Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9934/16.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
QUOTA SOCIAL
AQUISIÇÃO
DELIBERAÇÃO SOCIAL
SÓCIO
CONFLITO DE INTERESSES
Data do Acordão: 11/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O sócio que vota a deliberação que aprova a aquisição da sua quota pela sociedade não se encontra, necessariamente, em conflito de interesses com a sociedade, nos termos do art. 251.º do CSC.
II - A existência de um conflito de interesses, para além das hipóteses expressamente elencada nas alíneas do n.º 1 do art. 251.º do CSC, haverá de apurar-se ao nível do caso concreto, pela ponderação objetiva de toda a factualidade relevante.
Decisão Texto Integral:


Proc. n. 9934/16.0T8LSB.L1.S1

Recorrentes: AA e BB

Recorrido: CC

I. RELATÓRIO

1. CC instaurou uma ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra VERTICALWAY-Business Solutions, Lda. (pessoa coletiva n. ..., com o capital social e €5.250,00 e com sede social na ...), AA e BB pedindo:

a) a declaração de nulidade ou anulabilidade das deliberações referentes aos pontos 2 e 3 da “Ordem de Trabalhos” relativa à Assembleia geral da 1ª Ré, realizada a 16 de Março de 2016, ao abrigo dos artigos 294º do Código Civil, 58º e 251º ambos do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e, consequentemente:

 b) que sejam declaradas nulas ou anuláveis as transmissões de quotas dos 2° e 3.° RR, à sociedade Ré, sendo em conformidade os 2º e 3º RR condenados a devolver à Sociedade Ré as quantias que receberam pelas suas quotas, no quantum de 1.750,00€ cada uma das duas quotas transmitidas.

Para tanto, alegou, em síntese, que o 2º e o 3º RR votaram favoravelmente a deliberação social de transmissão a favor da 1ª Ré das suas próprias quotas [cada uma delas representativa de 33% do capital social da sociedade ora 1ª Ré], tendo assim alcançado, com dois votos a favor (66%) e um voto contra (33%) - o do Autor - a “aprovação” da compra pela sociedade Ré das suas quotas no capital desta.

Na tese do Autor, os 2° e 3° RR estariam legalmente impedidos de votar a deliberação social de transmissão das suas quotas à sociedade ora 1ª Ré, por se encontrarem numa situação de conflito de interesses com a sociedade em causa, relativamente à matéria de tal deliberação - art. 251º, n.1 do Código das Sociedades Comerciais) e, portanto, tal deliberação seria nula ou anulável, nos termos das disposições conjugadas do art. 58° do mesmo Código e do art. 294° do Código Civil.

2. Os réus AA e BB contestaram a ação, pugnando pela sua improcedência. Alegaram, em síntese, que:

Em julho de 2013, o Autor abandonou a Verticalway para ir trabalhar para uma empresa concorrente, e propôs aos Réus dissolver a Verticalway para irem todos trabalhar para aquela empresa.

Ao longo dos últimos três anos, o Autor nunca solicitou qualquer informação sobre os negócios da Verticalway, nem sequer deixou qualquer contacto para ser informado da vida da Sociedade, limitando-se a inundar a Verticalway com sucessivos processos judiciais e a comparecer nas Assembleias anuais para reclamar, ano após ano, o seu direito a lucros. O Autor opôs-se também à atribuição de prémios de gerência e ao aumento das remunerações dos Réus, apesar de serem os únicos trabalhadores da Verticalway.

Com isto, o Autor não só violou a lealdade que devia aos Réus enquanto sócios, como condenou o projeto da Sociedade tal como foi idealizado, uma vez que, com a sua saída, impediu a expansão da Verticalway no mercado nacional, que era a intenção dos sócios aquando da sua constituição.

3. A primeira instância proferiu a seguinte decisão:

«Em face do exposto, vistos os princípios e preceitos que no caso regem, julgo os pedidos de declaração de nulidade ou de anulabilidade das deliberações referentes aos pontos 2 e 3 da Ordem de Trabalhos relativa à Assembleia‐geral da 1.ª R. realizada a 16 de Março de 2016 e, consequentemente, deles absolvo os RR

4. Inconformado, o Autor interpôs recurso, tendo o TR... considerado a apelação totalmente procedente.

5. Os réus, vencidos na apelação, interpuseram, por sua vez, o presente recurso de revista, em cujas alegações formularam as conclusões que se transcrevem:

«A. A decisão é inválida, por erro na interpretação e aplicação do conceito de conflito de interesses, previsto no artigo 251.º do Código das Sociedades Comerciais;

B. Em primeiro lugar, porque faz assumidamente uma interpretação abstrata de um conceito indeterminado, o que é ilegal;

C. É entendimento uniforme da doutrina e jurisprudência que a interpretação e aplicação de conceitos indeterminados é casuística, ponderando-se os valores vocacionados a intervir no caso concreto, em face da factualidade apurada; ou seja, implica uma operação de subsunção;

D. Por isso é que é jurisprudência constante que a Sociedade tem o ónus da prova da existência de uma situação de conflito de interesses;

E. Interpretar abstratamente conceitos indeterminados como fez o Tribunal a quo é frustrar a sua própria razão de ser, ou seja, é aplicá-los contra legem, o não se pode admitir;

F. Em segundo lugar, mesmo que fosse admissível uma formulação meramente abstrata do conceito de conflito de interesses (que não é), a orientação defendida na decisão recorrida não tem o menor fundamento jurídico;

G. Não se pode afirmar que a aquisição de quotas próprias, por ser um negócio oneroso, implica sempre, inexoravelmente em abstrato, uma situação de conflito de interesses, pois a onerosidade não é característica suficiente para afirmar a presença de interesses antagónicos inconciliáveis;

H. Isto porque, num negócio oneroso, é possível satisfazer o interesse de ambas as partes, através do equilíbrio do sinalagma;

I. Tanto assim é que a própria jurisprudência citada na decisão indicia esta conclusão, ao afirmar que a natureza onerosa da matéria objeto de deliberação não tem impacto decisivo na avaliação da situação de conflito, máxime na situação análoga de amortização de quota;

J. Assim, não surpreende que o Tribunal a quo se limite a decidir a questão em abstrato e afirmar que o preço não é critério, sem se preocupar em apresentar um único motivo para a conclusão apresentada;

K. Mais, se o legislador pretendesse consagrar uma previsão abstrata para este caso de conflito de interesses (aquisição de quotas próprias) tinha-o incluído no elenco legal, se não o fez é porque pretende que seja feita uma análise casuística do mesmo através de um conceito indeterminado, impondo-se ao Tribunal que a faça, em vez de se substituir ao legislador na criação de normas;

L. Demonstrada a falência da argumentação abstrata do Tribunal a quo e a obrigatoriedade da ponderação das circunstâncias do caso concreto para a correta interpretação de conceitos indeterminados, cumpre demonstrar que os factos provados nos autos revelam que in casu não houve efetivamente o menor conflito de interesses;

M. Resulta da matéria de facto que (i) não foi provado que a Verticalway tenha qualquer interesse conflituante com o dos Recorrentes, que (ii) a aquisição das quotas pela Verticalway foi feita pelo valor nominal e que (iii) num cenário normal de alienação, tanto os Recorrentes, como, aliás, o Recorrido, avaliavam as quotas em valor várias vezes superior ao nominal;

N. Estes factos são suficientes para demonstrar que, ao votar, os Recorrentes tiveram em consideração, não o seu interesse pessoal, mas o interesse da Sociedade;

O. Mas mais, resulta do conjunto dos factos provados que a manutenção dos três sócios na Sociedade era absolutamente inviável (factos 11 a 18), portanto, a saída dos Recorridos era do interesse da Sociedade, pois só era a única forma de viabilizar a sua revitalização;

P. Nem depõe contra tal conclusão o argumento do Recorrido segundo o qual os Recorrentes queriam deixar de ser sócios para concorrer com a Verticalway, pois nada na lei obriga os sócios de uma sociedade comercial a um dever de não concorrência (nem o Tribunal a quo podia ter inventado, ao arrepio da matéria provada, que era esta a motivação para a alienação das quotas);

Q. Assim, sempre terá de se entender que no caso concreto não se revela um conflito de interesses e não se enquadra nos previstos na lei como relevantes para efeitos de impedimento de voto;

R. Acresce que a aquisição de quotas próprias é matéria bem regulada no Código das Sociedades Comerciais, portanto a sua omissão do catálogo do artigo 251.º (que aliás deve ser interpretado restritivamente, conforme é doutrina e jurisprudência assente) tem de se interpretar como vontade do legislador no sentido de não incluir tal deliberação naquelas que são inquinadas por conflito de interesses;

S. Acresce ainda que o Recorrido não alegou qualquer prejuízo ou dano real ou potencial para a Sociedade, pelo que não há dúvida da inexistência do conflito de interesses;

T. Por fim, por força do princípio da proibição de vínculos perpétuos, o artigo 251.º do Código das Sociedades Comerciais sempre teria de ser interpretado restritivamente, no sentido de não se admitir qualquer inibição do direito de voto que redunde na vinculação eterna de um sócio à sociedade;

U. Face a tudo o exposto, a interpretação feita pelo Tribunal a quo viola a letra, a ratio e a evolução histórica da norma em análise e não tem em consideração o elemento sistemático de interpretação;

V. Consequentemente, por qualquer um dos diversos motivos expostos, a decisão recorrida padece de erro de Direito, na interpretação e aplicação do artigo 251.º do Código das Sociedades Comerciais;

W. Face a tudo o exposto, não se verificava à data da deliberação qualquer situação objetiva de conflito de interesses entre os Recorrentes e a Sociedade, pelo que os mesmos não estavam impedidos de exercer o seu direito de voto, sendo a deliberação impugnada válida e eficaz.

Termos em que, e nos melhores de Direito, deve o Recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a decisão recorrida

II. ANÁLISE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso.

Verificando-se os requisitos gerais de admissibilidade do recurso, e tendo os recorrentes ficado vencidos na apelação, encontram-se preenchidos os pressupostos da revista, nos termos do art.671º, n.1 do CPC.

O objeto da presente revista é o de saber se os réus (agora recorrentes), enquanto sócios de uma sociedade por quotas, estariam impedidos de votar as deliberações que aprovaram a aquisição das respetivas quotas pela sociedade, por se verificar um conflito de interesses, nos termos do art.251º do CSC, e se essas deliberações se deviam considerar anuláveis, e se podem ser anuladas nos termos do art.58º, 1, a), e 59º, 1 e 2, do CSC, como entendeu o acórdão recorrido, tendo em conta que os votos alegadamente viciados contribuíram e foram decisivos para se conseguir a maioria de aprovação de deliberação.

 

2. A factualidade apurada:

Na primeira instância foi fixada a seguinte factualidade:

«1. A VerticalWay, aqui 1ª R, é uma sociedade comercial que foi constituída pelo Autor e pelos RR. AA e BB em 2010.11.09, e que tem como objeto social a “Conceção, desenvolvimento, consultoria, implementação e manutenção de soluções informáticas. Formação na mesma área”.

2. Conjuntamente com o A., os RR. AA e BB, até 17.03.2016, foram sócios da sociedade comercial por quotas VerticalWay - Business Solutions, Lda., aqui 1ª R., com o número de identificação de pessoa coletiva ... com o capital social de €5.250,00 (cinco mil, duzentos e cinquenta euros).

3. Em finais de julho de 2013, o A. renunciou à gerência da VerticalWay, tendo-se mantido como sócio.

4. O A. e os RR. AA e BB eram, até à referida data, os únicos sócios da sociedade R., sendo cada um titular de uma quota social no valor nominal de €1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros).

5. Ficando a gerência da referida sociedade a ser assegurada pelos ora RR. AA e BB.

6. Desde a assembleia-geral para aprovação das contas do exercício de 2013, após a saída da gerência por parte do A., este já intentou contra os ora RR 3 ações de anulação de deliberações sociais, em virtude de os RR. terem aumentaram as suas remunerações de €980,00 para €3.450,00 e depois para €4.500,00, e à atribuição de prémios à gerência, com o voto contra do A., a saber:

i. processo n.101/14...., que correu termos no J..., Secção Cível ..., tendo sido remetida para o Tribunal de Comércio ..., decisão objeto de recurso que ainda aguarda decisão final;

ii. processo n.546/14...., que corre termos no J..., da ... Sec. do Comércio, da Inst. Central da Comarca ...; e

iii. processo n. 11538/15...., que corre termos no J..., da ... Sec. do Comércio, .... Central, Comarca ....

7. Em 16.03.2016 realizou-se uma assembleia geral da Sociedade R. com a seguinte ordem de trabalhos:

“PONTO UM - Aprovar o balanço, reportado a 29 de fevereiro de 2016, especialmente elaborado para efeitos de aquisição de quotas próprias;

PONTO DOIS - Deliberar sobre a proposta de aquisição da quota do sócio BB pela Sociedade;

PONTO TRÊS - Deliberar sobre a proposta de aquisição da quota do sócio AA pela Sociedade;

PONTO QUATRO - Deliberar sobre a aceitação das renúncias do Exmos. Senhores BB e AA ao cargo de Gerentes da Sociedade;

PONTO CINCO - Deliberar sobre a alteração da sede da Sociedade.”

8. O A. votou contra ambas as transmissões de quotas dos 2º e 3º RR. fazendo valer a sua quota social representativa de 33% do capital social da Sociedade R. - doc. n. 3 anexo à p.i. - ata da AG (fls. 17v-19v), cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

9. Os 2º e 3º RR., votaram na transmissão da sua própria quota (também representativa de 33% do capital social), tendo assim alcançado, com dois votos a favor (66%) e um voto contra (33%) - o do A. - a “aprovação” da compra pela Sociedade R. das suas quotas.

10. Em 24.03.2016, os 2º e 3º RR., conjuntamente com as respetivas esposas, constituíram sociedade comercial por quotas, com o NIPC ..., com a firma "A..., Lda.", da qual os 2º e 3º RR. são gerentes e que tem por objeto: “Consultoria, conceção, implementação, programação, formação e manutenção de soluções informáticas e na área das telecomunicações, exploração de portais web, bem como, o comércio, a representação, distribuição, importação e exportação de bens e equipamentos nas áreas em causa. Implementação de soluções informáticas.” - cfr. doc. fls. 12v e 13, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

11. O Autor aliciou os 2º e 3º RR. a constituírem a Verticalway, resolvendo estes, para tanto, os contratos de trabalho que a entidade de trabalho: F..., S.A. - cfr. doc. fls. 37v e 38, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

12. O A. foi sócio fundador e gerente da sociedade comercial V..., Lda., constituída quatro meses antes da Verticalway, em 8 de julho de 2010, e que tem por objeto “Consultoria auditoria, estudos, implementação, comércio, gestão e produção de equipamentos elétricos e eletrónicos” - cfr. fls. 43-44, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

13. Em julho de 2013, quando o Autor abandonou a Verticalway, fê-lo para ir trabalhar para uma empresa concorrente, a C..., S.A.

14. O Autor contrariou todas as iniciativas dos Réus para capitalizar a Sociedade, opondo-se à criação de reservas, exigindo distribuição de lucros - cfr. atas n.s 7, 9 e 10, anexas à contestação e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

15. O Autor opôs-se à atribuição de prémios de gerência e ao aumento das remunerações dos Réus, apesar de serem os únicos trabalhadores da Verticalway, porque entender que isso prejudicava o seu lucro.

16. Antes da saída do A. da gerência da Verticalway atribuíam-se prémios anuais aos gerentes (o que incluía o Autor), - cfr. doc. 7 anexo à contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

17. No contexto de rutura, os Réu propuseram ao A. comprar a sua quota na Sociedade pelo valor de € 30.000,00, mas este recursou indicando em contraproposta o pagamento de € 59.800,00 - cfr. Ata n. 8, doc. n. 13, cujo teor se dá por reproduzido.

18. Os Réus propuseram ao Autor vender-lhe as suas duas quotas, pelo preço de € 12.000,00, que o A. rejeitou - cfr. Ata n. 9, doc. anexo à contestação com o n.14 que se junta e dá por integralmente reproduzido.»

3. O direito aplicável:

3.1. Como supra referido, o problema em questão é o de saber se os réus, agora recorrentes, enquanto sócios de uma sociedade por quotas, estariam impedidos de votar as deliberações que aprovaram a aquisição das respetivas quotas pela sociedade, por se verificar um conflito de interesses, tendo os respetivos votos sido decisivos para a aprovação dessas deliberações.

O Código das Sociedades Comerciais não contém uma norma que, de modo expresso, estabeleça a proibição de um sócio votar a deliberação que aprova a aquisição da sua quota pela sociedade. Assim, a solução a dar a tal problema decorrerá da interpretação que se faça do art. 251º do CSC.

3.2. O acórdão recorrido fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:

«(…) desde o momento em que o sócio cuja quota irá ser adquirida pela sociedade (em caso de aprovação da deliberação social de aquisição) é, ele próprio, parte no contrato de alienação de participação social, é manifesto que o seu interesse na consumação de tal negócio é oposto ao da sociedade, visto que a esta interessa que o preço da aquisição de tal quota seja o menor possível (no limite, que não seja sequer superior a 1 euro), enquanto, diversamente, o sócio alienante da sua quota tem interesse em que esta seja adquirida pela sociedade pelo maior valor possível. Para este efeito, é irrelevante que, no caso concreto, o preço previsto para a aquisição, pela Sociedade, das quotas dos ora RR. BB e AA no capital daquela corresponda ao respectivo valor nominal e que este seja (alegadamente) inferior ao seu valor real.

É que a resolução da questão de saber se um sócio está ou não impedido de participar na votação da deliberação social de aquisição da sua própria quota não pode estar dependente do preço que, no caso concreto, deva ser pago pela sociedade como contrapartida de tal aquisição. Um sócio não pode estar impedido de participar na votação da deliberação em questão se o preço pago pela sociedade pela aquisição da sua quota for X, mas já não o estar se esse preço for Y.

Por isso - ao contrário do que sustentam, erroneamente, os ora Apelantes -, a resolução duma tal questão não pode deixar de ser feita em abstracto, sem atender ao preço que, no caso concreto, esteja estipulado como devendo ser pago pela sociedade, como contrapartida da aquisição da quota do sócio cujo direito de voto está em discussão.

A esta luz, é manifesto que o sócio alienante da quota a ser adquirida pela sociedade se encontra numa situação de conflito de interesses com a sociedade, relativamente á matéria da deliberação de aquisição da respectiva quota - o que tanto basta para que ele não possa participar na votação dessa deliberação, ex vi do cit. art. 251°, n. 1, 1ª parte, do Cód. das Sociedades Comerciais.

Assim sendo, no caso dos autos, estando os ora RR. BB e AA impedidos de votar as deliberações de aquisição, pela Sociedade 1ª Ré, das quotas daqueles no capital desta tomadas na assembleia geral realizada em 16.03.2016, e visto que tais deliberações só lograram obter aprovação porque foram votadas favoravelmente por ambos os RR. (já que o sócio ora Autor votou contra ambas as transmissões de quotas dos 2° e 3° RR. - fazendo valer a sua quota social representativa de 33% do capital social da Sociedade Ré -, tendo, no entanto, os 2.° e 3.° RR. votado a favor da transmissão da sua própria quota [também representativa de 33% do capital social], tendo assim alcançado, com dois votos a favor [66%] e um voto contra [33%] - o do A. - a “aprovação” da compra pela Sociedade Ré das suas quotas), tais deliberações são anuláveis, nos termos do cit. art. 58°, n.1, al. a),   do Código das Sociedades Comerciais, porque violaram o cit. n. 1 do art. 251° do mesmo diploma.

Consequentemente, o saneador/sentença ora recorrido - que julgou improcedentes os pedidos de declaração de nulidade ou de anulabilidade das deliberações referentes aos pontos 2 e 3 da Ordem de Trabalhos relativa à Assembleia geral da 1ª R. realizada a 16 de Março de 2016 e, consequentemente, deles absolveu os RR - não pode subsistir, impondo-se revogá-lo e julgar a acção procedente, por provada, declarando anuladas as deliberações de aquisição, pela Sociedade ora 1ª Ré, das quotas dos 2° e 3° Réus no capital daquela tomadas na assembleia geral realizada em 16.03.2016 e, por efeito dessa anulação (nos termos do art. 289°, n.1 do Cód. Civil), condenando os 2° e 3° Réus a devolver à Sociedade ora 1ª Ré as quantias que receberam pela transmissão das suas quotas no quantum de 1.750,00€ cada uma.»

3.3.  Vejamos o quadro legal pertinente.

Dispõe o art.251º do CSC

1- O sócio não pode votar nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando, relativamente à matéria da deliberação, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade. Entende-se que a referida situação de conflito de interesses se verifica designadamente quando se tratar de deliberação que recaia sobre:

a) Liberação de uma obrigação ou responsabilidade própria do sócio, quer nessa qualidade quer como gerente ou membro do órgão de fiscalização;

b) Litígio sobre pretensão da sociedade contra o sócio ou deste contra aquela, em qualquer das qualidades referidas na alínea anterior, tanto antes como depois do recurso a tribunal;

c) Perda pelo sócio de parte da sua quota, na hipótese prevista no artigo 204.º, n.º 2;
d) Exclusão do sócio; 

e) Consentimento previsto no artigo 254.º, n.º 1;

f) Destituição, por justa causa, da gerência que estiver exercendo ou de membro do órgão de fiscalização;
g) Qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o sócio estranha ao contrato de sociedade.

2 - O disposto nas alíneas do número anterior não pode ser preterido no contrato de sociedade.

Nos termos do art.58º do CSC:

São anuláveis as deliberações que:

a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade;

b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;

c) Não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação.
2 - Quando as estipulações contratuais se limitarem a reproduzir preceitos legais, são estes considerados directamente violados, para os efeitos deste artigo e do artigo 56.º

3 - Os sócios que tenham formado maioria em deliberação abrangida pela alínea b) do n.º1 respondem solidariamente para com a sociedade ou para com os outros sócios pelos prejuízos causados.
4- Consideram-se, para efeitos deste artigo, elementos mínimos de informação: 

a) As menções exigidas pelo artigo 377.º, n.º 8;

b) A colocação de documentos para exame dos sócios no local e durante o tempo prescritos pela lei ou pelo contrato.

3.4. Vejamos o que deve entender-se por “conflito de interesses” para efeitos do art.251º do CSC.

Segundo Raul Ventura[1], existe uma situação de conflito de interesses, quando estes “são opostos, de tal modo que um deles não possa ser satisfeito sem o sacrifício do outro” ou que “quando existe possibilidade de a deliberação satisfazer o interesse particular do sócio em detrimento comum”.

No entendimento de Coutinho de Abreu:

Relativamente a certo assunto sujeito a deliberação, um sócio está em situação de conflito de interesses com a sociedade quando no caso haja divergência de prin­cípio entre o interesse (objetivamente avaliado) do sócio e o interesse (objetivamente avaliado também) da sociedade - interesse comum a todos os sócios enquanto tais - convindo, portanto, ao sócio uma deliberação orientada em determinado sentido e à sociedade uma deliberação orientada em sentido diferente”.[2]

O art.251º particulariza, nas suas alíneas, algumas hipóteses em que tipicamente o conflito de interesses existirá. Porém, dado não se tratar de uma lista fechada de hipóteses, cabe ao intérprete e aplicador do direito concluir se tal conflito também se verificam em caos não expressamente previstos, mas teleologicamente equiparáveis.

A este respeito, afirma Coutinho de Abreu: “A enumeração das hipóteses nas alíneas do n.1 do art. 251º é exemplificativa (“designadamente”), não taxativa. Devemos, no entanto, adotar uma perspetiva restritiva nesta matéria. Na verdade, a regra é poderem os sócios exercer o direito de voto, as restrições são excecionais e têm de estar previstas na lei (art. 21º, 1, b)). Por outro lado, não deve olvidar-se a anulabilidade das deliberações aptas a favorecer especial­mente algum sócio (em detrimento da sociedade ou de outros sócios), apesar de o sócio, porque não foi considerado em situação de conflito de interesses, ter votado (art. 58º, 1, a), b)).

Assim, é razoável defender que, em princípio, não se verificam situações de con­flito de interesses relevantes para impedir o voto relativamente às deliberações cujo objeto se encontra previsto no Código (especialmente no art. 246º) mas não no art. 251º. O silêncio da lei neste preceito - tendo também em conta quanto foi dito na doutrina e na jurisprudência antes do CSC - deve relevar, na dúvida, a favor do voto. Contudo, o “princípio” é passível de desvios. Nomeadamente em um ou outro caso de amortização compulsiva de quota (arts. 232º, s., 246º, 1, b)).

Por conseguinte, o sócio poderá votar em deliberação sobre relatório de gestão e con­tas de exercício por ele, enquanto gerente, apresentados (arts. 65º, s., 246º, 1, e), 263 a), em deliberação sobre o consentimento para a cessão de quota sua (arts. 228º, 2, 246º, 1, b)), em deliberação sobre a sua eleição como gerente (arts. 252º, 246º, 2, a)), em deliberação fixando a sua remuneração como gerente (art. 255º), em delibera­ção sobre a sua exoneração (art. 240º).[3]»

3.5. Tendo presente o quadro doutrinal supra exposto, cabe, desde já, afirmar que o acórdão recorrido não merece a nossa concordância.

Entendeu-se, nesse acórdão, que as deliberações votadas favoravelmente pelos dois sócios réus violaram o art.251º do CSC, sendo, portanto, anuláveis nos termos do art.58º, n.1, alínea a). O fundamento de tal decisão radica, em síntese, no facto de os sócios que votaram favoravelmente as deliberações de aquisição das suas participações sociais pela sociedade serem parte nos contratos de alienação dessas participações. Concluiu-se que tal constituiria, necessariamente, um conflito de interesses, devendo tal conflito ser equacionado em abstrato. Consequentemente, seria irrelevante que o concreto valor da aquisição tivesse sido o valor nominal de cada quota. Entendeu-se que o interesse da sociedade na aquisição das quotas seria sempre pelo menor valor possível, que não seria sequer superior a um euro. Por isso, seria irrelevante que o valor real das quotas alienadas pudesse ser superior ao seu valor nominal.

O acórdão recorrido parece ter subjacente uma ideia de proibição absoluta do estabelecimento de relações contratuais entre o sócio e a sociedade, ao afirmar que existe conflito de interesses pelo facto de os sócios serem parte nos contratos de alienação. Todavia, tal proibição geral não existe, como se conclui, desde logo, por interpretação a contrario do art.251º, n.1, alínea g), nos termos da qual existirá conflito de interesses quanto a “qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o sócio estranha ao contrato de sociedade”. Como afirma Coutinho de Abreu[4], trata-se de relações jurídicas alheias à socialidade ou organicidade societária, nas quais o sócio não contrata na qualidade de titular de participação social.

Por outro lado, não existe uma proibição geral de os sócios votarem assuntos que diretamente lhe digam respeito (vejam-se as hipóteses supra apontadas por Coutinho de Abreu).

No que respeita ao poder para votar a transmissão da sua própria quota dispõe o art.246º:

«1- Dependem de deliberação dos sócios os seguintes atos, além de outros que a lei ou o contrato indicarem:

(…)

b) A amortização de quotas, a aquisição, a alienação e a oneração de quotas próprias e o consentimento para a divisão ou cessão de quotas»

Deve notar-se que esta norma não exclui o poder para votar a alienação da sua própria quota à sociedade. E nesta mesma alínea b) consta a deliberação sobre o consentimento para a cessão de quota da sua titularidade, que vimos não ser de desencadear impedimento de voto.

3.6. A existência de um conflito de interesses no tipo de caso em análise não prescinde da consideração do valor da alienação da quota (diferentemente daquilo que o acórdão recorrido parece defender), mas não se basta com a ponderação desse elemento. É necessário atender às demais circunstâncias do caso concreto, nomeadamente a razão da alienação das quotas pelos seus sócios.

Atendendo às circunstâncias próprias de cada caso concreto, objetivamente ponderadas, poderá chegar-se à conclusão de que em determinado tipo de casos existe conflito de interesses, que obsta a que um sócio vote a deliberação, mas que noutro tipo de casos esse impedimento não existe.  

O entendimento do acórdão recorrido no sentido de que só poderia haver interesse da sociedade em adquirir as quotas pelo menor preço possível (que, no limite, não seria superior a um euro) não se afigura sustentável. Na realidade, ao alienarem as suas participações sociais, pelo respetivo valor nominal, o que os sócios recebem em contrapartida é, precisamente, o valor com que entraram para a sociedade. Não existe, portanto, nesta hipótese, um prejuízo direto para o interesse da sociedade. E também não resulta da factualidade provada que a aquisição das quotas tivesse causado à sociedade algum outro tipo de prejuízo financeiro.

3.7. Quanto à razão para a transmissão das quotas pelos réus, importa ter presente que entre estes e o sócio autor existia uma situação de conflito que conduziu à propositura de várias ações em tribunal, como consta do ponto 6 da factualidade provada.

Situação de conflito essa que não parecia ser ultrapassável de forma amigável. Efetivamente, como se extrai do ponto 17 da factualidade provada: “no contexto de rutura, os Réu propuseram ao A. comprar a sua quota na Sociedade pelo valor de € 30.000,00, mas este recursou indicando em contraproposta o pagamento de € 59.800,00.”

Por outro lado, deu-se como assente, no ponto 18 da factualidade provada, que: “os Réus propuseram ao Autor vender-lhe as suas duas quotas, pelo preço de € 12.000,00, que o A. rejeitou”.

O arrastar de situações de conflito não é desejável em qualquer tipo de sociedade comercial, e torna-se particularmente contraproducente nas sociedades em que o elemento pessoal é mais acentuado, como nas sociedades por quotas, porque desvirtua a própria essência da figura societária. Como decorre da noção de sociedade, consagrada no art.980º do Código Civil, o exercício em comum de determinada atividade económica, tendo em vista a obtenção e distribuição do lucro, pressupõe cooperação e harmonia de esforços, pelo que uma situação de conflito insuperável não permite a prossecução da finalidade natural e típica de uma sociedade.

Face à conflitualidade instalada entre os sócios, sem que se tivessem tornado viáveis soluções amigáveis para resolver as suas divergências, deve entender-se que, no caso concreto, a deliberação de aquisição das quotas pela sociedade conduz a uma forma lícita de desvinculação dos réus, servindo o interesse de não permanecerem indefinidamente vinculados, o que seria contrário à regra da não vinculação perpétua dos sócios, emergente (a contrario) do estabelecido no art.229º, n.1 do CSC[5].

Este interesse dos sócios não conflitua com o interesse da sociedade porque esta poderá prosseguir a sua atividade com o sócio recorrido. Aquilo que convém aos sócios recorrentes não está em oposição com o que convém à sociedade. Se tivesse existido acordo entre os sócios réus e o sócio autor, quanto ao valor da aquisição das participações sociais, nenhum obstáculo existiria a que a sociedade prosseguisse a sua vida com o sócio autor.

Não se identifica, assim, nas circunstâncias concretas do caso, a lesão de qualquer interesse da sociedade, nomeadamente interesse patrimonial, que justificasse a inibição do exercício do direito de voto dos sócios, agora recorrentes.

3.8. Acresce que da factualidade provada também não emerge a violação de qualquer norma de conhecimento oficioso, que obstasse à regularidade das deliberações em causa.

Em resumo, entende-se que o acórdão recorrido não fez a correta aplicação da lei ao revogar a decisão da primeira instância, nomeadamente do art.251º do CSC, pelo que assiste razão aos recorrentes. As deliberações em causa não são anuláveis, produzindo, portanto, os seus normais efeitos legais.

DECISÃO: Pelo exposto, concede-se a revista, revogando o acórdão recorrido.

Custas: pelo recorrido.

Lisboa, 24.11.2020

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Sociedade por Quotas, II, p. 296
[2] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. IV (2ª ed.), pág. 70
[3] Op. cit., pag.73 e 74.
[4] Op. cit. pág. 73.

[5] Dispõe o art.229º do CSC: “São válidas as cláusulas que proíbam a cessão de quotas, mas os sócios terão, nesse caso, direito à exoneração, uma vez decorridos dez anos sobre o seu ingresso na sociedade.