Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | ARAÚJO BARROS | ||
Descritores: | ABUSO DE REPRESENTAÇÃO SIMULAÇÃO LEGITIMIDADE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA | ||
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Nº do Documento: | SJ200310090022017 | ||
Data do Acordão: | 10/09/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 10579/02 | ||
Data: | 02/13/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
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Sumário : | 1. Existe abuso de representação, previsto pelo artº. 269º do C. Civil, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado. 2. Para averiguar da finalidade da representação, sobretudo nos casos em que a procuração é subscrita também no interesse do representante (ou só no interesse dele) haverá que atender, sobretudo, ao teor do negócio que desencadeou a emissão da procuração e concedeu poderes representativos, porquanto o representante, em situações dessas, perde, praticamente, o poder de instruir o representante ou de lhe dar indicações. 3. Porque, no que concerne ao conteúdo, o negócio representativo é do representante (artº. 258º do C. Civil), nele se radicando a declaração e vontade negociais, pode sempre o representado invocar a nulidade de um contrato de compra e venda por ele celebrado com terceiro, no âmbito da sua actividade de representante. 4. Pelo simples facto de a vendedora (representante) ter declarado na escritura de celebração de um contrato de compra e venda que já havia recebido o preço acordado, preço esse cujo montante não recebeu, nem nessa altura, nem posteriormente, não é possível concluir que os contraentes dissimularam, sob essa venda, uma doação. 5. O eventual aumento do acervo patrimonial de terceiros, compradores nesse contrato, e a consequente diminuição do património do representado, não justificam o pedido de restituição dos bens vendidos ou do valor correspondente, com base no enriquecimento sem causa, porquanto a devolução patrimonial ocorrida tem como causa justificativa a declaração de vontade manifestada pela representante no negócio de compra e venda celebrado. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: "A" e mulher B intentaram, no 2º Juízo Cível do Tribunal da comarca de Oeiras, acção declarativa comum, sob a forma de processo ordinário, contra C, D e mulher E, e F e mulher G, peticionando que: a) - seja declarado nulo e ineficaz relativamente aos autores o negócio jurídico celebrado entre os réus por escritura pública de compra e venda de 30/03/99, em virtude de ter havido abuso de representação, violação grave dos princípios da boa fé e conluio entre os outorgantes; b) - ou, se assim não se entender, seja declarada a anulabilidade das procurações e da autorização emitidas pelos autores, com fundamento em dolo e divergência entre a vontade real dos autores e a vontade declarada nesses documentos e, consequentemente, anulado o negócio jurídico celebrado entre os réus por escritura pública de compra e venda de 30/3/99; c) - em qualquer dos casos, sejam condenados os réus a restituir aos autores as referidas terças partes das fracções dos autos, indevidamente alienadas pela ré; d) - ou, pelo menos, sejam condenados os réus, com fundamento em enriquecimento sem causa, a restituir aos autores as referidas terças partes das fracções dos autos, indevidamente alienadas pela ré, ou o valor correspondente em dinheiro, isto é, 32.000.000$00; e) - em qualquer dos casos, seja ordenado, ao abrigo do artº. 8º, nº. 1, do Código do Registo Predial, o cancelamento de todos os registos relativos às fracções em litígio, posteriores ao registo da aquisição a favor dos autores nomeadamente da inscrição G 19990409028, Ap. 28 de 09/04/99, sobre a fracção autónoma identificada pelas letras "...", correspondente ao terceiro andar esquerdo, do edifício C, Lote ... do prédio sito no ..., designado por Bloco ..., concelho de Oeiras, inscrito na matriz predial urbana sob o artº. 1405º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o nº. 179, e da inscrição G-4, Ap. 27 de 09/04/99, sobre a fracção autónoma identificada pelas letras "...", correspondente ao segundo andar esquerdo, do edifício ..., Lote ... do prédio sito no ..., designado por Bloco ..., concelho de Oeiras, inscrito na matriz predial urbana sob o artº. 1437º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o nº. 168. Alegaram, para tanto, que: - em 30 de Março de 1999, no 4º Cartório Notarial de Lisboa, foi outorgada uma escritura pública de compra e venda de duas fracções autónomas, na qual foram intervenientes a ré C, utilizando uma procuração que lhe conferia poderes para proceder à venda daqueles bens e, como compradores, os réus D e F; - anteriormente, o autor havia adquirido por doação um terço das fracções mencionadas; - tal doação havia sido feita pelos pais aos três filhos, isto é, pela ré C e pelo falecido marido ao autor e aos seus dois irmãos, os ora réus, D e F, em partes iguais; - na mesma data da referida doação, o autor, juntamente com os irmãos, outorgaram duas procurações a favor da ré C, conferindo poderes para em nome deles vender as citadas fracções; - no dia seguinte, a autora B outorgou uma autorização declarando conceder os poderes necessários para que o marido pudesse vender, por si ou por intermédio de procurador, os bens acima mencionados; - com o falecimento do pai do autor, ocorrido em 24 de Outubro de 1998, as poucas relações familiares existentes à data entre os autores e a ré C deterioraram-se, ao ponto de se deixarem de falar; - a conduta dessa ré, ao utilizar a procuração que lhe havia sido conferida para vender a parte do autor nos imóveis aos outros dois filhos, visou apenas prejudicar os autores; - a escritura pública em causa não teve como objecto uma compra e venda, mas sim uma verdadeira doação feita pela ré mãe aos seus dois filhos, ora réus, à custa do património dos autores; - a outorga das procurações visava apenas atribuir à ré procuradora os instrumentos legais que a mesma pudesse utilizar numa eventual venda real dos apartamentos, em que os possíveis vendedores - os autores e seus irmãos - vendessem as fracções a terceiros, sempre com a concordância destes e para fazer face a qualquer problema financeiro; - os autores outorgaram as procurações e a autorização na suposição de que a ré agiria com bom senso, como um bom pai de família e com lealdade, nunca por motivos maldosos, no intuito de prejudicar quem quer que seja; - nunca os autores outorgariam as procurações e a autorização se soubessem que a venda seria feita nos termos em que foi; - a ré C agiu de modo substancialmente contrário aos fins de representação, excedendo conscientemente os seus poderes; - logo, terá de considerar-se ter existido abuso de representação na escritura de compra de 30 de Setembro de 1999, tendo agido todos os réus com o intuito de prejudicar os autores, sabendo que as procurações não foram outorgadas para o fim subjacente àquela escritura, isto é, para prejudicar o irmão; - tendo sido utilizadas as procurações para um fim diferente daquele para que foram outorgadas, existe violação grave dos princípios da boa fé, pelo que, nos termos do artº. 269º do C.Civil, a compra e venda é ineficaz em relação aos autores; - o negócio celebrado entre os ora réus é nulo; - os autores sempre teriam direito à restituição da sua quota parte nos bens com fundamento no enriquecimento sem causa; - mesmo que assim se não entendesse sempre teriam os autores direito a pedir a declaração de anulabilidade das procurações e da referida autorização, dado existir uma divergência entre a vontade real dos autores e a vontade declarada inserta nesses documentos, acarretando consequentemente a invalidade do negócio jurídico em causa; - os autores igualmente têm direito a anular as procurações, a autorização e consequentemente o negócio jurídico em causa por dolo, nos termos dos artºs. 253º e 254º do C.Civil. Devidamente citados, apresentaram os réus, separadamente, as respectivas contestações. Pugnando pela improcedência da acção, alegou, essencialmente, a ré C que: - ao serem outorgadas as ditas procurações e autorização em favor da ré, ficou na altura acordado que esta teria poderes para vender qualquer das fracções a quem entendesse, ambas ou separadamente, no todo ou em parte, sem necessidade de autorização ou de dar conhecimento aos autores e aos demais réus; - acordado estava também que, caso a ré vendesse alguma das fracções, ou todas, ficaria dispensada de prestar contas; - nunca qualquer dos réus filhos ou os autores impuseram quaisquer restrições à ora ré relativamente à utilização das procurações e autorizações e venda das fracções, nem relativamente ao preço, nem à identidade do comprador, nem relativamente à venda da totalidade ou parte das fracções; - após o falecimento de seu marido, a ré ficou em situação de necessidade, dado ser doméstica, vivendo numa das fracções na companhia de sua mãe; - todo o património que era seu e de seu marido está penhorado e a aguardar a venda nos respectivos processos judiciais, sendo insuficiente para pagar as suas dívidas e as da herança; - dados os seus problemas financeiros, a ré vive da ajuda de seus dois filhos - co-réus - que lhe facultam habitação e suportaram o pagamento de algumas despesas da ré e da sua mãe até à escritura em causa, o que os autores se recusaram fazer; - face à necessidade da ré e ao interesse em vender as fracções, os réus filhos manifestaram interesse em adquirir a parte das fracções em questão, pagando o preço justo e garantindo a utilização de uma delas como local de habitação da sua mãe e avó durante as suas vidas; - a ré outorgou a escritura pública em causa sem com tal conduta pretender prejudicar os autores, agindo dentro dos poderes que lhe foram conferidos e segundo o acordado; - o que os autores tentam agora é construir uma nova procuração diferente da que foi por eles outorgada. Os réus D, E e F alegaram, em resumo, que: - à data da outorga das procurações e da autorização, os intervenientes não impuseram quaisquer restrições à ré C relativamente aos poderes que lhe eram conferidos; - foi acordado pessoalmente entre os réus, os autores e sua mãe e sogra que C faria o uso que entendesse das procurações e autorizações;. - a ré C actuou dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram conferidos; - os réus outorgaram a escritura pública em causa sem que com tal conduta pretendessem prejudicar os autores; - os réus propuseram-se unir esforços e adquirir a parte em questão de modo a garantir à sua mãe e avó os fundos de que necessitavam, dado atravessarem na altura gravíssimas dificuldades económicas, e manter a sua habitação enquanto fossem vivas; - o que teve por único objectivo ajudar a sua mãe, resolvendo-lhe uma série de problemas de ordem económico-financeira com que esta se defrontava; - o segundo e terceiro réus pagaram o preço justo pela terça parte das fracções que adquiriram; - não há fundamento válido para a anulação da procuração; Alegou, por seu turno, a ré G: - é completamente estranha aos factos que são objecto dos presentes autos; - casou com o réu F em 20 de Setembro de 1997; - os terços indivisos que o réu F adquiriu nas duas fracções autónomas são bens próprios dele; - encontra-se divorciada deste réu, tendo a escritura pública ora impugnada sido celebrada durante a pendência do processo de divórcio; - não teve qualquer participação no negócio; - desconhece a factualidade alegada na petição inicial, sendo certo que não praticou qualquer acto lesivo do património dos autores. Replicaram os autores, reiterando a versão dos acontecimentos já constante da petição inicial, pugnando e concluindo no mesmo sentido. Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, realizou-se audiência de julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, após o que foi proferida sentença em que se julgou a acção improcedente por não provada e, em consequência, se absolveram os réus C, D e E, F e G do pedido contra eles formulado pelos autores A e B. Inconformados apelaram os autores, sem êxito embora, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 13 de Fevereiro de 2003, por remissão, aliás, para os termos da decisão impugnada negou provimento ao recurso. Interpuseram, agora, os autores recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão em crise e a sua substituição por outro que declare nulo e ineficaz relativamente aos autores o negócio jurídico celebrado entre os réus por escritura pública de compra e venda de 30/03/99, em virtude de ter havido abuso de representação, violação grave dos princípios da boa fé e conluio entre os outorgantes; ou, se assim não se entender, subsidiariamente, com fundamento em enriquecimento sem causa, que condene os segundos e terceiros réus a restituir aos autores as referidas terças partes das fracções identificadas nos autos, indevidamente alienadas pela primeira ré, ou a pagar o valor correspondente em dinheiro, isto é, 159.615,32 Euros (correspondente a 32.000.000$00). Contra-alegando, impetraram os recorridos a manutenção do acórdão impugnado. Verificados que são os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos, cumpre decidir. Os recorrentes findaram as respectivas alegações formulando as conclusões seguintes (e é, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - artºs. 690º, nº. 1 e 684º, nº. 3, do C.Proc.Civil): 1. O autor marido e a autora mulher, ora recorrentes, outorgaram duas procurações irrevogáveis e uma autorização, respectivamente, à ré C. 2. A ré C como procuradora, em conluio com os réus D e F, outorgou uma escritura pública, encenando um contrato de compra e venda sem receber qualquer preço, visando prejudicar o representado, ora recorrente, atingindo a sua esfera jurídica, ferindo os seus interesses patrimoniais. 3. A ré C não podia ter utilizado as procurações e a autorização como o fez, isto é, com o único fim de prejudicar o representado, ora recorrente. 4. A ré C, apesar de ter actuado dentro dos limites formais dos poderes conferidos pelo ora recorrente, agiu de modo substancialmente contrário aos fins da representação, utilizando conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim, isto é, com abuso de representação. 5. O negócio jurídico celebrado entre os réus, por escritura pública de compra e venda de 30/03/99, em virtude de ter havido abuso de representação, violação grave dos princípios da boa fé e conluio entre os outorgantes, deve ser declarado nulo e ineficaz relativamente aos autores, nos termos dos artºs. 269º e 268º do Código Civil, e serem os réus condenados a restituir aos autores as terças partes das fracções dos autos, indevidamente alienadas pela ré. 6. Com o acto lesivo dos interesses dos recorrentes, verifica-se a existência de um enriquecimento sem causa por parte dos segundos e terceiros réus, nos termos da alínea c) do artº. 879º do C.Civil e do nº. 2 do artº. 473º do Código Civil, devendo os réus, subsidiariamente, restituir aos autores as terças partes das fracções dos autos, indevidamente alienadas pela ré, ou o valor correspondente em dinheiro. Encontra-se assente, em definitivo, a seguinte matéria fáctica (expurgada da matéria atinente ao conhecimento do pedido de apoio judiciário deduzido pela ré C, que aqui não está em causa): i) - por escritura pública outorgada em 5 de Julho de 1993, C, por si e na qualidade de procuradora de seu marido, H, declarou doar, por conta da quota disponível de seus bens, a A, D e a F, a fracção autónoma que constitui o terceiro andar esquerdo, do edifício ..., Lote ..., do prédio sito no ..., ..., Bloco ..., concelho de Oeiras, inscrito na matriz predial urbana sob o artº. 2659º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o nº. 179 (documento de fls. 61 a 65 dos autos); ii) - por escritura pública outorgada em 5 de Julho de 1993, C, por si e na qualidade de procuradora de seu marido, H, declarou doar, por conta da quota disponível de seus bens, a A, D e a F, a fracção autónoma que constitui o segundo andar esquerdo, do edifício ..., Lote ..., do prédio sito no ..., ..., Bloco ..., concelho de Oeiras, inscrito na matriz predial urbana sob o artº. 2711º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o nº. 178 (documento de fls. 66 a 70 dos autos); iii) - em 5 de Julho de 1993, A, D e F constituíram como sua procuradora C, a quem conferiram os poderes especiais para, em nome deles, mandantes, e podendo substabelecer, vender a fracção supra descrita em i), "recebendo o preço, dando quitação, outorgando a respectiva escritura com as cláusulas e condições que achar convenientes, podendo celebrar contratos promessa, aditá-los, alterá-los ou revogá-los, receber sinais e reforço de sinais, requerer quaisquer actos de registo, provisórios e definitivos, e, bem assim, praticar todos os demais actos que se mostrem necessários à completa execução do presente mandato"; mais declararam que "a presente procuração é irrevogável, mantendo-se válida para além da eventual morte, interdição ou inabilitação dos mandantes, de acordo com o disposto no número dois do artigo mil cento e setenta e mil cento e setenta e cinco, ambos do Código Civil" (documento de fls. 14 a 17 dos autos); iv) - em 5 de Julho de 1993, A, D e F constituíram como sua procuradora C, a quem conferiram os poderes especiais para, em nome deles, mandantes, e podendo substabelecer, vender a fracção supra descrita em ii), "recebendo o preço, dando quitação, outorgando a respectiva escritura com as cláusulas e condições que achar convenientes, podendo celebrar contratos promessa, aditá-los, alterá-los ou revogá-los, receber sinais e reforço de sinais, requerer quaisquer actos de registo, provisórios e definitivos, e, bem assim, praticar todos os demais actos que se mostrem necessários à completa execução do presente mandato"; mais declararam que "a presente procuração é irrevogável, mantendo-se válida para além da eventual morte, interdição ou inabilitação dos mandantes, de acordo com o disposto no número dois do artigo mil cento e setenta e mil cento e setenta e cinco, ambos do Código Civil" (documento de fls. 18 a 21 dos autos); v) - em 6 de Julho de 1993, a autora B declarou autorizar o autor seu marido a vender "por si ou por intermédio de procurador a quem conceda poderes para tal" as fracções supra aludidas em i) e ii), "recebendo o preço, dando quitação, outorgando a respectiva escritura com as cláusulas e condições que achar convenientes, podendo celebrar contratos promessa, aditá-los, alterá-los ou revogá-los, receber sinais e reforço de sinais, requerer quaisquer actos de registo, provisórios e definitivos, e, bem assim, praticar todos os demais actos que se mostrem necessários à mencionada venda" (documento de fls. 22 a 24 dos autos); vi) - por escritura pública outorgada em 30 de Março de 1999, C, viúva, na qualidade de procuradora do autor, declarou vender pelo preço de 32.000.000$00, que declarou já ter recebido, a F e a D, estando este representado por aquele, que declarou aceitar, por si e na qualidade referida, um terço de cada uma das fracções supra aludidas em i) e ii); mais declararam os intervenientes que atribuem a cada uma das fracções o valor de 16.000.000$00 (documento de fls. 8 a 13 dos autos); vii) - está inscrita na Conservatória do Registo Predial, mediante a apresentação nº. 23 de 23 de Julho de 1990, a aquisição a favor da ré C da fracção autónoma supra aludida em i), correspondente às letras "...", que constitui o terceiro andar esquerdo, com arrecadação e um lugar de estacionamento na cave, do edifício ..., lote ..., do prédio sito no ..., ..., Bloco E, concelho de Oeiras; mostra-se igualmente inscrita, por apresentação nº. 37 de 29 de Julho de 1993, a aquisição dessa fracção a favor do autor e dos réus D e F, por doação e na proporção de 1/3 para cada um; mostra-se igualmente inscrita, por apresentação nº. 28 de 09/04/99, a aquisição de 1/3, por compra aos autores, a favor dos réus D e F (documento de fls. 155 a 166 dos autos); viii) - está inscrita na Conservatória do Registo Predial de Oeiras, mediante apresentação nº. 2 de 8 de Junho de 1993, a aquisição a favor da ré C da fracção autónoma supra aludida em ii), correspondente às letras "...", que constitui o segundo andar esquerdo, com uma arrecadação com o nº. ... e estacionamento com o nº. ..., do edifício ..., Lote ..., do prédio sito no ..., ..., Bloco ..., concelho de Oeiras; mostra-se igualmente inscrita, por apresentação nº. 36 de 29/07/93, a aquisição dessa fracção a favor do autor e dos réus D e F, por doação e na proporção de 1/3 para cada um; mostra-se igualmente inscrita, por apresentação nº. 27 de 09/04/99, a aquisição de 1/3, por compra aos autores, a favor dos réus D e F (documento de fls. 155 a 166 dos autos); ix) - foi paga a sisa relativa à compra aludida supra em vi) (documentos de fls. 171 a 174); x) - após o falecimento do pai do autor, A - a cujo funeral este autor não compareceu - os autores, por um lado, e a ré C, por outro (que já mantinham um relacionamento frio e distante) deixaram-se de falar e de manter convivência entre si, permanecendo até ao presente de relações cortadas; xi) - a ré C, ao outorgar na escritura nos termos aludidos em vi), tinha a consciência de que, desse modo, o autor A deixava de ser titular daquela fracção autónoma, vendo o seu património, nessa medida, diminuído e ficando numa situação de desigualdade em relação aos seus irmãos, os réus D e F, o que a ré C quis que acontecesse; xii) - com a outorga das procurações aludidas visavam as partes intervenientes garantir à ré a possibilidade de, no futuro e se necessário - designadamente para fazer face a dificuldades económicas - fazer regressar ao seu património aquele bem; xiii) - os segundos e terceiros réus eram conhecedores das desavenças familiares entre a ré C e os autores; xiv) - os réus D e F tinham consciência da intenção da ré C ao outorgar a escritura em seu favor, tendo, mesmo assim, aceite nela intervir; xv) - até à data a ré C não comunicou a outorga da escritura pública aos autores, nem lhes prestou contas; xvi) - os segundos e terceiros réus adquiriram a quota parte do autor sem pagarem qualquer preço; xvii) - aquando da outorga das escrituras aludidas em i) e ii) e das procurações referidas em iii) e iv) ficou acordado entre os autores, os réus e H que enquanto os pais - a ré C e o H - fossem vivos e o pretendessem, poderiam utilizar como sua casa de morada da família a fracção identificada supra em i), fracção onde sempre tinham vivido nos períodos em que se encontravam em Lisboa; xviii) - nessa altura, foi igualmente acordado que a ré C teria poderes para vender qualquer das fracções referidas em i) e ii) a quem entendesse, ambas ou separadamente, no todo ou em parte, sem necessidade de autorização ou de dar conhecimento aos autores e demais réus; xix) - acordado estava também que, se a ré C vendesse alguma das fracções, ou todas, ficaria dispensada de prestar contas; xx) - desde a outorga das escrituras aludidas em i) e ii), os autores nunca trataram de qualquer assunto referente às mesmas fracções; xxi) - quando recebiam qualquer documento referente às fracções, de que era necessário pagar ou tratar, remetiam-no imediatamente para a ré C ou para um dos réus D e F, para que o entregasse à mãe; xxii) - e foi a ré C que adiantou o pagamento das respectivas despesas no que respeita à parte dos autores; xxiii) - nunca qualquer dos réus filhos ou os autores impuseram quaisquer restrições à ré C relativamente à utilização das procurações, autorização e venda das fracções, nem relativamente ao preço, nem à identidade do comprador, nem relativamente à venda da totalidade ou parte das fracções; xxiv) - a intenção dos outorgantes ao conferirem-lhe as procurações e autorização foi conferirem-lhe poderes para dar o destino que entendesse às fracções; xxv) - os autores recusaram fornecer qualquer apoio económico à ré C após o falecimento do marido desta; Face às conclusões formuladas pelos recorrentes, importa conhecer, em ordem à decisão do recurso, das seguintes questões jurídicas: I. Saber se houve, por parte da ré C, abuso dos poderes de representação que lhe foram conferidos pelo autor marido. II. Determinar se houve vício relevante na outorga da escritura de compra e venda realizada, de que advenha a nulidade ou anulabilidade do contrato celebrado. III. Averiguar, por último, se ocorre enriquecimento sem causa dos réus, susceptível de justificar a restituição da terça parte do autor ou do respectivo valor pecuniário. I. O artº. 258º do C.Civil (1) prescreve que "o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último". Determina, em contrapartida, o artº. 268º, nº. 1, que "o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado". Estabelecendo, ainda, o artº. 269º que "o disposto no artigo anterior é aplicável ao caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso". "São, pois, três os elementos da facti species deste artº. 269º: 1 - uma actividade abusiva do representante; 2 - conhecimento ou dever de conhecer o abuso, por parte do terceiro; 3 - verificados os pressupostos anteriores, a cominação da ineficácia do negócio representativo, para o representado, nos mesmos termos do artº. 268º" (2). Está decidido nos autos, sem impugnação (cfr. conclusão 4. das alegações de recurso), que a ré C, ao celebrar, como representante do autor marido, a escritura de compra e venda de 30/03/99, agiu dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram conferidos pela procuração passada pelo recorrente A e da autorização emitida pela mulher deste, B. Não obstante, o abuso de representação não ocorre apenas nas situações em que o representante excede, formalmente, os poderes que lhe foram conferidos. É que, ainda na representação, está presente a necessidade de salvaguarda dos interesses do representado (mesmo quando a procuração é emitida no interesse comum de representante e representado ou, mais raramente, no interesse único do representante voluntário), no âmbito do fim para que foi passada a procuração (que se descortina atendendo ao negócio que determinou a respectiva emissão, se o houve) ou das indicações do representado. Assim, o abuso dos poderes de representação pelo representante - caso em que o negócio por ele celebrado é ineficaz em relação ao representado (artºs. 268º e 269º) - existe também quando ele, "actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado" (3). "Há abuso, por exemplo, se o representado encarregou o procurador de lhe comprar uma casa para sua residência, e este, munido da procuração que lhe confere, genericamente, poderes para comprar, compra um prédio que não serve para aquele fim". Não obstante, "neste caso, só é aplicável o regime da ineficácia previsto no artigo anterior (268º) se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso. Em qualquer outro caso, o negócio considera-se validamente celebrado em nome do representado, sem prejuízo, claro, da responsabilidade que pode incidir sobre o procurador" (4). Como que ocorre, "nas situações de abuso da representação um abuso de direito: um abuso do direito formalmente existente para representar outrem. A esta situação a lei reage como se os poderes formais não existissem. Segundo o disposto no artº. 269º são aplicáveis, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso, as regras do artº. 268º sobre a representação sem poderes" (5). Certo que nos casos em que a procuração é subscrita também no interesse do representante (ou só no interesse dele) haverá que atender, sobretudo, ao teor do negócio que desencadeou a emissão da procuração e concedeu poderes representativos, porquanto o representante, em situações dessas, perde, praticamente, o poder de instruir o representante ou de lhe dar indicações. Na verdade, "o interesse do mandatário ou de terceiro no mandato só é relevante para efeitos da sua consideração como mandato in rem propriam ou de interesse comum, quando tenha sido valorado pelas partes em termos de o mandante ter acedido a que o contrato seja também um instrumento de tutela jurídica da posição do outro interessado" (6). Mas é claro que "apesar do dominus não poder instruir o procurador, tal não significa que o procurador possa exercer os poderes de representação arbitrariamente e sem limite ou critério. O interesse do procurador não é um interesse subjectivo, que pode mudar conforme a sua vontade. O procurador não pode exercer os poderes que resultam da procuração de acordo com o seu livre arbítrio, tem que se conformar com o interesse que resulta da relação subjacente, não o podendo violar. Caso o procurador viole o interesse relevante, age em abuso de representação. Isso implica a aplicação do regime jurídico do artº. 269º do C.Civil, podendo ainda dar causa a responsabilidade civil" (7). Analisados os factos provados (extraindo ainda as consequências da falta de prova de outros), e aplicando o direito, parece não poder concluir-se - ao contrário do que pretendem os recorrentes - que a ré C haja actuado, como representante do autor, de modo substancialmente contrário aos fins dessa mesma representação. Importa, antes de mais, apreciar o contexto específico em que se insere a outorga das procurações outorgadas pelo autor (e seus irmãos) a favor daquela ré (fls. 16 e 17 e 20 e 21). Através dessas procurações, a ré foi voluntariamente constituída representante dos seus três filhos - o autor A e os réus D e F - concomitantemente (em 5 de Julho de 1993, por conseguinte na mesma data) com a realização das escrituras de doação dos imóveis acima identificados, por parte da C e seu marido, pai do autor e réus, H. Por sua vez, a autorização concedida pela autora B tem a data de 6 de Julho de 1993, inserindo-se na dinâmica desses mesmos contratos e dos fins que presidiram à sua realização. Fácil é, assim, perceber que as doações e a outorga das procurações (autorização incluída) foram realizadas umas em função das outras, traduzindo um mesmo e único contexto negocial. Na verdade, os doadores condicionaram as doações dos imóveis aos filhos (como razão derradeira poderá aventar-se a muito provável intenção de colocarem os imóveis fora do alcance dos seus credores, intenção confirmada pelos posteriores acontecimentos) à recíproca outorga por estes duma procuração em favor da doadora, sua mãe, onde se incluíam os poderes especiais e necessários para que esta viesse a vender esses mesmos bens, se assim o entendesse, sem qualquer impedimento ou restrição. O que, sem dúvida, se infere da natureza e conteúdo das procurações concedidas pelos filhos à mãe, C, procurações irrevogáveis, por terem sido conferidas também (sobretudo ou até exclusivamente) no interesse da procuradora (artº. 265º, nº. 3). Interesse esse que se integrou, como vimos, numa relação jurídica vinculativa, ou seja, em que os representados (tendo a procuradora o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daqueles) quiseram vincular-se a uma prestação a que a procuradora tinha, convencionalmente, direito (8). Efectivamente, resulta dos autos com meridiana clareza - como, aliás, se acentua na excelente sentença da 1ª instância, que aqui de perto seguimos - que apesar de os imóveis doados haverem passado, formalmente e através de um acto translativo, para a propriedade dos donatários, o certo é que a doadora reservou para si, de forma plena e ilimitada, a faculdade de vir ulteriormente a determinar o seu (diferente) destino e de, inclusive, fazê-los regressar à sua esfera jurídica. Tendo-o feito com a expressa anuência dos donatários que, dessa forma, ficaram claramente conscientes de que os bens, que haviam entrado daquele modo no seu património, poderiam, mais tarde, vir a sair da sua esfera jurídica, ao sabor dos exclusivos interesses ou conveniências da doadora/representante. Situação que, aliás, também se deduz do próprio conteúdo das procurações (e autorização). De facto, no respectivo texto não ficou a constar qualquer condição ou limitação para o exercício dos poderes que, através daqueles instrumentos, eram concedidos à mandatária. Nada foi previsto relativamente às circunstâncias de que dependeria a sua actuação, enquanto representante dos donatários. Nenhuma directriz lhe foi assinalada, não tendo sido sequer mencionada a mínima restrição ao exercício dos respectivos poderes. Constata-se, por isso, face à relação jurídica basilar estabelecida, que os donatários, ao outorgarem aquelas procurações, sabiam perfeitamente que tal instrumento jurídico visava salvaguardar em especial (e mesmo exclusivamente) o interesse patrimonial da representante, fazendo parte, como elemento essencial, da estratégia negocial que presidiu, na génese, à realização de todos aqueles negócios. Por isso que, bem entendidos os fins da representação - e perante o quadro factual apresentado e o particularismo da situação sub judice - teve a outorga das procurações mais a ver (se não só a ver) com os interesses próprios e pessoais da representante do que com os dos representados. Ou seja, o instituto da representação foi aqui convencionado (ou exigido) para única e exclusiva salvaguarda da vontade e dos interesses da representante doadora, em contraponto com a posição de sujeição dos representados donatários. Houve como que uma reserva de poderes por parte da representante na medida em que, abrindo formalmente mão dos imóveis doados, continuou, na prática, a deles dispor como bem entendesse, garantindo, inclusive, a sua habitação própria, já que um dos imóveis constituía, já na altura da doação, a sua residência permanente. Portanto, os fins da concreta representação (e a conclusão vale também para a autorização concedida pela autora B) coincidem, in casu, com os exclusivos interesses da representante doadora, pelo que qualquer acto por ela praticado, mesmo se realizado com o intuito de prejudicar (questão que trataremos adiante), qualquer dos donatários, nunca poderá ser considerado contrário aos fins da representação. Em consequência, não é possível defender que os actos de venda dos bens, realizados pela ré C, representante do autor, e em nome deste, foram contrários, em termos substanciais, aos fins da concreta acordada representação. Sustentam, ainda, os recorrentes que a ré C não podia ter utilizado as procurações (e a autorização) com o único fim de prejudicar o autor, seu representado. Verdade é que se entendermos o prejuízo dele como a objectiva diminuição do activo patrimonial que gratuitamente (e por instrumento formal) recebera através das doações, não se vê que não estivesse convencionalmente acordada (era algo antecipadamente previsto por todos e por todos aceite) a possibilidade da ré C vir, em momento ulterior à doação, a provocar esse mesmo efeito de perda na esfera jurídica de qualquer dos donatários. Nada existe, aliás, de anormal ou surpreendente nesta decisão da referida ré, atendendo a que as suas relações pessoais com os recorrentes se deterioraram, completa e irremediavelmente, após o decesso do pai do autor (a cujo funeral este nem sequer compareceu). Dispensando-nos de qualquer apreciação ética ou social da actuação da ré C - arredada, por natureza, do âmbito estritamente jurídico do conhecimento do recurso - ter-se-á que admitir que o seu comportamento se pautou de acordo com os princípios gerais da boa fé que presidem à celebração e execução dos negócios jurídicos (artºs. 227º, nº. 1 e 762º, nº. 2). Tudo se enquadra, afinal, na lógica e no espírito que, desde o início, presidiu à vontade da ré C e seu marido quando decidiram contemplar (desta forma muito restritiva) os seus filhos com a transmissão, em seu favor, da propriedade sobre os identificados bens imóveis. Razões pelas quais improcede, nesta parte, a pretensão dos recorrentes. II. Entendem os recorrentes que a recorrida C, em conluio com os réus D e F, outorgou uma escritura pública, encenando um contrato de compra e venda sem receber qualquer preço, visando prejudicar o autor, e, concretamente, ferindo os seus interesses patrimoniais. E, por isso, tal negócio jurídico, em virtude de ter havido abuso de representação, violação grave dos princípios da boa fé e conluio entre os outorgantes, deve ser declarado nulo e ineficaz relativamente aos autores, nos termos dos artºs. 269º e 268º do Código Civil. Vimos já anteriormente que não ocorreu abuso de representação, que não existiu relevante violação dos princípios da boa fé negocial, e que o prejuízo, por si só, não integra qualquer vício que possa conduzir à invalidade ou ineficácia do contrato de compra e venda celebrado. Poderá, agora, nesse aspecto, ver-se invocada a existência de uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada na escritura de 30 de Março de 1999, em que a ré C, na qualidade de procuradora do autor, declarou vender pelo preço de 32.000.000$00, que declarou já ter recebido, aos réus F e D, que declararam aceitar, um terço de cada uma das fracções supra identificadas, declarando ainda todos eles que atribuem a cada uma das fracções o valor de 16.000.000$00 (fls. 8 a 13). Pretendem, eventualmente, os recorrentes arguir a simulação fraudulenta (intuito de prejudicar) do contrato de compra e venda realizado (naturalmente porque a venda teria encoberto uma verdadeira doação), vício que os artºs. 240º, nº. 2 e 241º, nº. 2, cominam com a nulidade (e se é certo que os recorrentes peticionam a anulação do contrato, não deixa a nulidade de ser de conhecimento oficioso). Como também, se bem lemos as alegações, assentam o seu desiderato na falta de poderes daquela ré para celebrar doações (como afirmam a venda disfarçou uma doação): de facto, a procuração outorgada pelo autor apenas lhe conferia o poder de vender os imóveis, enquanto o acto praticado pela representante, ao abrigo dos poderes conferidos através da mesma, se traduziu numa verdadeira doação em favor dos réus. Impõe-se, antes de mais, referir que, nos termos do artº. 259º, nº. 1, "à excepção dos elementos em que tenha sido decisiva a vontade do representado, é na pessoa do representante que deve verificar-se, para efeitos de nulidade ou anulabilidade da declaração, a falta ou vício da vontade, bem como o conhecimento ou ignorância dos factos que podem influir nos efeitos do negócio". Tal significa que "o dominus negotti, ao conceder os poderes representativos tem em vista que o representante se determina com uma vontade incólume: só se apropria previamente dos efeitos do negócio que resultem de uma vontade efectiva e livre do seu representante. Ora, se as coisas se passam assim no domínio da falta e vícios de vontade, por maioria de razão há-de entender-se relativamente aos negócios fictícios que o representante, conluiado com outro e para o enganar ou defraudar, diga celebrar em seu nome, manifestando uma vontade que realmente não tem. Quem assim proceda, embora formalmente aparente agir como representante, extravasa os limites dos poderes que lhe competem, não podendo, portanto, tal negócio jurídico, nos termos do artº. 258º, projectar os seus efeitos na esfera jurídica do mandante" (9). De facto, "o negócio representativo é do representante, a paternidade do negócio diz respeito por inteiro ao representante; apenas os efeitos se produzirão no representado, isto é, o negócio é o do representante, se bem que se dirija e vá produzir efeitos no representado. Portanto, há que distinguir entre os problemas que se ligam aos efeitos do negócio representativo e os que dizem respeito ao negócio em si: para os primeiros interessa o representado, para os segundos interessa o representante" (10). Dúvidas não restam, portanto, de que os recorrentes podem invocar a simulação do contrato celebrado entre a sua representante e os réus D e F, determinante da respectiva nulidade. E também, consequentemente, porque, a demonstrar-se a simulação - a declaração feita pela ré C de que vendia quando, na realidade, quis declarar que doava - se vai cair numa situação de representação sem poderes, poderão pugnar pela ineficácia do acto, nos termos do artº. 268º, nº. 1. Acontece, porém, que não se provou que o contrato de compra e venda celebrado traduzisse, na realidade, a realização de uma doação ou de análoga alienação da terça parte dos imóveis com espírito de liberalidade. Sendo que o simples facto de não ter havido até agora, por parte da vendedora - e contrariamente ao que da respectiva escritura pública consta - o recebimento do preço declarado, não permite concluir nesse sentido. O contrato pode e deve continuar a ser considerado como de compra e venda, embora se encontre até ao momento em dívida o pagamento do competente preço, que ainda não chegou às mãos da representante do vendedor (representado). O que se verifica, pura e simplesmente, é a falta do efectivo pagamento do preço devido que sempre poderá ser exigido dos adquirentes - e não a transmutação deste contrato de compra e venda de imóveis noutro de diferente natureza. Doutro passo, o simples facto da ré C não ter recebido dos compradores a contrapartida monetária correspondente ao preço de venda, não implica, desde logo, o exercício sem poderes desse mesmo acto (o que se depreende é que, falsamente, declarou ter recebido o preço, e nada mais). A questão do recebimento do preço terá que ser discutida entre o autor A e aquela ré, já no âmbito do negócio de representação, situação que, de resto, foi sugerida pela própria ré na sua contestação, quando manifestou a intenção de prestar contas, que reconhece constituir sua obrigação contratual (artº. 75º daquela peça processual). Só que dessa questão, porque não suscitada nos autos, não pode conhecer-se em sede do recurso. Improcede, assim, também, neste aspecto, a pretensão dos recorrentes. III. Sustentam, por último, os recorrentes, que, com o acto lesivo dos seus interesses, se verifica a existência de um enriquecimento sem causa por parte dos segundos e terceiros réus, razão pela qual devem estes restituir-lhes as terças partes das fracções dos autos ou o valor correspondente em dinheiro. Conforme dispõe o artº. 473º, nº. 1, "aquele que, sem causa justa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou". Acrescentando o nº. 2, do mesmo preceito, que "a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou". Por seu turno, estabelece o artº. 479º, nº. 1, que "a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente". Ora, "a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: a) é necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento; b) a obrigação de restituir pressupõe, em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa - ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido; c) a obrigação de restituir pressupõe, finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem quer a restituição" (11). Parece-nos, todavia, que no caso em apreço não se verificam os requisitos do instituto jurídico em causa. Não existe, desde logo, qualquer situação de enriquecimento dos réus D e F à custa do património do autor A, ou mais propriamente, em virtude da sua diminuição se causa justificativa da transposição patrimonial verificada. O aumento patrimonial de que beneficiaram aqueles réus teve por única causa, como é bom de ver, a vontade nesse sentido manifestada pela ré C agindo enquanto representante do donatário autor. Foi tão só em virtude dessa mesma manifestação de vontade que aqueles réus passaram a ser titulares da terça parte dos imóveis que antes pertenciam ao autor. Ora, essa mesma manifestação de vontade da ré C somente se verifica e é juridicamente eficaz em função da outorga de poderes por parte do respectivo representado, o autor. Ou seja, a vontade jurídica relevante neste domínio é, saliente-se, a do representado e não a da representante. Existe, assim, uma causa ou justificação legítima para o aumento patrimonial obtido pelos réus D e F, que acaba por ficar a dever-se, juridicamente, a um acto do próprio autor, se bem que através de representante. Não é, deste modo, possível defender que o aumento do património dos réus D e F não tenha tido subjacente qualquer causa justificativa e, muito menos, que seja contrária à ordenação jurídica correcta dos bens em discussão. E não colhe, neste ponto, o argumento de que esses réus adquiriram gratuitamente a terça parte que cabia ao autor, enriquecendo, assim, à sua custa. Desde logo, existem ainda contas por prestar da parte da representante do vendedor face ao representado. Na sequência do que atrás se concluiu, não é juridicamente possível qualificar o contrato celebrado como de doação, mas sim como de compra e venda de bens imóveis (encontrando-se, todavia, ainda por pagar e por receber o respectivo preço). Por outro lado, também a anterior aquisição dessa mesma terça parte pelo autor tinha sido gratuita, fruto do espírito de liberalidade patenteado pelos seus progenitores. Aquilo que, no fundo, veio a permitir o esvaziamento patrimonial quanto à dita terça parte dos bens que cabia aos autores não foi a actuação dos réus D e F. Tal situação resultou, contrariamente, da outorga da procuração passada pelo autor à ré C, permitindo-lhe fazer regressar esses mesmos bens à sua inteira e livre disponibilidade. Esse acto, voluntário e livre, praticado pelo autor, é que se encontra verdadeiramente na base do seu próprio empobrecimento (entendido enquanto diminuição do seu activo patrimonial). Não podem, pois, os autores vir agora tentar impugnar os efeitos que esses seus actos - de outorga de procuração e de concessão de autorização - possibilitaram e donde avultava a eventualidade de deixarem (ainda que ao arrepio da sua vontade) de ser titulares daquela terça parte dos imóveis referidos. Não faz assim qualquer sentido a aplicação, in casu, do instituto do enriquecimento sem causa, cujos pressupostos manifestamente se não verificam. Razão por que improcede, ainda nesta parte, o pretendido pelos recorrentes. Termos em que se decide: a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelos autores A e mulher B; b) - confirmar o acórdão recorrido; c) - condenar o recorrente nas custas da revista. Lisboa, 9 de Outubro de 2003 Araújo Barros Oliveira Barros Salvador da Costa ______________ (1) Diploma a que pertencem todas as normas adiante indicadas sem outra referência. (2) Helena Mota, in "Do Abuso de Representação", Coimbra, 2001, pág. 164. (3) Acs. STJ de 06/04/83, in BMJ nº. 326, pág. 430 (relator Lima Cluny) e de 29/04/2003, no Proc. 907/03 da 1ª secção (relator Fernandes Magalhães); Acs. RP de 01/02/93, in CJ, Ano XVIII, 1, pág. 219 (relator Azevedo Ramos) e de 07/11/95, no Proc. 858/93 da 5ª secção (relator Alberto Sobrinho). (4) Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pág. 249. (5) Heinrich Horster, in "A Parte Geral do Código Civil Português", Coimbra, 1992, pág. 489. (6) M. Januário C. Gomes, "Contrato de Mandato", in "Direito das Obrigações", sob a orientação de Menezes Cordeiro, 3º vol., Lisboa, 1991, pág. 282. (7) Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in "A Procuração Irrevogável", Coimbra, 2002, págs. 103 e 105. (8) Cfr. Acs. STJ de 27/09/94, in CJSTJ Ano II, 3, pág. 66, maxime 68 (relator Costa Marques); e de 03/07/97, in BMJ nº. 468, pág. 361 (relator Lopes Pinto). (9) Almeida Costa, "Vontade e Declaração na Teoria do Negócio Jurídico Representativo", in BMJ nº. 127, pág. 145. (10) Durval Ferreira, in "Do Mandato Civil e Comercial", Vila Nova de Famalicão, 1967, págs. 177 e 178. (11) Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cits., págs. 454 a 457. |