Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
25/17.7GEEVR.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO PEREIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
FACTOS PROVADOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
HOMICÍDIO
MEIO INSIDIOSO
CRUELDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / HOMICÍDIO QUALIFICADO.
Doutrina:
- Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, C.E., 1999, p. 332;
- Codice Penale Operativo, a cura di Luciano Ciafardini/Nicola Russo, Simone, 2002, p. 927;
- E. Cuello Calón, Derecho Penal, Tomo II, 11.ª edição, Bosh, 1961, p. 441;
- Ferrando Mantovani, Diritto Penale, Delitti contro la Persona, Cedam, 1995, p. 155;
- J. C. Carbonell Mateu, T. S. Vives Anton Coor., Derecho Penal, Parte Especial, 2.ª ed., Tirant lo Blanch, 1988, p. 522;
- Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, C.E., 1999, p. 38 e ss.;
- M. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 9.ª edição, Almedina, 1996, p. 544.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 77.º, N.ºS 1 E 2 E 132.º, N.º 2, ALÍNEAS I) E D).
Sumário :

I - Pretende o recorrente que sejam dado por não escritos os factos dados como provados, com consequente absolvição pelo crime de violência doméstica, alegando que o respectivo conteúdo consubstancia imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas e imprecisas, temporal e factualmente indefinidas, não permitindo um efectivo contraditório e impossibilitando uma cabal defesa do arguido, porém, se é certo que o contexto temporal de tais condutas não é rigoroso, sendo até muito impreciso, a falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida sendo que, no caso dos autos, quem mais esclarecimentos podia prestar, a vítima, foi silenciada com 17 facadas desferidas pelo arguido.
II - Perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta.
III - Se é certo que no ponto 3 da matéria de facto se refere que o arguido "começou a exercer violência tisica e a ofender verbalmente” a ofendida, expressão de índole conclusiva, certo é também que a tal conclusão é dado substrato factual nos pontos seguintes da matéria de facto, indicando-se concretamente os modos de atuação do arguido em relação à ofendida, as palavras ofensivas que lhe dirigia, as agressões que nela praticava, enfim, as humilhações a que a sujeitava, impedindo-a de contactar com as pessoas das suas relações, de decidir a roupa que iria vestir ou até de descansar durante a noite na residência comum do casal, não por proibição do arguido mas por receio da ofendida de ofensas à vida e integridade física, sua e dos filhos, traduzindo-se toda esta factualidade num continuado atentado contra a integridade física e moral da ofendida, contra a sua liberdade e autonomia, enfim, contra a sua dignidade como pessoa, através de agressões, palavras ou proibições bem concretas e especificadas, não havendo assim qualquer dúvida de que os factos apurados em sede de julgamento preenchem tanto os elementos objectivos como subjectivos do crime de violência doméstica.
IV - Os factos constantes da acusação que vieram a ser dados como provados, resultado este que, lembre-se, competia à acusação, contêm a materialidade suficiente para permitirem o exercício do contraditório, que aliás não seria diferente se outra fosse a formulação da peça acusatória dado que o arguido, conforme documentam os autos, se limitou a negar os maus tratos que lhe eram imputados.
V - Resultando dos factos provados que o arguido (que recusava a aceitar a decisão do cônjuge em abandonar o lar e pôr termo ao casamento) empunhando uma navalha, num jardim público, indiferente à presença de várias pessoas, agarrou a esposa pelas costas desferindo-lhe de seguida as facadas que lhe provocaram a morte e constatando-se que o arguido não escondeu a arma levando a cabo a prática do crime num contexto em que a esposa foi agarrada pelas costas mas não apanhada de surpresa (dado que ficou também demonstrado, ela temia pela própria vida), forçoso é considerar que o arguido agiu de forma cobarde mas não insidiosa, pelo que não pode ser considerada a agravante da al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
VI - Resultando como provado que o arguido golpeou com 17 facadas a ofendida até que esta deixasse de apresentar sinais de vida e que alcançado este desígnio, cessou a agressão, forçoso é considerar que os facto não permitem concluir que o arguido tenha pretendido aumentar o sofrimento da vítima, não podendo por isso dar-se por verificada a al. d) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
VII - Considerando o percurso de vida do arguido, sem antecedentes criminais e de dedicação ao trabalho, a situação do arguido ao tempo dos factos (perturbação da adaptação ansiodepressiva) e efeitos da prática do crime nomeadamente no plano psicológico (amnésia dissociativa pós-traumática) e ainda o comportamento do arguido após a detenção por um lado, e por outro o grau de ilicitude dos factos e a intensidade do dolo, afigura-se ser de fixar em 18 anos de prisão a pena pela prática de um crime de homicídio simples.
VIII - Impondo-se fazer o cúmulo desta pena com a que lhe foi imposta pelo crime de violência doméstica, nos termos do disposto no art. 77.º, n.ºs 1 e 2 do CP, e ponderando a ilicitude material dos factos, a intensidade do dolo e o tempo ao longo do qual o arguido sujeitou a vítima a maus tratos, perante uma moldura penal abstracta de cúmulo entre 2 anos e 6 meses e 21 anos e 6 meses fixa-se a pena única em 19 anos de prisão.
IX - Apontando a jurisprudência deste STJ para valores entre € 50.000,00 e € 80.000,00 pela perda do direito à vida e ponderando que no caso em apreço tem particular relevo a idade da vítima, à data dos factos com 42 anos de idade e a circunstância de se tratar de pessoa saudável, o que em conjunto perspectivava um percurso de vida ainda longo, bem como o dano não patrimonial sofrido pela vítima, que sofreu dezassete facadas e sofreu a angústia associada a perceção da vizinhança da morte, considera-se que será de reduzir a compensação pelo dano morte para €75.000,00 (em detrimento da quantia de €100.000,00 fixados pelo tribunal recorrido).
X - No que se refere aos danos não patrimoniais sofridos pelos filhos da ofendida e aqui demandantes, que tinham à data dos factos 34 anos, 30 anos e 23 anos, respectivamente, ponderando que ficou demonstrado que sofrem com saudades, têm vergonha dos actos do pai e têm um profundo desgosto, as circunstâncias da morte da ofendida, morta à facada pelo próprio marido, pai dos demandantes que se traduziu numa experiência traumática que por certo os acompanhará pelo resto da vida, mas também tendo em atenção que o STJ tem fixado como indemnização por danos não patrimoniais resultantes da perda de progenitor, valores que raramente ultrapassam os € 30.000,00, sendo a média de € 20.000,00, não se afigura que os factos apurados nestes autos justifiquem um afastamento dos mencionados padrões pelo que é também aqui de dar provimento parcial ao recurso, reduzindo-se para €30.000,00 para cada um dos demandantes o montante por danos não patrimoniais por eles sofridos em resultado da morte da progenitora (em detrimento da quantia de €45.000,00 a cada um dos demandantes fixados pelo tribunal recorrido).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1.1 - Por acórdão de 05 de setembro de 2018, do Tribunal Coletivo do Juízo Central Cível e Criminal de Évora, foi decidido condenar o arguido AA, por autoria de um crime de violência doméstica, p e p. pelo artigo 152.º, nº 1, alínea a) e n.º 2 alínea e) do  Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis)  meses de prisão e, como autor de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131° e 132.°, n.º l, alíneas b), d) e i), do Código Penal, na pena de 22  (vinte e dois) anos de prisão. Efetuado o cúmulo jurídico das penas parcelares foi-lhe aplicada a pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.

Mais foi o arguido condenado a pagar à assistente e demandantes civis, BB, CC e AA € 100.000,00 a título de indemnização pelo dano morte, e a quantia de € 45.000,00 a cada um, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.

1.2 - Inconformado, interpõe o arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, restrito à matéria de direito, com os fundamentos constantes das conclusões da respectiva motivação:

“(…)

1ª - O recorrente foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica – contra a sua mulher DD -  p e p. pelo artigo 152.º, nº 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão

2ª – O recorrente foi ainda condenado pela prática de um crime de homicídio  qualificado - contra a sua mulher DD - , p. e p. pelos artigos 131º e 132.º, nº 1, alíneas b), d) e i), do Código Penal, na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão.

3ª - Nos termos do artigo 77.º, nº 1, do Código Penal, foi o recorrente AA condenado na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.

4ª – O Tribunal “a quo” julgou ainda parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente e demandantes civis BB, CC e AA, e condenou o arguido a efectuar o pagamento da quantia de €: 100.000,00 (cem mil euros) a titulo de indemnização pelo dano morte da vitima DD, e a quantia de €: 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) a cada um dos filhos da vítima DD, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.

5ª – Quanto ao crime de violência doméstica, cujo inconformismo se restringe á matéria de direito, analisando a factualidade dada como provada nos pontos 3 a 10, tal não corresponde a factos concretos, mas antes a imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas e imprecisas, temporal e factualmente indefinidas, não permitindo um efectivo contraditório e impossibilitando uma cabal defesa.

6ª – Logo, tais imputações genéricas, sem uma precisa especificação do tempo e mesmo do local concreto em que ocorreram as condutas, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado (art.º 32.º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa), não podem servir de base à qualificação da conduta do agente, devendo ser tidas por não escritas, como é entendimento jurisprudencial generalizado.

7ª – Dando-se por não escritos o referido nos pontos 3, 4, 6, 7, 8, 9 e 10  dos factos dados como provados, face à alteração da matéria de facto verificada, resta como suporte à qualificação jurídica da conduta do recorrente a situação descrita no ponto 5 da matéria de facto provada.

8ª - Entendemos que a matéria de facto provada no ponto 5 não reveste  suporte bastante à qualificação da conduta do recorrente como autor de um crime de violência doméstica sobre a ofendida BB, pois tais factos não têm a gravidade suficiente para integrar o crime de violência doméstica.

9ª – No crime de violência doméstica tutela-se a integridade corporal, a saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, por isso não são todas as ofensas , corporais e/outras, que cabem na previsão do referido artigo 152.º do Código de Processo Penal, mas apenas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, que traduzam crueldade ou insensibilidade por parte do agente, consubstanciando-se na perpretação de qualquer acto de violência que afecte a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vitima, diminuindo ou afectando a sua dignidade enquanto pessoa inserida num contexto conjugal.

10ª – Assim, os factos descritos no ponto 5 dos factos dados como provados, não assumem a gravidade que se exige por forma a poder concluir-se que o recorrente atentou contra a dignidade da vitima BB, não sendo, por isso tais factos aptos a lesar o bem jurídico protegido pelo crime em apreço- a saúde física, psíquica e emocional e a dignidade da pessoa humana.

11ª – Pelo exposto, entende-se que o Recorrente não cometeu o crime de violência doméstica contra a ofendida DD.

12ª – Tendo por isso sido violado o estatuído no artigo 152.º, do Código Penal, uma vez que a factualidade provada não integra a previsão desta norma, tal factualidade seria passível de integrar, outrossim, o crime de ofensa à integridade física simples p. e p. no art.º 143.º do Código Penal.

13ª - Pelo que deverá o Recorrente ser absolvido do crime de violência doméstica contra a ofendida BB, em que foi condenado.

14ª – A alínea d) do nº 2 do artigo 132.º do Código Penal,  tida como verificada pelo douto acórdão do Tribunal “a quo” opera apenas nos casos em que o homicida emprega tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vitima, isto é, quando são usados meios de provocação da dor cuja intensidade ou duração ultrapasse  a medida necessária para causar a morte.

15ª -  No caso dos autos, não obstante o arguido ter desferido oito facadas na vitima DD, não resulta dos factos provados  que o arguido tenha querido aumentar o sofrimento desta, para além do que já é próprio em qualquer acto homicida, pelo que deverá pois julgar-se por não verificada a agravante qualificativa prevista na alínea d) do nº 2 do artigo 132.º do Código Penal.

16ª – Por outro  no que se refere à circunstância  qualificativa da premeditação, o Tribunal “a quo”  formou a convicção de que o arguido inconformado com o fim do casamento,  decidiu matar DD, evento que veio a ocorrer na tarde do dia 06/05/2017, ora desconhecendo-se o momento em que o arguido formou a intenção de matar, também há que afastar a verificação da circunstância qualificativa da premeditação.

17ª – O Tribunal “a quo” ao aplicar uma pena de 22 anos prisão ao arguido pela prática do crime de homicídio qualificado, violou o principio da necessidade, adequação e proporcionalidade, descurando o fim das penas.

18ª – O Tribunal “a quo” não atendeu à previsão dos artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal.

19ª - Segundo o artigo 71.º do Código Penal, a determinação da medida da pena há-de efectuar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral positiva(protecção dos bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade).

20ª - As circunstâncias a que se há-de atender para tal, são não só as enumeradas no nº 2 do artigo 71.º do Código Penal, mas também todas as que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele e tais circunstâncias não foram devidamente ponderadas pelo douto acórdão recorrido.

21ª – A pena de prisão de 22 anos é excessiva e mostra-se desadequada por não espelhar a culpa do arguido e não ter em conta as necessidades e exigências de prevenção.

22ª – As condições sociais e pessoais do arguido referidas no relatório social, não foram devidamente ponderadas no acórdão recorrido, daí que se entenda que a pena deva ser atenuada.

23ª – O relatório pericial refere que o Recorrente sofre  de perturbação de personalidade mista e apresentava á data dos factos uma perturbação de adaptação ansiodepressiva.

24ª – O referido quadro espelha bem o estado emocional do arguido na altura da prática do homicídio.

25ª – As finalidades da aplicação de uma pena residem principalmente na tutela dos bens jurídicos, mas também podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial e de socialização.

26ª – Assim a medida da pena deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente, só desta maneira se alcançará uma eficácia óptima dos bens jurídicos.

27ª – As circunstâncias agravantes e atenuantes,  conduzem-nos seguramente a uma pena muito inferior a 22 anos de prisão.

28ª - O Venerando Supremo Tribunal de Justiça em casos similares de homicídio qualificado, na pessoa do cônjuge ou companheiro, tem fixado a pena aplicada  com uma oscilação média entre os 16 e os 20 anos de prisão, reservando as superiores a 20 anos de prisão para aquelas situações em que o arguido é julgado e condenado por vários crimes, quer sejam múltiplos homicídios, quer sejam vários crimes graves sobre a mesma vitima.

29ª – Atendendo ainda ao quadro depressivo do arguido e á situação psicológica vivenciada pelo mesmo na data da prática dos factos, no que se reporta à pratica do homicídio qualificado, deverá o mesmo ser condenado numa pena mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias acima expostas, por isso pugnamos pela aplicação de uma pena que se situe entre os 16 e 17 anos de prisão, o que estaria mais de acordo com as concretas penas que o Supremo Tribunal de Justiça tem aplicado, no âmbito das suas funções de uniformização de critérios de medida da pena.

30ª – Tendo em conta tudo quanto acima foi referido, não tendo o Tribunal “a quo”” considerado, na determinação da medida da pena, as circunstâncias previstas nos artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal, foram violadas as disposições legais  contidas nestes artigos.

31ª - O Tribunal recorrido atribuiu a indemnização de 100.000,00 € (cem mil  euros) correspondente  ao dano pela perda do direito á vida e ao dano sofrido pela vitima antes de morrer.

32ª - O Tribunal “a quo” ao unificar num só montante a indemnização  do dano pela perda do direito à vida, com o dano sofrido pela vitima antes de morrer, fez uma incorrecta interpretação da lei, violando o artigo 496.º nºs 2 e 4 do Código Civil.

33ª – No que tange á indemnização pela perda do direito à vida,  o Tribunal “a quo” arbitrou uma indemnização de 100.000.00 € (cem mil euros), pelo que também aqui fez uma incorrecta interpretação da lei, violando o artigo 496.º nºs 2 e 4 do Código Civil, sendo tal montante à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, manifestamente exagerado e desajustado, devendo por isso ser consideravelmente diminuído, pelo que se reputa por adequado e justa uma indemnização que não exceda os 65.000,00 € (sessenta e cinco mil euros).

34ª – Também a indemnização de 45.000,00 € (quarenta e cinco mil euros) atribuída a cada um dos demandantes civis a titulo de danos não patrimoniais, se mostra excessiva e por isso carece de correcção, tendo por isso sido violada, por errada interpretação, o preceituado no artigo 496.º do Código Civil, pelo  que nos parece mais equilibrada e justa uma indemnização de 22.000,00 € (vinte e dois mil euros ) por cada demandante civil.

Nestes termos, nos melhores de Direito e Justiça e com o sempre Mui Douto suprimento de V. Exªs, deverá conceder-se integral provimento ao presente recurso,  e por isso, deverá o douto acórdão ser revogado e consequência:

A)        Dar por não escritos o referido nos pontos 3, 4, 6, 7, 8, 9 e 10  dos factos dados como provados, sendo por isso o arguido absolvido do crime de violência doméstica contra a ofendida BB, em que foi condenado.

B)        Dar por não verificada a agravante qualificativa prevista na alínea d) do nº 2 do artigo 132.º do Código Penal.

C)       Afastar a verificação da circunstância qualificativa da premeditação.

D)        Deverá ser fixada uma pena  - pela prática do homicídio qualificado - que se situe entre os 16 e 17 anos de prisão, por ser adequada e justa ao caso concreto.

E)        Arbitrar uma indemnização que não exceda os 65.000,00 € (sessenta e cinco mil euros), pela perda do direito à vida.

F)        Fixar uma indemnização  de €: 22.000,00 (vinte e dois mil euros) a titulo de danos não patrimoniais por cada demandante civil.

(…)”.

1.3 - Respondeu o Ministério Público em primeira instância, que sobre os fundamentos do recurso concluiu nos termos seguintes:

“(…)

1. Não tem razão o arguido quando pretende que se considerem como não escritos, por genéricos e conclusivos, os factos descritos nos nºs. 3, 4 e 6 a 10, da matéria provada.

2. No que concerne aos factos descritos no nº 8, constata-se que ali foi descrito o modo de actuação do arguido (soco), a área atingida (a face de DD), o período em que o facto se verificou (na época de tosquia das ovelhas, nos anos de 2014 ou 2015) e infere-se que os factos ocorreram na Herdade ..., local onde ambos trabalhavam.

3. Tais factos não são conclusivos nem constituem uma imputação genérica, antes se encontram suficientemente concretizados, pelo que, quanto aos mesmos, ainda que se atenda à tese defendida pelo arguido, nenhum direito deste, nomeadamente, o contraditório, foi afectado.

4. No que tange à matéria descrita no nº 3, reconhece-se que a mesma é genérica e conclusiva e que por si só nunca poderia conduzir à condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica.

5. Na estrutura adoptada na acusação e no Acórdão recorrido a matéria ali mencionada surge como descritiva do comportamento global do arguido em relação à sua mulher, que se encontra depois desenvolvida, em termos fácticos, nos nºs. 4 a 10, da matéria julgada assente.

6. Quanto aos factos descritos nos nºs. 4 e 6, dos factos provados verificasse que os mesmos descrevem os concretos comportamentos adoptados pelo arguido, seja, indicando as exactas palavras que dirigiu à sua mulher, “puta”, “vaca”, “inútil”, “entrevada”, “porca”, “malandra”, seja o acto que contra ela praticou «…agarrou DD e, fazendo força, abanou a mesma».

7. Em ambos os casos se deu como provado, como constava da acusação,que todos esses factos ocorreram no interior da residência onde o arguido e a sua mulher coabitavam.

8. Menciona-se, ainda, que aquelas palavras foram dirigidas a DD por várias ocasiões e que o abanão ocorreu por uma única vez.

9. É certo que não é indicada, em concreto, a data em que todos esses factos ocorreram, por não ter sido realizada tal prova, em sede de julgamento, contudo afigura-se que a ausência desse elemento não é de molde prejudicar o exercício do contraditório pelo arguido e, consequentemente, a exigir que aqueles factos sejam dados como não escritos.

10. Relativamente aos factos julgados provados sob o nº 9, da matéria assente referente aos comportamentos que o arguido exigiu que a sua mulher omitisse verifica-se que não ocorre o mesmo grau de concretização mas afigura-se que ainda assim são suficientemente descritos para permitirem ao arguido defender-se sobre a imputação que lhe era dirigida o que realizou no decurso da audiência, pronunciando-se sobre tais factos, negando a sua verificação.

11. Já os factos descritos no nº 10, da matéria assente correspondem às consequências que resultaram para DD das supra descritas condutas do arguido, que se encontram claramente descritas em moldes em tudo idênticos ao que é típico nestas situações mostrando-se  claramente descritas, pelo que quanto a eles não ocorre qualquer vício que exija sejam declarados como não escritos.

12. Deve pois, tal factualidade ser mantida na descrição da matéria de facto julgada assente.

13. Aplicando o direito aos factos descritos nos nºs. 3 a 10, 23 e 25, é manifesto que aqueles integram todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nºs. 1, al. a) e 2, do Cód. Penal, pelo qual o arguido foi condenado.

14. Quer na fundamentação de direito quer no dispositivo o Acórdão é expresso ao julgar verificadas as als. b), d) e i), do nº 2, do artº 132º, do Cód. Penal, não tendo condenado o arguido pela circunstância “premeditação” qualificativa da al. j), desse mesmo preceito, pelo que é manifesto que o arguido, ora recorrente, carece de razão nesta parte.

15. Relativamente à circunstância prevista na alínea d), do nº 2, do artº 132º, do Cód. Penal, importa atentar que da factualidade provada resulta inequívoco que a actuação do arguido perdurou determinado lapso temporal, no decurso do qual desferiu 17 golpes que atingiram o corpo de DD, em múltiplas regiões, sendo desses três golpes com apetência para retirarem a vida à sua mulher.

16. Os demais golpes atingiram-na em diversas regiões do corpo onde não se situam órgãos nobres ou de forma que não possuía a virtualidade de causar a morte, mas de molde a aumentar o sofrimento de DD, pelo que se aceita o preenchimento desta qualificativa, decidido pelo Tribunal Colectivo.

17. O Tribunal realizou uma apreciação bastante exaustiva das circunstâncias atinentes à determinação da medida concreta da pena.

18. Em complemento de tudo o enunciado no Acórdão apenas se afigura salientar a enorme frieza revelada pelo arguido que, sabedor do hábito do local onde a vítima costumava tomar o café depois do almoço para ali se dirigiu, municiado com a navalha com que veio a desferiu os golpes naquela, como foi colocar-se a cerca de 10 metros do local onde estava sentada a vítima, observando a sua conduta, após o que a abordou de surpresa, pelas costas, e depois da tentativa de fuga daquela continuou a persegui-la enquanto lhe desferia novos golpes com a navalha, persistindo em persegui-la e em atingi-la com a navalha, mesmo depois de a ter derrubado ao chão, até perceber que DD havia perdido a vida.

19. Bem como o elevadíssimo grau de culpa revelado pelo arguido, que já munido da navalha, sem lhe anunciar por qualquer forma o seu propósito, se aproximou rapidamente, pelas costas de DD, com a navalha já aberta e oculta, a agarrou com o braço esquerdo e, de imediato, começou a atingi-la, sem lhe dar qualquer hipótese de defesa, após o que a matou, revelando uma fortíssima energia criminosa.

20. Esse nível de culpa sustenta uma pena concreta bem acima do meio da moldura penal aplicável sendo, igualmente, muito elevadas as exigências de prevenção geral, face ao bem jurídico atingido –a vida humana- e às relevantes exigências de prevenção especial, nos termos explanados no Acórdão, apesar da ausência de antecedentes criminais.

21. Sopesando as circunstâncias indicadas, donde ressalta à evidência a acentuada preponderância das de cariz agravante afigura-se que as penas parcelares aplicadas mostram-se adequadas aos factos praticados pelo arguido e às supra descritas circunstâncias.

22. O Tribunal Colectivo efectuou uma correcta apreciação dos factos provados, à luz do disposto no artº 77º, do Cód. Penal e a uma fixação justa e adequada da medida da pena única.

Por tudo o exposto, o Acórdão recorrido mostra-se conforme a todos os dispositivos legais em vigor pelo que negando provimento ao recurso e mantendo o Acórdão nos seus precisos termos V. Exªs. afirmarão a JUSTIÇA!

(…)”.

1.4 - Subiram os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, onde o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto produziu o seguinte parecer:

“(…)

IV Acompanhamos, no essencial, a resposta do Ex. mo Procurador da República, com as seguintes considerações

1. Como decorre das respectivas conclusões (5ª a 12ª), o recorrente põe em causa a matéria de facto provada sob os n.ºs 3 a 10, considerando que tais factos imprecisos e vagos devem considerar-se como não escritos.

           E do texto da motivação parece poder-se extrair-se que pretende, não o reexame de direito, ou seja, se os actos descritos são suficientes para preencherem o elemento objectivo (e subjectivo) do crime de violência doméstica, mas sim a própria e correspondente matéria de facto, com fundamento na forma genérica e vaga com que os actos foram descritos, o que o impossibilitou da adequada defesa a que tinha direito.

 A entender-se que visa (também) o reexame de matéria de facto, devem os autos serem remetidos à Relação, tribunal superior para o conhecimento do recurso, nos termos dos artigos 427.º e 428.º do CPP.

2. Sem prejuízo, concordamos integralmente com a apreciação efectuada pelo Ex. mo Procurador da República, no sentido de que a conduta constante dos n.º s 3 a 10 possui suficiente concretização para o preenchimento do elemento objectivo de crime de violência doméstica.

3. No que respeita às qualificativas do homicídio, consideramos, de forma mais assertiva, ser de afastar a circunstância da alínea d) [Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima];

           Considerou o acórdão recorrido que «perante a factualidade provada, da qual resulta inequívoco que a actuação do arguido perdurou determinado lapso temporal bem como o número de facadas infligidas que foram dezassete, sendo que só três delas atingiram órgãos vitais, forçoso é concluir que o arguido quis infligir dor na vítima, na medida em que podia com muito menos facadas tê-la morto, aumentando assim de forma intolerável o seu sofrimento…»

 Porém, e com toda a consideração, não fazemos idêntica interpretação do que consta do n.º 17 a 20 da matéria de facto provada. De relevante, o que extraímos dos referidos pontos, é que o arguido agarrou a vítima, que se encontrava sentada de costas, pelo pescoço, impedindo-a de se levantar e de se mexer, começando por lhe desferir, com força, golpes na face, pescoço, peito e braços. Quando esta tentou levantar-se e fugir, acabou por cair no chão, continuando o arguido a desferir-lhe violentos golpes na face, pescoço, peito e braços da mesma, que só cessaram quando a vítima deixou de apresentar sinais de vida.

           Trata-se de um inequívoco intenso e frio propósito de matar, ininterrupto, sem que dos referidos factos se possa extrair que as facadas que precederam a morte revelem a exigida crueldade para aumentar o sofrimento da vítima.

4. Finalmente, também consideramos não ocorrerem circunstâncias que justifiquem uma justificada intervenção correctiva na quantificação da pena pelo homicídio (não obstante o que consta do número antecedente deste parecer).

           Trata-se de mais um exemplo de egoísmo de dono, de «personalidade autoritária», como refere o acórdão recorrido a fls. 750, que «formulou antecipadamente a decisão deque iria castigar a ofendida pela sua decisão, isto é, que iria tirar-lhe a vida». Vale por dizer que trata aqueles para com deve ter particulares deveres e responsabilidades como coisas integrantes do seu acervo patrimonial.

 E nem sequer a alegada perturbação da personalidade deve ter reflexo atenuante.

           Por um lado, como decidiu o acórdão recorrido, «não resultou demonstrado que [a situação psicológica] tenha sido causa directa da sua actuação», e por outro, nem sequer uma situação de imputabilidade diminuída tem como efeito necessário a diminuição da culpa, e com ela, a diminuição da pena.

           Como defendemos numa situação similar (Processo n.º 1675/11.0JAPRT.P1.S1), e numa comprovada situação de imputabilidade diminuída, «(…), se as qualidades especiais do carácter do imputável diminuído, que entram no juízo da culpa, forem especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico-penalmente relevante, justifica-se a agravação da culpa, e com ela, a agravação da pena.

 Só uma concepção ancestral, repudiada hodiernamente, poderá aceitar que a agressão letal à mulher com quem viveu 10 anos, mãe de um dos seus filhos, se revela mais digna de tolerância e de aceitação, com fundamento de que esta pretendia pôr termo à relação, depois e por causa de anos de maus tratos físicos e psicológicos, bem retratados nos números 3 a 17 da matéria de facto provada.

           Ora, sendo o grau de afectação da vontade e consciência reduzido, qualquer ataque violento e letal (ou outro físico) contra uma pessoa em situação análoga à do cônjuge, é revelador de características especiais do carácter do agente particularmente desvaliosas, pois que assume o objecto do seu “afecto” como uma verdadeira coisa.

(…)

Ora, no balanço entre uma quase plenitude de determinação da vontade e de consciência e uma particular veemência da intenção de matar teremos que concluir que o dolo (directo) se situa numa quantificação superior.»

E nesta medida, mutatis mutandis, acompanhando-se integralmente a fundamentação do acórdão recorrido, não merece censura a pena fixada, que se adequa à culpa do arguido e exigências de prevenção.

5. No que respeita à indemnização civil, nada se nos alvitrar, por não representarmos qualquer dos sujeitos do processo.

Pelo exposto, entendemos que o recurso não deve ter provimento.

(…)”.

 

1.5 - Dado cumprimento ao disposto no art. 417.º, 2 do Cód. Proc. Penal veio o arguido responder reafirmando as posições sustentadas na sua motivação de recurso.

Colhidos os vistos foram os autos à conferência, havendo que conhecer e decidir.

II – Conhecendo

2.1 - Os factos apurados em juízo são os seguintes:

“(…)

Do despacho de acusação

1) Em data não concretamente apurada, o arguido AA iniciou um relacionamento amoroso com DD, com quem casou em ... de 1982, tendo passado a viver em comunhão de leito, mesa e habitação com a mesma, sendo a ultima morada do casal na Herdade ..., em ....

2) Juntamente com o arguido AA e com DD, a seu cargo e sob a sua assistência e protecção, viviam os três filhos de ambos, actualmente todos maiores de idade.

3) Sucede que, em data não concretamente apurada, mas pouco tempo depois do casamento, o arguido AA, fazendo uso da sua superioridade física e de uma ascendência autoritária, começou a exercer violência física e a ofender verbalmente DD, a impedi-la de vestir determinados artigos de vestuário e de se relacionar com terceiros, controlando seus horários e movimentos, o que fez repetidamente no interior da residência onde coabitavam e na presença dos filhos de ambos.

4) No quadro do descrito comportamento, em data não determinada, no interior da residência onde coabitavam, o arguido AA disse a DD "puta", "vaca", "inútil", "entrevada", "porca", "malandra".

5) Ainda no quadro do descrito comportamento, em data não determinada, no interior da residência onde coabitavam, o arguido AA desferiu uma bofetada na face de DD, o que fez na presença da filha, BB.

6) Noutra ocasião, em data não apurada, no interior da residência onde coabitavam, na presença de BB, o arguido AA agarrou DD e, fazendo força, abanou a mesma.

7) Por recear pela sua vida e integridade física, bem como pela vida e integridade física dos filhos, em várias ocasiões, DD saiu de casa com os filhos e pernoitaram no campo, sob as árvores.

8) No referido quadro, em data não concretamente apurada mas situada nos anos de 2014 e 2015, durante a tosquia das ovelhas, o arguido AA desferiu um soco na face de DD, o que fez na presença do filho, EE.

9) Noutras ocasiões, o arguido AA proibiu DD de vestir determinados artigos de vestuário e proibiu-a de conversar e de se relacionar com terceiros e com familiares.

10) Em todas as ocasiões descritas, DD sentiu dores físicas, mal-estar psicológico, receio pela sua vida e integridade física, humilhação e vergonha.

11) Entretanto, em data não concretamente apurada, mas entre Março e Abril de 2017, DD saiu da residência onde coabitava com o arguido AA, foi viver com um dos filhos do casal e manifestou vontade de se divorciar.

12) Inconformado com o fim do casamento, o arguido AA decidiu matar DD.

13) Na concretização do plano que traçou, no dia 6 de Maio de 2017, o arguido AA fazendo-se ao volante do veículo de marca "FORD", modelo "FIESTA, de matrícula ...-BF-..., que habitualmente utilizava, e acompanhado por FF, dirigiu-se ao jardim público de ..., lugar onde sabia poder encontrar-se a DD, a tomar café juntamente com familiares.

14) Próximo do jardim, o arguido AA imobilizou o veículo, caminhou até ao jardim público de ..., transportando em local não concretamente apurado a navalha, com um cabo de cor preta e com cerca de 19 cm de comprimento, que habitualmente trazia consigo.

15) Já no jardim público de Alcáçovas, o arguido AA dirigiu-se ao balcão, pediu uma água e sentou-se num banco de jardim, a observar DD, que se encontrava sentada a uma mesa, a tomar café, juntamente com a mãe, ..., com ..., com ... e com ....

16) De seguida, indiferente à vida de DD, com quem era casado há trinta e quatro anos, com quem viveu em comunhão de leito, mesa e habitação e de quem tem três filhos, bem como à presença de várias pessoas no jardim público, o arguido AA dirigiu-se à mesa onde se encontrava DD, empunhando a navalha.

17) Já junto de DD o arguido AA colocou o braço esquerdo à volta do pescoço da mesma, que se encontrava sentada de costas para ele, impedindo-a de se levantar e de se mexer.

18) Acto contínuo, o arguido AA começou a desferir com a navalha, que empunhava na mão direita, fazendo força, golpes na face, pescoço, peito e braços de DD.

19) De imediato, DD tentou levantar-se e sair do local, tendo por fim caído ao chão.

20) Não obstante aquele facto e mesmo após DD se encontrar caída no chão a sangrar, o arguido AA continuou a desferir, com a navalha que empunhava, fazendo força, golpes na face, pescoço, peito e braços da mesma, o que fez até que esta deixasse de apresentar sinais de vida.

21) Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido AA, DD sofreu de múltiplas lesões cortantes e corto-perfurantes. Na face, uma na região lateral orbicular esquerda, com 3 centímetros de maior eixo e trajecto penetrante com direcção infero medial numa extensão de 2 centímetros, a segunda na hemiface direita, região zigomática-malar com 2,2 centímetros de maior eixo e trajecto penetrante com direcção transverso medial numa extensão de 4 centímetros, a terceira na hemiface esquerda na região zigomática-malar com 0,8 centímetros de maior eixo e cauda de escoriação com direcção vertical com 8 centímetros, e uma quarta na região mediana do submento (queixo), punctiforme com 0,5 centímetros. No pescoço, uma ferida sobre a região vertente direita da cartilagem tiroideia, punctiforme, com 0,5 centímetros. No braço esquerdo, de três feridas corto perfurantes, uma na face póstero-Iateral do terço médio do braço com 2 centímetros de maior eixo e trajecto penetrante numa extensão de 8 centímetros, atingindo o plano muscular profundo, outra no quarto espaço interdigital com 4 centímetros e uma última na falange média do dedo anelar pela face palmar com 2,5 centímetros. No tórax de nove feridas corto-perfurantes. A primeira no quadrante supero lateral da mama direita, com 2 centímetros de maior eixo e trajecto penetrante com direcção transverso medial numa extensão de 5 centímetros, atingindo o bordo da sexta costela, com fractura. A segunda no quadrante superomedial da mama direita, justa mamilar com 3,5 centímetros de maior eixo e trajecto penetrante com direcção infero medial numa extensão de 11 centímetros, penetrando na cavidade torácica pelo sétimo espaço intercostal, atingindo sucessivamente a pleura e o lobo superior do pulmão direito, solução de continuidade pleural em continuidade com trajecto penetrante e condicionando hemotórax quantificado em 1000 mililitros. A terceira no quadrante infero medial da mama direita, justa mamilar com 2 centímetros de maior eixo e trajecto penetrante de diante para trás no corpo numa extensão de 4 centímetros, atingindo o arco anterior da oitava costela, com fractura. A quarta no quadrante infero medial da mama direita, marginalmente, punctiforme com 0,5 centímetros. A quinta na região infraclavicular esquerda, punctiforme, com 0,5 centímetros. A sexta, sobre os feixes superiores do musculo grande peitoral esquerdo, com 1,1 centímetros de maior eixo e trajecto penetrante de diante para trás no corpo, numa extensão de 1 centímetro. A sétima, no quadrante supero medial da mama esquerda, com dois centímetros de maior eixo e trajecto penetrante com direcção infero medial, grosseiramente horizontal numa extensão de 9 centímetros, penetrando na cavidade torácica pelo quarto espaço intercostal e atingindo sucessivamente a pleura e o lobo superior do pulmão esquerdo, com solução de continuidade pleural em continuidade com o trajecto penetrante da ferida e condicionando hemotórax quantificado e 1500 mililitros. A oitava, no quadrante supero medial da mama esquerda, justa mamilar com 1,5 centímetros de maior eixo e trajecto penetrante com direcção transverso medial e de diante para trás no corpo, numa extensão de 10 centímetros, penetrando na cavidade torácica pelo oitavo espaço intercostal, atingindo a face anterior do pericárdio e do coração, de solução de continuidade transfixa na face anterior do saco pericárdico em continuidade com o trajecto penetrante, de solução de continuidade transfixa (de toda a parede) na face anterior do coração, que atinge o terço proximal da parede anterior do ventrículo direito, com direcção de continuidade com o trajecto penetrante.

22) A segunda, sétima e oitava lesões corto-perfurantes, que atingiram e perfuraram os pulmões direito e esquerdo, o pericárdio e o coração, de DD foram causa directa e necessária da morte da mesma.

23) Ao agir da forma descrita, o arguido AA sabia que molestava a saúde física de DD, que a ofendia na sua honra e consideração, que fazia com que ela receasse pela sua vida, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez, durante aproximadamente trinta e quatro anos, de forma reiterada.

24) Ao agir do modo descrito, inconformado com o fim da coabitação, desferindo, fazendo força, com uma navalha que empunhava e de que previamente se munira, diverso golpes na face, pescoço, peito e braço de DD, com que era casado, viveu durante trinta e quatro anos e de quem tinha três filhos, o arguido AA agiu fria, crua e persistentemente, com o propósito concretizado de retirar a vida à mesma e de lhe causar grande sofrimento físico e psíquico enquanto o fazia, o que também logrou alcançar.

25) O arguido AA agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Sobre o arguido

26) Após a saída de casa da ofendida o arguido foi a um psicólogo em 18/04/2017, que lhe prescreveu Sertralina 50 e Mexazolam, medicação que mantém até hoje.

27) O arguido sofre de perturbação da personalidade mista e apresentava à data dos factos uma perturbação da adaptação ansiodepressiva.

28) Após o evento em causa o arguido tem amnésia dissociativa pós- traumática para o acontecimento.

29) O arguido não tem antecedentes criminais.

30) AA, natural de ..., cresceu no seio de um agregado familiar de nível socioeconómico baixo e culturalmente desfavorecido. O seu pai era pastor e a mãe passou a cuidar dos numerosos filhos que nasceram da união, de que AA constituía o antepenúltimo por ordem de nascimento de uma fratria de nove elementos. Tem ainda dois irmãos consanguíneos e um uterino de anteriores uniões afectivas dos progenitores.

31) Permanecia frequentemente em montes, conforme determinava a actividade de pastorícia exercida pelo pai.

32) Frequentou a escola em criança, tendo completado a antiga 3.a classe, com cerca de 14 anos, altura em que saiu do ensino.

33) Passou a trabalhar com o progenitor na guarda de animais, profissão que tomou para si e veio exercendo até à data da sua prisão.

34) O pai faleceu, vítima de suicídio, quando o arguido contava 19 anos de idade, situação que veio a repetir-se com uma das irmãs. AA assumiu por algum tempo o amparo da família.

35) O relacionamento com a família de origem tornou-se mais esporádico, quer pela união conjugal assumida, quer pelo trabalho absorvente que desempenhava. A interacção com a família alargada encontra-se marcada desde há anos por algumas divergências com a mãe e uma das irmãs.

36) Do casamento nasceram quatro filhos, um dos quais faleceu durante a primeira infância.

37) Mantém um comportamento com adequação às regras institucionais.

38) À data dos factos mantinha trabalho como pastor, dispondo de uma condição económica equilibrada.

39) No meio de residência, ... não lhe eram reconhecidas características violentas, sendo reputado como pessoa de bom trato e muito trabalhadora.

40) Dispõe de apoio de uma das irmãs que o visita.

41) AA perdeu a habitação em que residia, a qual lhe havia sido atribuída pela entidade patronal face às funções de pastor que exercia na propriedade de ....

Do pedido de indemnização civil

42) À data dos factos a ofendida tinha 42 anos, era uma mulher saudável, boa mãe, altruísta e trabalhadora.

43) ( ... ) Trabalhava como auxiliar do arguido, auferindo a quantia mensal de cerca de € 600.

44) À data dos factos os filhos da ofendida ..., AA e ... tinham 34 anos, 30 anos e 23 anos, respectivamente.

45) Em função da actuação do arguido a ofendida tinha medo e receio pela sua vida.

46) ( ... ) e chegou a consultar um psiquiatra por pensar suicidar-se.

47) Os filhos da ofendida sofrem com saudades, têm vergonha dos actos do pai e têm um profundo desgosto.

**

Factos não provados:

Com interesse para a decisão da causa, não resultaram demonstrados os seguintes factos:

Da acusação pública

A) Igualmente no quadro do descrito comportamento, nalgumas ocasiões, no interior da residência onde coabitavam, na presença do filho, CC, o arguido AA pegou num pau, que utilizava como cajado quando pastoreava ovelhas, e desferiu com o mesmo diversas pancadas no corpo de DD.

B) O arguido actuou da forma descrita em 8) na presença do filho, EE.

C) No dia 06 de Maio de 2017, o arguido AA colocou quatro navalhas no interior do veículo em que se fazia transportar.

D) ( ... ) e escondeu uma navalha na manga da camisa.

(…)”.

           

2.2 -  O objeto do recurso centra-se nas seguintes questões, sem prejuízo daquilo que possa ser de conhecimento oficioso:

A)        Não consideração dos pontos 3, 4, 6, 7, 8, 9 e 10  dos factos dados como provados, com consequente absolvição do arguido pelo crime de violência doméstica.

B)        Declarar não verificada a agravante qualificativa prevista na alínea d) do nº 2 do artigo 132.º do Código Penal.

C)        Afastamento da circunstância qualificativa da premeditação.

D)        Redução da pena pela prática do homicídio qualificado para medida entre os 16 e 17 anos de prisão.

E)        Redução para valor que não exceda os 65.000,00 € (sessenta e cinco mil euros), pela perda do direito à vida.

F)       Redução para €: 22.000,00 (vinte e dois mil euros) da indemnização por danos não patrimoniais, por cada demandante civil.

2.3 - Do crime de violência doméstica

2.3.1 - Nos termos do art.º 152.º, n.º 1 alínea a) e 2 do Código Penal:

“(…)
1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

(…)
2. No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.

(…)”.

O crime de violência doméstica integra-se no título I, dos crimes contra as pessoas, e no seu capítulo III, dos crimes contra a integridade física, da parte especial do Código Penal.

Não obstante a sua inserção sistemática entende-se que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é de natureza complexa. Em anotação prévia à autonomização deste crime e a propósito do crime de maus tratos e infracção de regras de segurança, escrevia Taipa de Carvalho “…deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agrave as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge, prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes, ou sujeitem os trabalhadores a perigos para a sua vida ou saúde”[1].

As condutas então aí contemplas, e que presentemente são objecto de previsão nos artigos 152.º, 152.º-A e 152.º-B, ainda que em termos não coincidentes, têm em comum o facto de todas elas emergirem de abusos decorrentes de uma relação de poder, no seio de uma organização familiar ou laboral ou simplesmente resultante de uma situação de vulnerabilidade do sujeito passivo perante o agressor. Em nosso juízo é esse o vetor essencial que levou o legislador a autonomizar este tipo de condutas que, por se situarem num contexto relacional, propendem para a reiteração ou até permanência, diferentemente do carácter ocasional das simples ofensas à integridade física. O que aqui está em causa é a saúde física e mental mas também a dignidade, a liberdade e a autonomia da pessoa, enfim, a integridade física e o património moral do sujeito passivo[2].

2.3.2 - Pretende o recorrente que seja dado por não escrito o referido nos pontos 3, 4, 6, 7, 8, 9 e 10 dados como provados, com consequente absolvição pelo crime de violência doméstica, alegando que o respectivo conteúdo consubstancia imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas e imprecisas, temporal e factualmente indefinidas, não permitindo um efectivo contraditório e impossibilitando uma cabal defesa do arguido.

Ora, percorrendo a matéria de facto ( pontos 1 a 10 e 23) constata-se que o arguido, vivendo em comunhão de mesa, leito e habitação com a vítima desde 30 de agosto de 1982, data do casamento entre ambos, casamento no decurso do qual tiveram três filhos, começou pouco tempo depois a exercer violência física e a ofender verbalmente a esposa, impedindo-a ainda de vestir certos artigos de vestuário, de se relacionar com terceiros, controlando os seus horários e movimentos.

Especificando:

Na residência de ambos e em diversas ocasiões chamou-lhe "puta", "vaca", "inútil", "entrevada", "porca" e "malandra",  desferiu-lhe uma bofetada na face, na presença da filha de ambos, GG e numa outra ocasião agarrou-a e abanou-a com força, na presença da mesma filha.

Tais atitudes levaram a que a ofendida, por recear pela integridade física e pela vida, sua e dos filhos, saísse por várias ocasiões de casa e fosse pernoitar com os filhos no campo, sob as árvores.

Em data não apurada de 2014 ou 2015, o arguido desferiu na esposa um soco na face, o que fez na presença do filho de ambos, .... Noutras ocasiões proibiu a esposa de vestir determinados artigos de vestuário, de conversar e se relacionar com terceiros e com familiares.

O referido comportamento do arguido gerou na ofendida dores físicas, mal-estar psicológico, receio pela vida e integridade física, humilhação e vergonha.

O arguido sabia que molestava a saúde física de DD, que a ofendia na sua honra e consideração, que fazia com que ela receasse pela sua vida, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez, durante aproximadamente trinta e quatro anos, de forma reiterada.

Resulta ainda da matéria de facto que os factos ocorriam na residência do casal.

Se é certo que no ponto 3 da matéria de facto se refere  que o arguido “começou a exercer violência física e a ofender verbalmente DD”, expressão de índole conclusiva, certo é também que a tal conclusão é dado substrato factual nos pontos seguintes da matéria de facto, indicando-se concretamente os modos de atuação do arguido em relação à ofendida, as palavras ofensivas que lhe dirigia, as agressões que nela praticava, enfim, as humilhações a que a sujeitava, impedindo-a de contactar com as pessoas das suas relações, de decidir a roupa que iria vestir ou até de descansar durante a noite na residência comum do casal, não por proibição do arguido mas por receio da ofendida de ofensas à vida e integridade física, sua e dos filhos.

Toda esta factualidade se traduz num continuado atentado contra a integridade física e moral da ofendida, contra a sua liberdade e autonomia, enfim, contra a sua dignidade como pessoa, através de agressões, palavras ou proibições bem concretas e especificadas.

2.3.3 - É certo que o contexto temporal de tais condutas não é rigoroso, sendo até muito impreciso. Para além do episódio relatado no ponto 8, onde se alude ao possível ano em que o mesmo terá ocorrido, sabe-se apenas que os demais se verificaram ao longo de praticamente todo o tempo de vida em comum, tendo-se iniciado pouco tempo depois do casamento (ponto 3) e mantido, de forma reiterada, durante aproximadamente trinta e quatro anos (ponto 23).

A falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida sendo que, no caso dos autos, quem mais esclarecimentos podia prestar, a vítima,  foi silenciada com 17 facadas desferidas pelo arguido. Acresce que, perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, as episódios em concreto diluem-se  na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta.

Não há porém qualquer dúvida de que os factos apurados em sede de julgamento preenchem tanto os elementos objectivos como subjectivos do crime de violência doméstica. Aliás o que está aqui em causa, não é essa questão. O recorrente não questiona a matéria de facto, até porque o recurso se circunscreve à matéria de direito. O que considera é que a matéria de facto, nos termos em que foi apurada, não tem a densidade suficiente em termos espácio-temporais, para permitir uma defesa eficaz   por parte do arguido. E em tais circunstâncias os segmentos aproveitáveis do acervo da matéria de facto poderiam conduzir a uma condenação por ofensas à integridade física mas não por crime de violência doméstica.

2.3.4 - Não tem razão o arguido. Os factos constantes da acusação que vieram a ser dados como provados, resultado este que, lembre-se, competia à acusação, contêm a materialidade suficiente para permitirem o exercício do contraditório, que aliás não seria diferente se outra fosse a formulação da peça acusatória dado que o arguido, conforme documentam os autos, se limitou a negar os maus tratos que lhe eram imputados.

Concede-se que, em abstracto, a referência temporal à conduta ilícita pode revelar-se decisiva para efeitos, por exemplo, de prescrição. Em concreto tal problema não se coloca dado que os maus tratos se traduziram em condutas reiteradas do arguido ao longo da vida em comum com a ofendida e que cessaram quando esta decidiu abandonar a residência do casal.

Improcede pois quanto a esta parte o recurso pelo que, quanto ao crime de violência doméstica, se mantém na íntegra a decisão recorrida.

2.4 - Do crime de homicídio

2.4.1 – Questão prévia. A agravante da alínea i) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal.

Decidiu o tribunal, convolando a acusação, condenar o arguido pelo crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1, alíneas b), d) e i) do Código Penal, sendo que esta última circunstância não constava da acusação.

De acordo com o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95, “O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.

Tal posição encontra também abrigo no art.º 424.º, n.º 3 do CPP, cujo cumprimento aqui não é exigível dado que sobre tal circunstância qualificativa já o arguido se pronunciou – v. ata da reabertura da audiência de 05-09-2018, fls. 730 e 731.

2.4.2 - Quanto a esta agravante entendeu o tribunal recorrido o seguinte:

“Em face do caso concreto dúvidas inexistem que se mostra verificada a mencionada circunstância plasmada na alínea i), pois embora no caso concreto não tenha resultado demonstrado que o arguido tenha escondido a navalha na manga da camisa, não resultam duvidas de que uma navalha pelas suas características de cor e dimensão por regra não é um objecto que ressalte facilmente à vista, ao que acresce o facto do arguido se ter aproximado de forma repentina por trás da vitima, agarrando-a pelo pescoço, retirando-lhe qualquer hipótese de ver a arma e de reagir defendendo-se.

Nestes termos a conduta do arguido é subsumível à previsão dos artigos 131° e 132.°, n."] e 2, alíneas b), d) e i), do Código Penal, isto é, verifica-se o preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do crime de homicídio qualificado”.

2.4.3 - O significado de meio insidioso, está naturalmente ligado ao sentido original de insídiae (cilada, emboscada), abarcando no seu conteúdo todos os meios que se possam considerar traiçoeiros, dissimulados, ardilosos, através dos quais o agente coloca a vítima numa situação em que praticamente não tem meio de defesa e, por vezes, conseguindo até a colaboração da própria vítima.

Segundo Mantovani “Insidiosos são os meios que, pela sua própria natureza enganadora ou pelo modo ou circunstâncias em que são usados, são de difícil identificação (armadilhas, fragmentos de vidro na comida, sabotagem do motor de um avião ou dos travões de um automóvel, carregamento de um objecto com corrente eléctrica de alta tensão, instalação em local radioactivo, etc.)”[3] ou seja, tudo situações em que a vítima está completamente indefesa. O exemplo mais óbvio de meio insidioso, que aliás constitui o padrão da alínea i), é a utilização de veneno, que assume essa natureza não porque seja mais mortífero do que qualquer outro mas porque não é detetável ou é dificilmente detetável pela vítima. A qualificação de outros meios como insidiosos terá naturalmente como referência esse padrão, por forma a poder considerar-se equivalente quanto ao “…seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto”[4] sendo de ter em conta que a insídia não se refere necessariamente ao meio ou instrumento concretamente utilizado para provocar a morte, podendo tal qualificação resultar das circunstâncias que rodearam o evento, como por exemplo, simulando falsa amizade, atrair a vítima a um determinado local para aí lhe tirar a vida.

2.4.4 - Ora a matéria de facto apurada não permite enquadrar a conduta do arguido nesta circunstância agravante.

Apurou-se com efeito que o arguido, tendo decidido tirar a vida à esposa, se dirigiu ao jardim público de .... Aí chegado foi ao balcão onde pediu uma água, sentando-se de seguida num banco de jardim a observar DD, que se encontrava sentada a uma mesa na companhia da mãe e de mais três pessoas. Foi de seguida a essa mesa, indiferente à presença de várias pessoas no jardim, empunhando a navalha. Agarrou depois a esposa pelas costas desferindo-lhe de seguida as facadas que lhe provocaram a morte.

Refira-se ainda que de acordo com os factos provados o arguido costumava andar com essa navalha, que tinha 19 cm.

Constata-se por isso que o arguido não escondeu o instrumento com que provocou a morte da vítima, já que empunhava a navalha que, pelas suas dimensões, não era fácil de esconder; não procurou qualquer altura ou local em que a vítima pudesse estar sozinha e não apenas se dirigiu a um local onde ela estava acompanhada por várias pessoas como, antes de consumar o propósito homicida, esteve durante algum tempo a observar a esposa, facto que a esta ou pelo menos às pessoas que com ela se encontravam, não poderia passar desapercebido. Ou seja, o arguido levou a cabo a prática do crime num contexto em que a esposa foi agarrada pelas costas mas não apanhada de surpresa, sendo certo que, como ficou também demonstrado, ela temia pela própria vida. Agiu pois o arguido de forma cobarde mas não insidiosa, pelo que não pode ser considerada a agravante da alínea i) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal.

2.4.5 - Sobre a agravante da alínea d) do n.º 2 do art.º 132.º

Neste segmento da decisão entendeu o tribunal recorrido que “… perante a factualidade provada, da qual resulta inequívoco que a actuação do arguido perdurou determinado lapso temporal bem como o número de facadas infligidas que foram dezassete, sendo que só três delas atingiram órgãos vitais, forçoso é concluir que o arguido quis infligir dor na vítima, na medida em que podia com muito menos facadas tê-la morto, aumentando assim de forma intolerável o seu sofrimento, verificando-se assim o preenchimento da alínea d)”.

No que se refere a esta questão sufragamos o entendimento do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste tribunal quando a propósito da execução do crime alude a ”… um inequívoco intenso e frio propósito de matar, ininterrupto, sem que dos referidos factos se possa extrair que as facadas que precederam a morte revelem a exigida crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”.

2.4.6 - O que os factos revelam é um inequívoco propósito de matar por parte de um homem despeitado, que recusava aceitar a decisão do cônjuge em abandonar o lar e pôr termo ao casamento.

Tendo por referência o crime de assassinato qualificado por crueldade que estava previsto no art.º 406.º, n.º 5 do velho CP Espanhol de 1944, escrevia C. Callon «… a crueldade não se refere a males desnecessários para causar a morte produzidos  num ímpeto de cólera ou de furor e sob cujo domínio o agente golpeia ou fere cega e reiteradamente , mas aos males causados fria e reflexivamente, “deliberadamente”, com o propósito de aumentar os sofrimentos da vítima”[5].

Não se afigura nem a matéria de facto nos dá fundamento bastante para concluir que o arguido tenha outro propósito que não fosse provocar a morte do cônjuge. Ora, como refere Carbonell Mateu, o assassinato por crueldade pressupõe um “duplo resultado”: a morte e o sofrimento desnecessário[6].

No mesmo sentido se pronuncia Maia Gonçalves para quem “Consiste a essência desta circunstância num aumento cruel e desnecessário do sofrimento da vítima; num prolongamento da sua dor. Por conseguinte não a integram uma simples repetição dos golpes; os actos, embora cruéis, para abreviar a morte nem tão-pouco os actos praticados post mortem sobre o cadáver ou para impedir ou dificultar a prova do crime”[7].

Segundo a matéria de facto o arguido golpeou a ofendida “até que esta deixasse de apresentar sinais de vida”. Alcançado este desígnio, o único que os factos inequivocamente revelam, cessou a agressão. Nada nos permite concluir que paralelamente ao referido propósito o arguido tenha pretendido também aumentar o sofrimento da vítima, pelo que conclusão nesse sentido carece de uma clara base fundante no plano dos factos.

Não pode por isso dar-se por verificada a agravante do alínea d) do n.º 2 do art.º 132.º do CP, procedendo nesta parte o recurso

2.5 - Pretende ainda o recorrente que se afaste a circunstância qualificativa da premeditação, o que só pode dever-se a lapso uma vez que a mesma não foi considerada a qualquer título pelo tribunal recorrido. Na parte da motivação respeitante à matéria de facto escreve-se: “Isto é, acredita o tribunal que quando o arguido se deslocou ao jardim das ... tinha já o propósito de matar DD, muito embora não se tenha conseguido apurar exactamente quanto tempo antes tomou essa decisão”. Os termos da mencionada formulação obstam à verificação da premeditação e não o contrário, como o recorrente terá erradamente entendido.

2.6 - Face ao exposto impõe-se alterar a qualificação respeitante ao crime de homicídio e condenar o recorrente por um crime de homicídio qualificado, p. e p.  pelos artigos 131° e 132.°, n.ºs l e 2, alínea b)  do Código Penal, o que implica a reapreciação da medida da pena, que o recorrente entende dever ser fixada entre os 16 e os 17 anos de prisão.

Consideramos que o tribunal recorrido realizou uma adequada ponderação das circunstâncias respeitantes aos factos e ao arguido, à luz do que sobre esta questão estipula o art.º 71.º do Código Penal, tendo designadamente em conta o percurso de vida do arguido, sem antecedentes criminais e de dedicação ao trabalho, a situação do arguido ao tempo dos factos (perturbação da adaptação ansiodepressiva) e efeitos da prática do crime nomeadamente no plano psicológico (amnésia dissociativa pós-traumática) e ainda o comportamento do arguido após a detenção por um lado, e por outro o grau de ilicitude dos factos e a intensidade do dolo.

Há agora que ter em consideração a exclusão de duas das circunstâncias agravantes anteriormente consideradas, facto que não pode deixar de se reflectir na medida da pena que, tendo por referência os padrões adotados na decisão recorrida, se nos afigura ser de fixar em 18 (dezoito) anos de prisão.

2.7 - Impondo-se fazer o cúmulo desta pena com a que lhe foi imposta pelo crime de violência doméstica, nos termos do disposto no art.º 77.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, e ponderando a ilicitude material dos factos, a intensidade do dolo e o tempo ao longo do qual o arguido sujeitou a vítima a maus tratos, fixa-se a pena única em 19 (dezanove) anos de prisão.

2.7 - Quanto à parte cível

2.7.1 - Pretende o recorrente que a indemnização arbitrada pela perda do direito à vida seja reduzida de 100.000,00 para 65.000,00 euros e que  a indemnização de 45.000,00 para cada um dos demandantes civis, por danos morais, seja reduzida para 22.000,00.

O recurso cinge-se pois ao montante das indemnizações não estando em causa quaisquer outras questões, designadamente a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil ou, em concreto, a extensão objectiva ou subjetiva do dever de indemnizar.

O recorrente refere na sua motivação que o Tribunal “a quo” ao unificar num só montante a indemnização  do dano pela perda do direito à vida, com o dano sofrido pela vitima antes de morrer, fez uma incorrecta interpretação da lei, violando o artigo 496.º nºs 2 e 4 do Código Civil. Todavia deste facto não extrai outra pretensão que não seja a da redução do montante da indemnização por essa via fixado.

2.7.2 - Sobre a perda do direito à vida da ofendida DD considerou o tribunal adequado e justo fixar a compensação em €100.000,00 “ tendo em conta em particular a idade da vítima, bem como tendo por referência os montantes indemnizatórios que vêm sendo superiormente fixados, e ainda atendendo ao sofrimento vivido por aquela no momento da sua morte”.

Como ressalta do próprio acórdão recorrido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça aponta para valores entre €50.000,00 e €80.000,00 pela perda do direito à vida. Valores próximos destes são referenciados, entre outros, nos acórdãos do STJ 25/11/2015, no processo n.º 24/14.0PCSRQ.S1 (no qual é feita uma minuciosa pesquisa sobre os valores indemnizatórios fixados pelo STJ ao longo de vários anos) e de 19/02 /2014 no processo n.º 1229/10.9TAPDL.L1.S1, que aponta para valores entre €50.000,00 e €70.000,00.

Perante estes valores, ainda assim significativamente distanciados, coloca-se a questão do cálculo do valor pela perda da vida. Sem questionar que a vida tem a mesma dignidade independentemente da idade e condições económicas e sociais de quem dela é portador, sufragamos o entendimento  plasmado no mencionado acórdão de 19/02/2014, segundo o qual “A vida tem, sobretudo, um valor social porque o homem é, antes de tudo, um ser em situação E terá de ser atendendo a este valor, em temos relativos e numa perspectiva essencialmente de qualidade humana, em que o poder monetário não terá qualquer peso, que os tribunais têm de apreciar, em concreto, o montante da indemnização pela lesão do direito à vida”.

No caso em apreço tem particular relevo a idade da vítima, à data dos factos com 42 anos de idade e a circunstância de se tratar de pessoa saudável, o que em conjunto perspectivava um percurso de vida ainda longo. Haverá ainda que considerar o dano não patrimonial sofrido pela vítima, que sofreu dezassete facadas e sofreu a angústia associada a perceção da vizinhança da morte, dano este tido em conta no montante fixado na decisão recorrida.

Tendo em conta as aludidas circunstâncias cremos que a matéria de facto não fornece, máxime no que se refere à parte cível, fundamento bastante para fixar um montante indemnizatório significativamente afastado daquele que o STJ tem estipulado para situações similares, considerando-se que será de reduzir a compensação pelo dano morte para   €75.000,00.

2.7.3 - No que se refere aos danos não patrimoniais sofridos pela assistente e demandantes civis com a perda da mãe, teve o tribunal recorrido em conta “o desgosto sentido, as saudades, bem como o facto de serem ainda jovens pelo que contariam ainda com ajuda da progenitora longos anos, e ainda os valores que habitualmente vêm sendo fixados pelos tribunais superiores”, considerando adequada a peticionada quantia de  € 45.000,00 para cada um deles.

Os filhos da ofendida e aqui demandantes, CC, AA e ... tinham à data dos factos 34 anos, 30 anos e 23 anos, respectivamente e ficou demonstrado que sofrem com saudades, têm vergonha dos actos do pai e têm um profundo desgosto.

As circunstâncias da morte da ofendida, morta à facada pelo próprio marido, pai dos demandantes traduziu-se numa experiência traumática que por certo os acompanhará pelo resto da vida. Diferentemente da morte resultante por exemplo de um acidente de viação, num contexto de risco diariamente assumido pela generalidade dos cidadãos, um homicídio doloso tem um impacto profundo em todos aqueles que têm uma relação próxima da vítima. Não obstante tal facto há que ter em conta os valores que jurisprudencialmente têm sido fixados, sob pena de se enveredar pelo arbítrio.

Como se pode constatar pela leitura do acórdão de 18/02/2016 (acórdão n.º 118/08.1GBAND.P1.S1) o STJ tem fixado como indemnização por danos não patrimoniais resultantes da perda de progenitor, valores que raramente ultrapassam os €30.000,00, sendo a média de €20.000,00 (v. também acórdão de 14/12/2016 proferido no processo  n.º 619/040TCSNT.L1.S1).

Não se afigura que os factos apurados nestes autos justifiquem um afastamento dos mencionados padrões pelo que é também aqui de dar provimento parcial ao recurso, reduzindo-se para €30.000,00 para cada um dos demandantes o montante por danos não patrimoniais por eles sofridos em resultado da morte da progenitora.

III – Decisão

Pelo exposto decidem os juízes da 5.º secção do Supremo Tribunal de Justiça:

Negar provimento ao recurso na parte respeitante ao crime de violência doméstica;

Quanto ao mais dar provimento parcial ao recurso e
a) Condenar o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2 alíneas b) do C. Penal, em 18 (dezoito)  anos de prisão;
b) Fazendo o cúmulo com a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, nºs 1 e 2 alínea a) do C. Penal, aplicar-lhe a pena única de 19 (dezanove) anos de prisão
c) Reduzir os montantes indemnizatórios e condenar o arguido no pagamento aos demandantes cíveis da quantia de €75.000,00 pelo dano morte e, a cada um deles, €30.000,00 por danos não patrimoniais pela perda da progenitora.
d) Manter quanto ao mais a decisão recorrida.

Sem custas criminais, sendo devidas custas cíveis por demandantes e demandado na proporção da sucumbência – artigos 527.º, nº 2 do CPC e 523.º do CPP.


Lisboa, 20 de fevereiro de 2019

Júlio Pereira (relator)

Clemente Lima


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[1] Américo Taipa de Cavalho in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, C.E., 1999, pag. 332.

[2] Codice Penale Operativo, a cura di Luciano Ciafardini/Nicola Russo, Simone, 2002, pag. 927.
[3] Ferrando Mantovani, Diritto Penale, Delitti contro la Persona, Cedam, 1995, pag. 155.
[4] Jorge de Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, C.E., 1999, pag. 38 e ss.
[5] E. Cuello Calón, Derecho Penal, Tomo II, 11.ª edição, Bosh, 1961, pag. 441.
[6] J. C. Carbonell Mateu in T. S. Vives Anton Coor., Derecho Penal, Parte Especial, 2.ª ed., Tirant lo Blanch, 1988, pag. 522.
[7] M. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 9.ª edição, Almedina, 1996, pag. 544.