Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P4198
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: PROVA
ESCUTAS TELEFÓNICAS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
PRESUNÇÕES
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES AGRAVADO
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
Nº do Documento: SJ200801100041985
Data do Acordão: 01/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I -Havendo «razões para crer que a diligência se revelaria de grande interesse para a descoberta da verdade» (e, mesmo, para a prova dos contactos telefónicos entre os diversos intervenientes), justificava-se que a requerida intercepção e gravação das comunicações telefónicas (...) fosse – como foram – de autorizar.
II-Relativamente às transcrições cujo suporte possa ter «desaparecido», o tribunal colectivo, considerando-as «nulas», não as tomou em consideração, justamente porque, inexistindo os suportes respectivos, «ficou cerceado» de proceder à sua imediação em audiência (...). «Daí que tal tenha determinado a ausência de convicção positiva quanto aos factos que as escutas ilustrariam», pois que não considerou aceitável «a valoração pelo tribunal, como meio de prova dos factos vertidos na pronúncia, de transcrições de escutas sem que o registo áudio estivesse disponível». Não valerá, pois, apelar agora para a «nulidade» de escutas» que, como tal, foram efectivamente consideradas e, por isso, oportunamente «desconsideradas» como «meio de obtenção de prova».
III - A circunstância de a juiz de instrução ter aproveitado as escutas apesar da linguagem codificada que os interlocutores possam ter utilizado nas conversações interceptadas, não implica que o juízo de relevância para a prova feito sobre os elementos recolhidos possa ser visto, porque desacompanhado de «intérprete», como ausência ou deficiência de controlo das escutas. Por um lado, o juiz de instrução contou, a montante, com o juízo experimentado do órgão de polícia criminal que, coadjuvando-o, lhe «indicou», ao apresentar-lhe as fitas gravadas ou elementos análogos, «as passagens consideradas relevantes para a prova». E, por outro, ele próprio poderia – consoante os casos, a inteligibilidade das conversações e a sua própria capacidade interpretativa – ter (ou não) nomeado intérprete. Porém, a nomeação de intérprete por parte do juiz de instrução não só é facultativa («poderá») como se circunscreverá aos casos em que o juiz de instrução, ele próprio, o entenda «necessário» (art. 188.4 do CPP). Trata-se, pois, de um requisito, que, dependendo do alvedrio do juiz de instrução ou da concreta necessidade por ele próprio sentida e avaliada, não só não é obrigatório como não é legalmente «estabelecido sob pena de nulidade» (art. 189.º). De qualquer modo, a sua pontual validação pelo tribunal colectivo foi precedida pelo seu exame público em audiência, onde, justamente para permitir à defesa o seu contributo contraditório em ordem à correcta interpretação da linguagem codificada utilizada pelos arguidos e seus interlocutores nas conversações gravadas, houve o cuidado de se apelar ao saber, à experiência e ao juízo independente de um perito nomeado para o efeito.
IV - Não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio in dubio pro reo exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu – «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997. Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, pág. 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, pág. 13)». E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação, não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
V - Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127.º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
VI -«A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).
Decisão Texto Integral:



1. OS FACTOS

66. No ano de 2003, o arguido JAMF adquiriu um veículo ligeiro de passageiros de marca BMW 3201, de matrícula 31-65-..., uma carrinha Ford Transit de matrícula 25-66-... e um ligeiro de passageiros, de marca BMW de matrícula 33-11-.... No ano de 2004, adquiriu uma carrinha Ford Transit de matrícula 16-92-.... 67. E, entre os anos de 1999 a 2004, a sua companheira MJSB, adquirira: - uma carrinha Mercedes Benz de matrícula 11-04-..., uma carrinha Mercedes Benz 316CDI de matrícula 08-13-..., uma carrinha Mercedes Benz 939 488 115CDI de matrícula 71-01-..., uma carrinha Mercedes Benz, de matrícula 34-12-... e uma carrinha Mercedes Benz de matrícula 41-67-.... 68. Em 10.6.2003, foi promitente comprador de uma moradia, situada em Maceirinha - Leiria, pelo preço de € 125 000, tendo este arguido emitido e entregue para sinalizar o negócio um cheque cuja cópia consta a fls. 4107 no valor de € 35 000, mas que nunca viria a ser apresentado a pagamento.
1. Os arguidos AMF (“Bambo”), pelo menos desde 17Jan04, e seu irmão, JAMF (“Touro”), desde pelo menos 08Mai04, dedicaram-se em comunhão de esforços e intenções à aquisição em Espanha de produto estupefaciente, vendendo-o posteriormente em Portugal, nomeadamente a PM. 2. Os contactos realizados entre os arguidos e terceiros na preparação e execução das transacções de produtos estupefacientes eram efectuados sobretudo através de telemóvel. 3. As conversas mantidas através de telefone entre os arguidos e entre estes e terceiros denotam o cuidado dos interlocutores em que não fosse integralmente perceptível o conteúdo das conversas acerca de produto estupefaciente, utilizando palavras da linguagem corrente para o designar, de forma a que só eles percebessem a que se estavam a referir, pelo que todos os arguidos, quando se referiam a “droga”, utilizavam expressões tendentes a ocultar que o teor da conversa se reportava a produto estupefaciente, designadamente, “bujero com pelos” e “bujero mais claro, “meios carros’, ‘açúcar’, ‘t-shirts’, ‘tijoleira’, ‘brancucha’, ‘veia’, ‘pó’, ‘cd’s’, ‘meios pneus’, ‘pneus’, ‘avô’, ‘cassetes’.
4. No dia 04Jan03, FJS deslocou-se ao Bairro da Apelação, onde residem os arguidos AMF e JAMF. 5. No mesmo dia, em Águeda, foi abordada a viatura em que se fazia transportar FJS e FS, tendo sido apreendido no seu interior um saco contendo 1,5 kg (peso bruto) de heroína. 6. Entre 22 de Janeiro e 5 de Junho de 2004, data em que foi detido, o arguido AMF usou os seguintes n.ºs de telemóvel: ...4 802 623, ...8 491731, e ...8 676 733, ...6 213 230 e ...9 488 115. 8. As relações entre os arguidos AMF e PM iniciaram-se em data não concretamente determinada, mas anterior a 17Jan04, data do registo da primeira conversa entre os dois. ( «9. No período compreendido entre 16 de Janeiro e 19 de Outubro de 2004, data da sua detenção, o arguido PM foi trocando, sucessivamente, ora de cartão, ora de telemóvel. 10. Tendo sido no citado período identificada a utilização por este arguido dos seguintes nº de telemóvel:...8 138471,... 217 587,...1 694 720,...1 405 636,...7 516 929 (todos utilizados no equipamento com o IMEI 35145880611771); ...7 740 358,...4 592 445, ...6 041 412, ...8 902 754, ...6 477 327, ...8 567 578, ...6 501 839, ...2 761 502, ...2 761 026 e ...7 633 808, num total de quinze cartões»)
82. No dia 17Jan04, pelas 19:38, PM pelo nº de telemóvel... 121 75 87 contactou LFMS para o nº ... a quem informou ir buscar um “bujero com pêlos” ao compadre Bujero (AMF) que tinha “bujero mais claro”. (...)
10. No dia 17Jan04, pelas 19:48, PM através do telemóvel... 121 75 87 contactou o arguido AMF para o telemóvel com o ... 480 26 23, tratando-o por “Bujero” e dizendo-lhe que tem tudo preparado para ir à festa dele. 11. O arguido AMF diz-lhe que está mau e combinam voltar a falar no dia seguinte.
12. No dia 18Jan04, pelas 11:54, PM contactou indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, a quem disse que precisava de dinheiro para a “viagem”, respondendo-lhe o mesmo que a coisa estava má, que ninguém telefonava. 13. Pelas 15:50, o arguido AMF informou PM que os irmãos venderam o “carro” e que por isso não havia.
95. No dia 23Jan04, pelas 13:04, PM e LS conversaram acerca do dinheiro que CC [devia], desde há mais de um mês, ao arguido AMF e sobre dinheiro que aquele tinha guardado e a receber de terceiros. (...)
14. No dia 14Fev04, pelas 10:36, o arguido AMF telefonou do seu telefone de casa (...) para o telemóvel ... 774 03 58 usado por PM e combinou encontro para uma transacção. 15. Nesse mesmo dia, AMF deslocou-se à zona de Aveiro para se encontrar com PM e dele receber dinheiro.
16. Os arguidos PM e AMF conversaram através do mesmo aparelho em 26Fev04.
34. No dia 30Mar04, o arguido AMF, através do telemóvel ... 886 77 33, conversou com indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, relatando este que nesse dia lhe tinham mostrado as fotografias de um tal “Touro” e do “Bujero” da Apelação e que respondeu não os conhecer, mantendo ambos ainda uma conversa sobre os números dos telemóveis dos arguidos AMF e JAMF. 35. Pelas 22:39, AMF foi contactado no telemóvel ... 849 17 31 por um tal Artur que o tratou por “compadre Bambo”, conversando ambos sobre uma dívida que Artur tinha para com aquele no valor de € 10.000.
18. Os arguidos AMF e PM mantiveram uma conversa telefónica no dia 06Mai04, pelas 13:04 (...). 19. No mesmo dia mas pelas 18:08, o arguido AMF pediu a CC para lhe telefonar à noite pois talvez lhe conseguisse arranjar um “carro” e este diz-lhe que está preparado. 20. Ainda no mesmo dia, pelas 23:29, CC contactou o arguido AMF através do telemóvel da arguida CL (... 666 00 54).
21. No dia 08Mai04, o arguido AMF contactou PM, dizendo-lhe que tem umas “t-shirt’s” boas para ele. 22. Às 12:40, PM e JM, utilizando o Volkswagen Polo 67-36-..., dirigiram-se à Rua Josué Ribau, na Gafanha da Nazaré, Ílhavo, onde foram buscar a arguida BB. 23. Na sequência do contacto do arguido AMF, o arguido CC telefonou ao primeiro, pelas 13:05, sendo o telefone ... 886 77 33 atendido por uma mulher a quem CC pediu que lhe transmitisse o recado de que vai arrancar para baixo. 24. Pelas 13:35, o arguido AMF pelo n.º ***733 contactou o arguido PM para o nº ***327 a quem pediu para levar um mecânico para provar se o “carro está bom” (...). 25. Após o que, pelas 13:48, a arguida BB informou a irmã de que está a ir para Lisboa pois receberam um telefonema. 26. Entretanto, pelas 14:32, o arguido JAMF, de alcunha “Morreta”, irmão do arguido AMF, foi contactado para o telemóvel... 270 27 26, por um indivíduo que aguardava uma resposta dele “para mandar vir os outros para o casamento”, tendo-lhe respondido que um já se queixou e que agora está à espera do outro. 27. Pelas 16:00, o arguido CC pelo telemóvel ... 647 73 27 contactou o telemóvel ... 886 77 33 atendido pelo arguido AMF para assinalar a sua chegada à Rua Ary dos Santos, nº ..., Bairro da Apelação, Camarate, Loures. 28. Pelas 16:01, o arguido AMF encontrou-se com CC, José e BB e, através do telemóvel de CC, n.º ... 647 73 27, contactou com o irmão JAMF, para o telemóvel... 270 27 26, a quem tratou por Morreta e a quem disse que fosse ter com eles pois está lá o coleguinha deles. 29. Alguns minutos depois, o arguido JAMF chegou numa carrinha Mercedes e foi juntar-se aos demais. 30. Pelas 16:40, depois do arguido JM ter testado a qualidade da droga, a solicitação do seu primo PM, os arguidos CL, JM e PM deixaram o Bairro da Apelação e iniciaram a viagem de regresso a Aveiro. 31. Pelas 17:44, o arguido JAMF falou com indivíduo não identificado num fornecimento da droga e informou-o de que os clientes já a tinham experimentado e que o negócio não se tinha realizado pois esta não tinha qualidade e o preço era alto, dizendo-lhe que o “produto” não prestava. 32. Pelas 20:02, o arguido JAMF foi contactado por um cliente, resultando da conversa que mantiveram que o primeiro teria droga para vender.
36. No dia 23Mai04, pelas 20:28, o arguido AMF através do seu telemóvel ... 886 77 33 telefonou para o telemóvel ... 496 48 33, sendo atendido por indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, que o tratou por ’Bujero’, e conversaram acerca da deslocação que tal indivíduo tinha feito a Espanha para estabelecer contactos e onde informou que está tudo bem. 37. O telemóvel ... 496 48 33 utilizado na conversa referida no ponto anterior estava a operar pelas 15:46 na zona de Elvas e pelas 22:32 já operava na zona de Camarate.
33. No dia 27Mai04, pelas 19:19, o arguido PM voltou a contactar com o arguido AMF para saber se ele tinha algum “trabalho”.
38. No dia 03Jun04, pelas 08:33, MJB, do número de telefone instalado na casa onde residia com o arguido JAMF, ligou[-lhe] para o... 270 27 26, tendo-lhe este dito que faltava pouco para chegarem à fronteira. 39. Pelas 11:43, indivíduo cuja identidade não foi possível apurar contactou o arguido JAMF para o... 270 27 26. 40. Pelas 22:17, indivíduo cuja identidade não foi apurada conversou com o arguido AMF para o n.º ... 948 81 15 e disse-lhe que no dia seguinte tinha de lhe enviar alguém de confiança já que lhe iria enviar “8 a 10 pessoas”. E esse indivíduo advertiu o arguido AMF de que têm de ser de confiança pois de contrário o casamento pode correr mal (...).
41. No dia 04Jun04, pelas 17:13, o arguido AMF contactou com JM e disse-lhe para levar as mulheres, designadamente a cunhada deste, ‘Zara’ (MRT), e “descer para cima” para ir ter ao sítio onde está o “Pêlo de Escova”. 42. Pelas 21:15, saiu do Bairro da Apelação - Sacavém uma viatura de marca Mercedes Benz, classe A, com a matrícula 46-64-..., na qual se faziam transportar os arguidos AMF e o irmão JAMF, acompanhados de um outro indivíduo. 43. Pelas 22:25, JM efectuou uma chamada telefónica de um posto fixo instalado na localidade de Torrecillas de la Tiesa, Cáceres, contactando o arguido JAMF para o nº de telemóvel... 270 27 26. 44. Este último passou o telefone a AMF e JM pediu-lhe para transmitir ao tio “Touro” um recado. 45. Pelas 22:41, a arguida ACM, conhecida pela alcunha de ‘Apólita’, do telefone com o n.º ... 947 13 85 instalado na sua residência e do seu companheiro AMF, contactou este e perguntou-lhe se o menino sabia onde era o “Hospital”. Este disse-lhe que ele sabia mas que não havia problema porque eles também iam a Espanha. 46. Às 22:53, MJB, do telefone fixo com o n.º ... 947 11 34 instalado na sua residência e do seu companheiro JAMF, ligou-lhe para o telemóvel... 270 27 26 e perguntou-lhe se a “menina” estava bem. Este respondeu-lhe que ia agora ao “Hospital” e que quando o “menino” tivesse alta que lhe telefonava.
47. Pelas 00:02 de 05Jun04, a mesma arguida voltou a telefonar-lhe e perguntou-lhe se já tinha apanhado a “menina” e se estavam a regressar e ele respondeu-lhe que não. 48. Pelas 02:15, o arguido JM efectuou uma chamada de um telefone fixo instalado na localidade de Talavera de La Reina, Toledo, com o nº ... (fls. 3163, 5016 a 5019), para o nº... 270 27 26, falando com o arguido AMF. 49. Às 06:00, a viatura Mercedes-Benz 46-64-... (ponto 42) entrou na estação de serviço de Estremoz, seguida por outra, Fiat Regata, com a matrícula ...-79-81, onde seguiam dois homens e duas mulheres, estando as duas viaturas paradas lado a lado, por alguns momentos, e, pelo menos, o arguido AMF saiu do Mercedes e falou com um dos indivíduos do Fiat Regata. 50. Depois, retomaram tais veículos a auto-estrada, em direcção a Lisboa, seguindo à frente o Mercedes Benz, no qual se faziam transportar os arguidos AMF, JAMF, MMF, e JMF, e, a certa distância, o Fiat Regata, onde seguiam os arguidos JM, conduzindo-o, GR, no banco ao lado do condutor, e, no de trás, OR e MRT. 51. Ao chegar à portagem do Pinhal Novo, Setúbal, pelas 07:00, o condutor do Mercedes-Benz foi interceptado por elementos da Polícia Judiciária. 52. Quando foi tentada a intercepção do Fiat e porque o seu condutor se tinha apercebido de movimentações daquela polícia, tentou a fuga, utilizando um dos corredores de passagem que se encontrava fechado com a respectiva cancela, tendo-lhe sido movida perseguição. 53. Cerca de 200 metros à frente da portagem, o arguido GR, que seguia no lugar ao lado do condutor, lançou pela janela do lado direito, um saco desportivo de cor vermelha. 54. No interior do mesmo saco encontravam-se 28 embalagens de heroína, com 15,55 kg e um grau de pureza de 44,5%. 55. Sem que fosse sujeita a qualquer adulteração, esta quantidade de heroína daria, pelo menos, para 150 000 doses individuais, o que equivaleria a um valor aproximado de € 300 000. 56. Em face ao grau de pureza médio da heroína apreendida a consumidores, a quantidade de heroína mencionada equivaleria a um valor de mercado de cerca de € 5 600 000.
57. A aquisição, transporte, seguro e indicação das pessoas que deviam seguir em cada veículo foram planeados e controlados pelos dois irmãos AMF e JAMF. 58. Na busca na residência dos arguidos JAMF e MJSB, além de outros objectos, foi apreendido um telemóvel com o cartão nº ... 733 05 58, equipamento a que estiveram associados os cartões com os nº... 819 29 26,... 927 89 49,... 121 11 11 e... 270 27 26. Ao arguido JAMF foi ainda apreendido no dia 5.6.2004 o telemóvel com o cartão... 270 27 26.
59. Nos dias 5 e 6Jun04 nos nº de telemóvel utilizados pela arguida AA [companheira de AMF] foram registados diversos contactos efectuados a partir de telefones públicos instalados em Madrid efectuados por CSEP companheira do JMF, nos quais ambas manifestam preocupação pela prisão do arguido AMF. (...)
64. Em 21Ago04, foi detida ACFM que também se encontrava evadida do E. P. de Castelo Branco e que havia sido condenada no âmbito dos mesmos autos também na prática de um crime de tráfico de estupefacientes. 65. Nesta ocasião e na posse desta arguida foi apreendido um telemóvel onde estava inserido um cartão com o nº ... 928 64 95. Este cartão fora utilizado no telemóvel com o IMEI ... 660, onde por sua vez foram utilizados os cartões ... 849 17 31, ... 480 26 23 e ... 867 67 33, todos utilizados por AMF e ainda, um pedaço de papel onde se encontra manuscrito o nº ... 650 18 39, utilizado pelo arguido PM.
70. No âmbito da aquisição e transporte de produto estupefaciente que conduziu à detenção dos arguidos, os arguidos JM e GR foram utilizados como “correios” no transporte da heroína.
71. Desde, pelo menos, 17Jan04 até que foi detido (19Out04), o arguido PM dedicou-se à actividade de tráfico de estupefacientes, adquirindo produto estupefaciente que, pelo menos, em parte revendia directamente a consumidores (...). 76. Para o abastecimento de produto estupefaciente o arguido PM comprava, entre outros, ao arguido AMF (...). (...) 81. Pelo menos, a conversa do apenso 4.º é efectuada entre os arguidos AMF e PM usando este o nº ... 774 03 58.
164. Os arguidos AMF e seu irmão JAMF, actuando de forma concertada e reiterada, tiveram em vista comprar e importar produtos estupefacientes, designadamente, e heroína, para de seguida serem distribuídos e vendidos, a um grande número de pessoas, no território nacional e, dessa forma, obterem avultadas quantias de dinheiro, o que conseguiram. 165. A quantidade do mesmo produto que adquiriram e transportavam permitia-lhes alcançar o fito de venda, dado o grau de pureza do produto que traziam a um elevado número de pessoas. (...) 173. Os arguidos AMF, JM, PM, LFS, JMM, CA, GS e RSR haviam já sofrido condenações pela prática da actividade ilícita que, nos termos supra descritos quiseram e continuaram a desenvolver. Mesmo condenados em penas de prisão efectiva não resultaram tais condenações em advertência suficiente para se coibirem de continuar a desenvolver tais actividades. 174. Todos os arguidos conheciam o fim ilícito das actividades que desenvolviam ou com que colaboravam, actuando com o fito de obterem vantagem económica. 175. Todos os arguidos agiram, da forma supra descrita, de modo livre, deliberado e consciente.
O arguido AMF, dedicava-se à venda ambulante de roupas em conjunto com a companheira, apurando nessa actividade o rendimento mensal aproximado de € 750 a € 1000. Dedicava-se também à venda de animais, com o que angariava em cada negócio que fazia sem carácter regular cerca de € 1500. O casal constituído por si e pela arguida ACFM, tem 7 filhos com idades compreendidas entre os 17 e os 5 anos, seis deles integrando o agregado familiar, sendo que a mais velha já se encontra autonomizada e que, desde a sua prisão e da companheira, tomou a seu cargo os irmãos. O arguido é analfabeto. Vivia em casa arrendada, pagando de renda a quantia mensal de € 3. Encontra-se em cumprimento de pena 7 anos de prisão em que foi condenado no âmbito do processo 497/00.9TAPCV de Penacova, pela prática de homicídio na forma tentada e coacção ( 1,5 anos de prisão (coacção a funcionário) + 1 ano de prisão (arma proibida) + 7 anos de prisão (homicídio tentado).). Tem mantido bom comportamento prisional. Sofre de epilepsia. Tem traços anormais de personalidade e uma inteligência situada no limite inferior da normalidade, sem contudo afectar a sua capacidade de avaliação da ilicitude dos seus actos ou mesmo diminuí-la.
O arguido JAMF dedicava-se à venda ambulante de roupas em conjunto com a companheira, MJSB, apurando nessa actividade o rendimento mensal aproximado de € 1.500. Fazia também negócios de venda de automóveis usados, com carácter esporádico, o que lhe rendia em cada negócio cerca de € 2000. O casal tem quatro filhos menores com idades entre os 11 e os 2 anos de idade. Vivia em casa arrendada, pagando a renda mensal de € 3. O arguido é analfabeto. Durante a prisão do arguido, tem sido a sua companheira que vem assegurando a necessidades básicas do agregado com que ganha na actividade de venda ambulante de roupas.
O arguido AMF foi condenado no âmbito do processo comum colectivo nº 497/00.9TAPCV em 15/01/2003 pela prática em 20/02/2000 de 1 crime de coacção p. p. art. 347.º do CP, 1 crime de detenção ou tráfico de armas proibidas p. p. art. 275.3 do CP, 1 crime de homicídio qualificado tentado p. p. art.s 131º, 132.2.j, 22.º e 23.º do CP, na pena [única] de 7 anos de prisão [ Transitada em julgado no dia 29Jul04.].
O arguido JAMF foi condenado no âmbito do processo sumário n.º 263/03.0PCLRS em 22/04/2003, pela prática na véspera de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. p. art. 292.º e 69.º do CP, na pena de multa de 90 dias à taxa diária € 5 e na pena acessória de 3 meses de inibição. Em 11/11/2003, mostrando-se cumprida a pena acessória de conduzir e pagas a multa e as custas, foi declarada extinta a pena.


2. A CONDENAÇÃO

Com base nestes factos, a Vara Mista de Setúbal, em 21Jul06, condenou: I. AMF (-27Abr69), pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. p. art.s 21º e 24º alínea c), do D. L. 15/93, com referência ao art. 75º, nº 1, do C. Penal, na pena de 10 anos de prisão; II. JAMF (-5Nov76), pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. art.s 21º e 24º alínea c), do D. L. 15/93, na pena de 9 anos de prisão:

Conclui-se por não se considerar preenchido o tipo legal de crime de associação criminosa previsto e punível pelo artigo 28º, do citado diploma, face à ausência de base factual susceptível de ser a ele subsumida, tanto quanto é certo não se ter demonstrado que entre os arguidos, maxime entre os arguidos 1º, 2º, 3º e 4º existisse qualquer ligação ou união entre eles para cooperar na realização de um programa criminoso, com carácter de permanência e estabilidade (...).
Dispõe o artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei 15/93 que ''Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos caso previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”. Preceitua por seu lado o artigo 24.º, do mesmo diploma na redacção introduzida pela Lei 11/04, que “as penas previstas nos artigos 21º, 22º e 23º são agravadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se: (...) c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória (...). Antes de mais, cumpre precisar que o crime de detenção de substâncias estupefacientes é um crime formal, de perigo comum, nos quais o bem jurídico tutelado é a incolumidade pública, considerada no particular aspecto concernente à saúde pública, que se deve garantir contra os factos fraudulentos, consumando-se tal crime com alguma das actuações mencionadas no artigo 21º, n.º 1, do DL 15/93 (...). Importa averiguar se no caso em apreço ocorrem as circunstâncias susceptíveis de constituir agravação do crime de tráfico aludido pelas alíneas b) e c) do art. 24° do DL 15/93, isto é, a distribuição de estupefacientes por grande número de pessoas e a obtenção de avultada compensação remuneratória. Tipifica-se no artigo 24º do citado Decreto-Lei o crime de tráfico de maior gravidade, contemplando nele situações em que à severidade da punição corresponde a maior perigosidade presumida da acção para os bens juridico-penalmente protegidos por tal norma, no caso a saúde e integridade física dos cidadãos. Nos crimes de perigo como é o de tráfico de substâncias estupefacientes, a protecção dos bens jurídicos é feita num momento que abstrai da produção de qualquer resultado. No preceito em análise – artigo 24.º – estão, assim, previstas circunstâncias que permitem concluir, a verificarem-se, por um aumento considerável da ilicitude do facto e a que corresponde uma pena de prisão de 5 anos a 15 anos de prisão. Considerou, por conseguinte, o legislador existir particular perigo quando a quantidade da substância detida, vendida, etc. evidencia ter o agente em mente uma avultada compensação remuneratória, pela indiferença que a sua actuação revela perante o desvalor que a respectiva representa para a saúde dos cidadãos. Embora consideremos que as circunstâncias previstas no artigo 24.º não produzam um efeito automático, porquanto não poderá deixar de se entender às modalidades concretas da acção, por forma a aquilatar se a mesma justifica o apelo ao especial agravamento da punição. A este propósito citaremos a doutrina expressa no acórdão do STJ de 7.10.2004, proferido no processo número 2828/04-5 e citado no acórdão do mesmo Tribunal, de 17.11.2005, in CJ/STJ, tomo III, ps. 212 e ss. (…) ’Ao indicar-se agravação do tráfico para aquele que procura obter avultada compensação remuneratória, está exactamente a pensar-se nos casos em que, mesmo que não se apure qual a efectiva remuneração do traficante, seja fácil concluir pela qualidade da droga, pela sua quantidade e pela posição que o agente ocupa no negócio (não sendo mero ’correio’ ou ’vendedor de rua‘), que o mesmo iria obter uma larguíssima vantagem económica caso concluísse a ‘transacção’. (...) Importa ainda interpretar a circunstância prevista na alínea b) do citado artigo 24º. Nela se estatui a agravação da pena abstracta «quando os produtos ou substâncias foram distribuídos por grande número de pessoas.» Decorre desde logo que a expressão ’foram’ inculca que se trata de uma situação verificada em que efectivamente ocorreu uma disseminação efectiva do produto, manifestando-se mais do que o perigo inerente ao normal tráfico, um risco sério, efectivo e concreto de lesão dos bens jurídicos protegidos. Daí que, não é a mera possibilidade de maior difusão que constitui circunstância agravante do tipo fundamental do artigo 21º, supondo, esta alínea, ao invés, uma distribuição efectiva, passada, ocorrida, verificada e, não a simples possibilidade ou potencialidade, ao nível do risco, de o produto vir a ser distribuído por grande número de pessoas – cfr. neste sentido Acórdão do STJ de 6.12.2000, in www.dgsi.pt. Assim, o produto apreendido na fase de transporte, antes de qualquer distribuição, e, por isso, em termos de facto, nada mais permitiria, neste aspecto, do que uma mera possibilidade futura de distribuição. Centrando-nos, agora, no caso em apreço e abordando, desde já, a actuação dos arguidos AMF e JAMF, se atentarmos na factualidade provada constante do elenco dos factos provados sob os pontos 10. a 16., 18. a 31., não teremos dúvidas em afirmar que as transacções por eles efectuadas de produto estupefaciente durante os assinalados períodos levaram à distribuição por elevado número de pessoas. Mas além desta circunstância a aquisição e transporte a que se reporta os factos mencionados sob os pontos 40. a 55., atento sobretudo o grau de pureza mas também a quantidade apreendida permite sem qualquer hesitação concluir que os arguidos AMF e JAMF almejavam alcançar elevada compensação financeira, atento o consabido custo elevado do produto estupefaciente em causa – heroína - a evidenciar uma carga de ilicitude substancialmente elevada que conduz ao enquadramento na qualificativa da alínea c) do artigo 24º. A fórmula legal "avultada compensação remuneratória" assim como a expressão "distribuição por grande número de pessoas” há-de extrair-se dos factos provados. Provou-se que com a sua actuação, os arguidos citados praticaram em co-autoria material o crime de tráfico agravado porquanto com a sua actuação distribuíram produtos estupefacientes por milhares e milhares de consumidores e obtiveram ou procuravam obter compensação remuneratória não concretamente apurada mas que se traduzia em muitas dezenas de milhares de euros. A determinação da pena a aplicar far-se-á em função da culpa do arguidos, limite além do qual não poderá ir, e das exigências de prevenção, atendendo-se ainda a todas as circunstâncias que não estando previstas no tipo legal de crime, deponham a favor ou contra os arguidos, conforme impõe o artigo 71º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. Saliente-se que sendo no âmbito dos crimes de tráfico de substâncias estupefacientes que prementes necessidades de prevenção geral se fazem sentir, atentos os foros de calamidade que assume o fenómeno da droga, com todas a implicações a nível da delinquência juvenil e da saúde pública sobejamente conhecidas, e se é certo que a aplicação das penas não pode pôr em causa a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, não pode olvidar-se, porém, que o nosso sistema penal é informado pelo princípio da culpa, o qual impõe limites à obtenção do grau óptimo da defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva, sem esquecer ainda as necessidades impostas pela finalidade de reintegração social. No caso dos autos, há que ponderar estarmos em presença de um tráfico em cujas quantidades de produto estupefaciente, e seu grau de pureza, e meios utilizados – utilização de um número considerável de telemóveis com diferentes números pelos arguidos AMF e PM e tempo durante o qual se desenvolveu a actividade tráfico maxime no que tange aos arguidos AMF e PM - aponta para um elevado grau de ilicitude. Analisemos agora quanto a cada um dos arguidos a circunstâncias a que o artigo 72º, nº 2, manda atender. O dolo dos arguidos é intenso, porque na modalidade de dolo directo. É também elevado o grau de ilicitude na medida que o produto estupefaciente em causa é de grande danosidade para a saúde pública. Quanto aos arguidos AMF, JAMF, (...) é de ponderar em desfavor dos mesmos os antecedentes criminais, alguns de gravidade, como é o caso do arguido AMF (...). Sopesadas todas estas circunstâncias, e tendo presente serem elevadas as exigências de prevenção geral quanto aos ilícitos de tráfico de estupefacientes, atento o elevado grau de censura social contra este e os elevados custos de vidas humanas, de natureza social e familiar e de ordem económica que tal actividade provoca afiguram-se-nos ajustadas à culpa dos arguidos AMF, JAMF (...), respectivamente, as penas de 10 anos e 9 anos (...) de prisão.


3. O RECURSO PARA A RELAÇÃO

3.1. Inconformados, os arguidos recorreram à Relação de Évora, «pretendendo sejam declaradas nulas as escutas telefónicas, seja seguido o princípio in dubio pro reo ou reduzidas as penas aplicadas»:

1. A defesa entende haver nulidade das escutas telefónicas, por violação do disposto nos artigos 187.º e 188.º do C.P.P. 2. Na verdade, as escutas telefónicas só podem ser realizadas em ultima ratio, ou seja, quando os outros meios de obtenção de prova se mostrem inadequados ou insuficientes para as finalidades da investigação. 3. No caso em apreço, temos que a grande maioria dos factos dados como provados baseou-se na transcrição das escutas telefónicas realizadas. 4. Compete apenas ao juiz de instrução criminal a determinação das conversas que interessam para a investigação e ordenar a desmagnetização das restantes. 5. Ora no caso sub judice, temos que os arguidos comunicavam entre si numa linguagem estranha, utilizavam um dialecto estranho para qualquer dos sujeitos processuais. 6. Assim não entendemos como pôde o juiz de instrução, sem apoio de qualquer perito ou intérprete, aferir da relevância ou irrelevância das conversações, pelo que forçosos será concluir pela falta de um controlo apertado, eficaz e efectivo das mesmas, e tal falta de controlo verifica-se também no desaparecimento de algumas gravações cujas transcrições estavam já nos autos, o que significa que o controlo das desmagnetizações não foi pelo mesmo realizado. 7. Assim sendo, forçoso será concluir que estamos perante escutas telefónicas nulas – artigo 189º - do CPP – nulidade essa que, no nosso entendimento é insanável, podendo ser invocada e declarada em qualquer momento. 8. Além do mais, quase todos os factos dados como provados foram-no com base nas transcrições, acontecendo que tais transcrições implicaram uma linguagem cifrada, incompreensível para os sujeitos processuais, tanto mais que o próprio tribunal, aquando da audição dos registos, sentiu a necessidade de nomear intérprete para a sua decifração. 9. Na verdade, diz-nos o artigo 166.2 do CPP que “se o documento for dificilmente legível, é feito acompanhar de transcrição que o esclareça, e se for cifrado, é submetido a perícia destinada a obter a sua decifração. 10. Ora, a defesa entende que esta decifração nunca chegou a ser efectivamente conseguida, não tendo conseguido os peritos nomeados fazer uma tradução clara e sem dúvidas das expressões utilizadas pelos arguidos, sendo certo que, acabaram por fazer aproximações de sentidos ou significados. 11. Acontece porém que uma condenação não se pode alicerçar em aproximações, em especulações, pelo que nesta parte houve violação do princípio in dubio pro reo. 12. Não se podendo ter em devida conta as transcrições e as traduções efectuadas, temos que o tribunal não as deveria ter considerado, pelo que temos erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.2.c do CPP. 13. Além do mais, temos insuficiência para a decisão para a matéria de facto dada como provada (artigo 410.2.a do CPP), uma vez que toda, ou quase toda a prova se baseou em escutas a nosso ver nulas, e que nenhum meio de prova fundamenta a maioria dos factos dados como provados e a decisão. 14. Além do mais, a defesa entende ter havido violação do princípio da igualdade, quanto aos aqui recorrentes. O tribunal parece falar de uma certa desenvoltura dos recorrentes no cometimento de negócios de droga, fazendo o seu transporte, a negociação dos preços, recebendo/fazendo encomendas. Perguntamos: por que é que no dia detenção os recorrentes precisariam de se fazer acompanhar dos seus familiares? Será que a intervenção deles é assim tão acessória como quiseram fazer crer? Será que outros elementos para além dos depoimentos dos co-arguidos sustentam tal implicação? Não será que o tribunal deve ter especial consideração destes depoimentos, que no entendimento do Prof. Medina Seiça, são depoimentos interessados, não isentos e que, como tal, devem sempre e em todo o caso ser corroborados por outros meios de prova? Sem prescindir, 15. A defesa entende que as penas aplicadas aos arguidos foram manifestamente excessivas, na verdade, não foram tidos em devida conta factores determinantes da personalidade, condições pessoais e familiares dos recorrentes, havendo violação do disposto no artigo 71.º do CP. 16. O tribunal não ponderou devidamente factores como a inserção profissional de ambos os recorrentes, o facto de ambos terem família numerosa a cargo, o facto de ambos serem analfabetos, e no que concerne ao arguido AMF, o facto deste arguido ter traços anormais de personalidade e uma inteligência situada no limite inferior da normalidade, e no que concerne ao recorrente JAMF, o facto de o mesmo não tem antecedentes criminais de relevância. 17. Pelo que, entende a defesa que deverá ser feito um reajustamento no quantitativo da pena aplicada aos recorrentes.

3.2. Porém, a Relação de Évora, em 03Jul07, julgou os recursos «totalmente improcedentes»:

Os recorrentes arguidos AMF e JAMF impugnam a decisão recorrida nas seguintes vertentes: - Da nulidade das escutas telefónicas; - Do erro notório na apreciação da prova e da sua insuficiência; - Da violação dos princípios" in dubio pro reo" e da igualdade; - Da pena excessiva. Apreciando cada uma delas:
Relativamente à nulidade das escutas telefónicas invocam estes recorrentes que as mesmas são nulas nos termos do disposto no artigo 189.º do CPP, tendo sido violados os artigos 187.º e 188.º do mesmo Código, uma vez que estas só podem ser realizadas quando os outros meios de prova se mostrem inadequados ou insuficientes para as finalidades da investigação e ainda que tendo os arguidos usado um dialecto estranho não se compreende como pôde o juiz de instrução aferir da relevância ou irrelevância das conversações sem perito ou intérprete. Ora dispõe o artigo 189º que todos os requisitos dos artigos 187º e 188º são estabelecidos sob pena de nulidade. Estas nulidades como se tem entendido são sanáveis, exceptuada a falta de ordem ou autorização judicial, tratando-se esta de nulidade insanável. Assim, as nulidades invocadas pelos recorrentes estariam desde logo sujeitas ao regime de arguição dos artigos 120.º e 121.º do citado Código. No entanto, não se vislumbra que dos autos resulte qualquer violação dos citados preceitos legais, uma vez que, tendo sido legalmente efectuadas as escutas e devidamente justificadas e autorizadas, constituem um meio de prova legal. De salientar ainda que, tendo sido observado o disposto no citado artigo 188.3, entende-se que, relativamente ao n.° 4, este não contém uma obrigação, mas antes uma faculdade concedida ao juiz. A mesma resulta clara do aí estatuído: o juiz pode ser coadjuvado, podendo nomear, se necessário, intérprete. Logo o facto de o juiz de instrução criminal não ter usado tal faculdade, não constitui qualquer violação ao disposto no citado preceito legal. Nestes termos se conclui que nesta parte não assiste razão aos recorrentes.
Suscitam também os recorrentes a existência de erro notório na apreciação da prova e da sua insuficiência, invocando para tanto que, tendo-se a prova baseado nas transcrições, estas não se mostram numa linguagem clara. Ora como os próprios recorrentes referem nas suas conclusões, o tribunal, aquando da audição do registo, nomeou intérprete para a sua decifração. Por outro lado, já é habitual que estas conversas não sejam claras, existindo uma espécie de código entre os traficantes e consumidores, falando por meias palavras, dando nomes aos diversos tipos de produtos, quantidades, pontos de encontro, usando alcunhas, etc.. Mesmo usando vários meios de que dispunha o tribunal, é natural que partes haja das transcrições que não tenha ficado completamente claras. No entanto, tal situação não integra os conceitos de erro notório ou insuficiência da prova para a matéria de facto provada. Nem sequer significa que o tribunal não tenha ficado esclarecido relativamente à matéria de facto que deu como provada com base em diversas provas apreciadas conjuntamente. É que não se pode confundir a apreciação feita pelo tribunal ao abrigo do princípio, consagrado no artigo 127°, da livre apreciação da prova que pode ser diversa da versão ou apreciação dos recorrentes, com os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP. Estes desde logo têm de resultar do texto da decisão recorrida conjugada com as regras da lógica e da experiência comum. Sendo certo que os mesmos não se vislumbram e os recorrentes também não os apontam, concretizando quais os factos que no seu entender se basearam apenas em escutas (ouvidas em audiência ou nas transcrições traduzi das) e que se mostrem totalmente obscuras e imperceptíveis ou que o tribunal se tenha baseado para formar a sua convicção só em partes indecifráveis das mesmas, sendo certo ainda que, pelo exposto anteriormente, não foi declarada qualquer nulidade das escutas. Nestes termos não se verifica o invocado erro ou insuficiência, tendo o tribunal "a quo" fundamentado devidamente os factos que deu como provados e não provados, não se detectando qualquer vício do artigo 410° nº 2 do Código de Processo Penal. Mantendo-se inalterada a matéria de facto dada como provada na 1ª instância e julgando-se improcedente nesta parte o recurso.
Relativamente às invocadas violações dos princípios" in dubio pro reo" e da igualdade, desde já se refere que não assiste também razão aos recorrentes. O tribunal só tem de seguir o princípio "in dubio pro reo" quando se suscitam dúvidas relevantes. Ora, neste caso os factos dados como provados encontram-se alicerçados nas provas produzidas, sem que ao tribunal recorrido se tenha colocado qualquer dúvida na actuação e responsabilização dos arguidos, ora recorrentes. Relativamente à violação do princípio da igualdade, nem se entende claramente o fundamento do mesmo. No entanto, sempre se dirá que não houve qualquer discriminação na aplicação da lei relativamente a estes arguidos, tendo sido ponderadas as circunstâncias da sua actuação e a sua situação pessoal ou passado criminal, resultantes dos factos dados como provados. Os recorrentes também não apontam nas suas conclusões de que modo a lei (e qual) lhes teria sido aplicada diferentemente e tal violação do princípio da igualdade também não se vislumbra.
Por fim, invocaram os recorrentes serem excessivas as penas que lhe foram aplicadas, tendo havido violação do disposto no artigo 71º do Código Penal por não se ter atendido à sua personalidade, condições pessoais e familiares. A aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do delinquente sendo que em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa. A medida da culpa condiciona assim a própria medida da pena estabelecendo um limite inultrapassável desta. Nos termos do disposto no artigo 71° do Código Penal deve-se atender na medida da pena a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime deponham a favor ou contra o agente. Tais circunstâncias foram referidas no acórdão proferido na 1 ª instância (encontrando-se descritas as circunstâncias relativas à sua personalidade, pessoais, familiares e respectivos antecedentes nos factos dados como provados sob os números 176 a 189 do acórdão recorrido), pelo que se consideram bem doseadas e adequadas as penas aplicadas.


4. O RECURSO PARA AO SUPREMO

4.1. Ainda irresignados, os arguidos, notificados no dia 07Jul07, recorreram ao Supremo em 23Jul07 (domingo), pagando a taxa de justiça de interposição no dia 27Ago07 (fls. 10063 e 10064) e a respectiva sanção no dia seguinte (fls. 10051-2 e 10057-8), e pedindo a anulação das escutas ou, pelo menos, a redução das penas:

1. A defesa entende haver nulidade das escutas telefónicas, por violação do disposto nos artigos 187.º e 188.º e 166º n.º 2 do CPP. 2. Na verdade, as escutas telefónicas só podem ser realizadas em ultima ratio, ou seja quando os outros meios de obtenção de prova se mostrem inadequados ou insuficientes para as finalidades da investigação. 3. No caso em apreço temos que a grande maioria dos factos dados como provados basearam-se na transcrição das escutas telefónicas realizadas. 4. Compete apenas ao juiz de instrução criminal a determinação das conversações que interessam para a investigação e ordenar a desmagnetização das restantes. 5. Ora, no caso sub judice, temos que os arguidos comunicavam entre si numa linguagem estranha, utilizavam um dialecto estranho para qualquer dos sujeitos processuais. 6. Assim não entendemos como pôde o juiz de instrução, sem apoio de qualquer perito ou intérprete, aferir da relevância ou irrelevância das conversações, pelo que forçoso será concluir pela falta de um controlo apertado, eficaz e efectivo das mesmas, e tal falta de controlo verifica-se também no desaparecimento de algumas gravações cujas transcrições estavam já nos autos, o que significa que o controlo das desmagnetizações não foi pelo mesmo realizado. 7. Assim sendo, forçoso será concluir que estamos perante escutas telefónicas nulas - artigo 189.º do CPP - nulidade essa que, no nosso entendimento é insanável, podendo ser invocada e declarada em qualquer momento. 8. Além do mais, e como já foi referido quase todos os factos dados como provados foram-no com base nas transcrições, acontecendo porém que tais transcrições implicaram uma linguagem cifrada, incompreensível para os sujeitos processuais, tanto mais que o próprio tribunal, aquando da audição dos registo, sentiu a necessidade de nomear intérprete para a sua decifração. 9. Na verdade, diz-nos o artigo 166.º n.º 2 do CPP ( Artigo 166.º (Tradução, decifração e transcrição de documentos): 1 — Se o documento for escrito em língua estrangeira, é ordenada, sempre que necessário, a sua tradução, nos termos do n.º 6 do artigo 92.º 2 — Se o documento for dificilmente legível, é feito acompanhar de transcrição que o esclareça e, se for cifrado, é submetido a perícia destinada a obter a sua decifração. 3 — Se o documento consistir em registo fonográfico, é, sempre que necessário, transcrito nos autos nos termos do n.º 2 do artigo 101.º, podendo o Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis requerer a conferência, na sua presença, da transcrição. ) que se o documento for dificilmente legível, é feito acompanhar de transcrição que o esclareça, e se for cifrado, é submetido a perícia destinada a obter a sua decifração. 10. Ora, a defesa entende que esta decifração nunca chegou a ser efectivamente conseguida, não tendo conseguido os peritos nomeados fazer uma tradução clara e sem dúvidas das expressões utilizadas pelos arguidos, sendo certo que acabaram por fazer aproximações de sentidos ou significados. 11. Acontece porém que uma condenação não se pode alicerçar em aproximações, em especulações, pelo que, nesta parte, houve violação do princípio do in dubio pro reo. 12. A defesa entende que as penas aplicadas aos arguidos foram manifestamente excessivas, na verdade não foram tidos em devida conta factores determinantes da personalidade, condições pessoais e familiares dos recorrentes, havendo violação do disposto no artigo 71.º do CP. 13. O tribunal não ponderou devidamente factores como a inserção profissional de ambos os recorrentes, o facto de ambos terem família numerosa a cargo, o facto de ambos serem analfabetos, e no que concerne ao arguido AMF, o facto deste arguido ter traços anormais de personalidade e uma inteligência situada no limite inferior da normalidade, e no que concerne ao recorrente JAMF, o facto de o mesmo não tem antecedentes criminais de relevância. 14. Pelo que, entende a defesa que deverá ser feito um reajuste no quantum da pena aplicada aos recorrentes. 15. O decurso do tempo desde a data dos factos é significativo e impõem-se ponderação sobre tal.

4.2. O MP, na sua resposta de 11Nov06, pronunciou-se pela rejeição ou improvimento dos recursos:

O recurso ora interposto deve ser rejeitado. Com efeito, rebelam-se agora os mesmos arguidos contra o acórdão da segunda instância, pretendendo a respectiva sujeição ao crivo do Supremo Tribunal de Justiça, colocando exactamente as mesmas questões - questões de facto, quando essa instância conhece apenas de direito - que suscitaram junto da Relação e formulando acervo conclusivo que é mero exercício de cosmética daquele com que remataram a motivação do recurso interposto do acórdão da primeira instância. Todas as questões ora (re)suscitadas pelos recorrentes foram já bastamente dilucidadas no acórdão recorrido - vd. fls. 9931¬9937 -, posto que também (porque são exactamente as mesmas) colocadas ao acórdão proferido em primeira instância, e não vemos qualquer razão que conduza a alteração do ali, e bem, decidido. Ou seja, o recurso em presença é, muito singelamente, a reedição do primeiro. Em suma, da análise da motivação e conclusões do recurso apreciando ressalta, muito claramente, que os recorrentes não assacam qualquer vício, nulidade ou violação de norma ao acórdão da Relação, antes reeditam as questões que já haviam apontado ao da primeira instância e cuja argumentário naufragou. Trata-se, bem vistas as suas conclusões e fundamentos, não de um «recurso novo», nascido no processo de recurso da segunda instância, mas de um «recurso de continuação», através do qual se pretende continuar a discutir no Supremo Tribunal de Justiça uma decisão da primeira instância que passou e foi confirmada pela Relação. Ora, um recurso assim configurado, sem qualquer questão nova, está abrangido pela inadmissibilidade estatuída na alínea e) do n.º 1 do artigo 400° do Código de Processo Penal, visto a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição ter sido plenamente observada (Constituição da República Portuguesa, artigo 32°, n.º 1). Na verdade, “I - Quando é permitido um 2º grau de recurso, a impugnação recursória tem de ser sucessiva e jamais retroactiva: a segunda impugnação tem que discordar das soluções perfilhadas no 1.º grau de recurso, com argumentos próprios, novos e incidentes sobre a decisão dessa instância recursória e nunca com a reiteração pura e simples, dos argumentos e fundamentos com que se impugnou ou divergiu do primeiro acto decisório. II - Se tal fosse permitido, seria admitir o eterno retorno à origem das discordâncias, negando qualquer valor à decisão que, em 1.º grau, apreciou, discutiu, aceitou ou rebateu os argumentos impugnatórios alinhados nesse recurso, confirmando ou revogando a decisão impugnada. III - Quem discorda de uma decisão de 1.ª instância e recorre para um tribunal de 2.ª instância (um Tribunal de Relação), se também discordar da decisão por esta instância proferida em recurso, tem, quando puder recorrer para o STJ, de invocar as razões específicas dessa discordância e estritamente restringidas ao âmbito do seu conhecimento (...). Ou seja, IV - Quando o STJ é confrontado com um recurso da Relação, são os fundamentos do decidido em 2ª instância que importa verificar e não os da decisão de 1 ª instância já sufragados pelo tribunal recorrido. V - Daí que quando o recorrente se limita a uma espécie de recauchutagem dos fundamentos do recurso que apresentou perante a Relação, sem nada trazer de novo à discussão, verdadeiramente não apresenta motivação. VI - O recurso que em tudo reedita o pretenso inconformismo do recorrente perante o deliberado em l.ª instância não pode ser conhecido não deveria, mesmo, ter sido admitido - por carência absoluta de motivação – art.s 411°, n.º 3, 414°, n.º 2, e 417°, nº 3, al. a), do CPP.


5. A ALEGADA NULIDADE DAS ESCUTAS (I)

5.1. «A defesa entende haver nulidade das escutas telefónicas, por violação do disposto nos artigos 187.º e 188.º e 166º n.º 2 do CPP» e, desde logo, por «as escutas telefónicas só poderem ser realizadas em ultima ratio, ou seja quando os outros meios de obtenção de prova se mostrem inadequados ou insuficientes para as finalidades da investigação»

5.2. Acontece porém que, no caso, só se recorreu às chamadas «escutas telefónicas» quando, à PJ, chegou a notícia, em 02Jan04, de que um tal «Paulito Cigano» (PM), residente em Aveiro, se dedicava ao tráfico de heroína e cocaína, fornecendo-as a outros traficantes da zona de Aveiro, Ílhavo e Anadia, e adquirindo-as «através de um indivíduo que até há bem pouco tempo residia em Madrid», um tal «Carlota» (LFMS), em cuja companhia havia sido visto recentemente. Ora, já era sabido da PJ que este, «para se eximir ao controlo policial», se rodeava «de algumas precauções, privilegiando as comunicações via telemóvel (...) para delinear as transacções», trocando regularmente «quer de telemóvel quer de cartão de acesso ao serviço móvel terrestre» e «socorrendo-se de outros indivíduos para transportar e guardar a droga». Além de que também chegara entretanto ao conhecimento da PJ de que «Paulito Cigano» utilizava determinado «número de telemóvel» para contactar com o fornecedor e outro para «contactar e ser contactado pelos clientes».

5.3. Assim, esta cautelosa forma de actuação – a que acrescia o facto «de estes indivíduos se movimentarem em meio em que um controlo policial dificilmente poderia ser feito de forma eficaz» - inviabilizava, à partida, a «recolha de elementos de prova» mediante, simplesmente, os «habituais métodos de obtenção».

5.4. E por isso é que a PJ, em 02Jan04, pediu ao juiz de instrução – além do mais – a «intercepção e gravação da comunicações telefónicas de e para os cartões de acesso aos serviços móveis Vodafone e TMN n.ºs ... 904 02 70 e... 813 84 71.

5.5. Na sequência desse pedido, a juiz de instrução criminal de Aveiro, em 13Jan04, «ordenou a intercepção e gravação até ao dia 13Fev04 das comunicações efectuadas e recebidas através daqueles telemóveis». Para tanto, teve em conta o facto de ser desconhecida a identidade dos autores da «informação» transmitida à polícia e de ser compreensível que os denunciantes, «atenta a natureza do crime denunciado e os procedimentos habitualmente adoptados pelos autores de tal tipo de crime», quisessem «manter o anonimato, receando represálias». Considerou ainda a verosimilhança da denúncia e a indiciação, perante os elementos entretanto recolhidos e/ou testados, da prática de «um crime de tráfico de heroína e cocaína em grandes quantidades, tendo por destinatários finais numerosas pessoas». E realçou, em fundamentação da autorização concedida, o facto de «o recurso a tal meio de prova se mostrar no caso presente necessário e mesmo indispensável ao prosseguimento da investigação, sendo que a [inerente] ofensa a direitos fundamentais era proporcional aos interesses, também fundamentais, de manutenção do Estado de Direito que a investigação criminal visa acautelar (art. 18.2 da Constituição)». E isso porque «no tipo de crime em investigação era difícil e improvável a obtenção de outros meios de prova, como por exemplo a prova testemunhal (quase impossível atentas as relações, dependências e cumplicidades normalmente estabelecidas entre os intervenientes no tráfico de estupefacientes)». Além de que «as cautelas usualmente observadas pelos intervenientes neste tipo de actividade criminosa para manutenção do anonimato e fácil mobilidade se traduziam habitualmente no recurso à utilização de telemóveis para a realização dos contactos entre esses mesmos intervenientes, tendo em vista o desenvolvimento dessa mesma actividade». Daí que «o recurso às escutas telefónicas» se mostrasse não só «de grande interesse» como «indispensável» para «o prosseguimento da investigação».

5.6. Havendo, assim, «razões para crer que a diligência se revelaria de grande interesse para a descoberta da verdade» (e, mesmo, para a prova dos contactos telefónicos entre os diversos intervenientes), justificava-se que a requerida intercepção e gravação das comunicações telefónicas de e partir daqueles postos móveis telefónicos fosse – como foram – de autorizar ( Essa autorização foi sucessivamente estendida – por razões idênticas e com fundamentos semelhantes, à medida que investigação foi evoluindo, «descobertos» novos intervenientes ou substituídos os seus anteriores telemóveis – aos postos móveis n.ºs... 169 47 20,... 480 82 10,... 317 14 50, ... 849 17 31 e ... 774 03 58 (cfr. despacho de 11Fev04, que, ao mesmo tempo, mandou cancelar as escutas ao telemóvel ... 904 02 70,... 638 06 24 e ... 480 26 23),... 819 29 26,... 148 34 21 e ... 654 52 05 (cfr. despacho de 26Fev04, que, simultaneamente, mandou cancelar as intercepções aos celulares n.ºs... 480 82 10 e... 459 24 45), ... 604 14 12, ... 666 0054 e ... 849 17 31 (cfr. despacho de 1Abr04),... 121 11 11, ... 890 27 54 e... 670 17 71 (cfr. despacho de 16Abr04), ... 647 73 27, ... 867 67 33 e ... 948 81 15 (cfr. despacho de 11Mai04) e... 270 27 26 e ... 496 48 33 (cfr. despacho de 1Jun04, que, ao mesmo tempo, mandou cancelar as escutas aos equipamentos 35 251 700 524 580 e 35 014 420 230 519).).


6. A ALEGADA NULIDADE DAS ESCUTAS (II)

6.1. O segundo argumento dos recorrentes quanto à alegada nulidade das escutas radica numa pretensa «falta de um controlo apertado, eficaz e efectivo das mesmas». Por um lado, porque, «competindo ao juiz de instrução criminal a determinação das conversações que interessam para a investigação», este – apesar de «os arguidos comunicarem entre si numa linguagem estranha (...) para qualquer dos sujeitos processuais. – aferiu dessa (ir)relevância «sem apoio de qualquer perito ou intérprete». E, por outro, porque terão «desaparecido algumas gravações cujas transcrições estavam já nos autos, o que significa(ria) (des)controlo das desmagnetizações».

6.2. No entanto, a eventual desmagnetização de escutas seleccionadas e mandadas transcrever apenas poderá significar que a PJ terá desmagnetizado, por lapso ou confusão, o suporte informático de determinadas gravações mandadas transcrever e efectivamente transcritas. Mas decerto que nada terá a ver – da parte do juiz de instrução e das suas atribuições – com qualquer «descontrolo das desmagnetizações» ( O que quer que o recorrente com isso pretenda significar.). De qualquer modo, a verdade é que, relativamente às transcrições cujo suporte possa ter «desaparecido», o tribunal colectivo, considerando-as «nulas», não as tomou em consideração, justamente porque, inexistindo os suportes respectivos, «ficou cerceado» de proceder à sua imediação em audiência (escutas realizadas aos alvos 25 541, 17 056, 18 168 e 18 184). «Daí que tal tenha determinado a ausência de convicção positiva quanto aos factos que as escutas ilustrariam», pois que não considerou aceitável «a valoração pelo tribunal, como meio de prova dos factos vertidos na pronúncia, de transcrições de escutas sem que o registo áudio estivesse disponível».

6.3. Não valerá, pois, apelar agora para a «nulidade» de escutas» que, como tal, foram efectivamente consideradas e, por isso, oportunamente «desconsideradas» como «meio de obtenção de prova».

6.4. E, quanto ao controlo das demais (que foi, aliás, exemplarmente rigoroso quanto à sua admissão, acompanhamento e selecção: cfr. despachos de fls. 10226-10228, 10233-10136, 10242-10246, 10254-10259. 10260-10262), a circunstância de a juiz de instrução as ter aproveitado, apesar da linguagem codificada que os interlocutores possam ter utilizado nas conversações interceptadas, não implica que o juízo de relevância para a prova feito sobre os elementos recolhidos possa ser visto, porque desacompanhado de «intérprete», como ausência ou deficiência de controlo das escutas. Por um lado, o juiz de instrução contou, a montante, com o juízo experimentado do órgão de polícia criminal que, coadjuvando-o, lhe «indicou», ao apresentar-lhe as fitas gravadas ou elementos análogos, «as passagens consideradas relevantes para a prova». E, por outro, ele próprio poderia – consoante os casos, a inteligibilidade das conversações e a sua própria capacidade interpretativa – ter (ou não) nomeado intérprete. Porém, a nomeação de intérprete por parte do juiz de instrução não só é facultativa («poderá») como se circunscreverá aos casos em que o juiz de instrução, ele próprio, o entenda «necessário» (art. 188.4 do CPP). Trata-se, pois, de um requisito, que, dependendo do alvedrio do juiz de instrução ou da concreta necessidade por ele próprio sentida e avaliada, não só não é obrigatório como não é legalmente «estabelecido sob pena de nulidade» (art. 189.º). De qualquer modo, a sua pontual validação pelo tribunal colectivo foi precedida pelo seu exame público em audiência, onde, justamente para permitir à defesa o seu contributo contraditório em ordem à correcta interpretação da linguagem codificada utilizada pelos arguidos e seus interlocutores nas conversações gravadas, houve o cuidado de se apelar ao saber, à experiência e ao juízo independente de um perito nomeado para o efeito.


7. O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO

7.1. «A defesa entende que esta decifração [das conversações gravadas em audiência] nunca chegou a ser efectivamente conseguida, não tendo logrado os peritos nomeados fazer uma tradução clara e sem dúvidas das expressões utilizadas pelos arguidos, sendo certo que acabaram por fazer aproximações de sentidos ou significados. Ora, uma condenação não se pode alicerçar em aproximações, em especulações, pelo que, nesta parte, houve violação do princípio do in dubio pro reo».

7.2. A este respeito, é preciso ter em consideração, desde logo, que as gravações foram ouvidas em audiência, «o que permitiu ao tribunal a imediação necessária à identificação de alguns dos arguidos com os interlocutores nas conversas». Por outro lado, da motivação dos factos provados de fls. 9269 e ss. extrai-se que o tribunal colectivo foi particularmente rigoroso na validação das escutas como meio de obtenção da prova, tendo feito reverter a dúvida a favor dos acusados sempre que ela pôde ter impedido a assunção, por parte do tribunal, de um juízo de certeza:

«Os factos não provados foram com tal considerados porquanto não foi produzida, quanto a eles prova reputada suficiente. Quanto à apreensão que teve lugar em Águeda no dia 04Jan03, subsistiu dúvida razoável que não permitiu a convicção de que o produto havia sido vendido a JS e FX, pois embora a testemunha RC afirmasse em audiência ter visto estes últimos a sair, do prédio onde residia o arguido AMF, com o saco que veio a ser apreendido, não é menos verdade que este prédio tem vários andares, pelo que não é seguro que ambos se tivessem deslocado ao andar onde residia aquele (...). Dest’arte, subsistiram dúvidas - sobre a existência de transacção de 1,555 kg de heroína entre o arguido AMF e FX e JS – que não puderam deixar de ser valoradas em benefício do arguido. Quanto à distância a que no dia 5.6.2004 o Mercedes seguiria à frente do Fiat Regata, nenhuma das testemunhas inquiridas conseguiu dizer com precisão qual era em concreto, já que o seguimento efectuado pelos inspectores envolvidos não lhes permitiu afirmar inequivocamente tal aspecto. No tocante à celebração de um contrato-promessa pelo arguido AMF, há que referir nenhum documento, quanto a tal negócio, ter sido carreado para os autos (...). Relativamente aos factos imputados ao arguido DSM, muito embora tenha sido apreendido na posse deste o telemóvel a que se reporta o auto de apreensão de fls. 3551, a verdade é que não resultou claro se era este ou o seu irmão, ASM, ao qual também são imputados contactos telefónicos com o arguido PM, quem utilizava o telemóvel (...). Quanto ao facto enunciado sob o ponto 55 do acervo dos factos não provados, não se considerou elucidativa da identidade da pessoa em causa a mera pesquisa do titular do registo de propriedade do veículo nem o relato de vigilância de fls. 223/224. Relativamente aos factos imputados ao arguido AMR, embora a fls. 2161 conste o resultado da pesquisa efectuada à base de dados da Conservatória do Registo Automóvel, de harmonia com a qual se alcança que o veículo de marca Mercedes visionado na vigilância no posto de abastecimento de combustíveis da empresa Alves Bandeira, na Tocha, a que se reporta o RDE de fls. 2159/2160, está registado em nome deste arguido, não é menos verdade que neste documento se relata serem dois os indivíduos que se fazem transportar no citado veículo e que foram ao encontro do arguido PM, ficando-nos a dúvida sobre qual deles era o arguido AMR. É ainda de mencionar relativamente a alguns dos pontos do acervo dos factos não provados a motivação em que radicou a resposta negativa, designadamente quanto aos seguintes: (14) Do teor da sessão n.º 238 do apenso 4, não resulta esta realidade nem sequer com recurso a interpretação, por não se conseguir extrair que os mesmos ao falarem apenas de carros e preços estavam de uma forma velada a falar de droga; (18-19) Da audição e transcrição da escuta 1177 do apenso 5, não resulta esta realidade, bem como tal não resulta da escuta nem da transcrição da escuta 1188, nem a voz desta arguida tem as mesmas características de inconfundibilidade que outras por nós já referidas em outro passo desta decisão que permitisse ao colectivo concluir sem qualquer reserva ser a voz da arguida em causa, não tendo sido notada aquando da audição da escutas a que corresponde a sessão 1101, transcrita no apenso 5, qualquer expressão que permitisse a apreensão pelo tribunal de que se tratava da arguida a voz audível na escuta; (20 e 21) Não resulta com segurança que na conversa a que respeita a sessão 722 do apenso 24 que o interlocutor do arguido JAMF seja o intermediário no fornecimento de droga, nem da escuta a que corresponde a sessão 733 do apenso 24 se apura tal teor; (25) O teor da conversa escutada na sessão 1101 do apenso 5 não permitiu extrair a conclusão vertida na pronúncia».

7.3. Aliás, as «escutas», só por si, apenas foram utilizadas para a comprovação de «factos circunstanciais», nomeadamente do teor de conversações telefónicas preparatórias ou instrumentais de tráficos de drogas ilícitas ( «Os contactos realizados entre os arguidos e terceiros na preparação e execução das transacções de produtos estupefacientes eram efectuados sobretudo através de telemóvel»), para cuja prova o meio adequado seria justamente o da sua reprodução áudio (cfr. factos 10, 12-14, 18 e 21, 23, 25-28, 32-36, 38-40, 43, 46-48, 59, 77, 82, 85-87, 90-96, 100-101, 110, 139 e 141). Pois que, quanto aos demais (factos 5, 22, 30, 37, 40-42, 53, 55-56, 58, 60-62, 64-69, 72-73, 83-84, 88, 99, 102-109, 111-112, 114-127, 134-138, 140, 142-152, 154-162), se utilizaram outros meios de prova (conjugados ou não com escutas), como relatórios de exames, certidões extraídas de outros processos, teor de documentos, informações, facturações detalhadas, relatos de vigilâncias, declarações e depoimentos em audiência, presunções naturais, autos de busca, autos de leitura dos telemóveis apreendidos, autos de apreensão e autos de interrogatório.

7.4. De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ Ainda que «indirecta». ], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).

7.5. Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade ( «A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação ( Suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”.), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).

7.6. Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto conhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127.º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».

7.7. A este propósito, convém de resto recordar que «verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa é o que se chama a prova, o processo probatório» e que «para levar a cabo essa tarefa, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que apelidaremos de razoável». E isso porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável ("a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).

7.8. Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade ( Repete-se: «A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador»).

7.9. Enfim, o reexame/revista (pelo Supremo) exige/subentende a prévia definição (pelas instâncias) dos factos provados (art. 729.1 do CPC). E, no caso, a Relação – avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos ora genericamente «impugnados» - manteve-os, em definitivo e com a configuração que lhes dera o tribunal colectivo, no rol dos «factos provados».

7.10. A revista alargada ínsita no art. 410.2 e 3 do CPP pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) «Nos termos do art. 410.2 do CPP/87, “o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação (ou entre a fundamentação e a decisão); c) erro notório na apreciação da prova”. Assim, o artigo 410.º do CPP consagra[va], entre nós, um recurso doutrinalmente chamado de «revista ampliada», querendo isto significar que o tribunal «ad quem» - o STJ e as relações quando tiver havido renúncia ao recurso em matéria de facto - não tem que se restringir à tradicionalmente denominada «questão de direito», antes podendo alargar os poderes de cognição a vícios, documentados no texto da decisão proferida pelo tribunal «a quo», que contendam com a apreciação do facto. «Concretiza-se este recurso de revista ampliada na possibilidade que é dada ao tribunal de recurso de conhecer da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio «lógico-subsuntivo», de verificar contradição insanável da fundamentação, sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos, e de concluir por um erro notório na apreciação da prova, sempre que, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no artigo 127.º do CPP, quando afirma que “a prova é apreciada segundo as regras da experiência” (...)» (Maria João Antunes, anotação ao ac. do STJ de 06Mai92, RPCC, Ano 4-1, ps. 118 e ss.) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).

7.11. Essa revista alargada (do STJ) deixou, porém, de fazer sentido – em caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.s 427.º e 428.1).

7.12. Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas, uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça e, se o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.b).

7.13. Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» das instâncias «na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa») «Salvo havendo» - o que não é o caso - «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe [ou anule] a força de determinado meio de prova» (art. 722.2 do CPC)..


8. A MEDIDA DAS PENAS

8.1. «A defesa entende que as penas aplicadas aos arguidos foram manifestamente excessivas; na verdade, não foram tidos em devida conta factores determinantes da personalidade, condições pessoais e familiares dos recorrentes, havendo violação do disposto no artigo 71.º do CP; o tribunal não ponderou devidamente factores como a inserção profissional de ambos os recorrentes, o facto de ambos terem família numerosa a cargo, o facto de ambos serem analfabetos, e no que concerne ao arguido AMF, o facto deste arguido ter traços anormais de personalidade e uma inteligência situada no limite inferior da normalidade e, no que concerne ao recorrente JAMF, o facto de o mesmo não ter antecedentes criminais de relevância; o decurso do tempo desde a data dos factos é significativo, impondo-se a ponderação sobre tal; entende, pois, a defesa que deverá ser feito um reajuste no quantum da pena aplicada aos recorrentes»

8.2. É sabido que, de um modo geral, «a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva», vindo a ser «definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização». E que «o conceito de prevenção geral (protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção e no reforço da validade da norma jurídica violada)» – ao traçar («em função do abalo, daquelas expectativas, sentido pela comunidade») os limites, óptimo e mínimo, da chamada «moldura de prevenção» - se aterá, em regra, aos limites gerais da pena (de 5 a 15 anos de prisão, ante um crime de tráfico maior de drogas ilícitas).

8.3. No caso, as instâncias pressupuseram a reincidência do arguido AMF e, por isso, fizeram acrescer 1/3 ao limite mínimo abstracto da pena, que, por isso, fixaram em 5 + 5/3 = 6,66 anos de prisão. No entanto, a sua condenação «anterior» («pela prática em 20/02/2000 de um crime de coacção, um crime de armas proibidas e um crime de homicídio qualificado tentado»), embora proferida em 1.ª instância no dia 15/01/2003, só em 29Jul04 – já depois, assim, de consumado [em 05Jun04] o crime ora ajuizado – veio a transitar em julgado (cfr., supra, nota 5). Aliás, só em 14Out04 é que o ora arguido AMF ficou à ordem do processo 497/00.9TAPCV para início do cumprimento da respectiva pena [única] de 7 anos de prisão (cfr., supra, nota 1). Daí que o arguido AMF não pudesse – nem possa – ser condenado como reincidente ( Artigo 75.º (Pressupostos) - «1 - É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a seis meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime»).

8.4. No caso, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade – ou seja, a medida de pena que a comunidade entenderá necessária à tutela das suas expectativas na validade e no reforço da norma jurídica afectada pela conduta do arguido – situar-se-á entre os 9 (nove) e os 10 (dez) anos de prisão (ante o facto – enunciado na acusação - de a apreensão de 05Jun04 [ A parcela mais proeminente de um tráfico que já se vinha desenvolvendo desde princípios do ano: «Os arguidos AMF (“Bambo”), pelo menos desde 17Jan04, e seu irmão, JAMF (“Touro”), desde pelo menos 08Mai04, dedicaram-se em comunhão de esforços e intenções à aquisição em Espanha de produto estupefaciente, vendendo-o posteriormente em Portugal, nomeadamente a PM»] ter sido, «conforme informação prestada pelo sector de toxicologia do LPC da PJ, a maior apreensão de heroína efectuada em Portugal no ano de 2004, correspondendo a cerca de 1/3 da heroína apreendida por todos os órgãos de polícia criminal em Portugal durante o primeiro semestre de 2004»). Só a heroína importada na madrugada dia 05Jun04 (15,55 kg com um grau de pureza de 44,5%) permitiria, sem qualquer adulteração, 150 000 doses individuais e réditos da ordem dos € 300 000 (ou, tendo em conta o grau de adulteração com que a heroína chega habitualmente aos consumidores, da ordem, mesmo, dos € 5 600 000»).

8.5. Mas «abaixo dessa medida (óptima) da pena de prevenção, outras haverá – até ao “limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas” – que a comunidade ainda entenderá suficientes para proteger as suas expectativas na validade da norma» O «limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral» coincidirá, pois, em concreto, com «o absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral sob a forma de defesa da ordem jurídica» (e não, necessariamente, com «o limiar mínimo da moldura penal abstracta» especialmente atenuada). E, no caso, esse limite mínimo (da moldura de prevenção) poderá encontrar-se entre os 7 (sete) e o 8 (oito) anos de prisão, uma vez que toda a droga importada pelos arguidos no dia 05Jun04 – data sobre a qual já decorreram entretanto quase quatro anos – foi apreendida, assim se frustrando o (decerto avolumado) investimento nela feito e assim se impedindo a droga importada de chegar ao consumidor e, no seu trânsito intercalar, de gerar os avultados lucros que seriam de esperar («Os arguidos AMF e seu irmão JAMF, actuando de forma concertada e reiterada, tiveram em vista comprar e importar produtos estupefacientes, designadamente heroína, para de seguida serem distribuídos e vendidos, a um grande número de pessoas, no território nacional e, dessa forma, obterem avultadas quantias de dinheiro»).

8.6. De qualquer modo, repete-se, «os limites de pena assim definida (pela necessidade de protecção de bens jurídicos) não poderão ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, que só pode intervir numa posição subordinada à prevenção geral». Ora, revelando os arguidos marcadas «carências de socialização» ( São ambos «analfabetos» e sem outras habilitações profissionais que não a «venda ambulante de roupas», de «animais» e, esporadicamente, de «automóveis usados».), a consideração das concretas exigências de prevenção especial positiva (de integração) e, sobretudo, de prevenção especial negativa (de intimidação) – tendo em conta, por um lado, a sua idade [ 35-38 anos de idade o arguido AMF (-27Abr69) e 27-31 anos de idade o arguido JAMF (-5Nov76).], o seu irregular modo de vida, o seu enquadramento familiar ( «O casal constituído pelo arguido AMF e pela arguida ACFM, tem 7 filhos com idades compreendidas entre os 17 e os 5 anos, seis deles integrando o agregado familiar, sendo que a mais velha já se encontra autonomizada». «O casal JAMF + MJSB tem quatro filhos menores com idades entre os 11 e os 2 anos de idade».), o seu comportamento anterior ( O arguido JAMF cometera em 21/04/2003, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez. O arguido AMF perpetrara, em 20/02/2000, um crime de resistência à autoridade, outro de uso de armas proibidas e outro de homicídio qualificado tentado.), a sua saúde física e mental ( «O arguido AMF sofre de epilepsia. Tem traços anormais de personalidade e uma inteligência situada no limite inferior da normalidade, sem contudo afectar a sua capacidade de avaliação da ilicitude dos seus actos ou mesmo diminuí-la») e a sua conduta ulterior ( O arguido AMF «tem mantido bom comportamento prisional». ) - haverá, no quadro da moldura penal de prevenção, de impelir o quantum exacto da pena de cada um dos arguidos ( Compensando-se a idade mais avançada e o passado mais «gravoso» de um deles (o arguido AMF) com a sua menor saúde física (epilepsia) e mental (de que são índices «traços anormais de personalidade e uma inteligência situada no limite inferior da normalidade»).) para, pelo menos, meados (8,5 anos de prisão) dessa moldura.


9. DECISÃO

9.1. Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em audiência para apreciar os recursos dos cidadãos AMF e JAMF, julga-os parcialmente procedentes e, em conformidade, fixa em 8,5 (oito e meio) anos de prisão a pena individual correspondente ao comum crime de tráfico maior de drogas ilícitas por que vinham condenados, pelas instâncias, no âmbito do processo comum colectivo 309/03.1JAAVR da Vara Mista de Setúbal.

9.2. Os recorrentes pagarão as custas do recurso, com 8 (oito) UC de taxa de justiça e 2 (duas) UC de procuradoria por cada um.

9.3 Após trânsito, a 1.ª Instância remeterá cópia certificada ao processo 497/00.0TAPNC de Penacova (para efeitos de eventual unificação penal) e, bem assim, ao LC 1486/04TXCBR do 1.º Juízo do TEP de Lisboa.


Supremo Tribunal de Justiça, 10Jan08


Carmona da Mota (Relator)

Simas Santos

Santos Carvalho

Rodrigues da Costa