Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P657
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
MATÉRIA DE FACTO
RECONHECIMENTO
Nº do Documento: SJ20060406006575
Data do Acordão: 04/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA
Decisão: NÃO AUTORIZADA A REVISÃO
Sumário : I - Este Supremo Tribunal tem entendido, para efeitos do art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP, que os factos ou provas são novos no sentido de não terem sido apreciados no processo que conduziu à condenação, pese embora não fossem ignorados pelo arguido no momento em que o julgamento teve lugar.
II - Não é uma indiferenciada nova prova ou um inconsequente novo facto que, por si só, terão virtualidade para abalar a estabilidade, razoavelmente reclamada, por uma decisão judicial transitada: hão-de, também, esses novos factos e/ou provas, assumir qualificativo correlativo da gravidade da dúvida que constitui a essência do pressuposto da revisão.
III - A dúvida relevante para a revisão de sentença tem de ser qualificada; há-de subir o patamar da mera existência, para atingir a vertente da gravidade que baste.
IV - O recurso de revisão não é sede apropriada para discussão de questões jurídicas já decididas na sentença revidenda, versando em exclusivo sobre a questão de facto, v. g., o valor de um reconhecimento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Em 1.ª instância foi julgado, entre outros, AA, portador do B.I. no….., filho de ……. e de………., nascido em Junho de 1951 na freguesia de Canha, concelho do Montijo e residente no Bairro…….., Lote….., R/C Esq. – Évora, actualmente preso no E.P. de Vale de Judeus, a quem a acusação imputava a prática:
a) Em co-autoria material um crime de roubo p.p. pelo art. 210º nº 1 e nº 2 al. b), com referência ao art. 204º nº 1 al. a) e i) e no 2 al. e) e g), ambos do C.P., relativamente aos factos articulados nos itens 76º a 89º;
b) em co-autoria material, um crime de roubo p.p. pelo art. 210º nº 1 e nº 2 al. b), com referência ao art. 204º no 1 al. f) e i) e nº 2 al. f) e g), ambos do C.P., relativamente aos factos articulados nos itens 90º 104º;
c) um crime de roubo p.p. pelo art. 210º nº 1 e nº 2 al. b), com referência ao art. 204º nº 1 al. i) e nº 2 al. e), f) e g), ambos do C.P., relativamente aos factos articulados nos itens 116º a 128º;
d) em co-autoria material, um crime de roubo p.p. pelo art. 210º nº 1 e nº 2 al. b), com referência ao art. 204º nº 1 al. i) e nº 2 al. g), ambos do C.P., relativamente aos factos articulados nos itens 161º a 167º;
e) em co-autoria material, um crime de roubo p.p. pelo art. 210º nº 1 e nº 2 al. a) e b), com referência ao art. 204º nº 1 al. i) e nº 2 al. e), f) e g), ambos do C.P. em relação aos factos articulados nos itens 215º a 236º;
f) em co-autoria material, dois crimes de sequestro p.p. pelo art. 158º nº 1 e nº 2 al. e) do C.P., em relação aos factos articulados nos itens 76º a 89º;
g) em co-autoria material, dois crimes de sequestro p.p. pelo art. 158º nº 1 e nº 2 al. e) do C.P., em relação aos factos articulados nos itens 90º a 104º;
h) dois crimes de sequestro p.p. pelo art. 158º nº 1 e nº 2 al. e) do C.P., em relação aos factos articulados nos itens 116º a 128º;
i) em co-autoria material três crimes de sequestro p.p. pelo art. 158º nº 1 e nº al. b) e al. e) do C.P. relativamente aos factos articulados nos itens 215º a 236º;
j) em co-autoria material, um crime de abuso de designação p.p, pelo art. 307º nº 1 do C.P., em relação aos factos articulados nos itens 161º a 167º;
k) um crime de burla na forma tentada p.p. pelos arts. 217º nº 1 e nº 2, 22º, 23º e 73º, todos do C.P., em relação aos factos articulados nos itens 206º a 214º;
Efectuado o julgamento foi decidido, além do mais, condená-lo por actuação:
- em co-autoria material, um crime de roubo p.p. pelo art. 210º nº 1 e nº 2 al. b), com referência ao art. 204º no 1 al. f) e i) e nº 2 al. f) e g), ambos do C.P., relativamente aos factos articulados nos nº 31º a 46º (itens 90º a 104º da acusação), na pena de 8 (oito) anos de prisão;
- em autoria material, um crime de roubo p.p. pelo art. 210º nº 1 e nº 2 al. b), com referência ao art. 204º nº 1 al. i) e nº 2 al. g), ambos do C.P., relativamente aos factos articulados nos nº 87º a 93º (itens 161º a 167º da acusação), na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- em co-autoria material, um crime de roubo p.p. pelo art. 210º nº 1 e nº 2 al. a) e b), com referência ao art. 204º nº 1 al. i) e nº 2 al. e), f) e g), ambos do C.P., em relação aos factos articulados nos nº 141º a 162º (itens 215º a 236º da acusação), na pena de 9 (nove) anos de prisão;
- em co-autoria material, dois crimes de sequestro p.p. pelo art. 158º nº 1 e nº 2 al. e) do C.P., em relação aos factos articulados nos nº 31º a 46º (itens 90º a 104º da acusação), nas penas de 4 (quatro) e 5 (cinco) anos de prisão;
- em co-autoria material três crimes de sequestro p.p. pelo art. 158º nº 1 e nº 2 al. b) e al. e) do C.P. relativamente aos factos articulados nos nº 141º a 162º (itens 215º a 236º da acusação), nas penas de 5 (cinco) anos de prisão para cada um deles;
- em autoria material, um crime de abuso de designação p.p, pelo art. 307º nº 1 do C.P., em relação aos factos articulados nos nº 87º a 93º (itens 161º a 167º da acusação), na pena de 3 (três) meses de prisão;
em cúmulo jurídico, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão.
Interpostos recursos para a Relação de Évora e para este Supremo Tribunal, foram os mesmos julgados improcedentes, respectivamente, por acórdãos de 1/4/2003 e 21/1/2004, com trânsito em julgado há muito ocorrido.
Interpõe agora o condenado recurso extraordinário de revisão, com estes fundamentos:

« (…) 1- Em 4 Nov. 2002, o Requerente foi julgado e condenado em 16 anos de prisão com base em factos alegadamente ocorridos em:

a) 2 Junho 2000 pelas 21 Horas em …..…..Conceição Tavira;

b) 4 Outubro 2000 pelas 08H30 em…….Estoi Faro

c) 17 Abril 2001 pelas 21H00 em………, Torre Coelheiros Évora

2- O Requerente desde a primeira hora que negou qualquer participação nos factos.

3- Quer na P.J. quer em Tribunal o Req. sempre repudiou os factos, pois nunca se deslocou aos locais e é alheio in totum aos mesmos.

4- Apesar disso foi condenado em 16 anos de prisão e sente-se profundamente injustiçado.

5- O arguido descobriu junto de BB, [co-arguido no mesmo processo] igualmente detido no E. P. Vale de Judeus, que os autores dos factos são 3 indivíduos conhecidos por “…..” ou CC, DD e EE.

6- Relativamente aos factos ocorridos em…….., Évora, FF e GG, residentes em Bairro …….-lote …… – Évora têm conhecimento do alheamento do Requerente nos actos. Na verdade,

7- Em conversa com HH da mesma localidade, sobre o caso do julgamento dos autos, esta comunicou àqueles que a vítima II afirmou que nunca reconheceu os assaltantes.

8- BB só agora revelou ao Req. a identificação dos autores dos actos pois tem grande receio daqueles indivíduos. Na verdade,

9- Um desses indivíduos conhecido por “SALIM” disse que se o BB “abrisse a boca” lhe queimaria a mulher e todos os haveres.

10- Um desses indivíduos como forma de intimidação incendiou uma carrinha, várias barracas de habitação e desferiu tiros contra familiares.

11- O Req. nunca foi reconhecido em Julgamento e no Inquérito foi alvo de actos instrutórios que, contendendo com direitos fundamentais, não contribuem para a certeza e unidade do direito, nomeadamente reconhecimentos efectuados pela P.J. sem a presença do Senhor Juiz da Instrução Criminal.

12- Alegar-se-á que o art. 147 do C.P.P. não prevê um controlo judicial e que o Ministério Público é o dominus do Inquérito porém,

13- O valor probatório reforçado do Reconhecimento em Inquérito funcionando como uma presunção de culpa sem a intervenção do Senhor Juiz de Instrução atenta contra o Artigo 6° da CEDH e é inconstitucional:

As garantias de isenção, de imparcialidade e de independência do acto de reconhecimento do arguido só podem ser asseguradas através da intervenção do Juiz de Instrução pelo que a delegação desse acto atinge um ponto fulcral das garantias de defesa.

Realizada a diligência sem o Juiz, abre-se caminho ao risco de as autoridades policiais, tantas vezes interessadas no sucesso da investigação, desrespeitarem os cânones que devem presidir ao acto, se não mesmo recorrerem a métodos de sugestão dos “reconhecedores” no sentido de reconhecerem no arguido o culpado.” Acórdão de 31 Maio 1999 do Tribunal Constitucional Relator: Vital Moreira – BMJ, 387, 1989, pag. 243 e ss.

14- Com todo o respeito e consideração que nos merecem as Colendas Decisões já proferidas pelo nosso mais Alto Tribunal que confirmou a Decisão do Douto Tribunal Colectivo de Évora, parece-nos que o reconhecimento efectuado, como o foi, coloca muitas dúvidas e nenhuma certeza de que o Req. AA tenha cometido os factos.

15- O recente conhecimento dos factos narrados em 5 a 9 supra e trazido ao Req. AA já após ter sido removido para o E P Vale Judeus constituem graves dúvidas sobre a justiça da condenação – art.º 449° – 1 — D) do C.P.P.

16-O Req. AA sente-se injustiçado e deve ser reparado o erro da condenação.

17- Urge realizar algumas diligências das quais resultarão, de forma inequívoca, que o Req. AA é inocente e alheio a quaisquer actos ilícitos....

18- O pedido de Revisão é pertinente e urge ordenar a “reabertura do processo” face aos factos recentemente revelados e ao vício fundamental que afectou o julgamento: reconhecimento sem controlo judicial.

19-A pretensão do Req. é legítima e fundamentada no art.º. 449 – 1 – D) do C.P.P. e no Art° 4° – 2 do Protocolo N° 7 Adcional á Convençao Europeia Dos Direitos Do Homem.»

Pediu a realização de algumas diligências de prova nomeadamente a inquirição de algumas das pessoas indicadas.

Na instância recorrida o juiz do processo, liminarmente, indeferiu a inquirição das testemunhas JJ e HH, em consequência de aquelas não haverem sido ouvidas no processo da condenação e o recorrente não justificar a ignorância da sua existência ao tempo da decisão ou que estivessem impossibilitadas de depor.

E quanto às demais, por considerar que a respectiva inquirição não se mostra indispensável à descoberta da verdade, já que, tendo em conta a razão de ser da convicção do tribunal, nomeadamente a fls…., …., …., ….., ….., ….., …., ….., …. e….., do apenso, facilmente se concluirá quão despicienda é a produção de prova que ora se pretende.

Não consta que tal despacho tenha sido objecto de oposição, nomeadamente por banda do recorrente.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido opinou pela denegação do pedido.

O juiz, em despacho manuscrito, prestou a seguinte informação:

«São novos factos ou novos meios de prova aqueles que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação, aqueles que sendo desconhecidos do tribunal de julgamento, sejam susceptíveis de levantar dúvida acerca da culpabilidade do condenado.

O recurso extraordinário de revisão penal de uma decisão transitada em julgado pressupõe que ela esteja inquinada por um erro de facto originado por motivos estranhos ao processo.

Salvo o devido respeito por melhor opinião, o recurso em apreço não tem tal virtualidade.

Dir-se-á que relata apenas uma versão/interpretação dos factos que contraria a versão do acórdão recorrido, não contendo nenhum facto novo ou elemento de prova capaz de fundamentar, alicerçar a revisão pretendida.

Assim, nos termos do estatuído no art.º 454.º do Código de Processo Penal, somos do parecer que deve ser denegada a presente revisão. (…)».

Já neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto expressou assim a sua posição:

«O arguido AA foi condenado, por diversos crimes de roubo, sequestro e abuso de designação, na pena unitária de 16 anos, transitada em julgado após recursos sucessivos para a 2.ª instância e para o STJ.

Dessa condenação, interpôs o arguido recurso extraordinário de revisão, ao abrigo do art. 449°, nº 1, d) do CPP, invocando a existência de factos novos susceptíveis de constituírem graves dúvidas sobre a justiça da sua condenação. Para tanto, indicou diversas testemunhas para inquirição.

Por despacho de fls….., foi indeferida a inquirição de duas testemunhas, por não terem sido ouvidas no processo, nem o reçorrente ter justificado o facto de só agora as apresentar, nos termos do art. 453.º, n° 2 do CPP. Quanto às restantes testemunhas, foi também indeferida a sua audição, com o argumento de que os seus depoimentos seriam insusceptíveis de contrariarem a fundamentação da convicção do tribunal colectivo.

Não foi, portanto, produzida qualquer prova que avalizasse os “factos novos” invocados pelo recorrente. Sendo assim, nenhum fundamento existe para deferir a revisão.

A única questão residirá em saber se este STJ deverá ordenar a produção da prova indicada pelo recorrente, assim revogando o despacho de fls…... Parece, no entanto, seguro, que não há justificação para o fazer. Na verdade, não merece, por um lado, censura o despacho na parte em que aplica o art. 453°, nº 2. E, quanto às restantes testemunhas, após uma leitura do acórdão condenatório constata-se que os depoimentos que elas poderiam produzir não poderiam de facto pôr em crise a fundamentação da matéria de facto.

Efectivamente, o recorrente foi condenado essencialmente com base no seu reconhecimento por parte de outros sujeitos processuais. Assim, quanto aos factos descritos nos nºs 35-48 (fls. …-…), o recorrente foi reconhecido em audiência e «com toda a certeza» pelo ofendido (fls…..); quanto aos factos descritos nos nºs 89-95 (fls….. -…..), o recorrente foi reconhecido no inquérito por uma testemunha que também não teve dúvidas (fls…..); e finalmente quanto aos factos descritos nos nºs 143-164 (fls. ….-….), o recorrente foi reconhecido no inquérito pela ofendida (fls……).

Perante estes reconhecimentos inequívocos que valor poderão ter as declarações de um co-arguido (BB), agora eventualmente pronto a “ilibar” o recorrente (eventualmente em troca de recíproca ilibação por parte do recorrente...) e umas testemunhas que apenas “sabem” que ouviram dizer que a ofendida disse que nunca reconheceu os assaltantes?

É, pois, seguro que nunca os depoimentos a produzir, ainda que totalmente “favoráveis” ao recorrente, poderiam pôr em crise a fundamentação da convicção do tribunal colectivo quanto à matéria de facto.

E assim sendo não há qualquer motivo para alterar o despacho acima referido. Consequentemente, deverá ser negada a revisão, por inexistência de quaisquer factos novos que suscitem dúvidas sobre a justiça da condenação.»

2. Colhidos os vistos legais em simultâneo, cumpre decidir.
Nos termos do disposto no artigo 449.º, n.º 1, d), do Código de Processo Penal, “A revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando...se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
Em consonância de resto, com o preceituado no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição da República (1): “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença (...)”.
É certo que, em regra, o trânsito em julgado de uma decisão faz esquecer os vícios de que padece: auctoritas rei judicatae prevalet veritati.
“Verdadeiramente, (...) o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto”. (2)
O princípio da justiça exige, porém, que a verificação de determinadas circunstâncias anormais permita sacrificar a segurança que a intangibilidade do caso julgado exprime, quando dessas circunstâncias puder resultar um prejuízo maior que aquele que resulta da preterição de caso julgado, o que é particularmente sensível no domínio penal em que as ficções de segurança dificilmente se acomodam ao sacrifício de valores morais essenciais: afinal a constatação da máxima milenar de Constantino e Lucínio que, no Livro dos Juízes, pertinentemente, proclamavam: placuit, in omnibus rebus praecipuam esse iustitiae aequitatisquae, quam stricti iuris rationem.
Com efeito, “a resignação forçada perante a necessidade de dar valor definitivo à sentença judicial não equivale a desconhecer a sentença injusta e a proclamar uma misteriosa transubstanciação em ordem jurídica de todos os erros jurisprudenciais, como se de nova e contraditória fonte de direito se tratasse. É melhor aceitar, como ónus da imperfeição humana, a existência de decisões injustas, que escondê-las, para salvaguardar um prestígio martelado sobre a infalibilidade do juízo humano e sob a capa duma juridicidade directamente criada pelos tribunais.
O caso julgado, portanto, não tem efeitos substantivos; como caso julgado material, o seu valor em outros processos é um valor puramente processual, impeditivo da renovação da apreciação judicial sobre a mesma matéria. É simples exceptio judicati.” (3)
“Porque o caso julgado, cortando cerce a possibilidade de busca da verdade material, restringe o ideal de justiça em razão da necessidade de segurança, faz-se sentir a sua imodificabilidade com mais rigor em processo civil do que em processo penal, por sua natureza vertido para a justiça real, e dificilmente acomodatício às ficções de segurança, obtidas à custa do sacrifício de valores morais essenciais” (4).
“Não são despiciendas estas considerações (...), pois que, com mais frequência do que seria desejável, a jurisprudência tem defendido afincadamente a estabilidade de decisões judiciais em processo penal, com indevida postergação do interesse concreto da justiça, para salvaguardar o valor daquelas decisões independentemente da sua justificação, como se a manutenção dum valor injurídico se confundisse com o prestígio funcional de órgãos criadores de direito autónomo”. (5)
No mesmo sentido se orienta o Professor Figueiredo Dias (6) ao afirmar que embora a segurança seja um dos fins prosseguidos pelo processo penal, “isto não impede que institutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se poderia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser só, no fundo, a força da tirania”.
O recurso extraordinário de revisão possibilitando, assim, ultrapassar a normal intangibilidade do caso julgado, visa a obtenção de uma nova decisão judicial que se substitua, através da repetição do julgamento, a uma outra já transitada.
No ordenamento português a revisão opera, não uma reapreciação do anterior julgado, antes, uma nova decisão assente em novo julgamento da causa, mas com base em novos dados de facto.
Ou seja, versa sobre a questão de facto.
Os fundamentos taxativos deste recurso extraordinário vêm enunciados no artigo 449.º do Código de Processo Penal e são apenas estes:
- falsidade dos meios de prova;
- injustiça da decisão;
- inconciliabilidade de decisões;
- descoberta de novos factos ou meios de defesa.
No caso, pelo já exposto, importa apenas a consideração desta última hipótese – novos factos ou meios de defesa.
Suscitados novos factos e novos meios de prova que numa apreciação global despertem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, haverá que conceder-se a revisão.
Os factos ou provas devem ser novos mas como é entendimento seguido neste Supremo, sê-lo-ão no sentido de não terem sido apreciados no processo que conduziu à condenação, embora não fossem ignorados pelo réu no momento em que o julgamento teve lugar.
Uma tal “novidade” dos factos deve existir para o julgador, ainda que o recorrente os conhecesse já; “novos são os factos ou elementos de prova que não foram apreciados no processo, embora o arguido os não ignorasse no momento do julgamento”. (7)
Em todo o caso, e não obstante o exposto, o recurso extraordinário de que nos ocupamos não é concedido ad libitum, o que bem se compreende, de resto.
Primeiro, porque, iniciada a “fase rescindente preliminar” que se desenrola no tribunal que proferiu a decisão revidenda, segue-se a instrução, devendo realizar-se as diligências indispensáveis à descoberta da verdade, sendo certo que só poderão ser inquiridas testemunhas ainda não ouvidas no processo se for invocada pelo requerente a ignorância da sua existência ao tempo da decisão ou a impossibilidade de deporem nessa altura – art.º 453.º, n.º 2, do CPP.
Por outro lado, tratando-se, como se trata, em qualquer caso, de contender com a certeza e segurança e, mesmo, a pacificação societária ancoradas no instituto processual de caso julgado, não poderia a lei abrir mão de compreensíveis cautelas na previsão e no concreto desenhar das hipóteses em que, em suma, tais valores de segurança jurídica podem ser suplantados por outros de maior valia, como é o caso da reposição da verdade material.
Assim, nomeadamente, no caso sub judice de revisão pro reo prevista no alínea d), do artigo 449.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o êxito do recurso fica dependente de “se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.
O que significa, desde logo, que, não obstante o já exposto, a estabilidade do julgado, sobrepõe-se à existência de uma mera dúvida sobre a justiça da condenação. Pode haver essa dúvida sem que se imponha a revisão da sentença. A dúvida sobre esse ponto pode, assim, coexistir, e coexistirá muitas vezes, com o julgado, por imperativo de respeito daquele valor de certeza e estabilidade.
A dúvida relevante para a revisão de sentença tem, pois, de ser qualificada; há-de subir o patamar da mera existência, para atingir a vertente da “gravidade” que baste.
E, se assim, logo se vê, que não será uma indiferenciada “nova prova” ou um inconsequente “novo facto” que, por si só, terão virtualidade para abalar a estabilidade, razoavelmente reclamada, por uma decisão judicial transitada.
Hão-de, também, esses novos factos e (ou) provas, assumir qualificativo correlativo da “gravidade” da dúvida que hão-de guarnecer e que constitui a essência do pressuposto da revisão que ora nos importa.
Há-de, pois, tratar-se de “novas provas” ou “novos factos” que, no concreto quadro de facto em causa, se revelem tão seguros e (ou) relevantes – seja pela patente oportunidade e originalidade na invocação, seja pela isenção, verosimilhança e credibilidade das provas, seja pelo significado inequívoco dos novos factos, seja por outros motivos razoavelmente aceitáveis – que o juízo rescindente que neles se venha a apoiar, não corra facilmente o risco de se apresentar como superficial, precipitado ou insensato, tudo a reclamar do requerente a invocação e prova de um quadro de facto “novo” ou a exibição de “novas” provas que, sem serem necessariamente isentos de toda a dúvida, a comportem, pelo menos, em bastante menor grau, do que aquela que conseguiram infundir à justiça da decisão revidenda.
Alinhadas estas noções sumárias, encaremos o caso sub judice.
E não poderá deixar de concluir-se, também sumariamente, pela improcedência manifesta do recurso.
Primeiro porque, como se viu do já exposto, o recorrente mais do que atacar o quadro de facto adquirido, se refugia essencialmente na discussão sobre o valor jurídico do reconhecimento como meio de prova, questão jurídica esta, aliás, já anteriormente por si colocada perante as instâncias e perante este Supremo Tribunal, sempre sem êxito.
Ora, como se viu, o recurso de revisão não é sede apropriada para discussão de questões jurídicas já decididas na sentença revidenda, versando em exclusivo sobre a questão de facto.
Daí uma primeira razão para o indeferimento da pretensão do recorrente.
Além disso, porém, o certo é que, com o beneplácito do recorrente, afinal nenhuma pretensa «nova» prova foi produzida, sendo certo que o despacho do juiz do processo a indeferir as diligências peticionadas foi acatado pelo recorrente.
Ora, não pode deixar de ter-se tal despacho actualmente com força obrigatória dentro do processo, isto é, com força de caso julgado formal – art.º 672.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do CPP.
É certo que o Supremo Tribunal sempre pode ordenar a realização de diligência que lhe pareça necessária – art.º 455.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Porém, tal dispositivo não preclude as normas processuais atinentes, nomeadamente as respeitantes à formação do caso julgado formal, tanto mais que ali se legisla mais abertamente para a hipótese de as diligências irem para além das já realizadas e ou pedidas no processo e deverem, mesmo, ser realizadas por juiz diferente do afecto ao processo revidendo.
Pode discutir-se, neste conspecto, é certo, qual o meio processual adequado para o interessado atacar a decisão do juiz do processo que lhe inferiu as diligências requeridas.
E já aqui se tem entendido que não necessitaria de o fazer por via de recurso ordinário – que constituiria, decerto, um instrumento pouco plausível e factor de um certo constrangimento processual quando inserido já num recurso extraordinário, e, assim, pouco compatível, nomeadamente com a celeridade processual que a prioridade dos actos judiciais respectivos faz incutir ao processado – art.º 466.º do CPP, e quanto a encurtamento de prazos, os artigos 454.º e 455.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma – para mais quando o processo há-de ser sempre apreciado no seu todo pelo Supremo Tribunal sem limitações que não sejam as resultantes da lei.
De todo o modo, seja ou não esse o meio adequado, o certo é que o interessado sempre terá de manifestar a sua discordância perante o despacho do juiz que o afecte, sob pena de formação de caso julgado nos termos gerais.
E, no caso, o recorrente conformou-se com o indeferimento.

Ainda que assim não fosse, porém, o certo é que, por um lado, o recorrente não justificou em relação às testemunhas JJ e HH, não ouvidas no processo, a ignorância da sua existência ao tempo da decisão ou que estivessem impossibilitadas de depor.

E quanto às demais, a consulta do processo fornece plena pertinência à posição assumida pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal quando defende:

« (…) E, quanto às restantes testemunhas, após uma leitura do acórdão condenatório constata-se que os depoimentos que elas poderiam produzir não poderiam de facto pôr em crise a fundamentação da matéria de facto.

Efectivamente, o recorrente foi condenado essencialmente com base no seu reconhecimento por parte de outros sujeitos processuais. Assim, quanto aos factos descritos nos nºs 35-48 (fls. ….-….), o recorrente foi reconhecido em audiência e «com toda a certeza» pelo ofendido (fls…..); quanto aos factos descritos nos nºs 89-95 (fls…. -…), o recorrente foi reconhecido no inquérito por uma testemunha que também não teve dúvidas (fls….); e finalmente quanto aos factos descritos nos nºs 143-164 (fls. …-…), o recorrente foi reconhecido no inquérito pela ofendida (fls….).

Perante estes reconhecimentos inequívocos que valor poderão ter as declarações de um co-arguido (BB), agora eventualmente pronto a “ilibar” o recorrente (eventualmente em troca de recíproca ilibação por parte do recorrente...) e umas testemunhas que apenas “sabem” que ouviram dizer que a ofendida disse que nunca reconheceu os assaltantes?!

É, pois, seguro que nunca os depoimentos a produzir, ainda que totalmente “favoráveis” ao recorrente, poderiam pôr em crise a fundamentação da convicção do tribunal colectivo quanto à matéria de facto.

E assim sendo não há qualquer motivo para alterar o despacho acima referido. Consequentemente, deverá ser negada a revisão, por inexistência de quaisquer factos novos que suscitem dúvidas sobre a justiça da condenação.»

Não se verifica assim o fundamento invocado para a pretendida revisão.

3. Termos em que, sem necessidade de mais considerandos, negam a pretendida revisão, condenando o recorrente nas custas com taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Abril de 2006

Pereira Madeira (relator)
Simas Santos
Santos Carvalho
Costa Mortágua


1 Assim confirmando a asserção Figueiredo Dias, de ser o direito processual penal verdadeiro “direito constitucional aplicado”.
2 Cfr. Eduardo Correia, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, (reimpressão) Almedina, 1963, págs. 302
3 Cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso...III, edição da AAFDUL, 1957, págs. 37
4 Ibidem págs. 38
5 Ibidem págs. 39
6 Direito Processual Penal, 44, citado por Maia Gonçalves no Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 11.ª edição, págs. 795
7 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, págs. 388
8 Cfr., por todos, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, págs. 207
9 Cavaleiro de Ferreira, Curso, I, págs. 294

_____________________________________

1- É o que resulta nomeadamente da sua petição quando afirma: «(…) 13- O valor probatório reforçado do Reconhecimento em Inquérito funcionando como uma presunção de culpa sem a intervenção do Senhor Juiz de Instrução atenta contra o Artigo 6° da CEDH e é inconstitucional: As garantias de isenção, de imparcialidade e de independência do acto de reconhecimento do arguido só podem ser asseguradas através da intervenção do Juiz de Instrução pelo que a delegação desse acto atinge um ponto fulcral das garantias de defesa. Realizada a diligência sem o Juiz, abre-se caminho ao risco de as autoridades policiais, tantas vezes interessadas no sucesso da investigação, desrespeitarem os cânones que devem presidir ao acto, se não mesmo recorrerem a métodos de sugestão dos “reconhecedores” no sentido de reconhecerem no arguido o culpado.” Acórdão de 31 Maio 1999 do Tribunal Constitucional Relator: Vital Moreira – BMJ, 387, 1989, pag 243 e ss. 14 - Com todo o respeito e consideração que nos merecem as Colendas Decisões já proferidas pelo nosso mais Alto Tribunal que confirmou a Decisão do Douto Tribunal Colectivo de Évora, parece-nos que o reconhecimento efectuado, como o foi, coloca muitas dúvidas e nenhuma certeza de que o Req. Rogil Pinto tenha cometido os factos. (…)»