Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FREITAS NETO | ||
Descritores: | SIMULAÇÃO DE CONTRATO REQUISITOS CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS CLÁUSULA PENAL CLÁUSULA DE RESGATE REDUÇÃO ANALOGIA ÓNUS DE ALEGAÇÃO PRINCÍPIO DA IGUALDADE EQUIDADE MATÉRIA DE DIREITO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA NULIDADE DE ACÓRDÃO OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO | ||
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Data do Acordão: | 06/21/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA INTERPOSTA PELA RÉ -NEGADA A REVISTA INTERPOSTA PELA AUTORA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I. Para que se verifique a simulação relativa de um negócio é necessário alegar e provar que as partes, sendo ambas declarantes e declaratárias, acordaram (acordo simulatório) esconder um determinado negócio atrás do negócio aparente ou declarado para desse modo enganarem alguém. II. Não configura a alegação de um negócio dissimulado a simples afirmação de que com a celebração de um contrato de prestação de serviço o cliente do serviço quis pagar ao prestador uma dívida que tinha para com ele. III. Integra a figura da cláusula penitencial ou multa penitencial – distinta da cláusula penal a que se reportam os art.ºs 810 a 812 do CC – a cláusula em que é conferida a uma das partes a possibilidade de se desvincular livremente das suas obrigações contratuais mediante o pagamento à outra parte de uma determinada quantia. IV. Essa cláusula penitencial é, no entanto, susceptível de ser reduzida nos termos do art.º 812 do CC, porquanto esta norma, apesar de visar a cláusula penal com função ressarcitiva pura ou combinada, lhe é analogicamente aplicável. V. A redução da cláusula penitencial com fundamento no seu manifesto excesso, ao abrigo do art.º 812 do CC, depende da alegação de factos que demonstrem essa desproporção evidente, e, em particular, que provem que o dano real da parte que é atingida pela desvinculação é claramente inferior, habilitando o tribunal a corrigir o excesso para o valor justo desse dano. VI. Sempre que esteja em causa o princípio da igualdade decorrente da necessidade de harmonização de critérios jurisprudenciais correntemente seguidos no julgamento segundo a equidade, porque então se move para além da mera questão de facto, é lícito ao Supremo Tribunal de Justiça intervir na solução que as instâncias deram ao montante da cláusula a atribuir à parte que dela é beneficiária. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (1ª SECÇÃO) I – RELATÓRIO ADVISABLE KNOWLEDGE, UNIPESSOAL, LDA. instaurou uma acção declarativa comum contra TECHEDGE PORTUGAL, LDA. requerendo a condenação desta no pagamento da quantia de € 207.897,95, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento. Alega que em 30/04/2016 celebrou com a Ré um contrato de prestação de serviço pelo qual se comprometeu a prestar-lhe serviços de consultoria e assessoria no âmbito de desenvolvimento de negócios na área da computação e das tecnologias de informação, mediante uma contrapartida mensal fixa de € 9.000,00; o contrato vigorou durante 37 meses, tendo sido denunciado pela Ré em 28/02/2019, com efeitos a partir de 31/05/2019; na sequência dessa denúncia, invocando a cláusula 9ª, n.º 1, alíneas a) e b), do contrato, solicitou a Autora à Ré o pagamento de uma compensação no valor de € 171.000,00, bem como o montante de € 27.750,00, correspondente a 1/12 de € 9.000,00 por cada mês de duração contratual; ao que a Ré se recusou, desse modo incorrendo em incumprimento contratual gerador da respectiva responsabilidade nos termos dos artigos 406º, 798º e 799º, todos do Código Civil. * Contestou a Ré, excepcionando a nulidade cláusula 9ª do contrato por se tratar de uma cláusula simulada; sem prejuízo dessa nulidade, porque se trata de uma verdadeira cláusula penal não tem a A. direito ao pagamento de qualquer quantia a esse título por não ter sofrido danos na sua esfera jurídica com a denúncia do contrato pela Ré ali prevista; assim não se entendendo, o montante fixado em tal cláusula é manifestamente excessivo e, por isso, sempre deve o tribunal proceder à sua redução para o montante de € 18.000,00 nos termos do artigo 812º, n.º 1, do Código Civil. * Respondendo às excepções aduzidas pela Ré, defendeu-se a A. alegando que não estão presentes os requisitos da alegada simulação, pois nem sequer é por ela esclarecido quem é o terceiro que teria sido enganado; que o contrato em discussão foi celebrado por vontade e conveniência de ambas as partes, tendo, inclusivamente, sido redigido pela Ré; que com a cessação do contrato a A. deixou de receber a contrapartida financeira acordada, o que configura um dano efectivo; que a compensação convencionada no n.º 2 da cláusula 10ª do contrato em discussão, apenas corresponde a 50% da prestação antes recebida pela Autora; que a indemnização acordada na cláusula 9ª incorpora os direitos “cedidos” pelo Sr. AA à Autora quando deixou a gerência da Ré, bem como os demais prejuízos provenientes da cessação do contrato; por fim, que só se justificaria a redução da cláusula penal estipulada se ela fosse patentemente exagerada ou usurária por uma visível desproporção entre o seu valor e o dano efectivamente causado, o que não é demonstrado. A final foi proferida sentença que julgou a acção procedente por provada e condenou a Ré “Techedge Portugal, Lda.” a pagar à Autora “Advisable Knowledge Unipessoal, Lda.” a quantia global de € 198.750,00, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento. Inconformada, apelou a Ré para a Relação de Lisboa, a qual, julgando a apelação parcialmente procedente, revogou em parte a sentença, e, em consequência, condenou a Ré a pagar à Autora o montante de € 125.000, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento. Irresignados, do acórdão da Relação interpuseram para este STJ recursos de revista a A. e a Ré. * II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO São os seguintes os factos que vêm fixados pelas instâncias: 1° A Autora é uma sociedade por quotas que tem por objecto, entre outros, a prestação de serviços de consultoria e assessoria, no âmbito de desenvolvimento de computação e tecnologias de informação. 2° No dia 30/04/2016, a Autora e a Ré (então denominada “Realtech Portugal – System Consulting, Sociedade Unipessoal, Lda.”) celebraram o acordo escrito junto aos autos a fls. 5 a 17, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 3º No âmbito do acordo escrito referido em 2°, a Autora comprometeu-se a prestar à ré, de modo exclusivo e mediante o pagamento da quantia mensal de € 9.000,00, “serviços de desenvolvimento empresarial e outros assuntos relativos a tecnologias de informação e informática”. 4 – No âmbito do acordo escrito referido em 2, concretamente na cláusula 9ª, n.°1, alíneas a) e b), Autora e Ré estipularam que “No caso de rescisão deste contrato por parte do cliente (...) o prestador de serviços tem direito a receber uma indemnização por todos os serviços prestados no âmbito do presente e que será igual ao seguinte: a. O montante correspondente à taxa fixa mensal prevista no parágrafo 1 da cláusula 3 multiplicada por dezanove (19); e b) um duodécimo da taxa fixa mensal prevista no parágrafo 1 da cláusula 3 por cada mês de duração deste contrato.” 5 – O acordo escrito referido em 2 foi celebrado sem prazo, tendo Autora e Ré estipulado que qualquer uma delas podia pôr termo ao mesmo mediante comunicação escrita com 90 dias de antecedência. 6 – A Autora prestou à Ré os serviços referidos em 3 durante 37 meses. 7 - No dia 28/02/2019 a Ré enviou à Autora, que recebeu, a carta junta aos autos a fls. 18 v°, com o seguinte teor: «Conforme o disposto na cláusula 8 do “services agreement” celebrado entre a Techedge Portugal Lda. (ao tempo denominada Realtech Portugal – System Consulting, Sociedade Unipessoal, Lda.) e a Advisable Knowlwdge, Unipessoal, Lda., em 30 de Abril de 2016, somos pela presente a denunciar o referido contrato, produzindo a denúncia efeitos no próximo dia 31 de maio de 2019.». 8 – AA, sócio único e gerente da Autora, foi director geral e gerente da Ré entre 05.05.2006 e 29.04.2016. 9 – No dia 30/04/2016 AA enviou à Ré a carta junta aos autos a fls. 80, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, comunicando, entre outras, a cessação dos seus serviços para a Ré. 10 – Até à presente data, a Ré não pagou à Autora os valores referidos na cláusula 9ª, n.º 1, alíneas a) e b) do acordo escrito referido em 2. 11 – No âmbito do acordo referido em 2, a Autora obrigou-se perante a Ré a não exercer concorrência com esta durante o período de 12 meses a contar do termo do contrato, caso a Ré assim o exigisse, o que não sucedeu. 12 – Após o termo do contrato referido em 2, a Autora não logrou angariar qualquer outro cliente durante três meses. 13 – O acordo escrito referido em 2 foi redigido pelos serviços de assessoria jurídica da Ré e outorgado pelo gerente da Techedge Espana SL, enquanto representante da entidade detentora de 100% do capital social da Ré. * A revista da Ré. Nesta revista, a Ré e recorrente encerra a sua alegação com as seguintes conclusões: 1. O presente recurso tem por parte objecto o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, o qual julgou a apelação apresentada pela Recorrente parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia global de € 125.000,00, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento. 2. O Tribunal a quo, ao admitir que a clausula 9ª do contrato de prestação de serviços constitui um negócio simulado e, por consequência nulo, condenando, todavia, a final, a Recorrente a cumprir o teor de tal cláusula, proferiu decisão que se encontra em contradição com os seus fundamentos, pelo que padece de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC (aplicável ex vi art. 666.º CPC). 3. Declarada a nulidade, deve o Supremo Tribunal de Justiça substituir-se ao Tribunal a quo e decidir a pretensão da Recorrente, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 684.º do CPC. 4. Encontrando-se verificados os pressupostos (cumulativos) constantes do n.º 1 do artigo 240.º do C.C, configura a Cláusula 9.ª do contrato dos autos negócio absolutamente simulado, encontrando-se ferida de nulidade. 5. Tal nulidade apenas poderia ser afastada mediante prova da existência do acordo dissimulado. 6. O ónus de prova de tal acordo recaía sobre a Recorrida, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do C.C, prova essa que a Recorrida manifestamente não fez. 7. Deve assim este Supremo Tribunal de Justiça concluir pelo carácter absoluto da simulação, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 240.º do C.C, o que se requer. 8. Ou, caso assim não se entenda, mandar baixar aos autos à Relação, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 682.º do CPC, de modo a ser acrescentado um novo facto: “As partes ao estipularem a Cláusula 9.ª do contrato dos autos não pretendiam que esta produzisse os efeitos que lhe correspondem”. 9. Tal conclusão terá inevitáveis repercussões no plano do silogismo judiciário, devendo determinar a absolvição da Recorrente do pedido, com fundamento na nulidade da cl. 9.ª. 10. A redução da cláusula penitencial efectuada pelo Tribunal a quo é manifestamente insuficiente, não só porque assenta em critérios económicos não fundamentados, mas ainda porque o valor € 125.000,00 se mantém manifestamente excessivo atendendo aos factos do caso em análise, 11. Nomeadamente, porque não ocorreu qualquer incumprimento ou mesmo simples mora por banda da Recorrente do contrato; porque o contrato teve a duração global de 37 meses, tendo o valor pago pela Recorrente à Recorrida sido de € 333.000,00; porque a Recorrida terá estado apenas 3 meses sem obter receitas que teriam sido, a manter-se o contrato denunciado, no montante apenas de 27.000 euros; e porque tal quantia corresponde a mais de um ano de remuneração ao abrigo do contrato denunciado. 12. De facto, o montante de € 125.000,00 é manifestamente excessivo, designadamente quando enquadrado nos casos em que é a própria lei a definir a indemnização devida em caso de exercício de direito de desvinculação do contrato por uma das partes (vg, Decreto-lei n.º 74-A/2017, de 23 de Junho, e Regime Jurídico do Contrato de Agência). 13. Deve, por isso, a cláusula penitencial ser reduzida para montante em caso algum superior a 8,3% do montante previsto a título de compensação. 14. Caso assim não se entenda, sempre se dirá que a redução da cláusula penitencial pode também ter lugar por intermédio do instituto do abuso de direito, na modalidade de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas. Nestes termos, e com o douto suprimento de V. Ex.ªs, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por Acórdão que julgue a presente acção totalmente improcedente, por não provada e que, em consequência, absolva a Recorrente do pedido contra si formulado pela Recorrida. Caso assim não se entenda, deve ser proferido Acórdão que reduza o montante a pagar pela Recorrente à Recorrida, nos termos peticionados. * Não houve resposta ou contra-alegação da A./recorrida. * São as seguintes as questões que surgem levantadas neste recurso: Nulidade do acórdão recorrido por oposição entre os fundamentos e a decisão (art.º 615, nº 1, al.ª c)) do CPC); Nulidade por simulação da cláusula 9ª do contrato celebrado entre a A. e Ré em 30.04.2016; Redução da indemnização constante da referida cláusula. * A nulidade do acórdão recorrido. Argui a Ré/recorrente a nulidade do acórdão recorrido prevista na alínea c) do art.º 615 do CPC por haver oposição entre os seus fundamentos e a decisão. Tal oposição foi assim expressa: “ (…) nas páginas 24 e ss. do Acórdão recorrido, o Tribunal a quo reconhece na cláusula 9.ª uma verdadeira simulação, demonstrando a verificação dos respectivos pressupostos: a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o acordo ou conluio entre declarante e declaratário e, por último, a intenção de enganar terceiros. Em suma, nas páginas 24 a 27 do Acórdão Recorrido, o Tribunal a quo expõe claramente por que razão considera preenchidos os pressupostos, impostos pelo art. 240.º do CC, para a verificação de simulação na estipulação constante da cláusula 9.ª. Todavia, não obstante tal reconhecimento, ao qual acresceu a correcta reversão, para não provados, dos factos n.ºs 10 e 11 – i.e, recorde-se, os factos relativos à recondução da Cláusula 9.ª do contrato a uma cláusula de compensação pela cessação de funções de gerência de AA – o Tribunal a quo acabou (erradamente) por não concluir pela simulação absoluta da referida cláusula 9.ª (…)”. Porém, não tem a Ré/recorrente razão quanto à verificação da invocada oposição. O que o acórdão recorrido afirmou – e que, aliás, não merece a nossa concordância – é que os factos dados como provados pela 1ª instância que figuraram sob os nºs 10 e 11 do elenco então consignado seriam idóneos para a consubstanciação de um acordo simulatório, na modalidade de uma simulação relativa pela interposição fictícia da A. num negócio que dizia efectivamente respeito à Ré e ao seu ex-gerente. No entanto, por considerar que houve violação das regras probatórias de direito material respeitantes à prova da simulação pelos simuladores, veio o acórdão a dar aqueles factos como não provados. Não existe aqui, por isso, qualquer contradição porque o acórdão apenas concluiu que aqueles factos, caracterizando um acordo simulatório, não podiam permanecer provados por assentaram em prova proibida. Donde a improcedência da arguição em apreço. A nulidade da cláusula 9º do contrato. No acórdão recorrido escreveu-se a propósito da cláusula 9ª do contrato celebrado entre A. e Ré em 30.04.2016: “(…) Sem prejuízo do que fica dito, a verdade é que os factos provados sob 10 e 11 demonstram a existência de um negócio dissimulado. (…) O que ocorre é uma simulação subjetiva por interposição fictícia de pessoas, em que uma pessoa aparece com parte no negócio, mas, em virtude de acordo oculto, os efeitos dele destinam-se a outra pessoa, não adquirindo de facto o interposto a posição que exteriormente parece assumir (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.11.2009, Ferreira de Sousa, 336/1999, de 9.3.2021, Pinto de Almeida, 2891/18). Ou seja, no que tange à cláusula 9ª do contrato sob apreciação, a intervenção da Advisable Knowledge, Lda. é a título de mero testa de ferro, havendo um acordo entre as duas partes formais no contrato, por um lado, e AA, por outro, no sentido de que os valores previstos em tal cláusula (máxime primeira parte) emergem de um crédito prévio de AA e se destinam a este, que não à Advisable Knowledge, Lda. Em suma, os factos provados sob 10 e 11 demonstram a existência de um negócio dissimulado entre as partes. (…)”. Entendeu, pois, o acórdão recorrido que se encontrava demonstrada a matéria factual necessária e suficiente para a verificação de uma simulação relativa no negócio declarado através de uma interposição fictícia da A. (simulação subjectiva por se reportar aos sujeitos) que serviu para dissimular o verdadeiro interveniente e destinatário da cláusula 9ª do contrato – o aludido AA, ex-gerente da Ré. No entanto, como a factualidade que respaldava essa dita simulação relativa emergia dos factos dados como provados na 1ª instância sob os nºs 10 e 11, e tinha havido desrespeito da restrição probatória de direito material do art.º 394, nº 2, do CC, os mesmos teriam que passar a ser considerados como não provados, desaparecendo o suporte da alegada simulação. Na verdade, aí se veio a ponderar: “(…) Destarte, estava preterido às partes (simuladores) fazer a prova do negócio dissimulado através de prova testemunhal e/ou de declarações de parte, como foi precisamente o caso. Tratando-se de factos cuja prova se estribou apenas em declarações de parte e depoimento testemunhal, em prova proibida, há que reverter tais factos 10 e 11 para factos não provados, consoante peticionado pela apelante, o que se determina. Note-se que não se mostra juntos aos autos qualquer princípio de prova escrita proveniente da Ré que dê azo à admissibilidade da prova testemunhal – sobre esta matéria, cf., desenvolvidamente, LUÍS FILIPE SOUSA, Direito Probatório Material Comentado, 2ª ed., Almedina, 2021, pp. 222-232. (…)”. Nas conclusões 4ª, 5º, 6ª e 7ª da respectiva alegação diz agora a Ré ora recorrente: “ 4. Encontrando-se verificados os pressupostos (cumulativos) constantes do n.º 1 do artigo 240.º do C.C, configura a Cláusula 9.ª do contrato dos autos negócio absolutamente simulado, encontrando-se ferida de nulidade. 5. Tal nulidade apenas poderia ser afastada mediante prova da existência do acordo dissimulado. 6. O ónus de prova de tal acordo recaía sobre a Recorrida, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do C.C, prova essa que a Recorrida manifestamente não fez. 7. Deve assim este Supremo Tribunal de Justiça concluir pelo carácter absoluto da simulação, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 240.º do C.C, o que se requer”. Impõe-se aqui enfatizar que não se compreende em que substrato fáctico a recorrente se apoia para concluir pela prova de um negócio absolutamente simulado através da cláusula 9ª do contrato sub judice. Com efeito, o que está demonstrado no acervo fáctico reunido pelas instâncias resume-se ao seguinte: No dia 30/04/2016, Autora e a Ré (então denominada “Realtech Portugal – System Consulting, Sociedade Unipessoal, Lda.”) celebraram o acordo escrito junto aos autos a fls. 5 a 17; No âmbito do acordo escrito referido em 2°, a Autora comprometeu-se a prestar à Ré, de modo exclusivo e mediante o pagamento da quantia mensal de € 9.000,00, “serviços de desenvolvimento empresarial e outros assuntos relativos a tecnologias de informação e informática”; Na cláusula 9ª, n.° 1, alíneas a) e b), Autora e Ré estipularam que “No caso de rescisão deste contrato por parte do cliente (...) o prestador de serviços tem direito a receber uma indemnização por todos os serviços prestados no âmbito do presente e que será igual ao seguinte: a). O montante correspondente à taxa fixa mensal prevista no parágrafo 1 da cláusula 3 multiplicada por dezanove (19); e b) um duodécimo da taxa fixa mensal prevista no parágrafo 1 da cláusula 3 por cada mês de duração deste contrato.» AA, sócio único e gerente da Autora, foi diretor geral e gerente da Ré entre 05.05 2006 e 29.04.2016; No dia 30.04.2016, AA enviou à Ré a carta junta aos autos a fls. 80, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, comunicando a cessação dos seus serviços para a Ré”. O art.º 240 do CC define a simulação como o acordo entre declarante e declaratário para a divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante com o intuito de enganar terceiros. São assim requisitos da simulação: A divergência entre a vontade real e a declaração negocial; O acordo ou conluio entre declarante e declaratário para essa divergência (acordo simulatório); O intuito de enganar terceiros (animus decipiendi). A falta de um só destes requisitos exclui, como é óbvio, o vício da simulação do negócio. Não se colhe do acervo fáctico – e, de resto, não foi sequer alegado – que foi intuito das partes outorgantes do contrato de prestação de serviço enganar alguém, e ainda menos, quem foi o terceiro alvo desse engano. Mas também não deflui da mesma materialidade apurada – como já não decorria da factualidade carreada para os autos – que mediante o convencionado na cláusula 9ª do contrato de prestação de serviço de 30.04.2016 as partes tenham querido coisa diversa do declarado (simulação relativa) ou que não tenham querido de todo a prestação do serviço que declararam contratar (simulação absoluta). A causa de pedir ou facto jurídico do qual emerge a pretensão da A. é um contrato de prestação de serviço (art.º 1154 do CC) celebrado com a Ré. A circunstância de AA, até então gerente da Ré, ter na mesma altura comunicado a cessação de tais funções, passando então a exercer a gerência na A. – como seu único sócio – não significa que a Ré não pretendesse o serviço contratado com a A.. nem que esta o não quisesse realmente prestar. E se porventura ao convencionarem o clausulado em 9º do referido contrato de prestação de serviço as partes tivessem almejado com isso “compensar” o referido AA pela cessação da gerência na Ré – o que, embora alegado, acabou por não ter sido dado como provado – tal corresponderia sempre ao livre exercício da sua autonomia negocial e liberdade contratual, autonomia e liberdade que, ao contrário do que se pretende no acórdão recorrido, não envolvia a suposta (porque não alegada) dissimulação de um negócio de outro tipo (negócio latente). Na realidade, como gerente e único sócio da A. Advisable Knowledge, dispunha o referido AA de total liberdade para aceitar ou não as condições resultantes do referido contrato de prestação de serviço. Nunca foi alegado que as partes não queriam a prestação do serviço pela A., nomeadamente com a cláusula que ali foi inserida atinente ao pagamento pela desvinculação da Ré sem culpa ou motivo da A. A escolha do modo de ressarcimento da A. concretamente adoptado pelas partes com a aludida cláusula para a desvinculação livre ou ad nutum da Ré nunca implicaria, em si mesma, um acordo simulatório ou dissimulatório, como parece ter sido axiomaticamente postulado no acórdão recorrido. Para se poder falar em negócio dissimulado teria de ser descrito algum outro que as partes tivessem escondido atrás do contrato de prestação de serviço que declararam ter celebrado. Note-se que não há cláusulas negociais simuladas: o que há é negócios com simulação do respectivo conteúdo (que se integram na modalidade da simulação relativa) por haver um elemento do negócio latente ou dissimulado “que aparece desfigurado no negócio ostensivo” (cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Almedina, 1972, V. II, pág.s 186-188). De todo o modo, não foi invocado qualquer acordo simulatório para a prestação de serviço constante do documento escrito de 30.04.2016. Nem foi sustentado que o contrato que veio a ser celebrado envolvesse uma “interposição fictícia de pessoas” (simulação relativa subjectiva) nos moldes em que foi vislumbrada pelo acórdão recorrido através da presença da A. como “testa de ferro” do aludido AA. A prestação do serviço foi efectivamente querida pela Ré e por ela solicitada à A., sem embargo de o aludido AA ser o seu único sócio. Não há qualquer alusão a um negócio oculto, latente ou dissimulado com o contrato celebrado entre A. e Ré em 30.04.2016. Em suma: os factos apurados não autorizam a qualificação do contrato identificado no facto provado em 2 do elenco dos factos provados como um negócio simulado, seja na modalidade de simulação absoluta, seja na modalidade de simulação relativa (esta mesmo na modalidade de simulação subjectiva). Sobre a redução do valor constante da cláusula 9ª do contrato. Insurge-se a Ré/recorrente contra a exiguidade da redução operada pela Relação do montante resultante da cláusula 9º do contrato celebrado com a A. em 2016, pugnando por uma redução ainda mais profunda por forma que a Ré seja condenada a pagar um valor em caso algum superior a 8,3% do montante estipulado. Devendo essa redução/correcção operar-se com base no disposto no art.º 812 do CC, ou com base no abuso do direito (art.º 334 do CC), por a exigência do montante convencionado atentar contra a boa-fé e ser contrária ao valor económico e social do direito exercido. Importa antes do mais, tomar posição sobre a natureza da cláusula em questão. Em 1982, no seu Direito das Obrigações (Coimbra Editora, 4ª Edição, p. 350-351), definia Galvão Telles cláusula penal como “a convenção através da qual as partes fixam o montante da indemnização a satisfazer em caso de eventual inexecução do contrato”. E acrescentava: “Trata-se, como sabemos, de uma liquidação convencional antecipada dos prejuízos, tomando o termo liquidação no sentido técnico já nosso conhecido de determinação do montante de uma obrigação de quantitativo incerto. A liquidação da indemnização é feita, aqui, a forfait, visto não se saber ainda o valor real dos prejuízos nem mesmo se eles virão a produzir-se.” Como assinala Pinto Monteiro, em Cláusula Penal e Indemnização, Coleccção Teses, Almedina, 1990, p. 601-602, esta construção tradicional do conceito de cláusula penal que caracterizou os sistemas romanistas correspondia ao chamado “modelo unitário”, porquanto a “Função omnipresente seria a indemnizatória, não ocupando a função coercitiva mais do que um plano meramente secundário e eventual”. Abandonado o modelo unitário, mesmo pelos sistemas romanistas – prossegue o mesmo autor – haveria hoje (1990) que distinguir-se a cláusula de fixação antecipada do montante de indemnização, “em que as partes visam, tão só, liquidar antecipadamente, ne varietur, o dano futuro”, daquela “cujo escopo é puramente coercitivo e a sua índole, por isso, exclusivamente compulsivo-sancionatória (…), que alguma doutrina italiana chama “pena pura”, traduzindo-se a sua especificidade no facto de “ser acordada como um plus, como algo que acresce à execução específica ou à indemnização pelo não cumprimento”, não substituindo uma ou outra. Subsistindo ainda, ao lado delas, a “cláusula penal em sentido estrito” ou “cláusula penal propriamente dita”, ou seja, aquela em que “a pena visa compelir o devedor ao cumprimento” mas também “substitui a indemnização, quer dizer, não acresce a esta nem à execução específica da prestação”, levando “à satisfação do interesse do credor” (sobre cada uma destas várias modalidades, pode também ver-se o Ac. do STJ de 23.01.2015, p. no P. 3938/12.9TBPRD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt). O acórdão recorrido afastou a qualificação da cláusula 9ª do contrato como cláusula penal, subsumindo-a antes ao conceito de cláusula penitencial ou multa penitencial. Fê-lo socorrendo-se do excurso que se transcreve: “(…) A cláusula penal tem por fundamento a prática de um facto ilícito pelo devedor. Conforme refere NUNO PINTO OLIVEIRA, Ensaio Sobre o Sinal, Coimbra Editora, 2008, p. 73, «A cláusula penal concretiza-se na convenção por que se atribui ao credor a faculdade de exigir uma prestação (em regra, uma quantia em dinheiro) para o caso de o devedor não cumprir o contrato, ou de o não cumprir perfeitamente.» Constitui realidade diversa, e sem consagração expressa no Código Civil, a denominada cláusula penitencial, cláusula de resgaste ou multa penitencial, a qual «consiste na convenção por que se atribui ao devedor a faculdade de realizar uma prestação diferente da devida (em regra, a faculdade de realizar uma prestação em dinheiro), arrependendo-se, desistindo ou desvinculando-se do contrato» - NUNO PINTO OLIVEIRA, Ensaio Sobre o Sinal, Coimbra Editora, 2008, p. 75.” (…) A cláusula 9º integra uma genuína cláusula penitencial, cláusula de resgaste ou multa penitencial e não uma cláusula penal. Com efeito, o pressuposto de aplicação de tal cláusula não assenta num ato ilícito de uma das partes, num incumprimento contratual. (…) O que a Cláusula 9ª prevê é a possibilidade de o cliente se desvincular unilateralmente do contrato, sem que tenha de fundamentar tal conduta em violação contratual da contraparte, desde que com uma antecedência de noventa dias (cf. Cláusula 8ª, ponto 1), ficando tal desvinculação condicionada ao pagamento de um valor composto de duas partes, sendo uma fixa e outra variável em função do período de vigência do contrato. Estão, pois, reunidos os requisitos constitutivos da cláusula penitencial”. Acompanhamos nesta parte o acórdão recorrido. A ratio da denominada cláusula (multa) penitencial é obviamente diversa da que explica a cláusula penal a que se reportam os art.ºs 810 a 812 do CC (cfr. também o Ac. do STJ de de 28.1.2021, prof. no P. 3443/18, disponível em www.dgsi.pt.) Não há, na verdade, na estipulação plasmada na cláusula 9ª qualquer conexão com o incumprimento ou com a mora, isto é, com um facto ilícito pela parte onerada com o respectivo pagamento (a Ré): o que dela ressalta com nitidez é o estabelecimento de um valor composto para o preço (penitência) da desvinculação contratual da Ré, tendo as partes aceite a licitude dessa desvinculação desde que observada a antecedência mínima de 90 dias. Ao acórdão recorrido colocou-se ainda o problema de saber se, assumindo a cláusula em apreço a natureza de uma cláusula de mero resgate (ou de multa penitencial), também ela seria susceptível de redução visto não se poder enquadrar no conceito de cláusula penal acolhido nos art.º 810 a 812 do CC, conceito inequivocamente ligado à ilicitude do comportamento da parte onerada. Depois de registar a divergência doutrinal que emergiu a este propósito – com os defensores da irredutibilidade da cláusula penitencial como Calvão da Silva (Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, p. 309, nota 550) e Nuno Pinto de Oliveira ((Ensaio Sobre o Sinal, Coimbra Editora, 2008, p. 260) e os que advogam a sua redutibilidade por aplicação analógica do art.º 812, como Pinto Monteiro (Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, p. 730) – propendeu o acórdão recorrido para aceitar a possibilidade de redução da cláusula penitencial por aplicação (analógica) do disposto no art.º 812 do CC. E, em coerência com essa posição de princípio, reduziu efectivamente a cláusula 9ª para o montante de € 125.000,00 – num julgamento que reputou efectuado segundo a equidade – por meio da ponderação do circunstancialismo que se transcreve: “ (…) Tendo em conta o reduzido período de execução do contrato (37 meses), o valor de € 198.750 representa 59,68% do valor pago pelo cumprimento regular do contrato durante a sua vigência de 37 meses (€ 333.000). Assim, reputamos manifestamente excessivo e desproporcional um preço de desvinculação de um contrato, após 37 meses de execução, em que a multa penitencial corresponde a 59,68% do valor do contrato executado. Se o contrato tivesse durado o dobro (74 meses), o valor da cláusula 9ª seria de € 226.500 (mais € 27.750 do que ao fim de 37 meses), correspondendo a 34% do valor do contrato executado em 74 meses (€ 666.000). Nesta medida, cremos que o preço da desvinculação da Ré não será manifestamente excessivo se reduzido a € 125.000, correspondendo a 37,53% do valor contratual executado (€ 333.000), exercendo ainda a sua função precípua de multa penitencial. Na prática, este valor significa que a cláusula penitencial equivale a mais de um ano de execução de um contrato que vigorou durante três anos e um mês”. Subscrevendo a tese da redutibilidade da cláusula penitencial a que se aderiu no acórdão recorrido, vejamos agora se foi acertada a sua qualificação pela Relação como manifestamente excessiva. Cláusula penal (em qualquer das modalidades supra identificadas) e cláusula de resgate ou penitencial são figuras com uma génese negocial completamente distinta. A cláusula penal meramente ressarcitiva ou com função também ressarcitiva (seja a cláusula de fixação antecipada da indemnização ou a cláusula penal em sentido estrito ou cláusula penal propriamente dita) deriva de uma indemnização fixada pelas partes antecipadamente e a forfait, ao passo que a cláusula ou multa penitencial se traduz numa prestação objecto de negociação e decisão livre e ponderada pelas partes, que, em princípio, a tomaram por justa e adequada à defesa e salvaguarda dos respectivos interesses. A fixação de uma indemnização a forfait é algo que as partes admitem como razoável no momento em que ela acontece mas que comporta um evidente risco de excesso ou de total injustificação em face da realidade que depois se vem a constatar. Tal como o preço de uma compra-e-venda sem vícios da vontade dos contraentes não será excessivo na medida em que tenha sido livre e informadamente acordado, ou tal como o sinal penitencial acordado nos mesmos termos também não deve ser judicialmente diminuído (cfr. o nº 1 do art.º 442 do CC), poderia igualmente pensar-se que o preço da desvinculação, arrependimento ou resgate que foi estipulado ou convencionado pelas partes como valor justo ou adequado, por ter sido o produto resultante da sua vontade e autonomia, não poderia ser tocado, mesmo que manifestamente exagerado diante dos valores com ele concretamente visados no negócio. E que desprezar (ou modificar) o valor da cláusula penitencial aceite pelos contratantes atentaria contra o equilíbrio entre as prestações que determinou a convergência das respectivas vontades e que culminou na assinatura do contrato, com toda a teia de obrigações, direitos e vantagens advenientes para cada um deles. Porem, à semelhança da cláusula penal com função ressarcitiva, pura ou combinada, também a denominada cláusula penitencial pode revelar-se exagerada ou desproporcionada logo na sua previsão ou no acto da sua exigência em concreto. É esse excesso manifesto, segundo as circunstâncias e termos do negócio, que o art.º 812 permite corrigir ou rectificar. É certo que enquanto o art.º 812 do CC se destina – como alerta Pinto Monteiro (ob. cit., p. 730) – a corrigir abusos e excessos “ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações”, uma tal aleatoriedade não se verifica na cláusula penitencial. Ao fixarem esta cláusula num certo montante as partes dispõem logo de um conjunto de elementos relativamente sólidos para calcularem as consequências de uma desvinculação em determinado momento da vigência contratual. Não se nos afigura, contudo, que na estipulação em si mesma do pagamento de uma cláusula penitencial não possa estar sob censura o seu carácter excessivo. Desde logo não há nessa estipulação uma prestação contratual propriamente dita a satisfazer por uma das partes no desenho do equilíbrio global das respectivas posições, inserida no cruzamento dos respectivos interesses e contrapartidas contratuais. É que a chamada cláusula penitencial só é exigível porque cessa a execução contratual com desvinculação da parte que dela beneficia. E essa cessação é um acto antecipadamente regulado pelas partes no contrato como lícito. Sendo inegavelmente devida por um acto lícito, a cláusula penitencial participa do mesmo cariz indemnizatório ou ressarcitivo da cláusula penal propriamente dita porquanto a cessação da execução contratual pela parte que se desvincula é para a outra parte (que contava com a manutenção do programa contratual), ao menos de um certo ponto de vista, um dano ou prejuízo, mesmo proveniente de algo legítimo, previsto e consentido. Ocorre aqui, portanto, uma certa similitude ou afinidade entre o fim da cláusula penal em sentido estrito e o objectivo visado com a cláusula penitencial. Por isso, em sintonia com o acórdão recorrido – e em divergência com os autores ali referenciados – pensamos que, por analogia, a redução da cláusula penal a que alude art.º 812 do CC é também de aplicar à cláusula ou multa penitencial. Mas sendo a dita cláusula redutível será de sufragar o entendimento plasmado no acórdão de que a cláusula em apreço, no montante que emerge do seu cômputo contratual, peca por um excesso manifesto que justifica a sua redução por equidade? O valor que é exigido na acção pela A. equivale a pouco mais de um ano e meio da retribuição acordada com a Ré para a vigência e normal execução do contrato. Como se viu, a Relação baixou esse valor para uma quantia correspondente a cerca de um ano dessa retribuição considerando que o montante reclamado equivale a 59,68% do serviço executado, tendo o contrato durado três anos e um mês (37 meses). Para essa redução atendeu, por conseguinte, à duração efectiva do contrato e à retribuição recebida pela A., sem aludir específicamente ao peso que a percentagem fixa desempenha na cláusula (19 x 9.000,00) e olvidando a circunstância de a menor duração do contrato até acarretar um maior dano na expectativa da A. (isto é, de quem prestava o serviço). Dispõe-se no art. 812 do CC que “1. A cláusula penal pode ser reduzida, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva (…)”. A exigência do pagamento da cláusula tendo em conta o modo, o tempo e as circunstâncias do seu exercício, pode atentar contra a boa-fé contratual (art.º 762, nº 2, do CC) ou constituir um exercício abusivo pela parte a favor de quem foi instituída (art.º 334 do CC). O que não implica que logo na sua estipulação ela já seja abusiva ou atentatória da boa-fé ou do seu fim económico. São planos diferentes: um é o da estipulação da cláusula penitencial qua tale, no quadro negocial delineado pelas partes, e do seu patente excesso ou injustificação face a esse quadro; outro, dele distinto, é o da sua posterior e concreta exigência, a qual, pelo tempo e (ou) pelo modo em que é realizada, pode ser abusiva face à situação do seu beneficiário, por se revelar ostensivamente excessiva em face do dano por ele efectivamente suportado, consubstanciando um acto atentatório da boa-fé ou do fim económico do direito. Nos presentes autos o excesso manifesto invocado pela Ré reside inequívocamente no plano da sua concreta exigência. Acontece que o excesso exigido pelo art.º 812 do CC não pode ser um excesso deduzido de outras situações em que a lei imponha limites quantitativos à cláusula de desvinculação, nem pode ser exclusivamente aferido pelos proventos auferidos pela parte afectada com a desvinculação no período de execução contratual que precedeu a cessação do contrato. Não seria ele, então, manifesto. Ou seja, ele não pode assentar num juízo abstracto sobre o dano real do beneficiário da cláusula (dano da frustração da expectativa da prossecução negócio). A intervenção do tribunal só pode ter lugar se ficar provada factualidade que seja a idónea e suficiente para se concluir pelo excesso manifesto da cláusula perante o dano efectivo da parte que com ela beneficia em virtude da desvinculação da outra parte e inerente cessação do contrato. Não se trata aqui de um excesso ou de uma desproporção provável, mas antes de uma desproporção que de alguma maneira “salte aos olhos” do intérprete. O carácter manifesto do excesso da cláusula tem de ser aquele que se traduz numa desproporção evidente e gritante perante o quadro factual concreto, e, em particular, perante todas as circunstâncias apuradas que possam denunciar o real prejuízo do credor com a desvinculação. Para tanto bem se compreende que seja imprescindível que tenham sido alegados os factos que permitam o cotejo com a situação real da parte atingida pela declaração desvinculante (ainda que versando sobre a cláusula penal ressarcitiva, cfr. neste sentido os Acórdãos do STJ de 3.11.2015, p. no P. 266/14.9TBPRD-A. P1. S1, de 12.07.2011, p. no P. nº 1552/03.9TBVLG.P1, de 20.11.2003, p. no P. nº 03A3514 e de 28.04.1998, p. no P. 98A1249, todos disponíveis em www.dgsi.pt). Como tem sido entendido reiteradamente neste Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no Acórdão de 22.02.2017, p. no P. 5808/12.1TBALM.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt., está no âmbito da sua competência como tribunal de revista a intervenção correctiva em julgamento segundo a equidade quando esteja causa o princípio da igualdade, o que pode advir do desrespeito “dos critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito”. É que sucede com os critérios jurisprudenciais identificados. Foi alegado e ficou demonstrado no facto provado em 12 que após a desvinculação da Ré a A. esteve três meses sem angariar clientes. Se o contrato se achasse em vigor, a A. teria auferido nesse período a retribuição global de € 27.000 (3x€ 9.000,00). Porém, a cláusula accionada pela A. com base no contrato, por incluir uma componente fixa que lhe atribuiu sempre um mínimo de € 171.000,00, e outra variável em função da duração do contrato em meses, permite-lhe, a esse título, aceder ao valor de € 198.750,00. Como se viu, o acórdão recorrido colocou como fundamentos para a redução que operou os montantes de retribuição pagos à A. nos três anos e um mês em que vigorou o contrato e o facto de a cláusula exigida representar mais 50% desse valor e mais de um ano e meio do valor da retribuição acordada. Só que, em boa verdade, nada exclui que as partes tivessem conjecturado a prossecução da execução do contrato por um período temporal significativamente mais longo, período esse que, sem qualquer indicador fiável e seguro, o aplicador da lei não pode agora circunscrever a um, dois ou três anos. Vista pelo prisma do acórdão recorrido, a exigência pela A. ao cabo de 37 meses de execução contratual de um preço de desvinculação equivalente à retribuição da prestação do serviço por um período de mais de um ano e meio, como é o caso, não se afiguraria ilógica ou irracional. O que ali não surge convenientemente ponderada é a disparidade entre a parte ou componente fixa da cláusula e o único dano real dado como provado: o de que a A. não angariou clientes durante três meses. Confrontado com este dano efectivo ou real da frustração da expectativa da A., haveria que considerar como ostensiva e intoleravelmente excessiva a exigência integral da componente fixa estabelecida pela cláusula, componente que ao impor um pagamento mínimo de € 171.000,00 acaba por se distanciar enormemente daquele dano. Está, em consequência, demonstrada a evidente e gritante desproporção da cláusula penitencial de que a lei (o art.º 812 do CC) faz depender a redução judicial. Pelo que, por ser aqui analogicamente aplicável o art.º 812 do CC, está presente o requisito do manifesto excesso a que se reporta o nº 1 do artigo. Tendo em atenção as circunstâncias provadas, nomeadamente os valores convencionados para a prestação do serviço pela A. e, em especial, o do dano real da A. (facto provado em 12 do respectivo elenco), procedendo em parte a revista da Ré, há que determinar a redução da cláusula penal exigida para o montante de € 30.000,00. Não vindo questionado o momento a partir do qual devem ser contabilizados os juros de mora, é de manter o que a esse respeito foi já decidido pelas instâncias (a partir da citação). * A revista da A. No final da respectiva alegação a A. formula as seguintes conclusões, com as quais delimita o objecto recursivo: 1ª Salvo melhor entendimento e observado o devido respeito – que é muito - a douta decisão ora recorrida viola princípios basilares do nosso ordenamento jurídico, como sejam o da liberdade de estipulação contratual e da obrigação do cumprimento pontual dos contratos, consagrados nos arts. 405º e 406º, ambos do CC; 2ª E, ao decretar uma redução da cláusula penitencial convencionada viola, também, o disposto no nº1, do artº 812º, também do CC, por não se verificar (não demonstrou, porque não se verifica) ser o valor consignado e acordado manifestamente excessivo, requisito de cuja verificação depende, em primeira linha, a possibilidade legal de operar tal redução; 3ª Como vem sendo entendimento doutrinário pacífico, do qual se destaca o entendimento de Calvão da Silva in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 1987: “A intervenção judicial do controlo do montante da pena não pode ser sistemática, antes deve ser excepcional e em condições e limites apertados de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter a forfait. Ou ainda que: “A decisiva condição legal da intervenção do tribunal é, por conseguinte, a presença, ao tempo da sentença, de uma cláusula manifestamente excessiva – não basta uma cláusula excessiva, cuja pena seja superior ao dano – de uma cláusula cujo montante desmesurado e desproporcional ao dano seja de excesso manifesto e evidente, numa palavra, de excesso extraordinário, enorme, que salte aos olhos. Tem de ser, portanto, uma desproporção evidente, patente, substancial e extraordinária, entre o dano causado e a pena estipulada, mas já não a ausência de dano em si”. 4ª Ou como decorre da jurisprudência dominante, da qual destacamos: a) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.06.2017 (Procº nº 95/05.0 TBCTB-H.C1): III - Qualquer cláusula penal pode, à luz artigo 812º do CC, ser reduzida pelo tribunal, segundo critérios de equidade. IV - Trata-se se uma norma de ordem pública, inspirada em fortes razões de ordem moral e social, levando a que prevaleça sobre as convenções privadas. V- Para que essa redução aconteça não basta que essa cláusula seja excessiva, exigindo-se que ela se revele manifestamente excessiva (bold nosso) isto é, francamente exagerada ou desproporcionada às finalidades que presidiram à sua estipulação e ao conteúdo do direito que se propõe realizar. b) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 04.11.2021 (Procº nº 49183/20.0 YIPRT.G1): VI – Tendo em vista a sua natureza e finalidades, a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva (bold nosso), devendo o controlo judicial do montante da pena ser excecional e em condições e limites apertados de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter a forfait. c) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05.05.2016 (Procº nº 315/14.0 T8LOU-A.P1): II - É sobre o devedor que recai o ónus de alegação e prova dos factos que integrem a desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados em função do incumprimento do contrato. III - A intervenção judicial de controlo do montante da pena deve ser sempre muito cautelosa, não podendo ser sistemática, antes devendo ocorrer apenas em situações excepcionais e em condições e limites apertados. IV - No exercício do seu equitativo e excepcional poder moderador, o juiz só goza da faculdade de reduzir a cláusula penal com vista a evitar abusos evidentes, situações de clamorosa iniquidade, a que conduzem penas «manifestamente excessivas» (bold nosso), francamente exageradas, face aos danos efectivos, tendo sempre presente o seu valor cominatório e dissuasor, e não uma cláusula penal, meramente, excessiva, cuja pena seja superior ao dano. d) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.09.2018 (Procº nº 24854/15.7 T8PRT-B.P1): I - O uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal previsto no artigo 812º do Código Civil depende da verificação dos seguintes pressupostos: i. pedido de redução, expresso ou implícito, formulado pelo devedor; ii. existência de uma pena ostensivamente desproporcionada (bold nosso), em face do dano que a mesma visa ressarcir ou em face dos fins compulsórios que a mesma visa atingir, ligados ao interesse do credor no cumprimento integral e pontual do contrato; III - Incumbe ao devedor o ónus de alegar – nos respectivos articulados – e de provar os factos concretos que eventualmente integrem a desproporcionalidade da pena, podendo o juiz, se provados esses factos concretos, reduzir, mas não invalidar ou suprimir a cláusula penal manifestamente excessiva. 5ª A excessividade manifesta da cláusula penal, tal como prevista no artº 812º, enquanto facto constitutivo da pretensão da Ré, não pode ser decretada oficiosamente, antes carecia de invocação, em sede de contestação, com a alegação e prova dos FACTOS que integrem a desproporcionalidade do valor nas mesmas estabelecido; 6ª Acontece que, como se constata, na sua douta contestação a Ré nunca invocou a duração do contrato, por contraposição com o valor da indemnização, como fundamento da redução, não podendo o tribunal substituir-se, nessa função, como viria a acontecer; 7ª Acresce que, a douta decisão recorrida desconsiderou – para além dos critérios que vêm enumerados no próprio acórdão – que o contrato foi redigido pela Ré, que não tinha termo resolutivo final e que findou por decisão da mesma; 8ª E bem assim, não levou em conta o conteúdo e alcance que as partes, manifestamente, pretenderam alcançar com a decomposição da indemnização em duas vertentes completamente distintas, como resulta do confronto das als. a) e b) do nº 1, da cláusula em causa, com a eliminação da duração contratual, como factor de determinação da componente principal da mesma, facto que, salvo melhor opinião, afasta a linha de raciocínio que fundamenta a redução operada; 9ª Mas mesmo que se admitisse a ponderação da duração efectiva do contrato (como é o caso), como único critério para avaliar da justeza da redução, ainda assim, a mesma não poderia proceder; 10ª Porquanto, tendo em conta que a manifesta excessividade constitui requisito dessa redução, a própria se encarregou de demonstrar que a mesma não se verifica, com a redução de 37%, sobre o valor inicial, o que a tornaria meramente excessiva; 11ª Do supra exposto se entende, que a redução da indemnização /compensação operada no douto acórdão é ilegal, por violação do disposto no nº 1, do artº 812º, do CC, facto que conduz, em consequência, à violação dos princípios da liberdade contratual e do cumprimento pontual dos contratos, não podendo deixar de ser objecto da consequente revogação. TERMOS EM QUE, REVOGANDO A DECISÃO RECORRIDA, NOS TERMOS ALEGADOS E REPRISTINANDO OS EFEITOS DA SENTENÇA DA 1ª INSTÂNCIA, FARÃO V. EXAS. JUSTIÇA. As questões que vêm levantadas nesta revista são essencialmente duas: A relativa ao respeito da autonomia e vontade das partes na convenção da cláusula 9ª do contrato; A atinente à qualificação da cláusula pelo acórdão recorrido como manifestamente excessiva sem quaisquer factos que revelem esse excesso. Não houve resposta da recorrida. Já na apreciação da revista pedida pela Ré se deixou absolutamente claro que a cláusula 9ª do contrato outorgado entre A. e Ré não entra na categoria de cláusula penal para a qual a lei prevê no art.º 812 do CC a possibilidade da sua redução segundo a equidade, uma vez que se deve configurar como uma cláusula de natureza penitencial por corresponder ao denominado preço da livre desvinculação da parte que com o seu pagamento ficou onerada. No entanto, também já se concluiu que, sem embargo de esta cláusula decorrer de uma forma de cálculo negociada e acordada pelas partes ao tempo da celebração do contrato, então detentoras de todos os elementos que poderiam influir no respectivo cômputo, atento a seu escopo ressarcitivo, ser-lhe-ia, ainda assim, analogicamente aplicável o mecanismo de redução a que se refere o art.º 812 do CC. E que por terem sido carreados para os autos os factos demonstrativos do manifesto excesso mencionado no nº1 do aludido artigo, não estava vedado ao tribunal proceder à redução da cláusula ao abrigo da mesma norma. Também ali se concluiu que, em face ao dano efectivamente sofrido pela A. com a cessação do contrato (de um período de três meses sem angariar clientes), é manifestamente excessivo o valor convencionado para a cláusula penitencial, dado que ele se acha composto de uma parte fixa (19 x € 9.000,00) e outra variável, em função da duração mensal do contrato (um duodécimo da taxa fixa mensal x meses de duração do contrato). Daí que, verificando-se o excesso manifesto ou do carácter abusivo da sua exigência, o valor da cláusula convencionada deva ser reduzido para € 30.000 e não apenas para € 125.000,00 como foi decidido pela Relação. Não é, pois, de conceder a revista pedida pela A. III – DECISÃO Pelo exposto: A – Negam a revista pedida pela A.; B – Concedem parcialmente a revista pedida pela Ré, revogando em parte o acórdão recorrido e reduzindo o valor da cláusula penitencial a satisfazer pela Ré para a quantia de € 30.000,00, em função do que condenam a Ré no respectivo pagamento com juros legais desde a citação até o efectivo pagamento. Custas por A. e Ré em todas as instâncias na proporção do decaimento. Lisboa, 21 de Junho de 2022 Freitas Neto (Relator) Aguiar Pereira Maria Clara Sottomayor |