Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
| Descritores: | CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS INTERMEDIÁRIO EMPRESÁRIO DESPORTIVO PRATICANTE DESPORTIVO FALTA REGISTO DEVER ACESSÓRIO FACTO CONSTITUTIVO INTERESSE PÚBLICO ABUSO DO DIREITO JOGADOR DE FUTEBOL PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA REMUNERAÇÃO COMISSÃO NULIDADE DO CONTRATO | ||
| Data do Acordão: | 07/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
| Sumário : |
I -“Os empresários desportivos que pretendam exercer a atividade de intermediação desportiva devem registar-se como tal junto da federação desportiva, que, para este efeito, deve dispor de um registo organizado e atualizado” (artigo 37.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2017, com a consequência da nulidade dos contratos de intermediação ou de representação que sejam celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo (artigo 37.º, n.º 3 do citado diploma). II - Manter esta inscrição operacional constitui um dever acessório do intermediário desportivo e uma conditio sine qua non do cumprimento da obrigação de remuneração por parte do clube desportivo. III - A lei proíbe (artigo 36.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2017), não só a dupla representação, mas também a realização de atividades de intermediação em relação a ambas as partes de um contrato de transferência de direitos desportivos e a obtenção de uma remuneração das duas sociedades desportivas envolvidas nesse contrato. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. A autora, “Xektalent Limitada”, intermediária de jogadores de futebol, com sede social na Rua do Mosteiro Ferreira, n.º 228, Paços de Ferreira, intentou a presente ação declarativa de condenação sob forma de processo comum contra a ré “Rio Ave Futebol Clube, Futebol SDUQ Limitada”, sociedade desportiva com sede social na Rua D. Sancho I, Vila do Conde. Pediu a condenação da ré: a) Na quantia de €276.720,55, “correspondente a de 50% do total em dívida, e correspondente assim à parte devida à A., acrescida de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento”; b) Na sanção compulsória de €1,000,00, por cada dia de atraso no pagamento “ex vi” artigo 829-A do Código Civil, a contar da data de citação nos presentes autos. 2. A ré apresentou contestação, concluindo pela improcedência da ação e pela absolvição do pedido. Uma vez que a ré identificou parte da sua defesa como sendo por via de exceção [ausência de prestação de serviços e registo da atividade de intermediário da autora; autora intermediária em representação do FC Porto], a autora, em articulado próprio, respondeu a tal matéria. 3. Foi proferido despacho saneador, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova e realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo. 4. Por fim, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a ré de todos os pedidos. 5. Inconformada com o decidido, a autora interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido o seguinte: «Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso interposto pela autora “Xektalent, Limitada” e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida». 6. Novamente inconformada, veio a Autora interpor recurso de revista excecional, que foi admitido pela Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC. 7. No recurso interposto, a recorrente formulou as seguintes conclusões: «(…) 33ª O Tribunal recorrido entendeu que o contrato celebrado entre a Recorrente e a Recorrida não é válido, decisão com a qual a Recorrente não se conforma. 34ª Importa reconhecer que o contrato com base no qual assenta a pretensão creditória da Recorrente é um “contrato de intermediação desportiva”, que está sujeito fundamentalmente ao regime jurídico aprovado pela Lei nº54/2017, de 14 de julho. 35ª Trata-se de um contrato de prestação de serviços relativo ao exercício de uma atividade económica muito particular, sujeita a um regime jurídico especial, ao qual podem ainda aplicar-se as disposições legais estabelecidas no Código Civil para o contrato de mandato, em tudo o que não estiver especificamente regulado no diploma legal e Regulamento da Federação Portuguesa de Futebol já mencionados, tendo em atenção os artigos 1154º, 1156º e 1157º e ss. do CC. 36ª Importa ter em consideração que o contrato foi celebrado por escrito, datado e assinado por ambas as partes. 37ªEsclareça-se que do contrato, à data da assinatura, consta o registo como intermediária da Recorrente. 38ª Para além disso, o documento nº4 junto com a contestação, vem confirmar que a Recorrente se encontra registada na FPF, tal como se encontrava à data da outorga do contrato 39ª Sendo que a Recorrente sempre esteve registada como tal, não existindo, como nunca existiu, qualquer nulidade do contrato celebrado entre a Recorrente e a Recorrida. 40ª A Recorrida tomou conhecimento do registo da Recorrente e nunca se opôs à validade e vigência do contrato, pelo que renunciou ao direito de invocar qualquer falta de registo como motivo para o não cumprimento da obrigação de pagamento a que ficou vinculada por esse contrato. 41ª Portanto, em face dos acordos efetuados, a eventual nulidade dos contratos decorrentes da falta de indicação do número de registo da intermediária da Recorrente, tal como decorreria do disposto no art.9º, nº2 al.a), do RIFPF, ficou sanada. 42ª Aliás, por força das regras de boa-fé e da tutela da confiança, a invocação da nulidade formal originária dos contratos constituiria o exercício ilegítimo de um direito por parte da Recorrida (cfr. art.334º do CC), por haver um evidente abuso de direito, na vertente das inalegabilidades formais – vide: Menezes Cordeiro, in “Tratado do Direito Português”, I Parte, Tomo I, 2ª Edição, págs.255 a 258. 43ª Mais se diga que muito se estranha a postura adotada pela Recorrida nestes autos, em contraposição com a que adotou durante o período de vigência do contrato. 44ª Assinado o contrato, nunca foi, pela Recorrida, levantado o problema do registo da Recorrente perante a FPF. 45ª Extrajudicialmente e na vida corrente, a Recorrida sempre se considerou devedora da Recorrente por via do contrato em causa, agindo como tal, o que a evidencia que a conduta da Recorrida neste processo mais não é do que uma tentativa, imbuída de má-fé, de se desonerar da dívida proveniente do contrato celebrado entre as partes. 46ª Não deixa de ser irónico que na sentença ora recorrida, a final, o Tribunal premeie a parte incumpridora de uma obrigação que conscientemente outorgou, castigando, em consequência, a única parte que manteve a postura correta, cumprindo com o estipulado no contrato. 47ª Pelo que deve considerar-se que o contrato em crise nos autos é perfeitamente válido, produzindo os seus legais efeitos para todas as partes, concluindo-se que a Recorrida incumpriu com as obrigações que do mesmo decorriam. 48ª Deve, ainda proceder-se à explanação da factualidade de extrema relevância referente ao conteúdo e condições do contrato outorgado pelas partes, junto como Doc. nº1 da PI. 49ª O contrato em crise nos autos configura-se como um contrato de intermediação desportiva, cujo regime jurídico está consagrado na Lei nº54/2007, de 14 de julho. 50ª Diga-se, tendo em consideração as considerações já explanadas em sede deste recurso, que o referido contrato não versou sobre as funções de agenciamento de atleta, nem sobre as funções de representação do clube comprador. 51ª Este contrato foi elaborado com o objetivo de compensar a Recorrente pelo trabalho elaborado previamente para a Recorrida. 52ª Foi a Recorrente que colocou o jogador AA no plantel da Recorrida. 53ª O contrato assinado entre AA e a Recorrida sucedeu devido à intervenção da Recorrente, que convenceu o jogador a assinar por essa sociedade desportiva, embora tivesse outras propostas desportiva e monetariamente mais atrativas. 54ª Acontece que tal trabalho realizado pela Recorrente não foi nunca compensado. 55ª Pelo que as partes acordaram outorgar o contrato em causa nos autos, o qual prevê uma obrigação futura, que serviria como compensação do trabalho levado a cabo pela Recorrente aquando da vinda de AA para a Recorrida. 56ª Assim, a Recorrente e a Recorrida acordaram assinar um contrato pelo qual a última concedia à primeira 5% do montante da futura venda do jogador que a Recorrente colocou neste Clube. 57ª Tal contrato configura-se unicamente como uma obrigação da Recorrida perante a Recorrente, em contrapartida do trabalho que esta praticou para o atleta representar a Recorrida. 58ª Caso as razões de direito supra enunciadas não obtenham vencimento, então valem as razões de direito subsidiárias a seguir enunciadas, quanto a esta matéria: 59ª A Recorrente e a Recorrida, no domínio da liberdade contratual, celebraram entre si um contrato de prestação de serviços – arts.405º e 1154º e ss. do CC. 60ª Sendo que as partes podem fixar livremente, dentro dos limites da lei, o conteúdo positivo ou negativo da prestação – art.398º, nº1 do CC. 61ª Assim, a Recorrida faltou culposamente ao cumprimento das suas obrigações, tornando-se responsável pelo prejuízo causado à Recorrente – artigo 798º do CC, mais resultando a sua culpa presumida (art.799º do CC), e o reconhecimento de dívida previsto no 458º do CC. 62ª A A. não incorreu em qualquer conflito de interesses. 63ª Assim como a A. não violou o artigo 5º, nº 3 do Regulamento de Intermediários de Futebol publicado pela Federação portuguesa de Futebol. 64ª Em primeiro lugar, a A. apenas agiu em nome e por conta da R. na relação contratual. 65ª Em segundo lugar, a R. antes de contratar e, designadamente de usar os serviços de intermediária da A., realizou todos os esforços para garantir que, em relação a ela e a todos os demais intervenientes, não existiu conflito de interesses. 66º E que não havia riscos de poder vir a existir. 67ª Desta maneira, a A. respeitou o vertido no artigo 12º do Regulamento de Intermediários de Futebol publicado pela Federação portuguesa de Futebol. Caso assim não se entenda: 68ª A Recorrente atuou com a Recorrida com a convicção de se tratar de uma relação negocial sólida, à qual e dedicou com todas as suas forças. Saber e trabalho. 69ª A conduta da Recorrida, em manifesto incumprimento do contrato, frustrou as legítimas expectativas da Recorrente. 70ª De tal maneira que a Recorrente violou os princípios da boa-fé e da confiança. 71ª No caso concreto, por referência à confiança criada na Recorrente, a Recorrida violou o princípio da boa-fé, pelo que incorreu na obrigação de indemnizar a Recorrente – artigos 562º e ss. do CC. Caso assim não se entenda: 72ª A Recorrida, ao não entregar à Recorrente a quantia devida pelo contrato de representação em regime de exclusividade, teve, como tem, um enriquecimento real e patrimonial, vendo o seu património ativo acrescido nesse valor. 73ª E a esta vantagem patrimoniais obtida pela Recorrida corresponde um empobrecimento da Recorrente. 74ª A qual ficou, como está, privada de melhorar o seu património ativo nesse valor. 75ª Sendo um enriquecimento da Recorrida à custa da Recorrente, como acima descrito, tudo sem causa justificativa e com ausência de outro meio jurídico. 76ª Donde resulta que a Recorrida é obrigada a restituir à Recorrente aquilo com que injustamente e ilegitimamente se locupletou – art.473º do CC. 77ª A A. não interveio como intermediária em representação do F.C.Porto – Futebol, SAD no aludido contrato de transferência, a A. não recebeu da F.C.Porto – Futebol, SAD qualquer valor pela intermediação do referido atleta para esta sociedade desportiva, a A. nunca atuou no exclusivo interesse da F.C.Porto – Futebol, SAD, nem do próprio jogador, a A. sempre zelou pelos interesses da R. na transferência do jogador, sendo certo que a A. tudo fez para que o negócio da cedência do jogador entre a R. e a F.C.Porto – Futebol, SAD se concretizasse. 78º Mas, mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede, nem concebe e apenas se admite por mera cautela processual e dever de patrocínio, importa frisar que a própria R. confessa ter assinado o aditamento junto como documento 7 da contestação. 79ª A R. declara expressamente que não levantou objeções quanto à assinatura de tal documento, Ou seja, a R. aceitou a o teor do aludido documento e com o mesmo se conformou. 80ª Tanto assim que o assinou e não levantou quaisquer objeções quanto à intermediação da representação do FC Porto no contrato em causa. 81ª Mais: a R. nunca objetou com qualquer conflito de interesses, Pelo que a R. criou no espírito dos intervenientes a convicção, a expetativa e a confiança de não impugnar a validade e eficácia de tal documento E muito menos de poder vir a usar contra a A. quaisquer vícios, irregularidades e invalidades que desse documento pudessem eventualmente resultar para o contrato celebrado entre a A. e a R., que é causa de pedir nos presentes autos. 82ª Ou seja, a R. incorre em conduta contraditória – “venire contra factum proprium” em combinação com a violação do princípio da boa-fé e da tutela da confiança. 83ª O acórdão recorrido, na parte em que analisou e decidiu a “Atividade de mediação prestada pela autora”, está em contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães – 2ª Secção – Processo 1309/23.0T8BRG.G1 (Doc. 1). 84ª Ambos os acórdãos versam sobre a atividade do empresário desportivo, á luz do vertido no artigo 36º, nº 2 da Lei 54/2017, de 14 de julho. 85ª Por seu turno, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães – 2ª Secção -Processo 1309/23.0T8BRG.G1 (Doc. 1) considerou que: “I - O contrato de intermediação desportiva constitui uma modalidade especial do contrato de prestação do contrato de prestação de serviços e tem como partes necessárias, por um lado, um praticante desportivo ou uma entidade empregadora desportiva, e por outro, um intermediário desportivo, tendo por finalidade específica que um dos dois primeiros solicite do segundo a prestação de serviços que consistem essencialmente na mediação tendente à celebração de contratos desportivos, nomeadamente contratos de trabalho desportivos ou contratos de transferência, incluindo eventuais alterações ou renovações, o que pode ser realizado de forma gratuita ou remunerada, podendo eventualmente ser atribuídos poderes de representação ao intermediário desportivo. II - Tal contrato encontra-se sujeito ao regime legal previsto no regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação (RJCTPD) aprovado pela Lei n.º 54/2017, de 14 de junho, sendo-lhe ainda aplicável, em tudo quanto naquele não se encontre previsto, o regime do contrato de mandato, por força do que dispõe o artigo 1156.º do Código Civil. III-O legislador nacional, visando prevenir o sacrifício dos interesses de um representado em detrimento do outro, consagrou a regra da proibição de representação de mais do que um dos intervenientes no negócio. IV - Porém, e independentemente de poder dar lugar a sanções do ponto de vista disciplinar ou de gerar responsabilidade civil, nem o RJCTPD, nem o Regulamento de Intermediários da FPF (em vigor à data da celebração e execução do contrato de intermediação) cominam com a sanção da nulidade uma situação de dupla representação, como a que ocorre nos autos, em que a Autora, intermediária, à data em que negociou a transferência do jogador mandatada pela Ré (em execução do contrato de intermediação) representou, em simultâneo, o jogador, com quem tinha celebrado um contrato de prestação de serviços.” 86ª Ou seja, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães – 2ª Secção – Processo 1309/23.0T8BRG.G1 (Doc. 1) considerou que nem o RJCTPD, nem o Regulamento de Intermediários da FPF (em vigor à data da celebração e execução do contrato de intermediação) cominam com a sanção da nulidade uma situação de dupla representação. 87ª A A. não incorreu na violação do artigo 36º, nº 1 do CIVA. 88ª O contrato em crise nos autos configura-se como um contrato de intermediação desportiva, cujo regime jurídico está consagrado na Lei nº54/2007, de 14 de julho. 89ª Diga-se, tendo em consideração as considerações já explanadas em sede deste recurso, que o referido contrato não versou sobre as funções de agenciamento de atleta, nem sobre as funções de representação do clube comprador. 90ª Este contrato foi elaborado com o objetivo de compensar a Recorrente pelo trabalho elaborado previamente paraa Recorrida, dado que foi a Recorrente que colocou o jogador AA no plantel da Recorrida. 91ª O contrato assinado entre AA e a Recorrida sucedeu-se devido à intervenção da Recorrente, que convenceu o jogador a assinar por essa sociedade desportiva, embora tivesse outras propostas desportiva e monetariamente mais atrativas. 92ª Acontece que tal trabalho realizado pela Recorrente não foi nunca compensado, pelo que as partes acordaram outorgar o contrato em causa nos autos, o qual prevê uma obrigação futura, cuja serviria como compensação do trabalho levado a cabo pela Recorrente aquando da vinda de AA para a Recorrida. 93ª Assim, a Recorrente e a Recorrida acordaram assinar um contrato pelo qual a última concedia à primeira 5% do montante da futura venda do jogador que a Recorrente colocou neste Clube. 94ª Tal contrato configura-se unicamente como uma obrigação da Recorrida perante a Recorrente, em contrapartida do trabalho que esta praticou para o atleta representar a Recorrida. 95ª O Tribunal recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, as disposições legais supra enunciadas e cujo teor aqui se dão como reproduzidas. Nestes termos, e nos melhores de direito que V.Ex.ª(s) doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado provado e totalmente procedente e, em consequência, deve a Recorrida ser condenada a pagar à Recorrente o montante de €225.000,00 (duzentos e vinte ecinco mil euros),correspondente a 5% da quantia resultante da venda do jogador AA da Recorrida para o F.C. Porto – Futebol SAD, como forma de pagamento da contratação inicial do Jogador por parte da Recorrida, assim se fazendo a acostumada e boa… JUSTIÇA!» 8. A recorrida apresentou contra-alegações em que pugnou pela improcedência total do recurso. 9. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º1, ambos do CPC), os problemas jurídicos a resolver são as seguintes: - se o contrato de intermediação desportiva celebrado entre a autora e a ré padece de nulidade, por ausência de registo da autora como intermediária desportiva; - se a nulidade do contrato pode considerar-se sanada, por renúncia do réu ao direito de a invocar; - se a atividade de mediação prestada pela autora deve ser remunerada ao abrigo do regime geral do contrato de prestação de serviço (artigos 405.º e 1154.º, 798.º e 799.º, todos do Código Civil); - se o intermediário desportivo pode receber remuneração de ambas as partes do contrato de transferência do jogador; - se a conduta da ré, ao invocar a falta de registo do intermediário desportivo, constitui um abuso do direito, por venire contra factum proprium e viola os princípios da confiança e da boa fé; - se a autora tem direito a uma indemnização por enriquecimento sem causa, ao abrigo do artigo 473.º do Código Civil. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação A – Os factos Após o exercício pelo Tribunal da Relação do seu poder de modificação dos factos provados, a matéria de facto provada é a seguinte: 1 - A Autora e a sociedade Arvand Sport (designados no contrato de “intermediários”) celebraram em 8/9/2019 com o réu (o “clube”) um contrato no qual estabeleceram os termos e condições para regular a intermediação do jogador profissional de futebol AA. 2 - De acordo com a sua cláusula primeira: “1 – O clube contrata os intermediários com carácter de exclusividade, para que estes promovam o atleta AA, (…) junto as suas redes de contactos, nos termos por estas julgados convenientes, tendo em vista a alienação definitiva e/ou temporária dos direitos federativos relativos ao atleta”. 3 - Na cláusula 2ª está escrito: “1 – O clube obriga-se a pagar aos intermediários a título de remuneração dos seus serviços um montante equivalente a 10% (dez por cento ) do preço que venha a ser recebido pelo clube no caso de concretização da transferência, independentemente do valor pelo qual a transferência se venha a concretizar, da existência ou prova de qualquer nexo de causalidade entre a actividade desenvolvida pelos intermediários e a transferência ou do destino do atleta. 2. Para efeitos do número anterior, considera-se PREÇO da TRANSFERÊNCIA, como todas as receitas que venham a resultar da cedência a terceiros de parte ou da totalidade dos direitos económicos relativos ao Jogador, abatida das importâncias que a RAFC tenha de entregar a outrem por força dos mecanismos de solidariedade e de compensação por formação previstos no Regulamento relativo ao estatuto e transferência de jogadores da FIFA, do valor de comissões a terceiros, do valor das remunerações e prémios jogos contratuais (com os respectivos encargos fiscais e da segurança social) efetivamente pagas ao jogador durante a vigência do contrato de trabalho desportivo celebrado com a RAFC.” 4 - Ficou estabelecido - n.º 5 da cláusula segunda - que o valor equivalente a 10% (dez por cento) do preço da transferência, seria dividido em partes iguais entre ambas as intermediárias. 5 - A R. obrigou-se a promover o pagamento à A. no prazo máximo de quinze dias após o respectivo pagamento pelo Clube/SAD, adquirente, tal como resulta da confrontação do n.º 3 da Cláusula 2ª. 6 - O contrato foi celebrado porque foi a autora e a Arvand quem proporcionou a contratação do jogador pelo réu, a custo zero. 7 - Em .../.../2020foi celebrado contrato para transferência do jogador AA do réu para o Futebol Clube do Porto, Futebol SAD, pelo preço de 4.500.000,00€. 8 - Após o contrato de transferência ter sido assinado por todas as partes intervenientes, o FC Porto- Futebol SAD solicitou junto da Ré a assinatura de um aditamento a acrescentar uma única cláusula do qual consta o seguinte: “Pelo presente aditamento, as partes declaram que o acordo foi celebrado com a intervenção do intermediário BB, registado na Federação portuguesa de Futebol (FPF) com o nº ___ com atividade organizada na empresa XEKTALENT Lda, NUIPC 515541710, intermediária registada na FPF com o nº____ em representação da FC Porto SAD”. Vide Doc.7 que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos. 9 - A Ré assinou o aditamento. 10 - BB, em representação da autora, proporcionou os contactos entre o Futebol Clube do Porto – Futebol SAD e o jogador AA que vieram a resultar no acordo de ambos para a transferência deste (Facto modificado pelo Tribunal da Relação). 11 - O jogador AA foi transferido para o Futebol Clube do Porto – Futebol SAD sem qualquer intervenção da Autora em representação da Ré. 12 - Todos os valores e condições da alienação dos direitos federativos e económicos do jogador AA, da Ré para o Futebol Clube do Porto- Futebol SAD foram negociados directamente entre os elementos de cada uma das direcções de ambas as sociedades desportivas, nomeadamente entre os seus Presidentes. 13 - Nem a Autora nem a sua parceira Arvant Sport apresentaram à Ré qualquer proposta, nem indicaram qualquer montante para uma eventual transferência do atleta AA para o F.C. Porto– Futebol SAD. 14 - A R. já recebeu na integra o valor correspondente à transferência. 15 - Foi pago nas datas seguintes: .../.../2020 - €1.000.000 .../.../2021 - €500.000 .../.../2021 - €600.000 .../.../2021 - €325.000 .../.../2021 - €325.000 .../.../2022 - €1.750.000 16 - A R. foi interpelada por notificação judicial avulsa para “pagar a quantia de €539.585,75 (quinhentos e trinta e nove mil quinhentos e oitenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), na proporção de 50% para a A. e a indicada Arvand Sport, 17 - Fixando-se se por aquela via o “prazo admonitório de 5 dias contados da efectivação da mesma, acrescida de juros à taxa legal, ordenando-se ainda o estabelecimento de sanção compulsória de €200.00 (duzentos euros) por cada dia de atraso no pagamento ex vi art.º 829-A do CC em vigor”. 18 - A notificação judicial avulsa concretizou-se em 08/08/2022. 19 - A Autora na época desportiva 2019/2020 (01 Junho 2019 a 30 Junho de 2020-excepcionalmente prorrogada até 02 de Agosto de 2020) encontrava-se registada na Federação Portuguesa de Futebol como intermediária desportiva. 20 - Na época desportiva 2020/2021, a Autora já não se encontra registada como intermediária de futebol. 21 - No período em que teve contrato com o jogador AA, a ré pagou a título de remunerações, prémios de jogos, (com os respetivos encargos fiscais e da segurança social), o valor global de 497.002,45 €. 22 - A Autora não emitiu nenhuma fatura à ré pelos valores aqui reclamados. Factos não provados: 1 - Arvand Sport é intermediária de jogadores de Futebol registado na Federação ... de Futebol. 2 - A transferência para o FCP foi em ...2020. 3 - O preço da transferência ascendeu a €4.700.000.00 (quatro milhões e setecentos mil euros) 4 - Nada fez a Autora para que o “negócio” da cedência do aludido jogador entre a Ré e o F.C. Porto – Futebol SAD se concretizasse. B) O Direito 1. O contrato de intermediação desportiva encontra-se disciplinado e definido no artigo 38º, nº 1, da Lei nº 54/2017, de 14 de julho, diploma que aprova o “regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação”. Nos termos do citado preceito “o contrato de representação ou intermediação é um contrato de prestação de serviço celebrado entre um empresário desportivo e um praticante desportivo ou uma entidade empregadora desportiva”. O contrato de intermediação desportiva tem como partes necessárias, por um lado, um praticante desportivo ou uma entidade empregadora desportiva, e por outro, um empresário desportivo e prossegue uma finalidade específica: que um dos primeiros solicite do empresário desportivo a prestação de serviços que consistem na mediação tendente à celebração de contratos desportivos, nomeadamente contratos de trabalho desportivos ou contratos de transferência, incluindo eventuais alterações ou renovações, o que pode ser realizado de forma gratuita ou remunerada, podendo ser, ou não, atribuídos poderes de representação ao intermediário desportivo. Este contrato, conforme preceitua o nº 2 do artigo 38.º da Lei 54/2017, está sujeito à forma escrita, nele devendo ser estabelecidos de forma clara o tipo de serviços a prestar pelo empresário desportivo, bem como a remuneração que lhe seja devida e as condições de pagamento. Por seu turno, o nº 4 da mesma norma obriga ainda a que o contrato tenha uma duração determinada e limita essa duração ao máximo de 2 anos. Estamos, pois, perante uma modalidade contratual celebrada a termo certo, sendo ainda de salientar que, de acordo com o nº 5 do artigo referido, não são admissíveis cláusulas de renovação automática do respetivo contrato. Por empresário desportivo, a posição aqui ocupada pela autora, entende-se “a pessoa singular ou coletiva que, estando devidamente credenciada, exerça a atividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, na celebração de contratos desportivos” (artigo 2º, al. c), da Lei 54/2017). Estipula a lei que “Só podem exercer atividade de empresário desportivo as pessoas singulares ou coletivas devidamente autorizadas pelas entidades desportivas, nacionais ou internacionais, competentes” (artigo 36º, nº 1, da Lei 54/2017) e que “os empresários desportivos que pretendam exercer a respetiva atividade devem registar-se como tal junto da federação desportiva, que, para este efeito, deve dispor de um registo organizado e atualizado” (artigo 37.º, n.º 1, da Lei 54/2017), sob pena de nulidade (n.º 3 do artigo 37.º do citado diploma). A falta de tal registo, à luz do regime jurídico anterior, acarretava a invalidade do contrato de prestação de serviço celebrado com empresário desportivo, considerando-se o contrato juridicamente inexistente, por disposição expressada lei (artigo 23.º, n.º 4, da Lei n.º 28/98, de 26 de junho) – cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-09-2017 (proc. n.º 10145/14.4T8LSB.L1.S1) e 27-03-2014 (proc. n.º 3100/11.8TCLRS.L1.S1). Resulta do artigo 4.º do Regulamento de Intermediários da FPF (Comunicado Oficial n.º 310, de 01.04.2015, que disciplina o exercício da atividade de intermediário desportivo) que se designa por intermediário “a pessoa singular ou colectiva que, com capacidade jurídica, contra remuneração ou gratuitamente, representa o jogador ou o clube em negociações, tendo em vista a assinatura de um contrato de trabalho desportivo ou de um contrato de transferência”. Estatui o artigo 6.º do citado Regulamento (1) “só podem exercer a actividade de Intermediário as pessoas singulares ou colectivas registadas na FPF”; (2) “o Intermediário deve requerer previamente o seu registo sempre que participe numa transacção e (3) “Sem prejuízo do disposto no número anterior, o registo de Intermediário pode ser requerido para uma época desportiva, sendo emitido o respetivo documento comprovativo.” Por sua vez, o artigo 7.º, n.º 1, do citado Regulamento esclarece que para o registo de um intermediário financeiro não basta um requerimento e o pagamento de uma taxa, sendo necessária a apresentação de diversos documentos, entre os quais, a identificação civil e fiscal, o registo criminal atualizado, a apólice de seguro de responsabilidade civil adequado ao exercício da atividade, com cobertura de responsabilidade por danos até ao montante de € 50.000,00, a declaração de inexistência de situação de insolvência, bem como a certidão comprovativa da regularização da situação contributiva regularizada. A inscrição no registo junto da federação desportiva constitui uma obrigação legal do empresário desportivo baseada em razões de interesse público e surge como um facto constitutivo do direito da autora à remuneração estipulada no contrato. Trata-se, pois, de um ato necessário e indispensável, por imperativo legal, para a validade do contrato e para o exercício da profissão, que tem de ser autorizada pelas entidades competentes. Como se sintetizou no Acórdão deste Supremo, de 30-11-2021 (proc. n.º 910/20.9T8PDL.L1.S1), de que a agora Relatora foi Juíza Adjunta: «I - O registo como agente intermediário desportivo na Federação Portuguesa de Futebol é imperativo, nos termos do art. 37.º, n.os 1 e 3, da Lei n.º 54/2017, de 14-07, e conditio sine qua non da validade de qualquer contrato em que aquele seja, em tal veste, interveniente. II - O contrato celebrado pelo agente intermediário desportivo que não se encontre nessa qualidade registado na Federação Portuguesa de Futebol encontra-se ferido de nulidade, nos termos do n.º 3 daquele normativo. III - Incumbe ao intermediário desportivo, e só a ele, diligenciar no sentido do seu registo profissional junto da Federação Portuguesa de Futebol. IV - A obrigação de tal registo constitui obrigação acessória do contrato de intermediação desportiva, cuja omissão implica o incumprimento definitivo do contrato por parte do credor intermediário desportivo, uma vez criada, por consequência da nulidade do contrato a que deu causa (art. 37.º, n.º 3, da Lei 54/2017, de 14-07), a impossibilidade objectiva da concretização dos seus efeitos (art. 801.º do CC). V - O intermediário desportivo que não tenha registada essa sua qualidade profissional junto da Federação Portuguesa de Futebol, não pode receber os proventos que eventualmente tenha negociado em momento anterior ao que vigorava aquele registo». 2. Entre as partes foi celebrado um contrato de intermediação desportiva, em 8 de setembro de 2019, em que a aqui autora Xektalent, Limitada (juntamente com a sociedade Arvand Sport), figura como intermediária desportiva, e o Réu, “Rio Ave Futebol Clube – Futebol SAD, como sociedade desportiva. Por meio deste acordo de intermediação desportiva o Rio Ave Futebol Clube contratou os intermediários com carácter de exclusividade, para que estes promovam o atleta AA, junto às suas redes de contactos, tendo em vista a alienação definitiva e/ou temporária dos direitos federativos relativos ao atleta. Em 31/8/2020, já depois da época desportiva em que foi celebrado o contrato de intermediação, foi celebrado contrato para transferência do jogador AA do réu Rio Ave para o Futebol Clube do Porto, Futebol SAD, pelo preço de €. 4.500.000,00 (facto provado n.º 7), o que foi feito, sem qualquer intervenção da Autora em representação da Ré (facto provado n.º 11). Nos termos do facto provado n.º 10, foi BB, em representação da autora, que proporcionou os contactos entre o Futebol Clube do Porto – Futebol SAD e o jogador AA. A ré peticiona, na presente ação, a remuneração estabelecida no contrato de mediação desportiva para a transferência do jogador para o Futebol Clube do Porto, invocando os termos do contrato de mediação desportiva celebrado com a ré em 18 de setembro de 2019 (factos provados n.º 1 a 5) O acórdão recorrido decidiu pela nulidade do contrato de intermediação desportiva, em virtude de a autora, enquanto empresária desportiva, não se encontrar inscrita no registo da federação desportiva, à data da transferência do jogador AA para o Futebol Clube do Porto. Caso assim não se entendesse, concluiu o Tribunal da Relação, sempre incorreria a autora em ilegalidade impeditiva de receber a remuneração pretendida, pois a lei veda que o intermediário desportivo, que representou o Futebol Clube do Porto no contrato de transferência do jogador, receba remuneração de ambas as sociedades desportivas envolvidas no mesmo contrato. 3. Vejamos. Segundo os factos provados n.º 19 e 20, a Autora na época desportiva 2019/2020 (a qual se estende no máximo até ... de ... de 2020) encontrava-se registada na Federação Portuguesa de Futebol como intermediária desportiva, mas não já na época desportiva 2020/2021. Ora, o contrato de transferência foi celebrado em ... de ... de 2020, já após a época desportiva 2019/2020, decorrendo da matéria de facto que o registo já não estaria operacional para a época de 2020/2021, conforme facto provado n.º 20. Como decorre do regime jurídico aplicável (Lei 54/2017), “os empresários desportivos que pretendam exercer a respetiva atividade devem registar-se como tal junto da federação desportiva, que, para este efeito, deve dispor de um registo organizado e atualizado” (artigo 37.º, n.º 1), com a consequência da nulidade dos contratos de intermediação ou de representação que sejam celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo (artigo 37.º, n.º 3). Ora, no caso vertente, à data da celebração do contrato de intermediação desportiva dos autos, 8 de setembro de 2019 (facto provado n.º 19), a autora encontrava-se inscrita no registo da Federação Portuguesa de Futebol, pelo que, devendo aferir-se da invalidade negocial por referência ao momento contemporâneo da conclusão do contrato, dada a natureza originária das causas de invalidade, tem de se concluir que o contrato dos autos não se encontra ferido de qualquer nulidade por violação de normas imperativas (artigo 37, n.ºs 1 e 3, e 294.º do Código Civil). Todavia, manter esta inscrição, uma vez efetuada, operacional constitui, segundo o já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-11-2021 (proc. n.º 910/20.9T8PDL.L1.S1), um dever acessório do intermediário desportivo e uma conditio sine qua non do cumprimento da obrigação de remuneração por parte do réu, nele se tendo afirmado que «(…)o registo válido na FPF constituía, na economia do contrato, parte integrante da prestação do Autor intermediário de futebol. Ao não cuidar de manter tal registo válido, o Autor faltou culposamente ao “dever geral de cooperação que tanto caracteriza a relação creditória” (Antunes Varela, RLJ, 118º, 52), incorrendo flagrantemente em mora, mora definitiva (art. 813º do Código Civil), em procedimento ilícito e culposo, em si impossibilitante do cumprimento da prestação do seu contraente, tanto quanto é certo que assim tornou inconcretizáveis os efeitos do contrato que celebrou com a Ré, que precipitou na penumbra da nulidade». O registo da sociedade intermediária desportiva não é válido indefinidamente, mas apenas para uma determinada época desportiva, caducando no seu final, devendo ser requerido para cada época desportiva ou previamente a uma transação. Este registo visa a realização do interesse público na transparência dos negócios desportivos, na tributação dos valores transacionados, na prevenção do branqueamento de capitais a lavagem de dinheiro, assim como a dignificação da realidade negocial envolvente do fenómeno desportivo. Assim, o intermediário desportivo para requerer o registo tem de apresentar documentação, não só relativa à sua identificação civil e fiscal, mas também o registo criminal atualizado, certificado de inexistência de insolvência e de regularização da situação contributiva, requisitos que visam permitir um controlo periódico sobre a idoneidade do agente desportivo para o exercício da função. Como se afirma no Acórdão de 30-11-2021, o registo na FPF não é uma mera formalidade, não bastando para tanto que seja apresentado àquela entidade um “simples requerimento à FPF nesse sentido formulado pelo interessado, acompanhado do pagamento de uma mera taxa”. Conforme se afirma no supra citado Acórdão, o registo na FPF consiste num processo cauteloso e exigente, a fim de serem realizadas as «(…) preocupações decorrentes da Directiva (UE) 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, sobre prevenção do uso do sistema financeiro para fins de branqueamento de capitais, lavagem de dinheiro ou terrorismo financeiro, a que não é alheio o fenómeno desportivo com a grandeza à escala mundial que nos dias de hoje o Futebol representa, ascendendo a € 28,4 biliões as receitas que o mercado europeu de futebol gerou na temporada 2017/18, de acordo com a Análise Anual de Financiamento do Futebol da Deloitte». (…) Resultando do Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e Conselho (Bruxelas, 24.7.2019), sobre a avaliação do risco de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo que afecta o mercado interno e relacionadas com actividades transfronteiriças, que os riscos associados ao desporto são reconhecidos há muito tempo a nível da UE, tendo o futebol sido considerado (…) uma indústria com significativo impacto económico, sendo que a organização complexa do futebol profissional e a falta de transparência criou um terreno fértil para o uso de recursos ilegais, alertando que quantias questionáveis de dinheiro sem retorno ou ganho financeiro aparente ou explicável são investidas no desporto». 4. Ora, decorre da matéria de facto provada que o registo já não se encontrava ativo para a época desportiva posterior a ... de ... de 2021, não tendo a autora provado, como lhe competia, o facto constitutivo do seu direito à remuneração: ter um registo válido e eficaz à data da celebração do contrato de transferência do jogador, ... de ... de 2021. Alega a recorrente que foram juntos aos autos documentos que demonstram a existência de registo à data do contrato de transferência do jogador do Rio Ave para o FCP. Todavia, este Supremo, salvo os casos de violação de regras de direito probatório material, não tem competência para reapreciar meios de prova, nem para alterar a matéria de facto, devendo tão-só atender aos factos dados como provados pelas instâncias, aos quais aplica as normas jurídicas pertinentes, sem ponderar eventuais erros na apreciação da prova ou na fixação dos factos provados e não provados. Assim sendo, no quadro legislativo e valorativo descrito, tem de se concluir que o contrato de intermediação desportiva, que fundamenta a pretensão da autora, não é invocável contra o réu Rio Ave em relação ao contrato de transferência do jogador AA celebrado em época desportiva posterior, nem é suscetível de gerar obrigações futuras para uma época desportiva em que a autora já não está autorizada a exercer a atividade de intermediação, nem inscrita no registo da FPF como tal. 5. Entende a recorrente que a nulidade do contrato de intermediação (raciocínio aplicável também à não invocabilidade ou ineficácia do contrato de intermediação por falta de registo subsequente do intermediário desportivo), foi suprida pela renúncia do réu em invocá-la. Mas não tem razão. Dadas as razões de interesse público subjacentes ao regime da ausência de registo, conforme acima assinalado, o legislador estatuiu a sanção da nulidade, cujo regime, nos termos do artigo 286.º do Código Civil, estabeleceu o caráter insanável desta espécie de invalidade, a possibilidade de ser declarada oficiosamente pelo tribunal e a sua invocabilidade sem dependência de prazo. A declaração da nulidade tem eficácia retroativa (artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil), não produzindo o contrato os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes. Estas considerações são também aplicáveis ao regime da ineficácia absoluta ou da não invocabilidade ou não atendibilidade do contrato, ainda mais gravoso do que o regime jurídico das nulidades. 6. Independentemente destas considerações, também por outro motivo não pode a autora fazer valer a sua pretensão de obter do Rio Ave uma remuneração pela transferência dos direitos desportivos do jogador para o FCP. É que, conforme indica a matéria de facto provada, a autora atuou como representante do FCP neste contrato (facto provado n.º 8 conjugado com o facto n.º 10), e o FCP pagou à X-Talent, tal como consta do relatório de contas do FCP, conforme esclareceu o Tribunal da Relação. Ora, a lei proíbe, não só a dupla representação (aqui não em causa pois a autora não representou o réu neste negócio de transferência do jogador AA para o FCP), mas também a realização de atividades de intermediação em relação a ambas as partes de um contrato desportivo e a obtenção de uma remuneração das duas sociedades desportivas envolvidas. Neste sentido, dispõe o artigo 5.º, n.º 3, do citado Regulamento que «O Intermediário apenas pode agir em nome e por conta de uma das partes da relação contratual», estatuindo o artigo 36.º, n.º 2, da Lei 54/2017 que «A pessoa que exerça a atividade de empresário desportivo só pode agir em nome e por conta de uma das partes da relação contratual, apenas por esta podendo ser remunerada, nos termos do respetivo contrato de representação ou intermediação». Estas disposições são imperativas e não podem ser desaplicadas com base na mera afirmação, contida nas conclusões de recurso, de que a autora não incorreu em qualquer conflito de interesses e que a ré antes de contratar realizou todos os esforços para garantir que não existiu conflito de interesses, tendo a autora respeitado o artigo 12.º do Regulamento de Intermediários de Futebol. 7. Sustenta ainda a autora que houve entre as partes um contrato de prestação de serviço ao abrigo do princípio da liberdade contratual (artigos 1154.º e 405.º do Código Civil), mediante o qual a autora teria direito a uma remuneração pelo seu trabalho uma vez que pôs em contacto o jogador AA com o Futebol Rio Ave e o convenceu a assinar contrato com este clube desportivo. Mas não tem razão. É que, para além de a recorrente não ter invocado na petição inicial a conversão do negócio de intermediação desportiva nulo por falta de registo do intermediário financeiro, noutra modalidade contratual, ao abrigo do artigo 293.º do Código Civil, a remuneração peticionada (facto provado n.º 16) decorre não de ter posto em contacto o jogador AA com o réu e de ter convencido aquele a assinar contrato desportivo com este, mas de uma comissão sobre as quantias recebidas pelo réu Rio Ave ao alienar os direitos desportivos do jogador AA para o FCP (cfr. artigos 14-16, 22 e 28 a 30 da petição inicial). Ora, em relação a este contrato de transferência, não só não teve a autora qualquer intervenção como representante do réu (facto provado n.º 11), como não se provou que tivesse exercido qualquer atividade de negociação dos direitos ou das condições do negócio celebrado entre o Rio Ave e o FCP (factos provados n.º 12 e 13), para além de que se cairia do mesmo modo, ainda que através de outra espécie contratual, na obtenção de uma dupla remuneração proibida por uma lei que o tribunal não pode contornar, nem admitir que a recorrente contorne. 8. Entende ainda a recorrente que a autora, invocando a falta de registo da autora como intermediária desportiva, comete abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), na modalidade de venire factum proprium, na medida em que nunca questionou anteriormente a vigência do contrato, e viola os princípios da confiança e da boa fé. O artigo 334.º do Código Civil torna ilegítima a conduta do titular do direito que exceda manifestamente, no exercício do mesmo, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito. Na doutrina tradicional, admite-se a figura do abuso do direito desde que as circunstâncias concretas apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade. Para a moderna ciência jurídica o abuso do direito manifesta-se em modelos construídos pela jurisprudência, de entre os quais destacamos o venire contra factum proprium, figura que não significa uma genérica remissão para um princípio de proibição do comportamento contraditório, mas que exige a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo. Ora, estando em causa a desaplicação de uma norma de interesse público – a que exige o registo do intermediário desportivo como condição de validade de um contrato e de exercício de uma profissão – as consequências jurídicas desta omissão não podem ser paralisadas pela invocação do abuso do direito, pois os valores que a lei visa proteger com tal regime jurídico são manifestamente superiores aos interesses privados da parte e não podem ficar diluídos numa ideia de justiça contratual. Pelo que se indefere a pretensão da autora com base no alegado abuso do direito do réu. Sendo a falta de registo (ou a manutenção da operatividade do mesmo na época desportiva seguinte) o resultado do incumprimento de um dever legal e contratual da autora, falece também qualquer reclamação de direitos com base no princípio da boa fé ou na tutela da confiança. 9. Invoca ainda a autora o seu direito à restituição com base no instituto do enriquecimento sem causa, regulado no artigo 473.º do Código Civil, na medida em que a ré, não pagando qualquer comissão à autora pela transferência do jogador para o FCP, enriquece à custa do seu empobrecimento. Em primeiro lugar, devendo o enriquecimento sem causa ser invocado nos articulados da ação, o que não sucedeu, não pode a sua dedução ocorrer no momento das alegações da revista (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal, de 28-09-2017, proc. n.º 10145/14.4T8LSB.L1.S1), pelo que não tem este Supremo Tribunal de conhecer desta questão. Todavia, como o Tribunal da Relação a conheceu, faremos uma breve análise dos seus pressupostos. Segundo o Acórdão 27-03-2014 (Revista n.º 3100/11.8TCLRS.L1.S1), que decidiu uma questão semelhante à destes autos, o enriquecimento sem causa apresenta os seguintes requisitos,: (i) o enriquecimento do réu; (ii) o nexo de causalidade entre o enriquecimento deste e o empobrecimento da autora; (iii) a ausência de causa e (iv) a ausência de ação apropriada. É sobre a autora que recai o ónus da prova da verificação destes requisitos, em particular, da falta de justificação do enriquecimento. O enriquecimento sem causa não prescinde da demonstração de que à aquisição patrimonial do enriquecido correspondeu o empobrecimento de quem prestou sem causa jurídica, devendo estabelecer-se um nexo causal entre esse alegado empobrecimento e o enriquecimento do réu. Ora, o recebimento, pela ré, do valor correspondente aos direitos económicos relativos ao jogador Meddi teve causa justificativa, que se baseou na transferência dos direitos económicos do jogador AA para o FCP. Este enriquecimento foi obtido à custa do património da entidade desportiva para quem foi transferido o jogador e não à custa do património da autora, ora recorrente, nem à custa da sua atividade de intermediação, pois que o contrato foi negociado pela direção dos dois clubes desportivos como decorreu da matéria de facto. Como numa situação análoga se concluiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 28-05-2024, proc. n.º 15910/21.3T8PRT.P2.S1), o instituto do enriquecimento sem causa tem natureza meramente subsidiária, nos termos do artigo 474.º do Código Civil, o que tem por consequência que não haverá lugar à restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído. Ora, se, como a recorrente alega, a quantia peticionada lhe fosse devida por força do contrato de prestação de serviço em regime de exclusividade, então não haveria lugar à restituição dela por enriquecimento sem causa. Nessa hipótese, o meio de obter tal quantia seria a ação destinada a exigir o cumprimento do contrato, pretensão que foi votada ao fracasso. Por último, tal empobrecimento não se verifica se o autor da prestação já viu o seu património acrescido por via da atividade de representação desenvolvida para o FCP, como sucedeu, in casu, através da remuneração paga pelo FC Porto pela atividade de representação realizada pela autora em relação a este clube. Proibindo a lei a dupla remuneração (artigo 36.º, n.º 2, da Lei 54/2017), não pode o tribunal deixar entrar pela janela, aquilo que o legislador proibiu que entrasse pela porta. Improcedem, pois, todas as conclusões do recurso de revista da autora/ecorrente. 10. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC: I -“Os empresários desportivos que pretendam exercer a atividade de intermediação desportiva devem registar-se como tal junto da federação desportiva, que, para este efeito, deve dispor de um registo organizado e atualizado” (artigo 37.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2017, com a consequência da nulidade dos contratos de intermediação ou de representação que sejam celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo (artigo 37.º, n.º 3 do citado diploma). II - Manter esta inscrição operacional constitui um dever acessório do intermediário desportivo e uma conditio sine qua non do cumprimento da obrigação de remuneração por parte do clube desportivo. III - A lei proíbe (artigo 36.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2017), não só a dupla representação, mas também a realização de atividades de intermediação em relação a ambas as partes de um contrato de transferência de direitos desportivos e a obtenção de uma remuneração das duas sociedades desportivas envolvidas nesse contrato. III – Decisão Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido. Custas da revista pela recorrente. Lisboa, 9 de julho de 2025 Maria Clara Sottomayor (Relatora) António Magalhães (1.º Adjunto) António Domingos Pires Robalo (2.º Adjunto) |