Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | PROCESSO PENAL JUIZ IMPARCIALIDADE ESCUSA | ||
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Data do Acordão: | 10/26/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | ESCUSA / RECUSA | ||
Decisão: | PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL | ||
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Sumário : | I - A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada pela categoria dos impedimentos (arts. 39.º a 42 do CPP), e, complementarmente, pelo instituto das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa (arts. 43.º a 45.º do CPP). II - Na determinação de uma suspeição que justifique o afastamento do juiz do processo por recurso à cláusula geral enunciada no n.º 1 do art. 43.º do CPP deve atender-se a que esta revela que a preocupação central que anima o regime legal é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade III - Na interpretação e preenchimento da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência deste Tribunal tem adotado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (art. 43.º, n.º 1, do CPP). IV - O critério objectivo, que se exprime na célebre formulação do sistema inglês justice must not only be done: it must be seen to be done, enfatiza a importância das «aparências», como tem sublinhado a jurisprudência do TEDH, a propósito do conceito de «tribunal imparcial» constante do art. 6.º da CEDH (salientando a sujeição da imparcialidade aos testes objectivo e subjectivo, e realçando a importância das «aparências», o acórdão Şahiner c. Turquia, n.º 29279/95, de 25-09-2001, §36, e outros nele citados) V - Verificando-se a existência de um relação de natureza pessoal de grande proximidade, prolongada no tempo, ao longo de mais de três décadas, no contexto de uma relação familiar, entre o juiz desembargador do tribunal da Relação que deve intervir como adjunto no julgamento do recurso e a juíza da 1.ª instância que integrou o coletivo que proferiu o acórdão recorrido, resultante do facto, bem conhecido publicamente, de viverem e conviverem na mesma cidade, de a juíza da 1.ª instância ter sido casada com um seu cunhado e de ser padrinho de um dos seus sobrinhos, filho desta juíza, a intervenção do juiz desembargador no julgamento do recurso corre sério risco de ser considerada suspeita, constituindo, assim, motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. VI - Preenchendo-se a cláusula geral do artigo 43.º, n.º 1, do CPP, deve, pois, ser deferido o pedido de escusa. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. O Senhor Juiz Desembargador AA, a exercer funções na Secção Criminal – ... Subsecção – do Tribunal da Relação ..., ao abrigo do disposto nos artigos 43.º, n.ºs 1, e 45.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal (CPP), apresenta pedido de escusa de intervir, como juiz ..., no julgamento do recurso interposto do acórdão condenatório, de 13.06.2022, proferido no processo n.º 193/20.0GBABF do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., nos termos e com os fundamentos seguintes: «O signatário é ... do Exmo. Juiz Desembargador a quem foi distribuído o presente processo 193/20..... O processo é oriundo do juízo Central Criminal ..., constatando-se que no mesmo participou como Juiz ... a Sra. Juíza de direito Dra. BB, tendo feito parte do Colectivo que proferiu o acórdão recorrido. Acontece que a mesma é sua concunhada, uma vez que até há cerca de 34 anos foi casada com um irmão (entretanto falecido) da mulher do solicitante, tendo posteriormente ocorrido o divórcio entre aqueles e tendo depois voltado os mesmos a viver juntos e tido mais um filho (existia já um outro filho nascido na constância do casamento). Independentemente das referidas variações de relacionamento entre a referida Sra. Dra. BB e o falecido irmão da mulher do signatário, não existe, nem nunca existiu, entre aquela (Sra. Dra. BB) e este (o signatário) o vínculo da afinidade, pelo que não ocorre qualquer impedimento nos termos do art.º 39.º, n.º 3, do C.P.P.. Porém, sempre tiveram, e têm, apesar das já referidas variações, um relacionamento pessoal/familiar próximo, que é público, sendo inclusivamente o signatário padrinho de baptismo de um dos seus sobrinhos, filho da referida Sra. Dra. BB e do seu falecido cunhado. O signatário exerceu funções, desde Janeiro de 1994 a Setembro de 2008, sucessivamente, na comarca ..., no círculo judicial ... e no tribunal de família e menores .... A Sra. Dra. BB há vários anos que exerce funções em ..., pelo que o seu relacionamento familiar/pessoal com o signatário é bem conhecido de todos, designadamente dos Srs. Advogados e Funcionários, e certamente de outros. Ambos são residentes em ... – a Sra. Dra. BB desde sempre e o solicitante desde 19... No entender do signatário, tudo o referido consubstancia motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nos termos do art.º 43.º, n.º 1, do C.P.P.. Assim sendo, nos termos do art.º 45.º, n.º 1, al. a), do C.P.P., solicita a V. Exªs escusa de intervenção no presente processo, escusa essa já anteriormente concedida pelo S.T.J., pelos mesmos motivos, no âmbito dos procºs 119/13...., 12/16...., 30/18...., 2362/20...., 362/19.... e 819/17.....» 2. Da certidão junta os autos, contendo cópias da ata de audiência de discussão e julgamento de 30.5.2022 e do acórdão condenatório de 13.06.2022, resulta que a Senhora Juíza de Direito BB integrou, como juíza ..., o tribunal coletivo do Juízo Central Criminal ... que julgou o processo e proferiu o acórdão. Não havendo necessidade de produção de prova (artigo 45.º, n.º 4, do CPP), colhidos os vistos, cumpre decidir. 3. Sobre recusas e escusas dispõe o artigo 43.º, n.º 4, do CPP que o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2 do mesmo preceito. São condições de escusa: o risco de a intervenção do juiz no processo ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (n.º 1) e a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º, que constituem motivos de impedimento (n.º 2). Está em causa o motivo a que se refere o n.º 1 do artigo 43.º, invocado pelo Senhor Juiz Desembargador signatário do pedido, por considerar que as circunstâncias que descreve consubstanciam motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. 4. O princípio da independência dos tribunais (artigo 203.º da Constituição) implica uma exigência de imparcialidade que, na projeção do direito a um tribunal independente e imparcial constitucionalmente garantido e reconhecido em instrumentos que integram o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, nomeadamente na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 6.º) e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 14.º), justifica uma previsão suficientemente ampla de suspeições do juiz (impedimentos, recusas e escusas – artigos 39.º a 47.º do CPP) (assim, Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal, § 2. A tutela da imparcialidade: impedimentos e suspeições, Coimbra, 2015). A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada pela categoria dos impedimentos, e, complementarmente, pelo instituto das suspeições (acórdão de 4.12.2014, Proc. 147/13.3JELSB.L1.S1, apud acórdão de 30.10.2019, Proc. 1958/15.0T9BRG.G2-A.S1, em www.dgsi.pt.), que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa (artigos 43.º a 45.º do CPP). Na determinação de uma suspeição que justifique o afastamento do juiz do processo por recurso à cláusula geral enunciada no n.º 1 do artigo 43.º do CPP deve atender-se a que esta revela que a preocupação central que anima o regime legal é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade (assim, entre outros, os acórdãos de 4.12.2019, Proc. n.º 61/19.9YFLSB, e de 30.10.2019, cit.). Os fundamentos podem referir-se à imparcialidade subjetiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa em circunstâncias muito excecionais e objetiváveis, ou à imparcialidade objetiva, por verificação de «circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa», como «circunstâncias ou contingências de relação com algum dos interessados» (Henriques Gaspar, anotação ao artigo 43.º, Código de Processo Penal comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2016). «Para que a suspeição se atualize num afastamento do juiz, não é necessário demonstrar uma efetiva falta de isenção e imparcialidade, sendo suficiente, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial» (como nota Figueiredo Dias, loc. cit., p. 27). Na interpretação e preenchimento da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência deste Tribunal tem adotado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (assim, os acórdãos de 15.1.2015, Proc. 362/08.1JAAVR.P1 apud acórdão de 18.12.2019, Proc. 12/16.2GAPTM.E1-A.S1, cit., e de de 27.4.2022, Proc. 30/18.6PBPTM.E1-A.S1, cit.), como requer o artigo 43.º, n.º 1, do CPP. O critério objetivo, que se exprime na célebre formulação do sistema inglês justice must not only be done: it must be seen to be done, (“a justiça não deve apenas ser feita: deve ser vista como sendo feita”), enfatiza a importância das «aparências», como tem sublinhado a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a propósito da definição do conceito de «tribunal imparcial» constante do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. As ligações de natureza pessoal às partes envolvidas num processo submetidas à decisão do juiz são suscetíveis de preencher este critério, desde que, do ponto de vista do cidadão comum, possam ser vistas como podendo gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade (como se sublinha no acórdão de 30.10.2019 cit.; cfr., por todos, na jurisprudência do TEDH, salientando a sujeição da imparcialidade aos testes objetivo e subjetivo, e realçando a importância das «aparências», o acórdão Şahiner c. Turquia, n.º 29279/95, de 25.09.2001, §36, e outros nele citados). 5. No caso em análise trata-se de um recurso que deve ser julgado pela Secção Criminal da Relação ..., funcionando com três juízes, incluindo o Senhor Juiz Desembargador AA, na qualidade de juiz .... Em, síntese, alega o Senhor Juiz Desembargador a existência de um relação de natureza pessoal de grande proximidade, prolongada no tempo, ao longo de mais de três décadas, no contexto de uma relação familiar, com a Senhora Juíza de Direito BB, que integrou o coletivo que proferiu o acórdão recorrido, resultante do facto, bem conhecido publicamente, de viverem e conviverem na mesma cidade ..., de a Senhora Juíza ter sido casada com um seu cunhado, irmão da sua mulher, já falecido, e de ser padrinho de um dos seus sobrinhos, filho da Senhora Juíza e do seu falecido marido. Tal como este Supremo Tribunal de Justiça já reconheceu nos anteriores acórdãos de 18.12.2019, Proc. 119/13...., de 18.12.2019, Proc. 12/16...., de 30.7.2021, Proc. 2362/20...., de 27.04.2022, Proc. 30/18...., de 22.9.2022, Proc. 362/19.... e de 26.09.2022, Proc. 819/17...., em que lhe foi concedida escusa por idênticos motivos, a situação descrita pode razoavelmente conduzir a que a intervenção do Senhor Juiz Desembargador no julgamento do presente recurso corra o risco de ser considerada suspeita, constituindo, assim, motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Preenchendo-se a cláusula geral do artigo 43.º, n.º 1, do CPP, deve, pois, ser deferido o pedido de escusa. Decisão 6. Pelo exposto, acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 45.º, n.ºs 1, alínea a), 5 e 6, do Código de Processo Penal, em deferir o pedido de escusa do Senhor Juiz Desembargador AA, para, na qualidade de juiz ..., intervir no julgamento do recurso interposto do acórdão condenatório de 13 de junho de 2022, no âmbito do processo n.º 193/20.0GBABF. Sem custas. Supremo Tribunal de Justiça, 26 de outubro de 2022. José Luís Lopes da Mota (relator) Maria da Conceição Simão Gomes Paulo Ferreira da Cunha (assinado digitalmente) |