Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1022/22.6T9VIS-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: RECUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
FUNDAMENTOS
IMPARCIALIDADE
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :

I - Os fundamentos da recusa (o mesmo com a escusa) podem referir-se à imparcialidade subjetiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa face a circunstâncias objetiváveis e certamente excecionais, ou à imparcialidade objetiva, por verificação de “circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa”, ou circunstâncias ou contingências de relação com algum dos interessados.


II - O critério essencial que deve ser ponderado, na perspetiva da “imparcialidade objetiva”, é o de que haja um motivo sério e grave – não um mero convencimento subjetivo - para que, exteriormente, na consideração do “homem médio” que se revê num poder judicial imparcial e independente, possa ser considerada a possibilidade de a intervenção do juiz não respeitar a exigência de imparcialidade a que nessa mesma perspetiva do cidadão comum a atividade de julgar deve estar sujeita.


III – Não merece deferimento o pedido de recusa que mais não faz do que expressar o inconformismo do arguido/requerente relativamente ao que foi decidido desfavoravelmente em sede de suspensão provisória do processo, não tendo sido alegados e demonstrados factos que possam constituir fundamento bastante que consubstancie motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a isenção e imparcialidade da Exma. Juíza Desembargadora na condução do processo, seja no plano da imparcialidade subjetiva, que sempre se presume até prova em contrário e de que não há razões para duvidar, seja no plano da imparcialidade objetiva, a partir da valoração, também objetiva, das circunstâncias segundo o senso e experiência comuns.

Decisão Texto Integral:







Processo n.º 1022/22.6T9VIS-A.S1


Incidente de Recusa


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO


1. AA, com os sinais dos autos, juiz de direito e arguido no processo 1022/22.6T9VIS, veio deduzir incidente de recusa da Exma. Juíza Desembargadora BB, invocando os seguintes fundamentos (transcrição):


1.º


O requerente é arguido no âmbito do processo n.º 1022/22.6T9VIS, que corre os seus termos no Tribunal da Relação de Coimbra, no qual exerce as funções à Exma. Sr.ª Juíza desembargadora acima identificada;


2.º


O processo em questão encontra-se na fase da instrução, tendo sido determinada a suspensão provisória do processo, com a imposição de injunções ao aqui requerente;


3.º


Sucede que, a queixosa em tal processo, também ela Juíza de Direito, veio ao mesmo, por mais de uma vez, invocar o incumprimento, pelo arguido, das injunções impostas, pugnando, por esse motivo, pela revogação da suspensão provisória do processo;


4.º


Nesta sequência, foi o arguido, aqui requerente, ouvido, por mais de uma vez pela Exma. Sr.ª Juíza Desembargadora, supra identificada, quanto aos factos que a queixosa lhe imputou relativamente à violação das injunções impostas;


5.º


Sucede que, na última audição, que teve lugar no dia 12.09.2023, a Exma. Sr.ª Juíza Desembargadora supra identificada mostrou-se nitidamente alterada/zangada para com o arguido;


6.º


Tal alteração comportamental caracterizou-se, como bem se poderá inferir da gravação da diligência em questão, pela falta de serenidade, elevação de voz e utilização de vocabulário pouco gentil para com o arguido e, ainda, pela sucessiva interrupção das declarações do arguido, limitando, dessa forma, o exercício do direito de se defender sobre as imputações da queixosa;


7.º


Tal foi o nível de bloqueio do direito do arguido em se defender levado a cabo pela Exma. Juíza Desembargadora, que o arguido teve necessidade de, por mais de uma vez, invocar perante a mesma que não abdicava do direto de defesa, a fim de lhe ser permitido expressar a sua posição sobre os factos em questão, o que, com muitas limitações, lá conseguiu ir fazendo;


8.º


A par de tal comportamento por parte da Exma. Juíza Desembargadora, surge a AFIRMAÇÃO feita pela mesma, por mais de uma vez, e ANTES DE DAR AO ARGUIDO A OPORTUNIDADE DE SE PRONUNCIAR sobre tal matéria factual, de que o arguido violara o acordo de regulação das responsabilidades parentais com a remessa de mensagens escritas aos seus filhos, pois obrigara-se em tal acordo a respeitar a sua vontade e os seus filhos tinham verbalizado que não desejavam tais contactos;


9.º


Ainda tentou o arguido explicar à Exma. Juíza Desembargadora a sua posição quanto a tal matéria, mas em vão!


10.º


A Exma. Juíza Desembargadora supra identificada ENTROU NA SALA COM A CONVICÇÃO INABALÁVEL DA CULPA DO ARGUIDO na violação do regime das responsabilidades parentais e, dessa forma, de uma das injunções impostas, E FEZ QUESTÃO DE O REVELAR;


11.º


Demonstrou, assim, a Exma. Juíza Desembargadora um pré-juízo desfavorável ao arguido, o qual, salvo o devido respeito, é atentatório do princípio da presunção de inocência e constituiu uma grave limitação ao direito de defesa previsto no art.º 32.º, n.º 1 e 2, da CRP e art.º 61.º, n.º 1, al. a), do CPP;


12.º


Pelo que, salvo melhor opinião, existe MOTIVO SÉRIO E GRAVE adequado a geral desconfiança sobre a sua imparcialidade, devendo ser a intervenção da Exma. Sr. Juíza Desembargadora ser considerada suspeita (cfr. art.º 43.º, n.º 1, do CPP);


13.º


Se antes de ouvir a defesa de um arguido já se comunica que o mesmo é culpado, de nada que servirá a comunicação posterior da sua posição e, bem assim, a presunção de inocência…


14.º


Como se os factos relatados não revestissem, por si só, suficiente gravidade, cumpre, ainda, levar ao conhecimento de V. Ex.ª – Exmo. Sr. Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação – que logo no início da referida diligência, a Exma. Juíza Desembargadora referiu para o arguido que sobre o que constava de uma exposição escrita do arguido relativamente à matéria em apreço não necessitaria de se pronunciar;


15.º


Tal comunicação feita pela Exma. Juíza Desembargadora foi interpretada pelo arguido como reveladora do entendimento de que, desde logo, a questão das comunicações escritas por email com a queixosa, careciam de relevância, não tendo, por isso, o arguido de se pronunciar sobre as mesmas, concretamente, sobre a sua motivação e fim visado;


16.º


Dado que, como unânime na jurisprudência e, por isso, certamente do conhecimento da Exma. Juíza Desembargadora (que, aliás, isso mesmo consignou em despacho nos autos), ao eventual incumprimento das regras ou injunções da suspensão provisória do processo deve ser aplicado analogicamente o regime próprio da suspensão da execução da pena, constante dos artigos 492.º a 495.º do Cód. Proc. Penal e nos artigos 55.º e 56.º do Cód. Penal;


17.º


Pelo que, deve o arguido ser ouvido presencialmente sobre os factos suscetíveis de justificar a revogação da suspensão provisória do processo, dando-lhe, dessa forma, a possibilidade de exercer plenamente o direito de defesa previsto no art.º 32.º, n.º 1, da CRP e art.º 61.º, n.º 1, al. a), do CPP;


18.º


Recebida a decisão proferida pela Exma. Juíza Desembargadora quanto à questão do eventual incumprimento da suspensão provisória do processo, qual não é o espanto do arguido ao constatar que se não todas a grande maioria das mensagens trocadas entre o arguido e a queixosa se encontram transcritas nos factos dados como provados;


19.º


Retirando a Exma. Juíza Desembargadora do seu conteúdo intencionalidades do arguido, sempre em sentido prejudicial ao mesmo, sem que lhe tenha dado a oportunidade de se pronunciar sobre o seu conteúdo, de explicar a sua motivação e o fim pretendido, para que, depois, aferisse da credibilidade a dar às declarações do arguido e, nessa sequência, da existência de culpa e, na afirmativa, do seu grau relativamente à violação das injunções impostas;


20.º


A circunstância de, na referida diligência, as primeiras palavras da Exma. Juíza Desembargadora para o arguido se referirem ao facto de não ter de se pronunciar sobre o conteúdo da dita exposição escrita (onde se refere os emails trocados) e de, depois, em sede de decisão, a Exma. Juíza Desembargadora conferir máxima importância às mesmas, traduz, no entender do arguido, uma circunstância suscetível de ser interpretada como intencionalidade de o prejudicar, de limitar a sua defesa, impedindo que explicasse devidamente o conteúdo, contexto e fim de tais comunicações, para depois, em sede de decisão, se poder imputar ao mesmo intenções que só a fértil imaginação da Sr.ª Desembargadora conseguem desvendar e que de resto absolutamente opostas às do arguido…;


20.º


[o requerente repete o mesmo número]


Por isso, salvo o devido respeito, tal factologia constitui MOTIVO SÉRIO E GRAVE adequado a geral desconfiança sobre a sua imparcialidade, devendo ser a intervenção da Exma. Sr. Juíza Desembargadora ser considerada suspeita (cfr. art.º 43.º, n.º 1, do CPP);


Por todo o exposto, ao abrigo do disposto nos citados artigos e art.º 43.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, requer a V. Ex.ª que declare a recusa da Exma. Sr.ª Juíza Desembargadora BB para os autos de processo de instrução supra identificados.


2. Em conformidade com o disposto no artigo 45.º, n.º 3, do CPP, a Sr.ª Juíza Desembargadora recusada emitiu a seguinte pronúncia (transcrição):


1.º - Escusa-se a visada de responder às acusações mencionadas no Requerimento Inicial, por se mostrarem contrárias a todo o processado e ao que se passou na diligência realizada no dia 12 de setembro de 2023.


2.º - Não corresponde à verdade que tenha havido limitação aos direitos de defesa do arguido, como aliás é reconhecido pelo próprio, nos artigos 4.º e 14.º do Requerimento inicial.


Com efeito,


3.º - O arguido foi ouvido pessoalmente mais do que uma vez sobre os factos que lhe foram sendo imputados pela ofendida ao longo do período da suspensão provisória do processo.


4.º - No que respeita às mensagens enviadas e/ou recebidas pelo arguido (fls. 1270 a 1387) foram juntas aos autos para prova dos factos denunciados pela ofendida nas declarações que prestou em 5 de julho de 2023, na presença do ilustre mandatário ao arguido (fls. 1241 a 1242).


5.º - Tais mensagens foram notificadas ao ilustre mandatário do arguido em 13 de julho de 2023 (fls. 1388).


6.º - A ofendida juntou aos autos o requerimento de fls. 1394 e 1395, que foi notificado ao ilustre defensor do arguido em 25 de julho de 2023 (fls. 1410).


7.º - Com base nas declarações da ofendida e nas mensagens referidas no ponto 4.º e 5.º, promoveu o Digno Procurador Geral Adjunto a revogação da suspensão provisória do processo.


8.º - Tal promoção foi notificada ao ilustre mandatário do arguido, tendo sido agendada a audição presencial do arguido, primeiro para o dia 14 de agosto de 2023 e, depois, por impossibilidade do ilustre mandatário para o dia 21 de agosto de 2023 (fls. 1414 a 1416 e 1420).


9.º - No dia 21 de agosto de 2023, o arguido, que faltou à diligência por se encontrar doente, subscreveu a defesa escrita de fls. 1440 a 1516, onde se se pronuncia sobre a revogação da suspensão provisória do processo e bem assim sobre as mensagens trocadas com as vitimas.


10.º - Como contraprova, juntou, ainda, vários documentos.


11.º - Ou seja, no dia 21 de agosto de 2023, o arguido não foi ouvido presencialmente, mas exerceu pessoalmente o direito de defesa e contraditório, ao escrever, pelo seu punho, a sua versão dos factos, da prova e do direito.


12.º - Apesar disso, entendeu-se por conveniente ouvir o arguido presencialmente, o que veio a suceder em 12 de setembro de 2023.


13.º - É neste contexto que, no inicio da diligência, é perguntado ao arguido se confirma a defesa referida no supra ponto 11.


14.º - A audição do arguido prosseguiu durante cerca de uma hora (56 minutos).


15.º - Quanto à matéria inscrita nos artigos 18.º a 20.º, trata-se da reacção do arguido à decisão de revogação da suspensão provisória que, com o devido respeito, deve ser apreciada em sede de recurso e não de recusa de juiz, por não constituir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da signatária.


Desta forma, entende a subscritora desta resposta que está, como sempre esteve, em condições de decidir a presente instrução, com total imparcialidade e isenção.


Porém, Vossas Excelências, Colendos Conselheiros da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça decidirão como for de Justiça.


3. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


1. Factos documentados nos autos:


1.1. O requerente é Juiz de Direito e arguido no âmbito do processo n.º 1022/22.6T9VIS, que corre os seus termos no Tribunal da Relação de Coimbra, no qual exerce funções de Juiz de Instrução a Exma. Sr.ª Juíza desembargadora acima identificada.


1.2. O processo em questão encontra-se na fase da instrução, tendo sido determinada a suspensão provisória do processo, com a imposição de injunções ao aqui requerente.


1.3. A queixosa no processo, também ela Juíza de Direito, veio ao mesmo, invocar o incumprimento, pelo arguido, das injunções impostas, pugnando, por esse motivo, pela revogação da suspensão provisória do processo.


1.4. Em 5 de julho de 2023, a queixosa prestou declarações nos autos, na presença do mandatário do arguido.


1.5. A queixosa juntou aos autos cópia de mensagens de correio eletrónico e whatsapp enviadas e/ou recebidas pelo arguido (fls. 1270 a 1387, correspondentes a fls. 12 a 128 deste apenso), do que foi notificado o mandatário do arguido (referência ......17, certificação Citius em 13.07.2023).


1.6. A queixosa juntou aos autos o requerimento de fls. 1394 e 1395, dando conhecimento de requerimento apresentado pelo arguido no âmbito de processo de promoção e proteção, o que foi notificado ao mandatário do arguido (referência ......64, certificação Citius em 25.07.2023).


1.7. Com base nas declarações da ofendida e nas mensagens referidas em 1.5., o Ministério Público promoveu a designação de data para audição do arguido sobre a matéria, tendo em vista a possibilidade de revogação da suspensão provisória do processo.


1.8. Tal promoção foi notificada ao mandatário do arguido, tendo sido agendada a audição presencial do arguido, primeiro para o dia 14 de agosto de 2023 e, depois, por impossibilidade do seu mandatário, para o dia 21 de agosto de 2023.


1.9. No dia 21 de agosto de 2023, o arguido, que faltou à diligência por se encontrar doente, subscreveu a defesa escrita de fls. 1440 a 1516 dos autos principais (correspondente a fls. 137 a 213 deste apenso), na qual se pronuncia sobre os documentos juntos pela queixosa, a alegada violação das injunções impostas e sobre a eventual revogação da suspensão provisória do processo, juntando diversos documentos.


1.10. A Sr.ª Juíza Desembargadora designou o dia 12 de setembro de 2023 para realizar a audição presencial do arguido, o que decorreu nesse dia, entre as 11h21 e as 11h56.


1.11. Por despacho de 11 de fevereiro de 2024 foi decidido no sentido do “incumprimento reiterado das injunções das alíneas a) e b)” e da frustração das “exigências de prevenção especial e geral que se esperaram atingir com a suspensão provisória do processo”, tendo sido determinado o prosseguimento dos autos.


2. Apreciação


2.1. Os tribunais são os órgãos de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo (artigo 202.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa - CRP).


O artigo 203.º da CRP consagra o princípio fundamental da independência dos tribunais, estabelecendo que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei, princípio que exige a independência e imparcialidade dos juízes.


No seu artigo 32.º, n.º 9, a CRP consagra o princípio do «juiz natural», configurado como uma garantia fundamental do processo criminal, assegurando, também por esta via, todas as garantias de defesa em processo criminal.


Sem isenção e imparcialidade dos juízes não se alcança o direito ao processo equitativo que a Constituição garante a todos os cidadãos (artigo 20.º), constituindo a imparcialidade do Tribunal um requisito fundamental do processo justo (artigo 10.º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos).


Há situações em que a garantia da imparcialidade dos Tribunais pressupõe exceções ao princípio do «juiz natural».


No entanto, o «juiz natural» só deve ser afastado quando a garantia da sua imparcialidade e isenção o impuser, isto é, quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz aleatoriamente pré-definido como competente para determinada causa deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.


A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada pela categoria dos impedimentos, e, de forma complementar, pelo instituto das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa, conforme consagrado no Código de Processo Penal (diploma que passaremos a nomear como CPP), que no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, regula o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.


Dispõe o artigo 43.º, n.º 1, 2 e 4, do CPP:


«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.


2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º


4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verifiquem as condições dos nºs 1 e 2.»


Os fundamentos da recusa (o mesmo com a escusa) podem referir-se à imparcialidade subjetiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa face a circunstâncias objetiváveis e certamente excecionais, ou à imparcialidade objetiva, por verificação de “circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa”, ou circunstâncias ou contingências de relação com algum dos interessados (Henriques Gaspar, anotação ao artigo 43.º, Código de Processo Penal comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2016).


Na interpretação e aplicação da cláusula geral enunciada no artigo 43.º, n.º1, para justificar o afastamento do juiz do processo, a jurisprudência do STJ tem adoptado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, constitucionalmente consagrado, deve tratar-se, como já se assinalou, de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar de forma exigente e em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (acórdão de 27.4.2022, Proc. 30/18.6PBPTM.E1-A.S1; acórdão de 26.10.2022, Proc. 193/20.0GBABF.E1-A.S1).


Em suma, para sustentar a escusa ou recusa do juiz é necessário verificar:


- se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”;


- e, se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, para o que deverão ser indicados factos objetivos suscetíveis de preencher tais requisitos, a analisar e ponderar segundo as circunstâncias de cada caso concreto, de acordo com as regras da experiência comum e com “bom senso” (acórdão de 13.04.2023, Proc. 16/23.9YFLSB-A).


Neste campo, socorremo-nos do que se escreve no acórdão de 13.04.2005, Proc. 05P1138, onde a dado passo se refere:


«Mas a dimensão subjetiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objetiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura jurídica continental: a aparência, que é traduzida no adágio "justice must not only be done; it must also be seen to be done", que revela as exigências impostas por uma sensibilidade acrescida dos cidadãos às garantias de uma boa justiça.


Na abordagem objetiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objetivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si.


Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjetivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objetiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz.»


Quer isto dizer que as aparências são de considerar, no contexto da imparcialidade objetiva, sem riscos de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente para impor a prevenção do perigo de que a intervenção do juiz seja encarada com desconfiança e suspeita, ou seja, quando a projeção externa da sua imparcialidade suscite reparos no público em geral e, particularmente, nos destinatários das decisões.


Sintetizando, o princípio do juiz natural pressupõe que intervirá na causa o juiz que o deva ser segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito, só sendo de afastar esse princípio em situações-limite, ou seja, unicamente quando outros princípios ou regras, porventura de maior dignidade, o ponham em causa, como sucede quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade (vista numa perspetiva subjetiva ou objetiva) e isenção no exercício do seu múnus.


O critério essencial que deve ser ponderado, na perspetiva da “imparcialidade objetiva”, é o de que haja um motivo sério e grave – não um mero convencimento subjetivo - para que, exteriormente, na consideração do “homem médio” que se revê num poder judicial imparcial e independente, possa ser considerada a possibilidade de a intervenção do juiz não respeitar a exigência de imparcialidade a que nessa mesma perspetiva do cidadão comum a atividade de julgar deve estar sujeita.


2.2. No caso em análise, a recusa funda-se na forma como a Exma. Juíza Desembargadora conduziu a audição presencial do arguido/requerente que teve lugar no dia 12.09.2023.


Ouvida a gravação dessa diligência, fazendo apelo a critérios de normalidade, não se vislumbra que a intervenção da Exma. Juíza Desembargadora na condução da mesma evidencie a existência de um pré-juízo desfavorável ao arguido e comprometedor da sua imparcialidade.


Aliás, constata-se que estando em causa uma diligência processual que teve lugar em setembro de 2023, só em fevereiro de 2024 o requerente entendeu suscitar a recusa da Exma. Juíza Desembargadora, o que denota tratar-se de uma reação ao despacho que considerou incumpridas as injunções inerentes à suspensão provisória do processo e não àquela diligência do ano de 2023.


Tivesse o requerente considerado que a conduta da Exma. Juíza na direção da diligência de 2023 fundamentava a apresentação de um pedido de recusa, certamente o teria oportunamente apresentado, em ordem a impedir que a mesma viesse a decidir a questão da suspensão provisória do processo.


E se tal decisão quanto à suspensão provisória lhe fosse favorável, ocorre perguntar se o arguido/ requerente, ainda assim, teria apresentado a recusa com base na audição ocorrida meses antes, em 12.09.2023.


Do que se extrai da gravação, verificamos que, na referida diligência, a Exma. Desembargadora, após cumprimentar os presentes, indica o objeto da audição como tendo em vista dar oportunidade ao arguido/ora requerente para se pronunciar sobre todos os documentos e prova que foi produzida, assinalando que o arguido já o fizera por escrito “mas entendemos que deveria ser presencial e por isso é que está aqui”.


Seguidamente, refere-se terem sido juntas pelo arguido algumas mensagens que estavam ilegíveis – questão que será retomada no fim da audição, quando o arguido foi convidado a juntar cópias legíveis.


A dado passo, a Exma. Juíza diz “quanto aos factos, o Sr. Dr. já se pronunciou”. A resposta não é audível, mas infere-se com clareza o seu sentido a partir da afirmação que se segue, por parte da Exma. Juíza: “Nada mais tem a acrescentar, ok, muito bem”.


Do que se infere da gravação, não corresponde à realidade dizer-se que as primeiras palavras da Exma. Juíza para o arguido se referiram ao facto de não ter de se pronunciar sobre o conteúdo da dita exposição escrita.


A audição prosseguiu no sentido de saber se havia, entretanto, alguma decisão do tribunal de família sobre “incumprimentos”, após o que a Exma. Juíza Desembargadora questionou o arguido sobre se os filhos alguma vez lhe manifestaram a vontade de se encontrarem com ele.


Do que se extrai da gravação – nem sempre particularmente nítida quanto às respostas do arguido -, a condução da diligência por parte da Exma. Juíza teve em vista reconduzi-la ao seu objeto, com observações como “não vamos para os incidentes processuais”, “isso está documentado” ou “essa mensagem também está aqui”. O que se depreende é a intenção de que o arguido/ora requerente se pronunciasse concretamente sobre a questão perguntada: se os seus filhos, para além do que declararam pessoalmente no processo ou a outras entidades, alguma vez expressaram a vontade de estarem com ele – “o que eu pergunto é se eles disseram alguma vez que queriam estar consigo”.


A dado passo, para esclarecer a questão do alegado respeito pela vontade dos filhos, a Exma. Juíza – “para ver se falamos a mesma linguagem” - pergunta se o entendimento do arguido é o de que respeitara a vontade dos filhos em razão de nunca os ter contatado diretamente.


Não se alcança qualquer propósito de limitar a defesa do arguido/requerente, mas apenas agilizar a diligência quando, por exemplo, se insistia na menção a elementos objetivamente documentados nos autos, em que a Exma. Juíza afirma “também vi essa mensagem” ou “o que está aqui nós sabemos”.


Em alguns momentos, a Exma. Juíza chama a atenção para o facto de algumas circunstâncias que estavam a ser invocadas quanto ao condicionamento da vontade dos filhos por parte da mãe – a questão da alienação parental - serem anteriores à aceitação pelo arguido das injunções e, nem por isso, o mesmo ter deixado de as aceitar em ordem à suspensão provisória do processo.


Se, em alguns momentos, a Exma. Juíza assume um tom mais firme e assertivo, a intenção que se infere da audição da gravação é a de reconduzir a diligência à sua finalidade, mencionando, a dado momento, que o que importava era saber qual a postura do arguido perante os filhos, acrescentando-se que o arguido tinha declarado que, ao atuar como atuou, respeitou sempre a vontade dos mesmos.


Não tem suporte no que se extrai da audição da gravação argumentar-se com uma alegada “alteração comportamental” da Exma. Juíza e dizer-se que esta “entrou na sala com a convicção inabalável da culpa do arguido”.


Ainda que a Exma. Juíza tenha procurado reconduzir a audição ao seu objeto, por vezes com um tom mais firme, em ordem a evitar repetições desnecessárias e digressões por outras questões, certo é que o arguido e o seu mandatário tiveram ampla oportunidade de tomar posição e apresentar as suas razões.


A nosso ver, como já dissemos, a circunstância de o arguido só em fevereiro de 2024, na sequência de decisão desfavorável quanto à questão do incumprimento das injunções no âmbito da suspensão provisória, ter decidido instaurar incidente de recusa da Exma. Juíza, demonstra, com clareza, que tal incidente surge como reação a essa decisão e não ao modo como a dita magistrada conduziu a audição realizada em setembro de 2023.


É o que evidencia a alegação por parte do arguido/requerente de que, “se não todas, a grande maioria das mensagens trocadas entre o arguido e a queixosa se encontram transcritas nos factos dados como provados” da decisão de prosseguimento dos autos, retirando “a Exma. Juíza Desembargadora do seu conteúdo intencionalidades do arguido, sempre em sentido prejudicial ao mesmo, sem que lhe tenha dado a oportunidade de se pronunciar sobre o seu conteúdo, de explicar a sua motivação e o fim pretendido, para que, depois, aferisse da credibilidade a dar às declarações do arguido e, nessa sequência, da existência de culpa e, na afirmativa, do seu grau relativamente à violação das injunções impostas”.


Não se vislumbra como pode o arguido/requerente ter sido surpreendido com a referência, na decisão sobre a suspensão provisória do processo, a diversas mensagens de correio eletrónico e whatsapp enviadas e/ou recebidas - mensagens que estão na base do pedido de revogação daquela suspensão.


Também não faz sentido dizer-se que o arguido foi privado do exercício do seu direito de defesa, quando é certo que a sua audição presencial foi designada, na sequência da defesa escrita de fls. 1440 a 1516 dos autos principais (correspondentes a fls. 137 a 213 deste apenso), subscrita pelo próprio arguido, precisamente porque a Exma. Juíza Desembargadora não se bastou com a dedução de defesa por escrito e antes julgou necessária a presença em tribunal do arguido: “entendemos que deveria ser presencial e por isso é que está aqui”.


Em síntese, entendemos que o pedido de recusa mais não faz do que expressar o inconformismo do arguido/requerente relativamente ao que foi decidido desfavoravelmente em sede de suspensão provisória do processo, não tendo sido alegados e demonstrados factos que possam constituir fundamento bastante que consubstancie motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a isenção e imparcialidade da Exma. Juíza Desembargadora na condução do processo, seja no plano da imparcialidade subjetiva, que sempre se presume até prova em contrário e de que não há razões para duvidar, seja no plano da imparcialidade objetiva, a partir da valoração, também objetiva, das circunstâncias segundo o senso e experiência comuns.


Neste quadro, indefere-se o pedido de recusa.


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III - DISPOSITIVO


Em face do exposto, acordam os Juízes desta 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o presente pedido de recusa da Exma. Juíza Desembargadora BB formulado por AA.


Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


Supremo Tribunal de Justiça, 7 de março de 2024


(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)


Jorge Gonçalves (Relator)


Leonor Furtado (1.ª Adjunta)


Celso Manata (2.º Adjunto)