Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
272/04.1TBCNF.P1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
FORÇA PROBATÓRIA
CAMINHO PÚBLICO
DOMÍNIO PÚBLICO
UTILIDADE PÚBLICA
DESAFECTAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Doutrina: - Marcelo Caetano, em Manual de Direito Administrativo, tomo II, 9ª edição, 1980, páginas 922/923.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª edição, Volume III, página 280 e seguintes.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 202.º, 342.º, 1305.º, 1383.º, 1384.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 655.º, Nº1, 721.º, 722.º, Nº 2, 729.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL JUSTIÇA:
-DE 10/11/1993, BMJ 431º, 300;
-DE 31/05/2001, CJSTJ, ANO VIII, 2º TOMO;
-DE 11/10/2001 – PROCESSO 2492/01 E PROCESSO DE 13/03/2008 – PROCESSO 08A542;
-DE 13/01/2004, PROCESSO 3433/03 DA 6º SECÇÃO;
-DE 18/05/2006, PROCESSO 06B1468, IN WWW.DGSI.PT/JSTJ ;
-DE 10/12/2009, PROCESSO 897/04, IN WWW.DGSI.PT/JSTJ ;
-DE 28/05/2009, PROCESSO 08B2450, IN WWW.DGSI.PT/JSTJ .

ASSENTO DO STJ DE 19 DE ABRIL DE 1989, HOJE COM O VALOR DE ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA.
Sumário :
I - A possibilidade de debater questões de facto perante o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, e só nos limitados termos consentidos pelo n.º 2 do art. 722.º e 729.º lhe sendo permitida a intervenção em matéria de facto, confina-se ao domínio da prova vinculada, isto é, da única que a lei admite para a prova do facto em causa e ao da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de probatório.
II - São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, se encontram afectos ao uso directo e imediato do público, desde que a sua utilização satisfaça interesses colectivos de certo grau e relevância.
III - Tempo imemorial significa o tempo passado que já não consente a memória humana directa de factos relativos ao início daquele uso.
IV - Provada essa afectação, cabe à ré provar a desafectação, nos termos gerais da repartição do ónus da prova.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1.
A Junta de Freguesia de Cinfães intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra AA, residente na P... ... de A..., Centro Comercial M..., C..., pedindo:
(i) - A condenação da ré a reconhecer o Caminho do B..., que liga as povoações de M... a C..., em toda a sua extensão, de 1.836 metros de comprimento e com a largura média de 2,20 metros, como caminho público;
(ii) - A condenação da ré a desobstruir o caminho em todo o comprimento da sua propriedade, cerca de 100 metros, fazendo as necessárias obras de forma a que o mesmo tenha, como sempre teve, o respectivo leito e muros divisórios em relação à propriedade da ré e a retirar todos os materiais colocados no supra referenciado leito, tudo a expensas exclusivas da mesma;
(iii) - A condenação da ré a abster-se de praticar de futuro todo e qualquer acto que possa de alguma forma turvar, limitar ou impedir em toda a respectiva plenitude a utilização por todos do caminho do B... .

Fundamentando a sua pretensão, alega, em síntese, que a autora, pessoa colectiva de direito público, exerce a dominialidade sobre o caminho do B..., o qual liga a povoação de M... à de C..., ambos lugares da freguesia e concelho de C..., desde tempos dos quais a memória se perde.
Sempre foi a Junta de Freguesia que procedeu a arranjos e reparações no dito caminho, à vista de toda a população, e em benefício desta, de forma pública e de boa fé, sempre na séria convicção de que o caminho do B... é coisa pública, e sem que alguma vez qualquer proprietário de prédios com aquele confrontante se opusesse, fosse de que forma fosse, a tal dominialidade.
O caminho do B... é utilizado para trânsito a pé, de carro de bois e tractor, por toda a população em geral, designadamente pelos habitantes de C... e de M..., sendo que, tanto numa localidade como noutra, não termina em nenhuma propriedade privada, mas sim na via pública – entre vias públicas - integrando a rede viária.
Acresce que os agricultores das ditas povoações utilizam, desde tempos imemoriais, o caminho do B... para estabelecer ligação com propriedades agrícolas, por ele transportando alfaias e produtos agrícolas e por ele fazendo circular, conforme as respectivas necessidades agrícolas e pecuárias, veículos de tracção animal e tractores.
O caminho do B... tem leito próprio, visível e determinado, constituído por uma faixa de terreno calcado pela passagem de pessoas, animais e viaturas, é devidamente separado por muros divisórios e também por muros de suporte das propriedades privadas com que vai confrontando, ao longo do seu percurso.
Duas, três, quatro gerações de cinfanenses, atravessara, atravessa e quer continuar a atravessar o trilho do caminho do B..., dirigindo-se a escolas, festas e romarias populares, locais de trabalho, campos de cultivo, dirigindo-se a residências de famílias de uma e outra das populações para, em comunhão, velarem pelos respectivos finados, sendo tal utilização feita por todos, sem nunca pedir autorização a quem quer que fosse, ou a quem quer que seja, na inequívoca crença de que tal caminho se encontra no uso directo e imediato de todos em geral, sem que nunca ninguém se tivesse queixado de, com tal utilização, estar a ser afectado em qualquer direito de propriedade, em função da normal utilização que do caminho do B... as sucessivas gerações de cinfanenses vinham fazendo.
Acontece que, em finais do ano de 2003, a ré, por si ou por interposta pessoa, iniciou obras no prédio referido no artigo 4º da petição inicial, as quais causaram e determinaram a total destruição de passagem pelo caminho do B..., impedindo o acesso de pessoas, caros de bois e tractores, pelo que os agricultores estão impedidos de aceder aos seus campos e qualquer pessoa impedida de se deslocar a pé de M... a C... e vice – versa.
A ré contestou, impugnando os factos articulados pela autora, acrescentando que o caminho público que liga os dois lugares anteriormente identificados é designado por caminho da B..., servindo o caminho do B... apenas as terras que se localizam a nascente do ribeiro.
Porém, os populares, como a propriedade da ré não estava vedada, nem cultivada, utilizavam-na, atravessando-a a pé, enquanto não existia mato, silvas e giestas que impedissem, pois a passagem pela referida propriedade encurtava a distância entre C... e M....
Conclui, pedindo a sua absolvição do pedido.

A autora respondeu, alegando que o caminho do B... não é, nem nunca foi, um atravessadouro, nem nunca serviu para encurtar distâncias entre as duas povoações, é e sempre foi o principal caminho de ligação entre as mesmas, terminando como na petição inicial.

Foi oportunamente proferida a sentença que julgou a acção procedente, por provada e, em consequência:
a) - Condenou a ré a reconhecer que o caminho do B..., que liga as povoações de M... a C..., em toda a sua extensão, com cerca 1.800 metros de comprimento e 2 metros, em média, de largura, é caminho público;
b) - Condenou a ré a desobstruir o caminho em todo o comprimento da sua propriedade, fazendo as necessárias obras, de forma a que o mesmo tenha, como sempre teve, o respectivo leito e a retirar todos os materiais colocados no supra referenciado leito, tudo a expensas exclusivas da mesma;
c) - Condenou a ré a abster-se de praticar de futuro todo e qualquer acto que possa de alguma forma turvar, limitar ou impedir em toda a respectiva plenitude a utilização por todos do caminho do B....

Inconformada, apelou a autora para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 8/07/2010, confirmou a decisão recorrida.

De novo inconformada, a autora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:
1ª – O Assento do STJ de 19/04/89 deveria ser interpretado restritivamente, ou seja, deveria julgar-se que apenas é caminho público a passagem que, além do uso imemorial e directo, satisfaça interesses colectivos de certo grau ou relevância;
2ª – Ora, a passagem do B..., porque é atravessada por um ribeiro e porque é necessário transpor um muro para alcançar o prédio da ré, não é útil nem cómoda;
3ª – Existem outras ligações entre as duas povoações, entre elas duas estradas, uma nacional e outra camarária que, transitando pela via mais curta que é a estrada nacional, apenas terá que se percorrer mais cerca de 1 km e pela mais distante apenas mais 1.400 metros;
4ª – O denominado caminho do B... não liga directamente as duas localidades, situando-se entre vias públicas;
5ª – Por esse caminho, não é possível, em grande parte dele, circularem tractores, porque é demasiado estreito e tem um piso, parte em terra e parte em granito, não respondendo aos desafios que se colocam ao agricultor de hoje;
6ª – O prédio da ré, por ele atravessado, é sua propriedade exclusiva;
7ª – A passagem do B... apenas encurta uma distância não muito significativa entre as referidas localidades que, como se referiu, não liga directamente;
8ª – Pelo que se caracteriza como um atravessadouro que, porque se não dirige a fonte ou ponte, está extinto.
9ª – A sentença e o acórdão de que se recorre ofenderam preceitos de direito substantivo, nomeadamente, entre outros, os artigos 1305º, 1383º, 483º, 562º, todos do Código Civil, bem como o Assento do STJ de 19/04/89;
10ª – Pelo que não pode ser condenada a recorrente a desobstruir a passagem pelo seu prédio.
11ª – Deve a autora ser condenada em custas e no mais que for de lei.

A autora contra – alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
2.
A Relação considerou provados os seguintes factos:
1) - Existe um leito de passagem denominado caminho do B..., o qual liga a povoação de M... à povoação de C..., ambas na freguesia de C... .
2) - A ré é proprietária do seguinte prédio: Misto: composto de casa de arrumos de rés – do - chão e andar, com a área coberta de 80 m.2, logradouro com 200 m.2 e cultura de sequeiro e pinhal com 6520 m.2, a confrontar de Norte com BB e outro, do Sul e Poente com CC, do Nascente com Ribeiro, sito no Lugar de C..., denominado “Á...”, inscrito na matriz urbana sob o n.º ... e na matriz rústica sob o n.º ... da freguesia de C..., descrito na Conservatória do Registo Predial de C..., sob o n.º 00.../..., e aí inscrito a seu favor pela inscrição ...-...;
3) - Tal prédio adveio à propriedade e posse da ré por compra a DD viúva e a EE casada com FF, sob o regime da comunhão geral de bens, todos residente na Vila de C...;
4) - Por si, seus antepossuidores e interpostas pessoas, desde há mais de 20, 30 e 40 anos, vêm possuindo o referido prédio; colhendo os respectivos frutos do campo de sequeiro; abatendo árvores; cortando ou mandando cortar matos; lá depositando e guardando alfaias agrícolas, matos e fenos, lenhas; aí acolhendo animais de raça bovina, caprina, suína e outros; fazendo obras; pagando as respectivas contribuições e impostos; na série convicção de que esse seu prédio, era e é propriedade exclusiva sua;
5) - Praticando todos os actos de posse à vista e com o conhecimento de toda a gente;
6) - E sem oposição nem impedimento de quem quer que fosse, sem qualquer tipo de violência;
7) - E sempre assim ao longo de todo o ano e ao longo de todos os anos referidos de modo ininterrupto;
8) - Na séria convicção de não estar a lesar quaisquer direitos de outrem;
9) - Em finais de 2003, sob as ordens da ré, foram executadas obras no prédio identificado em 2);
10) - A ré, em 2003, mandou colocar no leito por onde era exercida a passagem referida em 1) uma rede de malha sol, no limite que se situa mais próximo da localidade de C..., que provoca a obstrução à passagem por aquele local;
11) - Foi entregue à autora o documento constante de fls. 21;
12) - A Junta de Freguesia de C... procedeu a arranjos e reparações no caminho denominado do B..., o que foi feito à vista da população, em benefício desta e sem oposição de ninguém;
13) - A propriedade da ré é atravessada, há mais de 100 anos, pelo caminho mencionado em 1) que liga as povoações de M... e C...;
14) - O denominado caminho do B... é utilizado para trânsito a pé e de carro de bois, e mais recentemente, em parte do caminho, para trânsito de tractor, pela população em geral, nomeadamente pelos habitantes do lugar de C... e de M...;
15) - Tal caminho termina em vias públicas;
16) - Os agricultores das ditas povoações utilizam, desde há mais de cem anos, o caminho do B... para estabelecer ligações com propriedades agrícolas, por ele transportando alfaias e produtos agrícolas e por ele fazendo circular, conforme as respectivas necessidades agrícolas e pecuárias, veículos de tracção animal;
17) -Tal caminho é constituído por uma faixa de terreno calcada pela passagem de pessoas e animais e, em algumas partes, por muros divisórios e de suporte das propriedades privadas, com que vai confrontando;
18) -Tal caminho vai-se estendendo, ao longo do seu percurso (aproximadamente de 1.800 metros), sendo em alguns pontos mais estreito, onde tem cerca de 1,45 metros de largura, tendo, em média, a largura de cerca de 2 metros;
19) - Parte do percurso é em terra batida e parte em pedra de granito;
20) - Em alguns pontos do caminho são visíveis, no solo, pedras marcadas por sulcos;
21) - Ao longo do caminho existem propriedades agrícolas;
22) - Duas, três e quatro gerações atravessaram o referido caminho, dirigindo-se a festas, locais de trabalho, campos de cultivo e residências de familiares de uma e outra das populações;
23) - Tal utilização era feita por todos, sem autorização de quem quer que fosse na crença de que tal caminho se encontrava no uso directo e imediato de todos em geral;
24) - Por força do referido em 10) dos factos assentes e ainda pelo facto de ter sido colocado um portão do outro lado da propriedade da ré, tendo em conta o sentido C... – M..., não é possível passar pelo caminho do B... na parte que atravessa a propriedade da ré;
25) - A situação referida em 24º revolta alguns habitantes de M... e C...;
26) - O caminho do B..., com o trilho que consta das respostas já dadas, encurta a distância entre C... e M... .
27) - Existe um traçado denominado de “Caminho da B...”.
3.
São as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvo as questões que são de conhecimento oficioso e aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigos 660º, n. os 1 e 2, 288º, 514º, 684º, n.º 3, 690º, n.º 4, 713º, n.º 2 do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi introduzida pelo DL 329-A/95, de 12/12, pelo DL 180/96, de 25/09, 183/200, de 10/08, pelo DL 38/2003, de 8/03 e DL 199/2003, de 10/09).

O vocábulo “questões” não abrange os argumentos, os motivos ou as razões invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Assim, tendo em conta as alegações da recorrente, o objecto do recurso cinge-se à seguinte questão:
1ª – Saber se o caminho em causa neste recurso é ou não público;
4.
Questão prévia: matéria de facto:
Nas alegações, continua a recorrente a pugnar, de forma algo velada, contra a decisão sobre a matéria de facto proferida nos presentes autos pelas Instâncias.

Do mesmo passo, a recorrente, embora sem disso extrair consequências, acusa a sentença de contradição entre os factos dados como provados e a sua fundamentação.

A recorrente suscita, pelo menos indirectamente, o problema da reapreciação de provas e o não uso pela Relação dos poderes de alteração da matéria de facto concedidos pelo artigo 712º, n. os 1 e 4 CPC.

O Supremo Tribunal de Justiça não é uma 3ª instância.

Os seus poderes quanto à matéria de facto devem ser vistos à luz dos artigos 722º, n.º 2 e 729º, n. os 1 e 2 do CPC.

Enquanto tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, e só nos limitados termos do n.º 2 dos artigos 722º e 729º lhe sendo consentido que intervenha em matéria de facto, a possibilidade de debater essas questões perante ele limita-se à prova vinculada, isto é, à única que a lei admite para prova do facto em causa e á da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de prova.

Com efeito (1), também aqui, se trata de questões de direito, já que, em tais hipóteses, não há que apreciar as provas, segundo a convicção de quem julga (artigo 655º, n.º 1 CPC), mas determinar se, para a prova de certo facto, a lei exige, ou não, determinado meio de prova, insubstituível, ou decidir sobre se determinado meio de prova tem, ou não, à face da lei, força probatória plena do facto.

É às instâncias que cabe o apuramento da factualidade relevante, sendo que na definição da matéria de facto relevante para a solução do litígio cabe à Relação a última palavra, apresentando-se a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça como residual e apenas destinada a averiguar da observância das regras de direito probatório material (artigo 722º, n.º 2 CPC) ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto quando confrontado com as situações de insuficiência ou colisão referidas no n.º 3 do artigo 729º CPC.

Ora, não invoca a recorrente violação de disposição legal impositiva de certo meio específico de prova para a existência de qualquer facto ou com especial força probatória, sem o concurso das quais, como se referiu, o erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto não pode ser objecto de revista.

Está, pois, fora dos poderes de cognição deste Tribunal a valoração das provas, sua apreciação e alteração da matéria de facto.

Por outro lado, não vem alegado, procurando demonstrá-lo, que as contradições veladamente imputadas inviabilizem a solução jurídica do caso em apreço, circunstância que também se não vislumbra a determinar o remédio excepcionalmente previsto no n.º 3 do artigo 729 CPC.

É, de resto, jurisprudência uniforme, não poder o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, pronunciar-se sobre questões relativas a eventuais contradições, obscuridades ou deficiências da matéria de facto, que lhe não compete averiguar, atendo ao disposto nos artigos 721º e 722º, n.º 2, salvo nos casos excepcionais previstos nesta norma e nos n. os 2 e 3 do artigo 729º.

Pelas razões apontadas, está vedada ao Supremo Tribunal a intromissão na fixação de factos, encontrando-se, por isso, este Tribunal vinculado à matéria de facto fixada pelas instâncias.

DOMINIALIDADE:
Adquirido que a fundamentação de facto a considerar é a que consta do quadro factual fixado pela Relação, confirmando o acolhido pela 1ª Instância, o objecto do recurso cinge-se à questão de saber se o Caminho do B... é, ou não, coisa do domínio público.

O Código Civil actual não define coisa pública, limitando-se a referir no n.º 2 do artigo 202º, que se consideram “fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por natureza, insusceptíveis de apreensão individual.

Face a tal omissão, nomeadamente no tocante aos caminhos, veio a jurisprudência a divergir quanto aos requisitos necessários para a sua qualificação como de natureza pública.

“Vão elas, desde os defensores da ideia de que seria sempre necessário que o caminho foi construído ou apropriado por uma pessoa colectiva de direito público, apoiando-se no disposto no artigo 380º do Código Civil de Seabra, que se manteria em vigor, até aos que se bastavam com a demonstração do uso imemorial da via pelo público em geral, passando pela corrente intermédia que defendia que o uso público, desde tempos imemoriais, constituiria presunção de dominialidade, prescindindo-se daquela prova directa de construção ou apropriação por ente público (2)”.

Para terminar com a divergência existente, foi proferido o Assento do STJ de 19 de Abril de 1989, hoje com o valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência.

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal (3), este assento deparava-se com o problema de saber como qualificar um caminho que “desde tempos imemoriais” (ou seja, desde tempos já não alcançados pela memória das pessoas vivas, directa ou indirectamente, por tradição oral dos seus antecessores) é utilizado pelo público em geral, “em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias”: se como caminho público (integrado, portanto, no domínio público de uma pessoa colectiva de direito público, seja o Estado, seja uma autarquia), se como atravessadouro (e, portanto, integrado em propriedade particular).

Esta alternativa é particularmente relevante, pois que “os atravessadouros (…) desde que se não mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões” foram considerados abolidos pelo artigo 1383º do Código Civil, que apenas ressalvou os casos contemplados pelo artigo 1384 (4).

Foi, então, fixada jurisprudência no sentido de que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.

Tal critério orientador tem vindo, porém, a ser interpretado, de modo predominante, de forma a considerar-se que “a publicidade dos caminhos exige ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância (5)”.

Este entendimento encontra-se, aliás, subjacente à solução adoptada no assento. Com efeito “essa interpretação restritiva é, aliás, a que se encontrava na mente dos ilustres signatários do Assento, pois é isso mesmo o que resulta do facto de o corpo do acórdão que o integra referir expressamente que, quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente. Nem outra coisa se compreenderia: é que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais (6)

Assim, como se refere neste acórdão de 13/01/2004, “para se decidir da relevância dos interesses públicos a satisfazer por meio de utilização do caminho ou terreno para este poder ser classificado, há que ter em conta, em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, que tem de ser uma generalidade de pessoas, como é a hipótese de uma percentagem elevada dos membros de uma povoação e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para estes à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições e não de opiniões externas”.

“Não pode, naturalmente, deixar de ser assim, desde logo porque só por esta forma está materialmente justificada a integração do caminho no domínio público, por afectação à utilidade pública (7), (através da “prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública”, como escreve Marcelo Caetano, em Manual de Direito Administrativo, tomo II, 9ª edição, 1980, páginas 922/923).

Assim, devendo essa afectação à utilidade pública revelar-se na “satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância”, não basta que “se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, [caso em que] os caminhos devem classificar-se de atravessadouros (8)”.

Reportando-nos ao caso em apreço não restam dúvidas que o traçado conhecido pelo caminho do B... é um caminho público e não um atalho, atravessadouro ou carreiro de passagem a pé.

Com efeito, este caminho, que dá acesso não só a várias propriedades como ainda às localidades de M... e C..., que tem de largura, em média, dois metros, sendo parte em terra batida e parte em pedra de granito, tem sido usado pela generalidade das pessoas para trânsito a pé e de carro de bois e mais recentemente, em parte do caminho para trânsito de tractor, pela população em geral, nomeadamente pelos habitantes dos lugares de C... e de M....

Além disso, os agricultores das ditas povoações utilizam, desde há mais de cem anos, o caminho do B..., para estabelecer ligações com propriedades agrícolas, por ele transportando alfaias e produtos agrícolas e por ele fazendo circular, conforme as respectivas necessidades agrícolas e pecuárias, veículos de tracção animal. Duas, três e quatro gerações atravessaram o referido caminho, dirigindo-se a festas, locais de trabalho, campos de cultivo e residências de familiares de uma e outra das povoações, sendo tal utilização feita por todos, sem autorização de quem quer que fosse, na crença de que tal caminho se encontrava no uso directo e imediato de todos em geral.

É, pois, evidente que tal caminho tem sido usado pelo público de modo directo e imediato e desde tempos imemoriais, isto é, desde tempos que os vivos já se não recordam, quer por si, quer por tradição oral, ou seja, ciência transmitida pelos seus antecessores, pois se encontra provado que a circulação pelo dito caminho se faz há mais de cem anos e há mais de quatro gerações.

Esta factualidade permite concluir ser, pelo menos, do interesse objectivo das populações de C... e M... a existência do caminho do B.... O seu uso intensivo, generalizado e comum às referidas povoações assim o demonstra de forma suficiente para que se tenha por cumprido o ónus, que incumbe à autora, de provar a sua afectação ao interesse público. Não a exclui a circunstância de ter ficado demonstrado que o caminho serve também para encurtar distâncias entre as duas vias públicas. A prova feita não revela que deva ser considerado como tendo apenas essa utilidade de “comodidade” dos utilizadores. A sua utilização, como se demonstrou, visa fins colectivos de manifesta importância para os seus utilizadores, já que revela uma utilização associada à vida económica geral dos locais servidos pelo caminho bem como ao encurtamento da ligação entre as duas povoações.

Defende a recorrente que, a ter sido integrado o caminho no domínio público, se deveria entender que ocorreu uma desafectação tácita desse domínio público, por entretanto o caminho se ter tornado desnecessário à utilidade pública.

Provada a integração do caminho público, cabia à ré provar a desafectação, nos termos gerais da repartição do ónus da prova (artigo 342º do Código Civil).

Ora dos factos provados apenas resulta que o caminho deixou de ser usado, na sua totalidade, a partir de 2003, por a ré, nessa altura, haver mandado colocar no leito por onde era exercida a passagem do caminho do B... uma rede de malha sol, no limite que se situa mais próximo da localidade de C..., que provoca a obstrução à passagem por aquele local e que, por tal circunstância e ainda pelo facto de ter sido colocado um portão do outro lado da ré, tendo em conta o sentido C... – M..., não é possível passar pelo caminho na parte que atravessa a propriedade desta.

Ora, o facto da ré ter impedido a passagem e esta só poder ser retomada com a remoção dos obstáculos aí colocados, isso não pode ser entendido como revelando que o caminho deixou de desempenhar a função a que se encontrava afecto por se tornar desnecessário mas por se encontrar obstruído.

Desta forma, sendo tal caminho público, não há dúvida de que as pessoas, em geral, já adquiriram direito à sua utilização, direito esse que a ré tem de reconhecer e de cujo exercício não as pode privar.

Assim, provado que a ré obstruiu, como acima se demonstrou, o caminho, com a colocação de uma rede, numa extremidade da sua propriedade, e de um portão, na outra extremidade, desse modo impedindo o acesso das pessoas que utilizam o caminho quer para as suas actividades agrícolas quer para se deslocarem de uma povoação para a outra, terá necessariamente que repor o caminho no estado em que antes se encontrava, desobstruindo-o de forma a permitir o seu uso pelo público.

Com efeito, sendo tal caminho público, está vedado à ré obstruir a passagem de pessoas e veículos pelo mesmo (cf. artigo 1305º do CC, in fine), pelo que a remoção dos obstáculos e a colocação do caminho no estado em que se encontrava antes de ser cortado pela ré é uma consequência lógica e inevitável da procedência da acção.
Concluindo:
1ª – A possibilidade de debater questões de facto perante o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, e só nos limitados termos consentidos pelo n.º 2 do artigo 722º e 729º lhe sendo permitida a intervenção em matéria de facto, confina-se ao domínio da prova vinculada, isto é, da única que a lei admite para a prova do facto em causa e ao da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de probatório.
2ª – São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, se encontram afectos ao uso directo e imediato do público, desde que a sua utilização satisfaça interesses colectivos de certo grau e relevância.
3ª – Tempo imemorial significa o tempo passado que já não consente a memória humana directa de factos relativos ao início daquele uso.
4ª – Provada essa afectação, cabe à ré provar a desafectação, nos termos gerais da repartição do ónus da prova.
5.
Pelo exposto, negando-se a revista, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 2 de Março de 2011.

Granja da Fonseca (Relator)

Pires da Rosa

Maria dos Prazeres Beleza
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(1) Cf. Acórdãos do STJ, de 11/10/2001 – Processo 2492/01 e Processo de 13/03/2008 – Processo 08A542
(2) Ac. do STJ, de 10/12/2009, (relator Alves Velho), Processo 897/04, in www.dgsi.pt/jstj.
(3) Ac. STJ de 28/05/2009, (relatora Maria dos Prazeres Beleza), Processo 08B2450, in www.dgsi.pt/jstj.
(4) Vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª edição, Volume III, página 280 e seguintes.
(5) Vide Acs STJ de 10/11/93, in BMJ 453º,300; CJSTJ, Ano VIII, 2º Tomo, 31/05/2001; 18/05/2006, in www.dgsi.pt/jstj, processo 06B1468.
(6) Ac. STJ de 13/01/2004, relator Silva Salazar, no Processo 3433/03 da 6º Secção.
(7) Ac. STJ de 28/05/2009, citado.
(8) Ac STJ de 10/11/1993, BMJ 431º, 300.