Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | SOCIEDADE COMERCIAL DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA LEGITIMIDADE PASSIVA LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO DEVEDOR INSOLVÊNCIA CAUSA DE PEDIR PEDIDO INEFICÁCIA DAÇÃO EM CUMPRIMENTO IMOVEL SIMULAÇÃO NULIDADE DO CONTRATO INTERESSE EM AGIR | ||
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Data do Acordão: | 03/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVISTA PROCEDENTE BAIXANDO OS AUTOS AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO | ||
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Sumário : | A sociedade declarada insolvente tem legitimidade passiva para estar em juízo (em litisconsórcio necessário) na ação proposta por um credor tendo em vista a declaração de nulidade por simulação da alienação de um imóvel (não apreendido para a massa insolvente), ocorrida três anos antes da declaração de insolvência. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. “Joroplás – Artigos de Embalagem, Ldª” propôs ação declarativa de condenação contra “N..., Lda.”, pedindo que fosse julgado ineficaz o negócio de dação em cumprimento que teve como objeto o prédio urbano identificado nos autos (sito em ...), e que se decretasse o cancelamento do registo de aquisição do direito de propriedade a favor da 2ª ré e eventuais registos de aquisição efetuados na pendência da ação, de modo a que o imóvel regressasse à esfera jurídica da 1ª ré, para que aí fosse apreendido e vendido para pagamento do crédito da autora. Subsidiariamente, pediu que o referido negócio fosse considerado nulo por simulação, devendo as rés ser condenadas a reconhecerem a nulidade do mesmo e em consequência decretar-se na Conservatória do Registo Predial o cancelamento do registo de aquisição a favor da 2ª ré, de modo a que o imóvel alienado regresse à esfera jurídica da 1ª ré. Para sustentar a sua pretensão, alegou, além do mais, que as rés celebraram a referida dação em cumprimento, sem fundamento contabilístico, apenas com o intuito de desviar do património da 1.ª ré o seu bem mais valioso, inviabilizando a cobrança do crédito da autora, em sede de processo executivo e em subsequente processo de insolvência. 2. A 2.ª ré contestou, invocando, além de outos argumentos, a exceção de ilegitimidade passiva da ré “N..., Lda.”. 3. Foi proferido despacho saneador, no qual, quanto à exceção de ilegitimidade passiva, se decidiu o seguinte: «Na sua contestação a Ré invoca a ilegitimidade passiva da N..., Lda., além do mais, por preterição do litisconsórcio necessário, atento o disposto no art. 81º do CIRE, donde resulta que o Administrador da Insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caracter patrimonial que interessem à insolvência, pelo que a ré não tem poderes de representação que bastem à sua intervenção nos autos. Em resposta a autora pugna pela improcedência da exceção. Apreciando e decidindo: Ora, como é sabido, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (…) Todavia, como nota a autora, o bem/imóvel cujo negócio aqui é colocado em causa, não é bem integrante da Massa Insolvente, quer porque não foi apreendido, quer porque sobre ele não foi requerida qualquer diligência prevista no artigo 120º e seguintes do CIRE. Não tendo a MI requerido a resolução do negócio, não reveste qualquer interesse para a mesma, a discussão da ineficácia do negócio que aqui se discute e, por isso, à contrario do disposto no artigo 81º/4 do CIRE, o administrador não assume a representação do devedor, uma vez que os efeitos de carater patrimonial desta ação nada interessam à MI, até porque os efeitos da impugnação pauliana aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido. Sem olvidar que de acordo com o artigo 82º/1 do CIRE, os órgãos sociais do devedor, mantém-se em funcionamento após a declaração de insolvência (…). Não se verificando a ilegitimidade da ré N..., Lda., não se verifica a apontada preterição do litisconsórcio necessário, pelo que julgo improcedentes as exceções deduzidas.» 4. A primeira instância veio a proferir sentença com o seguinte dispositivo: « julgo a presente ação procedente, declarando a nulidade, por simulação, do contrato de dação em cumprimento outorgado por documento particular a 29 de maio de 2018 entre as Rés N..., Lda. e AA, do prédio urbano descrito na Conservatória do registo predial de ... sob o nº ...06 da freguesia de ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...4, determinando-se o cancelamento do respetivo registo (Ap. ...2 de 2018/05/29).» 5. A 2ª ré interpôs recurso de apelação contras as duas referidas decisões, discordando tanto do julgamento da matéria de facto como da aplicação do direito. 6. A autora contra-alegou e requereu a ampliação do objeto da apelação, por entender que se verificavam os requisitos conducentes à procedência da impugnação pauliana. 7. A segunda instância enunciou as seguintes questões a conhecer: «1. como questão prévia, da admissibilidade da requerida ampliação do objeto do recurso; 2. da ilegitimidade passiva; 3. da invocada nulidade da sentença; 4. da impugnação da matéria de facto; 5. se deve a sentença apelada ser revogada/alterada, em razão da alteração da decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo – no seguimento da impugnação da ré/apelante - decidindo-se pela improcedência dos pedidos da ação. 6. caso seja admissível a ampliação do objeto do recurso: do pedido deduzido a título principal.» Após decidir que a ampliação do objeto do recurso requerida pela apelada não era admissível, a segunda instância veio a concluir: «(…) que se torna desnecessário o conhecimento das restantes questões suscitadas pela apelante, considerando que, quanto à improcedência do pedido principal, não houve recurso (e não foi admitida a requerida ampliação do objeto deste, com esse fundamento) e quanto ao pedido subsidiário, verifica-se a absolvição das rés da instância.» Com um voto de vencido, no acórdão foi formulado o seguinte segmento decisório: «(…) julgar parcialmente procedente a apelação, revogar parcialmente a sentença recorrida e absolver as rés da instância no que ao pedido subsidiário diz respeito.» 8. Contra esse acórdão, a autora-apelada interpôs recurso de revista. Nas suas alegações, a recorrente formulou as seguintes conclusões: «1. A questão na presente revista refere-se à verificação da exceção dilatória da ilegitimidade das Rés/Recorridas, devido à preterição do litisconsórcio necessário passivo. Especificamente, se a Autora, ora Recorrente, deveria ter feito intervir na ação, em representação da insolvente 1ª Ré, o administrador de insolvência. 2. Tal como consta do voto de vencido, a 1ª Ré (N..., Lda.), tem interesse direto em contradizer, porque o pedido a pode afetar, porquanto o imóvel em disputa não pertence à massa insolvente. Consequentemente o Administrador da Insolvência, nunca poderia ser considerado parte legitima na ação na qualidade de Réu, porque não tem interesse em contradizer. 3. O bem/imóvel em causa, não é bem integrante da Massa Insolvente, quer porque não foi apreendido, quer porque sobre ele não foi requerida qualquer diligência prevista no artigo 120º e seguintes do CIRE. 4. Não tendo, a MI, requerido a resolução do negócio, não reveste qualquer interesse para a mesma, a discussão da ineficácia do negócio que aqui se discute e, por isso, a contrário do disposto no artigo 81º/4 do CIRE, o administrador não assume a representação do devedor, uma vez que os efeitos de carater patrimonial desta ação, nada interessam a MI. 5. Sendo que de acordo com o artigo 127º do CIRE, ao remeter para o regime da impugnação pauliana geral, que determina que os seus efeitos aproveitam unicamente ao credor impugnante, determinaria até a ilegitimidade da MI para a sua dedução. 6. Esta ação, embora de natureza patrimonial, é pessoal e individual, visando exclusivamente o interesse da Recorrente, sem qualquer interesse para o processo de insolvência da 1ª Ré/Recorrida. 7. Pelo exposto, as Rés/Recorridas são partes legítimas no processo. 8. Ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido violou os artigos 30º do código de processo civil e os artigos 81º, nºs 1 e 4 e 127º do CIRE Termos em que deverá a presente revista ser admitida, julgada procedente e, consequentemente, ser revogado acórdão em recurso, mantendo-se a decisão do Tribunal Primeira Instância, tal como é de JUSTIÇA» 9. A segunda ré (e apelante) apresentou resposta, sustentando a improcedência da revista. Resumiu o seu entendimento nas seguintes conclusões: «I. Foi a Recorrida quem formulou apetição inicial e delimitou o respetivo pedido e causa de pedir, tendo formulado dois pedidos subsidiários: em primeiro lugar, que fosse declarada a ineficácia do negócio discutido nos autos, por meio da figura da impugnação pauliana; e, subsidiariamente, quer fosse declarado nulo, por simulação, o mesmo negócio. II. Em termos de objeto de recurso, estamos apenas a discutir já só o pedido subsidiário, porquanto foi o que foi julgado procedente em sede de primeira instância, já não se discutindo a matéria respeitante ao pedido principal. III. As doutas alegações de recurso da Recorrente debruçam-se sobre o regime da impugnação pauliana quando sobre tal matéria já há caso julgado. IV. A Recorrente, subsidiariamente, requereu que seja declarado nulo, por simulação, o negócio em discussão nos presentes autos, o que significa que, a proceder tal pedido, o imóvel referido na douta petição inicial regressaria à esfera jurídica da Ré/Recorrida N..., Lda.. V. Aderimos integralmente à douta fundamentação constante do douto acórdão recorrido, nomeadamente quando expressamente refere que “estando em causa a invocação de um negócio simulado, há que atentar no disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 33º do CPC: há lugar a litisconsórcio necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.” VI. Se é verdade que o imóvel não integrava a massa insolvente, não menos verdade é que nunca poderia integrar (se assim fosse a ação careceria de fundamento) mas, se o pedido subsidiário formulado pela Autora procedesse, integraria necessariamente! VII. O recurso não deve ser admitido, por não incidir sobre a matéria discutida no douto acórdão recorrido, mas, antes, trazer à colação fundamentos sobre os quais não é admissível recurso. VIII. Por não merecer a douta decisão proferida qualquer reparo, deve improceder o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida. Nestes termos e nos melhores de direito deve o presente recurso ser julgado improcedente, e ser a confirmada a douta decisão proferida, como é de Direito e Justiça.» Cabe apreciar. * II. FUNDAMENTOS 1. Admissibilidade e objeto da revista O acórdão recorrido revogou o decidido pela primeira instância, quanto à decisão sobre o pedido subsidiário (nulidade da dação em pagamento), dado que a decisão sobre o pedido principal (impugnação pauliana) não havia sido alvo de apelação subordinada. Nestes termos, o recurso de revista cabe no âmbito do artigo 671º, n.º 1 do CPC (sendo, para o efeito, irrelevante a existência de um voto de vencido, pois não existiria dupla conforme). Alega a recorrida, na sua resposta, que a recorrente, nas conclusões das suas alegações de recurso, não ataca a decisão sobre o pedido subsidiário, e que apenas se refere à matéria da impugnação pauliana (que se encontra definitivamente julgada), pelo que a revista não deveria ser admitida. Mas não é assim. Apesar de as conclusões da recorrida não apresentarem, propriamente, um elevado recorte técnico, não se pode concluir que a decisão sobre o pedido subsidiário não seja objeto do recurso de revista. Efetivamente, basta atender ao que consta dos pontos n.º 1, 2 e 3 dessas conclusões para se concluir que o que aí vem impugnado é o decidido sobre o pedido subsidiário (independentemente das referências, irrelevantes, à matéria da impugnação pauliana). O objeto da revista é, assim, o de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei de processo quando considerou a primeira ré parte ilegítima e absolveu as rés da instância por entender existir preterição do litisconsórcio necessário. 2. A factualidade provada A primeira instância deu como provada a seguinte factualidade: «1. A Autora dedica-se ao comércio de embalagens e, por sua vez, a 1.ª Ré dedicava-se, entre outros, à indústria, comércio, importação e exportação de malhas e fios têxteis, artigos de vestuário, brindes e produtos de higiene e limpeza. 2. No exercício das respetivas atividades, a Autora forneceu à 1.ª Ré, vários artigos do seu comércio, entre outros, constantes dos documentos emitidos entre 6-9-2018 e 15-5-2019, e que ascendem a 3.745,42€: (…) 3. Face ao não pagamento, a Autora intentou a 12/11/2019 Injunção contra a Ré, que correu termos sob o nº 106273/19.1..., onde peticionava o pagamento da quantia total de 4.384,25€, tendo sido aposta fórmula executória, por não ter sido deduzida oposição. 4. A Autora intentou ação executiva sob o nº 220/20.1... que correu termos no Juízo de Execução de ... – J..., com vista à cobrança coerciva da quantia exequenda de 4.436,38€UR, sendo que os bens que a Autora logrou penhorar estavam já penhorados à ordem do processo 4587/19.6... e eram insuficientes para solver qualquer um dos credores. 5. A Autora requereu a declaração de Insolvência da 1ª Ré, cujo processo com o nº 2268/21.0... correu termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz ..., tendo sido proferida sentença de declaração de insolvência em 12-10-2021. 6. A 14-10-2021, a Autora reclamou o crédito para a AJ no montante de 5.032,28€, que corresponde ao crédito da autora, acrescidos dos juros vincendos, ascendo o montante de créditos reclamados a € 431.246,82. 7. Em sede de liquidação não foram apreendidos bens, tendo sido localizado um prédio urbano descrito na conservatória do registo predial de ... sob o nº ...06 da freguesia de ... situado em ... inscrito na matriz urbana sob o artigo ...4 da freguesia ..., onde a sociedade Ré exercia a sua atividade, contudo o identificado imóvel tinha sido transmitido por dação em cumprimento registado a 29/05/2018 pela AP ...2 a favor de AA, filha do sócio gerente. 8. Por documento outorgado a 25 de maio de 2018 a sociedade Ré declarou ser devedora à 2ª Ré de 138.443,38€ e que com intuito de extinguir essa obrigação declarou dar-lhe em pagamento, o prédio urbano descrito na Conservatória do registo predial de ... sob o nº ...06 da freguesia de ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...4, com o valor patrimonial de 130.256,28€ e atribuído de 150.000,00€. 9. Por sua vez a 2ª Ré declarou aceitar em pagamento da indicada dívida até ao montante de 138.443,38€, o mencionado imóvel, obrigando-se a pagar à 1ª Ré o remanescente do valor do prédio que ultrapassa o seu crédito, que fica assim extinto, ou seja, a quantia de 11.556,62€ no prazo máximo de 3 meses (tendo sido juntos comprovativos de depósitos efetuados em junho de 2018). 10. Em 2020/09/24 foi feita uma promessa de alienação para a empresa F.... Lda., sendo único sócio e gerente BB, irmão de AA e filho do gerente da Ré sociedade. 11. A dívida a favor da Ré não existia, nem se pretendeu extingui-la com a dação em cumprimento, pretendendo enganar-se os credores, de modo a criarem a aparência nestes de que o património havia sido realmente transferido da esfera jurídica da 1ª Ré. 12. As Rés não tinham relações comerciais, servindo-se da dação para retirarem do património da 1.ª Ré o seu ativo mais valioso, já que sabiam da existência de dificuldades financeiras, que motivaria ações de cobrança dos credores 13. Após a referida dação, a Ré continuou a exercer a atividade industrial/comercial nas referidas instalações, não obstante ter mudado formalmente de sede para uma loja de um Centro Comercial na ... em maio de 2018. 14. A sociedade F.... Lda. foi constituída em fevereiro de 2019, e tem o mesmo objeto comercial da 1ª Ré, continuando a laborar no mesmo prédio. 15. A 2.ª Ré procedeu à transferência para pagamento do IMT.» 3. O direito aplicável 3.1. Está em causa apenas a questão de saber se a primeira ré – N..., Lda. – (declarada insolvente por sentença de 12.10.2021), terá legitimidade passiva (como se entendeu na primeira instância bem como no voto de vencido do acórdão recorrido) ou se essa legitimidade cabe ao administrador da insolvência, como a segunda instância entendeu (por maioria). 3.2. O acórdão recorrido fundamentou a sua decisão, em síntese, nos termos que se extratam: «É certo que na presente acção não se peticiona o reconhecimento de um crédito, mas isso não afasta, a nosso ver, todas as repercussões que o legislador quis acautelar quando estatui no sentido vertido no citado art. 81º nº 4. É que, é manifesta a relevância da sorte deste pedido de nulidade por simulação para os credores da insolvente, posto que a prova da simulação e da procedência da acção traz, para o património destes, activos relevantes e aptos a satisfazer, se não totalmente, pelo menos parte dos créditos dos primeiros. E se tivermos em linha de conta que, declarada a insolvência, vigora o princípio par conditio creditorum, o regresso ao património da insolvente do bem objecto da alegada simulação é de inquestionável interesse para todos eles. […] Nessa medida, é nosso entendimento que a ré insolvente não poderia estar por si em juízo e que haveria lugar à aplicação do nº 4 do artº 81º do CIRE, ou seja, cabendo ao administrador da insolvência assumir a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, a ele está atribuída a legitimidade passiva para a presente acção, devendo aquela ser absolvida da instância. […] E, estando em causa a invocação de um negócio simulado, há que atentar no disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 33º do CPC: há lugar a litisconsórcio necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. Assim, ocorrendo ilegitimidade passiva da ré declarada insolvente antes da propositura da acção, estando-lhe vedada a prática de actos processuais que possam ter reflexo na massa e não havendo lugar à substituição processual, a acção não poderá prosseguir com a outra ré não insolvente. Nestes termos, julga-se verificada a invocada excepção da ilegitimidade passiva, no que ao pedido subsidiário diz respeito, com a consequente absolvição das rés da instância.» 3.3. O acórdão recorrido baseia-se, essencialmente, no disposto no n.º 4 do artigo 81.º do CIRE, nos termos do qual “o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”, considerando preteridas, desse modo, as regras previstas no artigo 30º do CPC. Consequentemente, não tendo o administrador da insolvência sido demandado (em vez da devedora), e considerando que a produção do efeito útil da ação implica a existência do litisconsórcio necessário, nos termos do artigo 33.º do CPC, o acórdão recorrido decretou a absolvição das rés da instância (art.º 576.º, n.º 2 do CPC). Vejamos se deve ser assim. 3.4. A declaração de insolvência tem como consequência (entre outras) a apreensão dos bens do devedor para a massa insolvente (art.º 36.º do CIRE), passando o administrador da insolvência a ser o sujeito legitimado para praticar atos de administração e alienação desses bens, na medida em que o insolvente perde tais poderes (art.º 81º, n.º 1 do CIRE). O administrador da insolvência passa também a ser o sujeito legitimado para representar o insolvente em todas as ações pendentes que interessem à insolvência, nos termos do artigo 85.º do CIRE. É o administrador da insolvência quem tem legitimidade passiva para as ações de restituição e separação de bens integrantes da massa, nos termos do artigo 141.º e seguintes do CIRE (atos potencialmente redutores da massa insolvente). E é este sujeito que passa a ter legitimidade ativa para invocar a resolução dos negócios praticados nos 2 anos anteriores à declaração de insolvência, nos termos do artigo 120.º e seguintes do CIRE (atos potencialmente ampliadores da massa insolvente). Por outro lado, o artigo 82º, n.º 3 do CIRE estabelece o elenco das ações que o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir. Assim, conclui-se que, na medida em que a legislação de natureza insolvencial procede a específicos recortes em matéria de legitimidade ativa e passiva do administrador da insolvência para substituir o insolvente, operam-se, consequentemente, desvios às regras gerais consagradas no artigo 30.º do CPC. Tais desvios justificam-se por ser o administrador da insolvência quem está em melhor posição para diretamente defender os interesses dos credores, ao zelar pela consolidação da massa insolvente. Todavia, a regra consagrada no artigo 81º, n.º 4 do CIRE (nos termos da qual “o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”), não pode ser interpretada num sentido tão amplo como se entendeu no acórdão recorrido, pois tal levaria a concluir que o administrador da insolvência teria legitimidade passiva ilimitada para toda e qualquer ação (de natureza patrimonial) que pudesse ser proposta contra o devedor, bem como legitimidade ativa ilimitada para propor qualquer ação (de natureza patrimonial) que entendesse interessar à insolvência. Caso se sustentasse tal interpretação dificilmente se compreenderia o disposto no artigo 82º, n.º 3 do CIRE quando estabelece o elenco das ações que o administrador da insolvência tem legitimidade exclusiva para propor, pois tal legitimidade já resultaria do n.º 4 do artigo 81º. E também dificilmente se compreenderia a existência do limite temporal de 2 anos para a resolução dos negócios anteriores à insolvência (nos termos do art.º 120.º e seguintes) que pudessem lesar o interesse dos credores. Se o próprio devedor insolvente pretendesse invocar, nos termos do artigo 242º do CC, a simulação de um negócio em que foi parte (praticado, por exemplo, 3 ou 4 anos antes da declaração da insolvência), cujo resultado pode aproveitar aos credores, não se compreenderia que lhe fosse negada legitimidade ativa para o efeito, tendo de ser substituído em tribunal pelo administrador da insolvência. Neste quadro, deve concluir-se que, para além das hipóteses especificamente previstas na legislação de natureza insolvencial, o devedor insolvente manterá legitimidade processual (ativa e passiva) nos termos do artigo 30.º do CPC, não podendo o disposto no n.º 4 do artigo 81.º do CIRE ser interpretado como conferindo ao administrador da insolvência legitimidade ilimitada para toda e qualquer ação (de natureza patrimonial) em que o insolvente pudesse ser parte. A declaração de insolvência não é uma declaração de absoluta incapacidade ou ilegitimidade processual do insolvente. Mesmo tratando-se de pessoas coletivas, deve ter-se presente que, nos termos do artigo 82º, n.º 1 do CIRE, “os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência”. 3.5. No caso concreto, o imóvel foi alienado 3 anos antes da declaração de insolvência, logo, não existindo na titularidade do insolvente a essa data, não poderia ter integrado a massa insolvente. Por outro lado, dado o decurso desse tempo, o administrador da insolvência já não poderia proceder à resolução do negócio, nos termos do artigo 120º e seguintes do CIRE. Já não tinha, assim, legitimidade ativa, para poder ampliar a massa insolvente, por via da resolução de atos prejudiciais aos credores. Deste modo, não existindo norma que especificamente transfira a legitimidade processual para o administrador da insolvência, deve concluir-se que, tal como a relação controvertida é configurada pela autora, o titular do interesse diretamente relevante é a ré insolvente e não o administrador da insolvência. Tendo sido ela a interveniente direta, enquanto alienante, no negócio cuja simulação a autora pretende ver declarada, é ela que tem interesse direto em contradizer. Devem, portanto, aplicar-se as regras gerais previstas no artigo 30.º do CPC. Assim, caso se conclua, em termos definitivos, que o negócio em causa era, afinal, válido (consolidando-se a propriedade do imóvel na esfera jurídica da segunda ré), nenhum interesse dos credores da insolvência teria sido servido pelo facto de a legitimidade passiva ser atribuída ao administrador da insolvência. Diferentemente, caso venha a concluir-se, definitivamente, que o negócio foi simulado, o efeito útil normal da decisão será o regresso do imóvel à titularidade do insolvente (dado o efeito retroativo da nulidade - art.º 289.º do CC), onde, por força dos efeitos da declaração de insolvência, será apreendido para a massa insolvente. 3.6. Neste quadro, deve concluir-se que a ação foi proposta contra as duas rés que tinham legitimidade passiva para o efeito (nos termos do art.º 33.º do CPC), pelo que não existiu preterição do litisconsórcio necessário. Em resumo, concluiu-se que o acórdão recorrido não fez a correta aplicação da lei processual, pelo que se impõe a sua revogação, com as inerentes consequências ao nível do prosseguimento da ação. * DECISÃO: Pelo exposto julga-se a revista procedente e decide-se revogar o acórdão recorrido, concluindo-se que a primeira ré tem legitimidade processual, e determina-se a baixa dos autos ao tribunal recorrido para conhecimento das questões que ficaram prejudicadas pela decisão agora revogada. Custas pela recorrida. Lisboa, 11.03.2025 Maria Olinda Garcia (Relatora) Luís Correia de Mendonça Rosário Gonçalves |