e Factortame e Atlanta;
18.ª A obrigação de cumprimento, pelos Tribunais Portugueses, da jurisprudência do TJUE, prevalece sobre a obrigação de aplicação das normas de Direito Nacional[11], tendo em consideração as orientações da CDFUE[12], no que se refere à interpretação dos direitos fundamentais e dos princípios a eles inerentes;
19.ª Salvo o devido respeito, a Decisão da Senhora Relatora ignorou a afirmação deste direito fundamental, que existe na esfera jurídica da Recorrente, independentemente de qualquer outro juízo sobre a forma como esse direito pode e deve ser exercido;
20.ª Entende a Exma. Senhora Conselheira Relatora que[13] das decisões preferidas nos procedimentos cautelares, incluindo o que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível e era essa, também, a orientação do TEDH, por se considerar que os procedimentos cautelares não são habitualmente considerados processos que decidem litígios sobre direitos ou obrigações de carácter civil, não beneficiando, por isso, normalmente, da proteção do Artigo 6º da CEDH[14];
21.ª Contudo, conforme ficou consignado na Manifestação da Recorrente[15], o TEDH afastou-se recentemente da sua anterior jurisprudência para adotar uma nova abordagem. No acórdão Micallef e. Malta [GC], §§ 83-86, o Tribunal considerou que a aplicabilidade do artigo 6º às medidas cautelares depende do respeito de certas condições. Primeiro, o direito em questão, tanto no processo principal como no procedimento cautelar, deve ser de "caráter civil" no sentido da Convenção. Segundo, a natureza, o objeto e o fim da medida cautelar, bem como os seus efeitos sobre o direito em questão, devem ser examinados de perto. O artigo 6.º tem aplicação sempre que se possa considerar que uma medida é determinante para o direito ou a obrigação de carácter civil em causa, seja qual for o tempo em que vigorou. O artigo 6º é aplicável a um procedimento cautelar que tenha o mesmo objeto que o processo principal pendente, quando a decisão cautelar é imediatamente exequível e visa pronunciar-se sobre o mesmo direito (RTBF e. Bélgica, §§ 64-65)[16];
22.ª Os direitos reclamados, pela Recorrente, ao abrigo do Artigo 6º da CEDH, preenchem cada uma das referidas condições:
§ Têm natureza civil, porque resultam de uma relação contratual estabelecida entre particulares, a Recorrente e as Recorridas;
§ A aplicação do Artigo 6º, à Providência Cautelar requerida pela Recorrente, é determinante para a salvaguarda dos seus direitos de crédito, a coberto da caução prestada, porque não sendo reconhecido esse direito, a Recorrente corre o risco de não poder cobrar os créditos que, porventura, lhe venham a ser reconhecidos na Ação Principal;
§ A Ação Principal tem o mesmo objeto da Providência Cautelar, ou seja, as relações económicas decorrentes de um mesmo contrato de prestação de serviços, de onde resultaram créditos a favor da Recorrente, que são os mesmos, num e no outro caso,
23.ª As orientações jurisprudenciais do TEDH, já mencionadas, são obrigatórias, nos termos da CEDH, que constitui Direito da EU;
24.ª Sendo o disposto no nº 2 do Artigo 370º do CPC, contrário a uma orientação jurisprudencial que manda aplicar uma norma europeia, satisfeitas que estejam determinadas condições, como é o caso do Artigo 6º da CEDH, os Tribunais desse Estado-membro, no caso, os Tribunais Portugueses, devem aplicar a disposição europeia[17];
25.ª Nesses casos, o direito nacional não é nem anulado nem alterado, mas a sua força vinculativa é suspensa;
26.ª Para além do direito à tutela jurisdicional efetiva, a CEDH reconhece, aos particulares, o direito a um recurso efetivo;
27.ª Se o direito de recorrer estiver, obviamente, sujeito a condições legais, os tribunais devem, ao aplicar as regras processuais, evitar um excesso de formalismo que poderia atentar contra a equidade do procedimento e uma flexibilidade excessiva suscetível de eliminar os pressupostos processuais estabelecidos por lei (Walchli v. França, nº 35787/03, § 29, 26 de julho de 2007[18]). O direito de acesso a um tribunal é violado em substância quando os seus regulamentos deixam de servir os objetivos da segurança jurídica e de uma adequada administração da justiça e constituem uma espécie de barreira que impede os litigantes de verem a matéria de fundo do seu litígio resolvido pelo tribunal competente[19];
28.ª A Decisão da Exma. Senhora Conselheira Relatora, ao não admitir a Revista, está a violar, em substância, os objetivos da segurança e de uma adequada administração da justiça, porque está a impedir que o STJ se pronuncie sobre os direitos fundamentais de que a Recorrente se arroga, como titular desses direitos, e que foram violados pelas decisões objeto da Apelação e, agora, da Revista;
29.ª Toda a fundamentação alegada na Decisão da Senhora Relatora, para fundamentar a não admissão da revista, não passa de uma barreira processual intransponível, idêntica à que é utilizada pelo Tribunal Constitucional, para não julgar os casos, de inconstitucionalidade, que lhe são submetidos, e que já foi objeto de condenação, da República Portuguesa, por esse facto, pelo TEDH[20];
30.ª Essa fundamentação, do TEDH, aplica-se, mutatis mutandis, ao presente caso;
31.ª Vingando a tese defendida na Decisão Singular da Senhora Relatora, a Recorrente fica sem Tribunal, por inexistente, para fazer valer os seus direitos emergentes da violação dos Direitos Fundamentais que lhe assistem, incluindo o Direito da EU, devidamente enunciados e fundamentados nas Alegações de Revista, a não ser por via do Reenvio Prejudicial, que é obrigatório quanto o Tribunal julga em última instância;
32.ª A falta de acesso a um Tribunal não é permitida pela CEDH e pelo Direito da EU, para não falar no Direito Português, que também não a admite;
33.ª Do que antes se expôs, pode-se concluir que não são aplicáveis, ao presente caso, as normas legais, do Ordenamento Jurídico Português, citadas na Decisão Singular, por contrariarem a jurisprudência, de cumprimento obrigatório, como fonte de direito, contida nos Acórdãos do TJUE, proferidos nos casos Antonissen, Zuckerfabrik e Factortame e Atlanta;
34.ª Ao não admitir a Revista, o Despacho da Senhora Relatora está, na prática, a julgar, definitivamente, a ação, ou seja, está a declarar que os direitos fundamentais de que a Recorrente se arroga, não se configuram como tal e que não merecem tutela jurisdicional, por via recursiva;
35.ª Só por si, a Decisão da Exma. Relatora tem a virtualidade de por fim ao processo, negando o direito invocado, em substância, pela Recorrente, e o direito ao recurso, para o STJ, que lhe assiste, para poder fazer valer os seus direitos;
36.ª Os fundamentos da Decisão Singular da Exma. Senhora Relatora, bem como a Manifestação e a presente Reclamação da Recorrente, evidenciam uma diferença de pontos de vista, sobre a solução a dar ao presente caso, pondo em confronto, no que refere a direitos fundamentais da Recorrente, a jurisprudência do TJUE, em que se fundamenta o arrazoado da Reclamante, e a aplicação do direito Português e da jurisprudência dos Tribunais Portugueses, incluindo o Tribunal Constitucional, que não constituem fonte de direito;
37.ª Não admitindo a Revista, a Decisão Singular tem a virtualidade de tornar definitivo o Acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra;
38.ª Ao contrário do que se alega no Despacho da Senhora Relatora, o STJ está obrigado ao reenvio prejudicial;
39.ª Este reenvio é obrigatório e não depende de uma apreciação discricionária das matérias objeto da consulta a ser feita ao TJUE sobre a interpretação mais conforme com o Direito da EU.
40.ª A Decisão Singular violou os Artigos 6º e 13º da CEDH, a jurisprudência do TJUE expressa nos Acórdãos, proferidos nos casos Antonissen, Zuckerfabrik e Factortame e Atlanta e os Artigos 8º e 20º da CRP, bem como a jurisprudência do TEDH, citada na presente Reclamação, relativa à aplicação do artigo 6º da CEDH às providências cautelares, ao direito ao recurso, condicionado por um excesso de formalismo pelos Tribunais Nacional.
H. PEDIDOS
Nestes termos, requer a V. Exas. se dignem proceder à reavaliação da Decisão Singular, bem como dos pressupostos de Admissibilidade da Revista, em face dos direitos fundamentais que assistem à Recorrente, em conformidade com a jurisprudência expressa nos Acórdãos do TJUE, proferidos nos casos Antonissen, Zuckerfabrik e Factortame e Atlanta, alterando-se, em consequência, a Decisão Singular, no sentido da admissão da Revista.
Caso, porventura, assim se não entenda – o que não aceita e apenas conjetura por mero dever de patrocínio - requer a V. Exas. que, antes da prolação de decisão o processo seja suspenso a fim de se poder dar cumprimento à obrigação do reenvio prejudicial para o TJUE, para que se possa assegurar, também neste caso, o cumprimento uniforme do Direito da UE, no que se refere à tutela jurisdicional efetiva e ao direito ao recurso, por constituírem Direitos Fundamentais da Recorrente”.
13. Por seu turno, a CRI (Requerida e Recorrida), respondeu à reclamação, pugnando pela confirmação do despacho reclamado.
II – Questões a decidir
Estão em causa as seguintes questões:
a) (in)admissibilidade do recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de dezembro de 2019, tendo por objeto a apreciação: i) da (in)verificação de nulidades resultantes de uma errada avaliação dos meios de prova; ii) da violação ou não do n.º 2, 2.ª parte do art. 608.º e as als d) e e) do n.º 1 do art. 615º do CPC; iii) do (des)respeito pelo direito à tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º da CRP);
b) saber se o despacho reclamado viola os arts. 6.º e 13.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, os arts. 8.º e 20.º da CRP e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos relativa à aplicação do art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos às providências cautelares e ao direito ao recurso, condicionado por um excesso de formalismo por parte dos Tribunais nacionais;
c) obrigatoriedade ou não de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia.
III - Fundamentação
A) De facto
Relevam, essencialmente, os factos referidos supra.
B) De Direito
(In)admissibilidade do recurso de revista
1. Por força da conjugação dos arts 608.º, n.º 1, e 641.º, 652.º, n.º 1, al. b), 663.º, n.º 2, e 679.º, do CPC, antes de conhecer do mérito do recurso, o julgador deve apreciar se se verificam ou não os respetivos pressupostos. A inobservância destes requisitos é suscetível de determinar a rejeição do recurso de revista. Da conciliação dos arts. 608.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, e 641.º, n.º 1, al. a), do CPC, resulta que, depois de conhecidos os pressupostos processuais gerais, é apreciada, inter alia, a recorribilidade da decisão.
2. Distribuídos os autos no Supremo Tribunal de Justiça, incumbe ao relator verificar se o recurso é ou não de admitir, não sendo vinculativa a decisão de admissão proferida no tribunal recorrido (art. 652.º do CPC).
3. Trata-se, pois, antes de mais, de saber se é ou não admissível a interposição do presente recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
4. No caso sub judice, não cabe recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra: de um lado, por se tratar de decisão proferida no âmbito de um procedimento cautelar e, de outro, por se verificar a existência de dupla conforme.
5. Com efeito, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância recaiu sobre a oposição apresentada pela CRI em relação a um arresto requerido pela Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda.
6. A Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda. requereu - e obteve - o arresto de bens da CRI, arresto a que a CRI reagiu mediante oposição. Essa oposição foi julgada parcialmente procedente, tendo sido reduzido o montante do crédito indiciariamente reconhecido à Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda. e, consequentemente, reduzido o objeto do arresto (entretanto substituído por caução, nos termos do art. 368.º, n.º 3 ex vi do art. 376.º, n.º 1 do CPC). A Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda., interpôs recurso de apelação desta decisão, que foi julgado improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
7. De acordo com o art. 370.º, n.º 2, do CPC,
“Das decisões preferidas nos procedimentos cautelares, incluindo o que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.”
8. Os casos em que o recurso é sempre admissível estão previstos no art. 629.º, n.º 2 do CPC. Nenhuma destas hipóteses se verifica no caso em apreço: não foi invocada violação de quaisquer regras de competência nem de caso julgado; não foi discutido o valor da causa; não foi invocada jurisprudência uniformizada; e não foi alegada qualquer contradição com outra decisão judicial do Tribunal da Relação sobre a mesma questão fundamental de direito.
9. O caráter provisório da providência cautelar explica esta limitação: a irrecorribilidade da decisão proferida pelo Tribunal da Relação.
10. É jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça que a admissibilidade do recurso de revista nos procedimentos cautelares se restringe aos casos em que o recurso é sempre admissível, conforme resulta do art. 370.º, n.º 2, do CPC, de um lado e, de outro, mesmo nos casos em que é invocada a respetiva admissibilidade, ao abrigo do art. 629.º, n.º 2, do CPC, designadamente, no caso de oposição de julgados, segundo alguns daqueles arestos, a matéria objeto de contradição deve respeitar aos pressupostos do procedimento cautelar e não ao mérito da questão decidida cautelarmente[21]. Não é, assim, ressalvada a possibilidade de o “recurso ser sempre admissível”, em termos “normais” e de forma “direta”, por via do art. 370.º, n.º 2, do CPC, de admitir o recurso de revista.
11. A Recorrente/Reclamante refere ainda a ofensa do princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito, que proíbe a adoção de medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos[22].
12. Ao abrigo do princípio da proporcionalidade, em virtude da sua natureza imperativamente provisória - como consequência da summaria cognitio - e relativamente incerta, o juízo de procedência cautelar não pode abdicar de uma ponderação comparativa entre os danos a causar ao requerente e ao requerido. Trata-se de ponderar danos, id est, de definir o limite da satisfação lícita de um interesse a expensas do outro, também digno de tutela. De um lado, o requerente, provável titular do direito que alega, solicita tutela cautelar para o respetivo direito, que se encontra sujeito a um prejuízo grave e dificilmente reparável se não for julgado procedente o pedido cautelar antecipatório; de outro lado, no caso de a providência cautelar ser concedida, o requerido pode sofrer, na sua esfera jurídica, os efeitos danosos de uma satisfação antecipada do direito do requerente, quando existe a possibilidade de o requerente não ser titular do direito que invoca. O julgador, colocado perante este difícil e instável equilíbrio de forças, assente numa prova meramente indiciária, tem de decidir. Todavia, o julgador não pode decidir como se de uma decisão certa e definitiva se tratasse, descurando o impacto da providência na esfera jurídica do requerido[23].
13. No caso em apreço, a Recorrente/Reclamante não demonstrou o fumus boni iuris, a aparência ou verosimilhança do direito que se arroga. Não tendo de provar a certeza do crédito – com a extensão ou conteúdo alegado -, tinha, contudo, de demonstrar a forte probabilidade da sua existência, pois não basta a sua mera possibilidade.
14. Além de decorrer do art. 362.º, n.º 1, do CPC a necessidade de que “alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito”, o art. 365.º, n.º 1, reitera a exigência de que se efetue “prova sumária do direito ameaçado” e se justifique “o receio da lesão”. Resulta ainda do art. 368.º, n.º 1, do CPC a necessidade de uma “probabilidade séria da existência do direito” e de que “se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”. Importa, nesta sede, ter também em conta o art. 619.º, n.º 1, do CC, segundo o qual pode requerer o arresto de bens do devedor o “credor que tenha o justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito”, assim como o art. 391.º, n.º 1, do CPC, que consente ao credor com “justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito” requerer o arresto. Acresce que o art. 392.º, n.º 1, do CPC estabelece a necessidade de o requerente alegar “os factos que tornam provável a existência do crédito”.
15. É que não faria sentido permitir ao requerente beneficiar de uma providência cautelar sem que demonstrasse, ainda que sumária ou perfunctoriamente, que é titular de um direito e que esse direito está em risco de perder a sua efetividade na pendência de uma ação judicial, caso aquela medida não seja concedida. Não basta, por isso, ao requerente, demonstrar a existência de risco de danos graves na pendência da ação principal (periculum in mora), pois é sempre necessário justificar a titularidade do direito (fumus boni iuris). A inverificação do fumus boni iuris dispensa, pois, a apreciação do periculum in mora[24].
16. Não pode, com efeito, ser decretada providência cautelar sem fumus boni iuris (arts. 362.º e 365.º do CPC), porquanto é este que legitima a sua concessão ainda antes da ação de cognição plena, dotando-a de uma aparência provável de legitimidade. O julgador apenas poderá decretar a providência na pressuposição de que a ação principal será julgada favoravelmente ao requerente, o que apenas acontecerá se o direito do requerente existir.
17. Reitere-se que as providências cautelares visam conceder proteção aos titulares de direitos. Para esse efeito, nem se afigura suficiente a alegação do direito, nem se exige a prova em sentido estrito do direito. Em causa está antes a necessidade de criar no espírito do julgador a convicção de que é muito provável que o direito exista, mesmo que permaneça alguma dúvida juridicamente relevante. Para este efeito, a prova sumária, com recurso a meios por vezes meramente indiciários, é suficiente. Porém, in casu, a Requerente/Recorrente/Reclamante não logrou criar no espírito do julgador a convicção da probabilidade da existência do direito que se arroga, ainda que a esse respeito pudessem subsistir dúvidas relevantes desde que não abalassem aquela a convicção de grande probabilidade da ocorrência dos factos. Não efetuou a prova sumária dos factos constitutivos do direito que se arroga. Não se verificou, pois, a aparência do direito da Recorrente/Reclamante, essencial para a manutenção do montante da caução originariamente decretado. A Recorrente/Reclamante não produziu prova suscetível de conferir a segurança exigida à existência do direito que se arroga, que permitisse concluir, nos termos do art. 368.º, n,º 1, do CPC, pela provável existência do direito. Assim, nos termos dos juízos de probabilidade, o julgador optou, com base na prova indiciária, pela hipótese que lhe pareceu mais razoável entre aquelas aventadas pelas partes. Não apresentou indícios que gerassem no espírito do julgador a convicção de que a existência do direito é fortemente provável, da verosimilhança do direito. Já a Requerida/Recorrida/Reclamada, apesar das dificuldades suscetíveis de resultar para o seu direito de defesa de um procedimento cautelar inaudita altera parte como o dos autos, apresentou prova sumária dos novos factos integradores das exceções por si alegadas, dos factos modificativos do direito em apreço[25].
18. Não resultou, pois, da prova que o direito da Requerente/Recorrente/Reclamante fosse mais provável do que o da Requerida/Recorrida/Reclamada. O julgador não adquiriu a convicção de que aquela fosse titular do crédito que invoca com um grau de probabilidade razoável.
19. Muito diferentemente, foi precisamente com base nos princípios da proporcionalidade e adequação que o Tribunal decretou a redução do arresto, a sua extensão objetiva contestada pela Requerida/Recorrida/Reclamada – id est, da caução que, em virtude da sua conexão com o procedimento cautelar em que se constitui, está sujeita às correspondentes vicissitudes (art. 373.º, n.º 2, do CPC).
20. Por força do art. 370.º, n.º 2, do CPC, o Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer do objeto do presente recurso.
21. Fica, deste modo, prejudicada a apreciação da dupla (des)conformidade entre a decisão do Tribunal de 1.ª Instância e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
Inconstitucionalidades
1. No que toca às inconstitucionalidades invocadas pela Recorrente, importa levar em devida linha de conta que estas respeitam a normas jurídicas e não a decisões judiciais. Na nossa ordem jurídica, não se aprecia a (des)conformidade com a Constituição das próprias decisões judiciais.
2. A Recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, especificamente dirigida a uma concreta norma jurídica, conforme lhes era exigido pelo art. 72.º, n.º 2, da LTC. Nunca individualizou uma específica norma jurídica cuja inconstitucionalidade pudesse ser apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3. A mera invocação de um princípio constitucional ou de um direito fundamental não configura uma suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Impunha-se à Recorrente identificar a específica norma jurídica ordinária que estaria em contradição com o direito à tutela jurisdicional efetiva e detalhar o conteúdo e a extensão da interpretação normativa alegadamente inconstitucional. Porém, a Recorrente limitou-se a afirmar, de modo vago e não concretizado, que o próprio “Acórdão recorrido viola o direito à tutela jurisdicional efetiva, a que o Artigo 20º da Constituição da República Portuguesa atribui a dignidade de Direito Fundamental, um verdadeiro Jus Cogens, consagrado pelo Direito Internacional, e, especificamente, pelo Direito Europeu e pelo Direito do Investimento Estrangeiro (inconstitucionalidade)” e que “No fundo a perda da tutela jurisdicional para os créditos do Recorrente, traduzida na diminuição dos valores da caução prestada, tal como foi decidido pelas Instâncias, traduzir-se-ia na violação de um direito fundamental da Recorrente, que é o direito à realização, efetiva, dos créditos que a Recorrente tem sobre a Recorrida, o que é uma inconstitucionalidade”.
4. O Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de “normas jurídicas” ou de “interpretações normativas” (art. 277.º, n.º 1, da CRP), não se encontrando instituído um sistema de fiscalização das próprias decisões jurisdicionais.
5. Na verdade, a Recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando-se a manifestar a sua divergência com a decisão contida no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no mero plano da aplicação da lei. As diversas questões jurídicas que suscita são sempre referidas ao modo como o direito ordinário foi aplicado pelas Instâncias. Assim, não podem ser tidas senão como traduzindo apenas essa discordância com a aplicação do Direito – e não com a conformidade constitucional de certas normas (ainda que numa certa interpretação).
6. O que a Recorrente questiona não são as normas, interpretadas em desarmonia com a Constituição, mas antes a decisão judicial que, inconstitucionalmente, na sua perspetiva, a teria prejudicado.
Nulidades
1. Por seu turno, as nulidades não são, por si só, causas de recorribilidade das decisões que delas padeçam. Na verdade, segundo o art. 615.º, n.º 4, do CPC, se a decisão é recorrível, a nulidade deve ser invocada nas alegações de recurso, de um lado e, de outro, se a decisão não é recorrível, a nulidade deve ser suscitada junto do tribunal que tenha proferido a decisão, no prazo geral de dez dias. In casu, como o acórdão em apreço não é recorrível, as nulidades deveriam ter sido suscitadas junto do Tribunal da Relação de Coimbra.
2. Conforme é jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, e de acordo com o disposto no art. 615.º, n.º 4, do CPC, o conhecimento de nulidades da decisão recorrida, no caso de não ser admissível recurso ordinário, é da competência do tribunal a quo, não cabendo ao tribunal ad quem pronunciar-se sobre a sua verificação quando o recurso não seja admissível.
3. Deste modo, ainda que, em termos gerais, de acordo com o art. 674.º, n.º 1, al. c), do CPC, o recurso de revista possa ter por fundamento as nulidades previstas nos arts. 615.º e 666.º, no caso de se traduzirem naquelas previstas no art. 615.º, n.º 1, als. b)-e), as nulidades apenas são suscetíveis de ser conhecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no caso de ser admissível recurso de revista, conforme resulta do art. 615.º, n.º 4, do mesmo corpo de normas.
4. Com efeito,
“(…) nos termos do art. 615.º, n.º 4, quando as nulidades se reportem à sentença [ou qualquer outro despacho ou acórdão da Relação] e decorram de qualquer dos vícios assinalados nas als. b) a e) do n.º 1, a sua invocação deve ser feita em sede de recurso, restringindo-se a reclamação para o próprio tribunal quando se trate de decisão irrecorrível” [26].
5. Conforme mencionado supra, no mesmo sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça[27].
6. Uma vez que no caso em apreço o recurso de revista não é admissível, não pode o processo prosseguir como revista apenas para conhecimento das alegadas nulidades.
Reclamação da Requerente/Recorrente
Na sua reclamação, tal como na “Manifestação” por si anteriormente apresentada, a Requerente/Recorrente suscita – e limita-se a suscitá-la - a questão de a rejeição do recurso ser contrária aos seus direitos fundamentais, de um lado e, de outro, preconiza a necessidade de se proceder a um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE).
Violação dos direitos fundamentais da Recorrente
1. Em relação à pretensa violação dos direitos fundamentais da Recorrente, mormente no que se refere à garantia de acesso ao direito e aos tribunais, foram já abundantemente explicitadas as razões pelas quais inexiste qualquer inconstitucionalidade, não tendo a Recorrente suscitado oportunamente qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, o que constitui um pressuposto de admissibilidade de um eventual recurso para o Tribunal Constitucional nos termos do art. 70.º da respetiva Lei Orgânica – Lei n.º 28/82, de 15 de novembro – (doravante LTC). Conforme então se referiu, a “mera invocação de um princípio constitucional ou de um direito fundamental não configura uma suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Impunha-se à Recorrente identificar a específica norma jurídica ordinária que estaria em contradição com o direito à tutela jurisdicional efetiva e detalhar o conteúdo e a extensão da interpretação normativa alegadamente inconstitucional”. Tendo-se a Recorrente limitado a afirmar, de modo vago e não concretizado, que o acórdão violava o seu direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrada no art. 20.º da CRP, não havia – nem há - que conhecer de qualquer questão de constitucionalidade.
2. Do mesmo modo, e por razões idênticas, inexiste agora qualquer questão de inconstitucionalidade ou de ofensa de direitos fundamentais que justifique solução diversa da rejeição do recurso de revista em apreço. Na verdade, para além de serem os mesmos direitos fundamentais que a Recorrente sustenta serem violados, também não tem fundamento o entendimento de que os direitos a um processo equitativo e à tutela jurisdicional efetiva, expressamente consagrados na CRP (art. 20.º), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 47.º[28]) e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (doravante CEDH) (arts. 6.º, n.º 1[29], e 13.º[30])[31] não se mostram assegurados no processo ou são ofendidos por efeito da rejeição do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, id est, pela inadmissibilidade do acesso a um terceiro grau de jurisdição[32].
3. Com efeito, conforme tem sido reiteradamente afirmado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e confirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, a garantia de acesso ao direito não significa um direito de recurso irrestrito, uma vez que “fora dos casos das decisões penais condenatórias (art. 32.º, n.º 1, da CRP), a CRP não inclui entre as garantias de acesso à justiça, ao direito e aos tribunais, a garantia de um duplo grau de jurisdição, ou, dito de outra forma, não impõe o direito ao recurso das decisões judiciais, deixando ao legislador uma ampla margem de liberdade de conformação dos requisitos de admissibilidade dos recursos; e muito menos impõe um duplo grau de recurso, ou seja, um triplo grau de jurisdição”[33].
4. Neste mesmo sentido se tem pronunciado, sucessivamente, o Tribunal Constitucional a propósito do direito ao acesso ao direito, à tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, quando afirma que “o direito ao recurso em processo civil, e sobretudo o acesso ao recurso junto do Supremo Tribunal de Justiça, não encontra previsão expressa no artigo 20.º da Constituição, não resultando como uma imposição constitucional dirigida ao legislador, que, neste âmbito, dispõe de uma ampla margem de liberdade”[34].
5. Efetivamente, o Tribunal Constitucional tem “entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (…), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que «o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos». Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (…)”[35].
6. Acresce que, designadamente a propósito da recorribilidade para o Tribunal Constitucional das decisões proferidas em sede de procedimentos cautelares, a esmagadora maioria da jurisprudência desse Tribunal tem considerado como inadmissível o recurso de inconstitucionalidade. A essa tendência jurisprudencial subjaz o caráter meramente provisório do juízo de constitucionalidade emitido no julgamento de providência cautelar, assim como a ausência de caso julgado. Segundo o Tribunal Constitucional, esta posição não pode ser entendida como traduzindo uma violação da garantia constitucional de acesso ao direito[36].
7. No caso em apreço, conforme referido nos despachos proferidos a 27 de agosto e 1 de outubro, e tal como decorre do regime de recursos próprio dos procedimentos cautelares (até pelos fundamentos invocados pelo Tribunal Constitucional que, de resto, podem servir como justificação desta limitação legalmente consagrada), apenas se restringe o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Contudo, mesmo em relação ao recurso de revista, encontram-se devidamente salvaguardadas as situações em que o recurso é sempre admissível, em virtude da remissão estabelecida no art. 370.º, n.º 2, in fine, para o art. 629.º, n.º 2, do CPC.
8. Estando, assim (ressalvada a inobservância dos pressupostos gerais de admissibilidade do recurso respeitantes ao valor da ação e à sucumbência, nos termos do art. 629.º, n.º 1, do CPC), assegurado o direito ao recurso, nomeadamente, através do recurso de apelação para o Tribunal da Relação, não se encontra fundamento para a consideração da restrição de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, numa decisão que tem natureza provisória, como violação de qualquer direito fundamental. Na verdade, como consequência da summaria cognitio, a tutela cautelar é imperativamente provisória.
9. De resto, não se entende igualmente que a CEDH ou a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (doravante TEDH) - citada pela Recorrente no seu requerimento - expandam o conteúdo dos direitos fundamentais em causa para além do que já se encontra consagrado na CRP.
10. Os arestos do Tribunal de Estrasburgo não se podem aplicar ao caso em apreço, porquanto este respeita, não ao direito de acesso aos tribunais em geral, mas apenas ao direito ao recurso em processo civil, entendido como possibilidade de revisão de uma decisão por parte de tribunais hierarquicamente superiores.
11. Com efeito, no caso “Walchli vs França” - citado pela Recorrente - estava em causa a anulação de uma decisão proferida num processo de informação de natureza penal, referindo o TEDH expressamente a regra de que os Estados têm uma certa margem de decisão sobre as condições de admissibilidade dos recursos, precisamente por o direito ao recurso não se consubstanciar num direito “absoluto”. Apenas se considerou que as restrições ao recurso não poderiam ser de molde a pôr em causa o próprio exercício do direito, conforme resulta do seguinte trecho:
“27. La Cour rappelle ensuite que c'est au premier chef aux autorités nationales, et notamment aux cours et tribunaux, qu'il incombe d'interpréter la législation interne. Le rôle de la Cour se limite à vérifier la compatibilité avec la Convention des effets de pareille interprétation. Cela est particulièrement vrai s'agissant de l'interprétation par les tribunaux de règles procédurales. La réglementation relative aux formalités et délais à observer pour former un recours vise à assurer la bonne administration de la justice et le respect, en particulier, de la sécurité juridique.
28. Par ailleurs, le « droit à un tribunal », dont le droit d'accès constitue un aspect, n'est pas absolu et se prête à des limitations implicitement admises, notamment en ce qui concerne les conditions de recevabilité d'un recours, car il appelle de par sa nature même une réglementation par l'Etat, lequel jouit à cet égard d'une certaine marge d'appréciation (voir, entre autres, Garcia Manibardo c. Espagne, no 38695/97, § 36, CEDH 2000-II, et Zvolský et Zvolská c. République tchèque, no 46129/99, § 47, 12 novembre 2002). Néanmoins, les limitations appliquées ne doivent pas restreindre l'accès ouvert à l'individu d'une manière ou à un point tel que le droit s'en trouve atteint dans sa substance même. En outre, ces limitations ne se concilient avec l'article 6 § 1 que si elles poursuivent un but légitime et s'il existe un rapport raisonnable de proportionnalité entre les moyens employés et le but visé (Nedzela c. France, no 73695/01, § 45, arrêt du 27 juillet 2006, et Guérin c. France, arrêt du 29 juillet 1998, Recueil 1998-V, § 37).”
12. Por seu turno, no caso “Dos Santos Calado vs. Portugal” refere-se o “formalismo excessivo” do Tribunal Constitucional, na medida em que a possibilidade de rejeição dos recursos de constitucionalidade é suscetível de violar, em certos casos, o art. 6.º da CEDH. Porém, esta possibilidade não se verifica manifestamente no caso sub judice, em que se procedeu, inclusivamente, à audição prévia da Recorrente/Reclamante.
13. Finalmente, no caso “Micallef vs. Malta”, ainda que, como refere a Recorrente, se mencionem as situações em que pode haver lugar à apreciação da conformidade de processos civis com a CEDH, a condenação decidida pelo Tribunal fundamenta-se na falta de imparcialidade enquanto elemento integrante do direito a um processo equitativo, não constituindo o regime dos recursos thema decidendum do acórdão.
14. Pode, deste modo, dizer-se que a jurisprudência firmada em qualquer dos acórdãos proferidos nos casos supra mencionados não constitui um elemento persuasivo de diferente interpretação dos preceitos em causa à luz dos direitos humanos.
15. De resto, nem o direito a que a causa seja “examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei” – plasmado no art. 6.º da CEDH -, nem o direito a recurso – consagrado no art. 13.º, segundo o qual “qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional” - se mostram violados pela não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de uma decisão que se pronuncia provisoriamente sobre o direito. A expressão “recurso perante uma instância nacional”, utilizada no art. 13.º, não tem, aliás, o sentido de direito à revisão e reapreciação da decisão proferida por uma instância judicial por um tribunal hierarquicamente superior, antes respeitando ao direito à ação tout court, conforme se retira da versão oficial da CEDH em língua inglesa (“have an effective remedy before a national authority”)[37].
16. Questões diferentes são, assim:
De um lado, aquela do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva traduzidos no direito das partes de verem as suas pretensões apreciadas por uma instância, nomeadamente, por um tribunal, e de a estas corresponder uma ação adequada, designadamente, para prevenir ou reparar a violação do direito que se pretende exercer mediante procedimentos cautelares necessários para assegurar o efeito útil da ação (expressamente consagrado no art. 2.º do CPC),
De outro lado, aquela do direito ao recurso daquelas decisões para um tribunal hierarquicamente superior, o qual conhece limitações que, desde que não ponham em causa o próprio direito de ação, são constitucionalmente admissíveis.
17. No caso dos autos, trata-se de uma mera restrição ao acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, que se encontra legalmente prevista no CPC. Esta limitação (que não existe, verbi gratia, no que toca à possibilidade de recurso, em um grau, para o Tribunal da Relação) não põe em causa, de forma irrestrita ou desproporcional, o direito de acesso ao direito, à tutela jurisdicional efetiva ou a um processo equitativo.
18. Conclui-se, deste modo, pela inexistência de qualquer inconstitucionalidade, de violação da CEDH ou da Carta dos Direitos Fundamentais da UE na rejeição do recurso de revista, ao abrigo do respetivo regime de admissibilidade, das decisões proferidas em sede de procedimento cautelar.
Reenvio prejudicial
1. Já quanto à pertinência de proceder a um reenvio prejudicial dirigido ao Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE) em vista da “interpretação normativa dos fundamentos legais que permitiram, de acordo com as decisões das Instâncias, a redução dos valores depositados, em substituição do Arresto, no âmbito da providência cautelar”, a Recorrente entende que deve ser suspenso o processo e que esta questão deve ser suscitada perante o TJUE.
2. Sustenta que, tendo sido acolhida no ordenamento da União a CEDH e aprovada a Carta dos Direitos Fundamentais da UE, a interpretação feita pelas instâncias é contrária àquela dos Tratados efetuada pelo TJUE, havendo o risco de ocorrer um facto consumado suscetível de tornar inútil, total ou parcialmente, a eventual procedência da ação principal.
3. Aborda-se, pois, a questão de se saber se deve – ou não – ponderar-se o reenvio, por parte do Supremo Tribunal de Justiça, de uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça[38].
4. O reenvio prejudicial encontra-se previsto nos arts. 19.o, n.o 3, al. b), do Tratado da União Europeia (TUE) e no art. 267.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). É um mecanismo – jurídico-processual - fundamental do Direito da União Europeia. Tendo em vista garantir a uniformidade na interpretação e na aplicação deste Direito na União, consente aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a título prejudicial, questões relativas à interpretação do Direito da União ou à validade dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Ao responder do mesmo modo a questões substancialmente idênticas, permite que os tribunais nacionais dos diversos Estados-Membros apliquem de forma uniforme o Direito da União Europeia. Está em causa a observância efetiva do princípio da igualdade dos cidadãos da União Europeia, assim como a realização do projeto de integração da União.
5. Traduz-se num mecanismo de estreita cooperação entre o TJUE e os órgãos jurisdicionais nacionais dos Estados-Membros. Sempre que um órgão jurisdicional nacional chamado a julgar um litígio nacional, que envolva a aplicação de normas do Direito da União Europeia, tenha dúvidas sobre a interpretação dessas normas - ou sobre a validade de uma norma de direito derivado - pode (ou deve, conforme os casos) suspender a instância e reenviar as suas questões para o TJUE.
6. Diz-se questão prejudicial aquela que um órgão jurisdicional nacional de um Estado-Membro considera necessária para a resolução de um litígio pendente perante si, que diga respeito à interpretação, ou à apreciação de validade, de normas do Direito da União Europeia (com exceção da apreciação de validade dos Tratados). O órgão jurisdicional nacional pede ao TJUE que se pronuncie, em ordem ao esclarecimento sobre o correto entendimento ou, se for caso disso, sobre a validade, das normas de Direito Europeu que condicionam a solução do litígio concreto que é chamado a julgar.
7. O reenvio pode ter lugar ex officio, quando o juiz da causa considera necessário o esclarecimento de dúvidas de interpretação e promove o reenvio, de um lado e, de outro, mediante solicitação das partes. Note-se, nesta sede, que o Ministério Público deve, no cumprimento dos seus deveres estatutários de garante da legalidade, solicitar o reenvio ao tribunal.
8. O art. 267.º, § 3, do TFUE, estabelece que os órgãos jurisdicionais nacionais, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no Direito interno, devem proceder ao reenvio sempre que tenham dúvidas sobre a interpretação de uma norma do Direito da União Europeia (reenvio prejudicial obrigatório).
9. Todavia, a obrigação de reenvio por insuscetibilidade de recurso ordinário, no direito interno, da decisão a proferir, pode ser dispensada. Com efeito, o TJUE, no acórdão Cilfit (proc. 283/81, n.os 10, 13 e 16, doutrina do ato claro), diretamente confrontado com a questão, enunciou as três situações em que o tribunal nacional, apesar de decidir em última instância, fica dispensado de proceder ao reenvio. Desde logo, cessa a obrigação de reenvio quando a questão de Direito da União Europeia suscitada não for pertinente ou necessária para a resolução do litígio concreto (n.º 10). Depois, o órgão jurisdicional nacional não é obrigado ao reenvio se a questão for materialmente idêntica a outra já decidida a título prejudicial num caso análogo, em virtude do efeito erga omnes das decisões do TJUE (n.os 13 e 14). Por último, a obrigação de reenvio cessa quando o órgão jurisdicional nacional considere que as normas de Direito da União Europeia aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas razoáveis, porquanto se afiguram claras (n.º 16).
10. Para que o reenvio prejudicial se justifique, é, pois, necessária a verificação cumulativa de dois pressupostos: desde logo, que o órgão jurisdicional nacional tenha dúvidas sobre a interpretação ou a validade de normas de Direito da União Europeia; depois, que uma decisão – da competência exclusiva do TJUE – sobre tais dúvidas se afigure indispensável para uma adequada resolução do caso pendente perante o órgão jurisdicional nacional. Trata-se, com efeito, de um mecanismo que visa assegurar a aplicação uniforme do Direito da União Europeia e evitar divergências jurisprudenciais no seio da União sobre questões de Direito da União.
11. No caso sub judice, afigura-se-nos que a Recorrente não distingue dois planos que são totalmente diferentes: de um lado, aquele respeitante ao mérito da providência, que se refere à circunstância de a decisão de redução dos valores depositados como caução em substituição do arresto ser passível de afetar negativamente a sua garantia patrimonial; de outro lado, aquele concernente apenas à decisão sobre a (in)admissibilidade do recurso de revista de decisões proferidas em sede de procedimentos cautelares, que se reveste de natureza exclusivamente processual.
12. Como é evidente, o Supremo Tribunal de Justiça apenas se pode pronunciar sobre o mérito da decisão que ordenou a redução dos valores depositados em substituição do arresto no caso de o recurso de revista ser admitido, sendo, por isso, manifestamente extemporâneo solicitar que se proceda a um pedido de reenvio prejudicial com o fundamento apresentado.
13. Daí que, ainda que pudesse existir alguma dúvida passível de justificar um pedido de reenvio prejudicial a propósito da interpretação conforme ao Direito da União Europeia da legislação aplicada, que sustentou a decisão de redução do valor depositado, tal procedimento apenas poderia ser iniciado em sede de apreciação do mérito do recurso e não, como sucede no caso dos autos, quando ainda se está na fase da admissibilidade do recurso de revista.
14. No mais, e a propósito da questão processual relativa à admissibilidade do recurso de revista, não se justificaria outrossim qualquer reenvio prejudicial, uma vez que, via de regra, a disciplina processual civil (com exceção, segundo cremos, apenas das regras da competência) não se encontra “comunitarizada ou europeizada”, ou seja, não é objeto dos Tratados ou de atos legislativos da União Europeia, pelo que se encontra arredada do direito primário ou derivado da União.
15. Não fazendo parte deste acervo normativo, qualquer formulação de um pedido de reenvio ao TJUE não tem, nesta sede, fundamento, uma vez que “o reenvio prejudicial é um mecanismo (…) do direito da União Europeia [que] visa garantir a interpretação e a aplicação uniformes deste direito na União, oferecendo aos órgãos jurisdicionais dos Estados Membros um instrumento que lhes permite submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia (…), a título prejudicial, questões relativas à interpretação do direito da União ou à validade dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União”[39].
16. Apenas se justifica, pois, que o órgão jurisdicional nacional submeta uma questão ao TJUE com recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial se o Direito da União for aplicável ao processo principal. O mesmo não pode claramente dizer-se a propósito da interpretação das regras de Direito nacional ou de questões de facto suscitadas no litígio, no processo principal[40].
17. In casu, não se vê, nem tão pouco a Recorrente a identifica, qual a norma de Direito da União Europeia que se aplica ao litígio, concretamente no que respeita à questão da admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões proferidas no âmbito de procedimentos cautelares.
18. Mesmo que se entendesse que estava em causa um direito fundamental consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da UE, nomeadamente, o direito de ação estabelecido no art. 47.º, enquanto garantia do direito ao recurso, a verdade é que tal não teria aplicação ao caso em apreço. Com efeito, como é sabido, nos termos do art. 51.º, n.º 1, os destinatários da Carta são as instituições, órgãos e organismos da União, assim como os Estados-Membros, apenas quando apliquem o Direito da União, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.
19. Nestes moldes, “No que diz respeito aos reenvios prejudiciais que têm por objeto a interpretação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, importa recordar que, segundo o seu artigo 51.º, n.º 1, as disposições da Carta têm por destinatários os Estados-Membros apenas quando apliquem o direito da União. Embora as hipóteses em que essa aplicação está em causa possam ser diversas, é, no entanto, necessário que resulte de forma clara e inequívoca do pedido de decisão prejudicial que, no processo principal, é aplicável uma regra de direito da União diferente da Carta. Na medida em que o Tribunal de Justiça não é competente para conhecer de um pedido de decisão prejudicial quando uma situação não for abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, as disposições da Carta eventualmente invocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio não podem, por si só, fundar essa competência”[41].
20. Perante a proliferação de pedidos de reenvio prejudicial indevidamente formulados com base na Carta dos Direitos Fundamentais da UE, o TJUE tem repetidamente afirmado que, quando uma situação jurídica não está abrangida pelo Direito da União, não tem competência para dela conhecer e que as disposições da Carta eventualmente invocadas não podem, por si sós, servir de base a essa competência. Por isso, o TJUE tem rejeitado, nesses casos, o processo por não se indicar uma regulamentação nacional que aplique o direito da União que possa estar a ofender a Carta.
21. Disso são exemplo as decisões proferidas nos Processos C-333/17, C-131/17, C-665/13 e C-258/13[42] - citando-se apenas, a este propósito, casos com origem em pedidos formulados por tribunais portugueses que foram objeto de rejeição.
22. Carece, assim, de fundamento qualquer pedido de reenvio prejudicial ao abrigo da Carta dos Direitos Fundamentais da UE quando está em causa a aplicação de normas do CPC que disciplinam o regime dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça e que não têm qualquer relação com o Direito da União Europeia.
23. Não se preenchem, deste modo, no caso em apreço, os pressupostos da justificação do reenvio prejudicial[43] (obrigatório ou facultativo). Assim, e ainda que o Supremo Tribunal de Justiça tenha, naturalmente, em atenção o Direito da União Europeia, a jurisprudência do TJUE e o princípio da interpretação conforme com o sentido, a economia e os termos das normas europeias, afigura-se desadequado o reenvio prejudicial, por não ser esse o mecanismo idóneo para dar resposta aos problemas de interpretação de normas de Direito interno.
IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada por Valente – Consultadoria, Engenharia, Projetos e Serviços Geológico-Mineiros, Unipessoal, Lda. nos presentes autos de procedimento cautelar, confirmando-se o despacho reclamado, sem que as razões ora expostas alterem a respetiva fundamentação.
Custas pela Requerente/Recorrente/Reclamante.
Notifiquem-se as partes.
Lisboa, 17 de novembro de 2020
Sumário:
1. É jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça que a admissibilidade do recurso de revista nos procedimentos cautelares se restringe aos casos em que o recurso é sempre admissível, conforme resulta do art. 370.º, n.º 2, do CPC, de um lado e, de outro, mesmo nos casos em que é invocada a respetiva admissibilidade, ao abrigo do art. 629.º, n.º 2, do CPC, designadamente, no caso de oposição de julgados, segundo alguns daqueles arestos, a matéria objeto de contradição deve respeitar aos pressupostos do procedimento cautelar e não ao mérito da questão decidida cautelarmente.
2. Ao abrigo do princípio da proporcionalidade, em virtude da sua natureza imperativamente provisória e relativamente incerta, o juízo de procedência cautelar não pode abdicar de uma ponderação comparativa entre os danos a causar ao requerente e ao requerido. 3. A requerente, não tendo de provar a certeza do crédito – com a extensão ou conteúdo alegado -, tem, contudo, de demonstrar a forte probabilidade da sua existência, pois não basta a sua mera possibilidade. A inverificação do fumus boni iuris dispensa a apreciação do periculum in mora.
4. Na nossa ordem jurídica, não se aprecia a (des)conformidade com a Constituição das próprias decisões judiciais.
5. As nulidades não são, por si só, causas de recorribilidade das decisões que delas padeçam.
6. Não se entende igualmente que a CEDH ou a jurisprudência do TEDH) - citada pela Recorrente no seu requerimento - expandam o conteúdo dos direitos fundamentais em causa para além do que já se encontra consagrado na CRP.
7. Impõe-se distinguir as seguintes questões: de um lado, a do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva traduzidos no direito das partes de verem as suas pretensões apreciadas por uma instância, nomeadamente, por um tribunal, e de a estas corresponder uma ação adequada, designadamente, para prevenir ou reparar a violação do direito que se pretende exercer mediante procedimentos cautelares necessários para assegurar o efeito útil da ação (expressamente consagrado no art. 2.º do CPC); e, de outro lado, aquela do direito ao recurso daquelas decisões para um tribunal hierarquicamente superior, o qual conhece limitações que, desde que não ponham em causa o próprio direito de ação, são constitucionalmente admissíveis.
8. A propósito da questão processual relativa à admissibilidade do recurso de revista, não se justifica qualquer reenvio prejudicial, uma vez que a disciplina processual civil (com exceção, segundo cremos, apenas das regras da competência) não se encontra “comunitarizada ou europeizada”.
Este acórdão obteve o voto de conformidade dos Excelentíssimos Senhores Conselheiros Adjuntos António Magalhães e Fernando Dias, a quem o respetivo projeto já havia sido apresentado, e que não o assinam por, em virtude das atuais circunstâncias de pandemia de covid-19, provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, não se encontrarem presentes (art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, que lhe foi aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio).
_________________________-
[1] Proferido nos termos do Artigo 652.º ex vi do Artigo 679.º do CPC.
[2] Nos termos do disposto no Artigo 655º do Código de Processo Civil (CPC).
[3] Vitalino Canas, Princípio da Proporcionalidade, 591 e ss.
[4] Cfr. nº 1 do Artigo 62º.
[5] Cfr. Artigos 1154º a 1156º.
[6] Artigo 6º.
[7] Artigo 20º.
[8] Incluindo os Tribunais Constitucionais.
[9] É o que resulta dos Acórdãos proferidos pelo TJUE, nos casos Antonissen, Zuckerfabrik e Factortame e Atlanta, citados na Manifestação dos Recorrentes com indicação da respetiva ligação, para consulta.
[10] Com efeito, escreveu-se no § 23 do Acórdão proferido, pelo TJUE, no caso Factortame: O direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que, quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o direito comunitário, considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma do direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma.
[11] Cfr. nº 4 do Artigo 8º da CRP.
[12] Aplicáveis aos Tribunais Portugueses por força do disposto no seu Artigo 51º.
[13] De acordo com o disposto no nº 2 do Artigo 370º do CPC.
[14] Cfr. os seguintes casos do TEDH: Verlaqsqruppe News GmbH e. Áustria (dec.) e Liberte c. Bélgica (dec.) citados no Guia Prático sobre Admissibilidade de recursos perante o TEDH, pág. 81, consultado em https://www.echr.coe.int/Documents/Admissibility_guide_POR.pdf.
[15] Cfr. Alíneas d., e. e f. do ponto 44 da Manifestação.
[16] Cfr. Guia Prático sobre Admissibilidade de recursos perante o TEDH, págs. 81 e 82, consultado em https://www.echr.coe.int/Documents/Admissibility_guide_POR.pdf.
[17] Acórdão do TJUE, de 15 de Julho de 1964, caso Costa vs. Enel, Processo nº 6/64, consultável em https://eurlex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:61964CJ0006&from=ES.
[18] Pode ser consultado em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-81920%22]}.
[19] Acórdão do TEDH, de 31 de Março de 2020, Dos Santos Calado e Outros c. Portugal, Processo nº 55997/14 e 3 outros, § 117, incluindo a jurisprudência aí citada, consultável em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-202123%22]}.
[20] Acórdão do TEDH, de 31 de Março de 2020, Dos Santos Calado e Outros c. Portugal, (Processo nº 55997/14 e 3 outros), que pode ser consultado em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-202123%22]}.
[21] Neste sentido, vide, a título meramente exemplificativo, os seguintes arestos:
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de abril de 2018 (António Joaquim Piçarra), Proc. n.º 331/16.8YHLSB.L1.S1: “I - Tratando-se de decisão proferida no âmbito cautelar, a especial recorribilidade que é conferida pelo art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC cinge-se a aspectos relacionados com os pressupostos próprios e específicos da tutela cautelar, não se estendendo, consequentemente, às questões atinentes à definição do direito substantivo aplicável ao caso, posto que estas encontram a sua sede própria na acção principal. II - O que resulta da interpretação, conjugada e teleológica, dos arts. 370.º, n.º 2, e 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, é que a oposição de julgados que ali se prevê, para efeitos de admissibilidade do recurso para o STJ de decisões proferidas nos procedimentos cautelares, é apenas a que se relacione com os pressupostos referidos em I, sob pena de se subverter a lógica inerente à relação de instrumentalidade que deve existir entre a acção principal e o procedimento já que, a ser de outra forma, seria a decisão tomada no âmbito deste último que ditaria a sorte daquela. III - Centrando-se a discordância da requerida relativamente ao acórdão recorrido não propriamente nos pressupostos específicos da tutela cautelar mas sim na questão de mérito a ser apreciada a final, na acção declarativa, o recurso de revista não é admissível, estando o STJ impedido de sindicar ou apreciar o (des)acerto do decidido pela Relação, em sede cautelar. IV - Acresce que respeitando o acórdão recorrido a decisão proferida no âmbito cautelar, enquanto o acórdão fundamento se reporta a decisão proferida em acção declarativa, e uma vez que o primeiro constitui uma decisão necessariamente instrumental e transitória que poderá ou não vir a ser sufragada a final e o segundo tem por base factos definitivamente provados, inexiste o fundamento de oposição de julgados invocado em ordem a admitir o recurso de revista.” – disponível para consulta em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/civel2018-1.pdf;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de outubro de 2016 (Orlando Afonso), Proc. n.º 89/13.2TBMAC-A.E1.S1: “I - Decorre do disposto no art. 370.º, n.º 2, do CPC que, em princípio, está vedada a possibilidade de interposição de recurso para o STJ das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, só assim não sendo nos casos excepcionais em que o recurso é sempre admissível, como sucede com a oposição de julgados prevista no art. 629.º, n.º 2, al. d), do mesmo diploma legal. II - Resulta, porém, da interpretação conjugada e teleológica dos aludidos normativos que a oposição de julgados que aí se prevê, para efeitos de admissibilidade do recurso para o STJ, é apenas a que se relacione com os pressupostos próprios e específicos da tutela cautelar, não se estendendo, consequentemente, às questões atinentes à definição do direito substantivo aplicável ao caso, posto que estas encontram a sua sede própria na acção principal. III - Centrando-se o núcleo fundamental do recurso na invocada oposição entre decisões na parte concernente aos pressupostos substantivos de cuja verificação depende a aquisição do direito de propriedade através do instituto da acessão industrial imobiliária – questão de mérito que é objecto da acção principal – e não nos pressupostos próprios da tutela cautelar, não há que tomar conhecimento daquele já que, nesse circunstancialismo, não é de aplicar ao caso o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, mas antes a regra geral ínsita no art. 370.º, n.º 2, 1.ª parte, do mesmo Código. (…).” – disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e0b8e1ee8fe196fc802580440059d8ae?OpenDocument;
Do mesmo modo, no lugar paralelo do recurso de acórdão cujo objeto se traduz na questão da atribuição provisória da casa de morada de família, entende-se também que a natureza provisória da decisão em causa inviabiliza a possibilidade de ser admitido o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. Neste sentido, e com especial interesse, veja-se:
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de abril de 2017 (Tomé Gomes), Proc. n.º 273/14.1TBSCR.L1.S1: “(…) III - O procedimento para atribuição provisória da utilização da casa de morada de família, no âmbito da ação de divórcio litigioso previsto no n.º 7 do art. 931.º do CPC, tem por finalidade a aplicação, no decurso daquela ação, de uma medida provisória de natureza cautelar, para vigorar até à partilha do património do casal. IV - Trata-se dum procedimento incidental, que tanto pode ser promovido a requerimento das partes como por iniciativa do juiz, enxertado, em qualquer altura, na própria ação de divórcio, cuja tramitação, na falta de disposição especial, se rege pelas normas gerais dos incidentes da instância constantes dos arts. 292.º a 295.º do CPC. V - As características de provisoriedade e de função cautelar das medidas preconizadas no n.º 7 do art. 931.º do CPC tornam as decisões que as decretem, em termos de coerência sistemática, abarcáveis pelo âmbito normativo do art. 370.º, n.º 2, a título subsidiário, como disposição geral e comum mais adequada ao caso, por via do art. 549.º, n.º 1, ambos do CPC, sendo para tal indiferente que essas decisões sejam proferidas em sede incidental ou em procedimento cautelar típico. VI - Nessa conformidade, não cabe recurso de tais decisões para o STJ, salvo nos casos em que o mesmo seja sempre admissível. (…).” – disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/79787ddb4805ad4580258114003705be?OpenDocument.
[22] Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 187/2001, de 2 de maio de 2001 - disponível para consulta in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010187.html - e n.º 632/2008, de 23 de dezembro de 2008 – disponível para consulta in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080632.html.
[23] Cfr. Rita Lyince de Faria, A tutela cautelar antecipatória no processo civil português – um difícil equilíbrio entre a urgência e a irreversibilidade, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016, p.315.
[24] Cfr. Rita Lyince de Faria, A tutela cautelar antecipatória no processo civil português – um difícil equilíbrio entre a urgência e a irreversibilidade, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016, p.108.
[25] Cfr. Rita Lyince de Faria, A tutela cautelar antecipatória no processo civil português – um difícil equilíbrio entre a urgência e a irreversibilidade, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016, pp.118-119, 121-122.
Nos procedimentos cautelares inaudita altera parte, o direito de defesa do requerido, por razões procedimentais e de celeridade, é diferido para um momento ulterior e revela-se mais exigente em virtude de já existir uma decisão judicial prévia favorável ao requerente. A oposição ao arresto é o incidente da instância cautelar destinado a consentir o exercício desse contraditório. Cfr. Rita Lyince de Faria, A tutela cautelar antecipatória no processo civil português – um difícil equilíbrio entre a urgência e a irreversibilidade, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016, pp.123-124; Ana Carolina dos Santos Sequeira, Do arresto como meio de conservação da garantia patrimonial, Coimbra, Almedina, 2020, p.197.
[26] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, p. 25.
[27] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de junho de 2019, proc. n.º 5065/16.0T8CBR.C1-A.S1 (Rosa Tching): “III - Verificando-se a “dupla conforme” quanto ao mérito da acção e tendo sido rejeitado o recurso de apelação na parte respeitante à reapreciação da prova, sem que de tal tenha sido interposto recurso, vedada fica a possibilidade do tribunal de revista sindicar eventuais erros da Relação na reapreciação das provas, assim como conhecer das invocadas nulidades assacadas ao acórdão recorrido.”; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de março de 2018, Incidente n.º 1733/15.2T8PNF-A.P1.S1 (Álvaro Rodrigues):“II - Existindo dupla conforme, com a consequente imperativa inadmissibilidade recursória (visto que não foi requerida revista excepcional, nem se trata de caso em que o recurso é sempre admissível), a nulidade imputada a acórdão proferido em sede de apelação deve ser arguida no próprio tribunal que o proferiu (art. 671.º, n.º 3, do CPC).”; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de abril de 2018, proc. n.º 414/13.6TBFLG.P1.S1(António Joaquim Piçarra): “III - A arguição de nulidades do acórdão da Relação ou o erro na apreciação da prova, não implicam, por si só, a admissibilidade do recurso de revista; podem é constituir fundamentos deste, como se alcança do art. 674.º, n.º 1, do CPC, se for admissível, o que é bem diferente.”; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de abril de 2017 (Maria dos Prazeres Beleza), proc. n.º 3017/14.4T8LSB-A.E1-A.S1: “II - Não sendo admissível recurso, as nulidades são arguidas perante o tribunal que julgou, não sendo, pois, a revista admissível com esse fundamento.”
[28] Nos termos do qual, “Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo. É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça”. Este preceito compreende o princípio jurídico da União de que os Estados-Membros devem assegurar a tutela jurisdicional efetiva dos direitos de uma pessoa decorrentes do Direito da União (nomeadamente, os direitos previstos na Carta). Isto significa que o direito de acesso aos tribunais se aplica sempre que estejam em causa direitos e liberdades garantidos pelo direito da União. Contudo, o direito de acesso aos tribunais, ao abrigo do Direito da União Europeia, não é absoluto, podendo ser limitado em ordem a assegurar a administração eficiente da justiça.
[29] Segundo o qual, “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (…)”. O acesso aos tribunais está implícito no direito a um processo equitativo, porquanto sugere que devem ser os tribunais a decidir os litígios. O direito de acesso aos tribunais não é, todavia, absoluto, podendo ser limitado.
[30] De acordo com o qual, “Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver
sido cometida por pessoas que actuem no exercício das suas funções oficiais”.
[31] O direito a um julgamento público e equitativo encontra-se consagrado no art. 6.º, n.º 1, da CEDH, e no art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE. O direito a um julgamento equitativo compreende, essencialmente, o direito a igualdade de condições – “igualdade de armas” entre as partes -, o direito ao contraditório e o direito a uma decisão fundamentada, assim como o direito a garantir a execução da sentença transitada em julgado.
[32] No direito europeu, a noção de acesso à justiça encontra-se consagrada nos arts 6.º e 13.º da CEDH e no art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da EU. Garante o direito a um processo equitativo e a um recurso efetivo, conforme interpretados pelo TEDH e pelo TJUE, respetivamente. Estes direitos encontram-se também previstos em instrumentos internacionais, como no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) da Organização das Nações Unidas (ONU), nos arts 2.º, n.º 3, e 14.º, n.º5, e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) da ONU, arts 8.º e 10.º. Os elementos essenciais destes direitos incluem o acesso efetivo a um organismo de resolução de litígios, o direito a um processo equitativo e à resolução tempestiva de litígios, o direito a uma reparação adequada, assim como a aplicação geral dos princípios da eficiência e eficácia à oferta da justiça.
[33] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de março de 2019 (Maria dos Prazeres Beleza), Incidente n.º 850/14.0YRLSB.S2.
[34] Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 361/2018, 159/2019 e 263/2020.
[35] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/2018).
[36] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 611/2014, no qual se remete para os Acórdãos, do mesmo Tribunal, n.os 151/85, 400/97, 664/97, 442/2000, 235/2001, 394/2007, 457/2007 e 395/2009 e para a Decisão Sumária n.º 612/2013. Em sentido inverso, vide os Acórdãos, em menor número, n.os 92/87, 466/95 e 624/2009, este retomado pelo Acórdão n.º 459/2013.
[37] Disponível para consulta em https://echr.coe.int.
[38] Cfr. Miguel Gorjão-Henriques, Direito da União, História, Direito, Cidadania, Mercado interno e Concorrência, Coimbra, Almedina, 2019, pp.475-506; Rui Moura Ramos, “Reenvio prejudicial e relacionamento entre ordens jurídicas na construção comunitária”, Legislação (cadernos de), n.os 4/5, INA, 1992, pp.100 e ss.; Sofia Oliveira Pais, Estudos de Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2017, pp.100-114.
[39] Cfr. ponto 1. das Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais - 2019/C 380/01.
[40] Cfr. pontos 8. e 9. das Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais - 2019/C 380/01.
[41] Trata-se, para este efeito, de uma síntese esclarecedora que se no ponto 10. das Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais - 2019/C 380/01.
[42] Disponíveis para consulta no site da Curia.
[43] Não está, por isso, em causa, “a garantia da unidade de interpretação do direito comunitário”, destinada a “evitar que a unidade normativa obtida ao nível da criação da regra seja destruída no momento da sua aplicação”. Cfr. Rui Moura Ramos, “Reenvio prejudicial e relacionamento entre ordens jurídicas na construção comunitária”, in Cadernos de Ciência de Legislação, n.º 4/5, abril-dezembro de 1992, INA, 1992, pp.100 e ss.