Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P1672
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MOTIVAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200305220016725
Data do Acordão: 05/22/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3224/02
Data: 12/18/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : I - Quando o Supremo Tribunal de Justiça é confrontado com um recurso da Relação, sãos os fundamentos do decidido em 2.ª instância que importa verificar e, não, os da decisão de 1.ª instância já sufragados pelo tribunal recorrido.
II - Daí que, no casos em que o recorrente (já em segunda edição, portanto), se limita a uma espécie de recauchutagem informática dos fundamentos do recurso que apresentou perante a Relação, sem nada trazer de novo à discussão, verdadeiramente não apresenta motivação, que, para não se volver numa fastidiosa e inútil repetição de argumentos, deverá incidir, isso, sim, e se for esse o caso, sobre a argumentação do tribunal recorrido que é o da Relação, e, não, sobre o que foi decidido em 1.ª instância.
III - No actual sistema processual penal está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação.
IV - O uso dos poderes de livre apreciação da prova pelas instâncias é, até certo ponto, sindicável em via de recurso, pelo Supremo Tribunal de Justiça, desde que, através da necessária objectivação e motivação se atinja que tais poderes foram usados para além do que permitiriam as regras da experiência e da vida, fundando assim uma conclusão inaceitável, designadamente, expressando certezas quando devia ficar-se pela dúvida ou vice-versa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. O Ministério Público deduziu acusação contra as arguidas MLFB e MCTM, devidamente identificadas, pela prática, cada uma delas, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24, al. h), do DL 15/93, de 22/01, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º da Lei 45/96, de 03/09, com base nos factos descritos na acusação.
Efectuado o julgamento veio a ser proferida sentença em que, além do mais, foi decidido julgar parcialmente procedente por parcialmente provada a acusação, absolvendo-se a arguida MLFB da prática do crime que lhe era imputado e condenando-se, em conformidade, a arguida MCTM, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. h), do DL 15/93, de 22/01, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º da Lei 45/96, de 03/09, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Inconformada, recorreu a condenada à Relação de Coimbra, mas em vão o fez, já que aquele tribunal superior, por acórdão de 18/12/02 negou provimento ao recurso.
Ainda não convencida, recorre agora a mesma arguida ao Supremo Tribunal de Justiça a quem confronta com o seguinte objecto conclusivamente delimitado:
A) A arguida, ora recorrente foi julgada e condenada nos autos em epígrafe, na pena de um cinco anos e seis meses de prisão .
B) Tal decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra que negou provimento ao recurso interposto pela arguida ora recorrente. C) Acontece porém que, a arguida não praticou os factos pelos quais foi acusada e condenada, designadamente, porque, não tinha conhecimento, antes desconhecia o que se encontrava no interior das laranjas e consequentemente que a droga seria pelo A ou por outro ou outros reclusos vendida a consumidores no estabelecimento prisional, não procedendo assim livre e conscientemente.
D) Na verdade, a ora recorrente, assumiu desde do inicio, sempre a mesma postura e versão, ou seja desde o momento em que vai à cadeia para se inteirar do que se passava com o saco e esclarecer que tinha sido ela a entregá-lo à sua nora, para esta o entregar ao ARCFS; quando relatou ás testemunhas o que se havia passado; quando prestou declarações no inquérito e na audiência de discussão e julgamento. E) Toda a postura da arguida durante o inquérito e até antes dele revela o quanto esta estava de consciência tranquila, pois, quem mal não faz, mal não pensa.
F) Na verdade, as circunstâncias em que o saco em causa lhe foi entregue, foram exactamente as referidas pela arguida e pelas testemunhas, desconhecendo esta se no interior das laranjas estava alguma coisa ou o que quer que seja, hipótese que é altamente verosímil e crível.
G) No entanto, o tribunal não deu relevância, às declarações da arguida, ora recorrente, nem à das testemunhas, apesar de ninguém ter contrariado essas declarações.
H) Antes se convenceu de que aquela tinha conhecimento dos produtos que se encontravam no interior das laranjas, sem apurar o modo ou modos, como aquela entrou na posse do saco, e,
I) Só assim, poderia convencer-se que aquela sabia ou não sabia do que continham as laranjas no seu interior.
J) Pelo que, nesta parte, a matéria de facto dada como provada é manifestamente insuficiente para a decisão que foi tomada pelo Tribunal, e de que ora se recorre.
L) Por outro lado, também a fundamentação da decisão encerra uma contradição insanável, já que, por um lado, fundamenta a sua convicção nas declarações da arguida ora recorrente e das testemunhas, quando refere que:
(...)Também nas declarações prestadas, em audiência, pela MC, a qual deu a sua versão dos factos, afirmando que o saco lhe foi entregue por uma pessoa amiga do ARCFS, para que lho entregasse quando se deslocasse ao EP a fim de visitar o filho, tendo-o entregue à sua nora por, nesse dia, já o ter visitado(...); e depois condena-a por não ser crível que ela não tivesse conhecimento. Onde está o facto provado, que permite ao Tribunal adquirir tal convicção?
M) Não se apurou versão diversa da que foi apresentada pela ora recorrente e o Tribunal concluiu pela convicção de que a arguida tinha conhecimento de que no interior das laranjas eram transportados aqueles produtos, por não ser crível que alguém entregue mais de 46 gramas de heroína amua pessoa sem que esta saiba do que se trata, para além de que, também não é verosímil, que alguém que pretenda entregar uma encomenda a um detido no EP de Coimbra, e venha de fora da região centro, se desloque às proximidades do Luso, para que esta o faça por si. Concluindo ainda que, a heroína se destinava a ser vendida no interior do EP de Coimbra, no facto de aí ter sido introduzida, na sua quantidade, bem como na circunstância de ser acompanhada de 60 comprimidos de piracetam, usualmente utilizados para corte da heroína, na venda a retalho.
N) Entendeu o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que, os problemas postos pela recorrente no seu recurso se reconduzem a um único, qual seja o da apreciação da prova por parte do tribunal recorrido de que trata o art.º 127.º do C.P.P.
O) E aqui os Venerandos Juízes Desembargadores chamaram à colação ensinamentos para dizer que os julgadores do Tribunal de recurso só podem afastar-se do juízo feito pelo julgador da 1.ª instância naquilo que não tiver origem nestes dois princípios ( oralidade e imediação) ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e experiência.
O) Acontece porém que, e salvo melhor opinião, as regras da experiência, não podem de modo nenhum determinar que a arguida conhecia o que continham as laranjas, no caso dos autos. Pois, se por um lado, não é crível ao Tribunal que alguém entregue mais de 46 gramas de heroína a uma pessoa sem que esta saiba do que se trata, e, também não é verosímil, que alguém que pretenda entregar uma encomenda a um detido no EP de Coimbra e venha fora da região centro, se desloque às proximidades do luso, para que esta o faça por si; por outro lado, para as regras da experiência também não é crível que uma senhora com 71 anos de idade, pobre, honesta, trabalhadora, respeitada por todos no meio onde vive, doente (diabética) que vive num meio pequeno, se prontificasse a fazer chegar ao EP tal quantidade de estupefaciente, sabendo ela do que se tratava.
P) E tanto assim é, que pediu à sua nora e neto que procedessem à entrega do saco no EP.
Q) As regras da experiência o que ditam ou podem ditar no caso dos autos, é que a arguida foi enganada, usada para o efeito. Abusaram da sua idade, da sua ingenuidade e boa vontade. E é disto e apenas disto que a arguida está a ser vitima.
R) A livre apreciação da prova que foi feita pelo tribunal 1.ª instância, não pode ser urna apreciação imotivável e incontrolável da prova produzida. A liberdade de apreciação da prova é no fundo urna liberdade de acordo com um dever -" o dever de perseguir a verdade material " de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto recondutível a critérios objectivos e, portanto, em qual susceptíveis de motivação e controlo.
A livre convicção ou apreciação não poderá nunca confundir-se com a apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. As deduções e induções efectuadas pelo Tribunal "a quo" não se podem retirar de modo algum, dos factos probatórios dados como assentes pelo acórdão do Tribunal.
S) Ora, Venerandos Juízes Conselheiros, isto é muito pouco ou nada para se condenar alguém. A arguida foi condenada por o Tribunal entender não ser crível, determinado facto. A convicção tem de se alicerçar em algo palpável, factos, sobretudo quando se trata de " atirar com uma pessoa de 71 anos de idade para a cadeia durante vários anos "
T) A tudo isto acresce ainda o facto do Tribunal ter usado dois pesos e duas medidas para tomar a sua decisão em relação a cada urna das arguidas. Senão ...vejamos:
U) O Tribunal entendeu dar como provado que a arguida ora recorrente tinha conhecimento que o interior das laranjas continha aqueles produtos por não ser crível que alguém entregue mais de 46 gramas de heroína a urna pessoa sem que esta saiba do que se trata. Então esta conclusão também não é válida para a arguida Lurdes? Por essa ordem de ideias também não é crível que a arguida MC tenha entregue o saco à arguida Lurdes para que esta o transportasse para o interior do EP sem que esta última conhecesse que no mesmo eram transportadas 46 gramas de heroína.
V) Ao decidir absolver a arguida, ML e condenar a arguida, MC com os fundamentos atrás relatados, o Tribunal de que se recorre violou claramente um dos mais elementares princípios constitucionais, o principio da Igualdade dos cidadãos perante a lei, plasmado no artigo 18.º da C.R.P . X) Pelo exposto, o Tribunal errou também e grosseiramente na apreciação da prova.
Z) A arguida tem 71 anos de idade. E reformada, auferindo urna pensão de reforma no valor de cerca de 38.000$00. É doente. Diabética.
Termos em que, requer a V. Ex.as., Venerandos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, se dignem revogar a decisão de que ora se recorre, absolvendo-se a arguida, ora recorrente, dos factos pelos quais estava acusada e foi condenada, ou pelo menos, o reenvio do processo para novo julgamento, fazendo-se assim justiça.
Justiça!

Admitido o recurso na Relação, estranhamente e sem mais explicações, para «ser processado como agravo de petição em matéria cível», respondeu o MP nos termos seguintes:

«Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça
Interpôs a arguida MCTM recurso do douto acórdão desta Relação, de 18-2-2002, que manteve inalterado o acórdão proferido na 1.ª instância, pelo qual fora a ora recorrente condenada, como autora material de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelos art.ºs 21.° n° 1 e 24.° al. h) do DL 15/93, de 22-1, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
Analisada a motivação que apresentou, verifica-se que a recorrente impugna ali a decisão da 1.ª instância e não, como lhe competia, o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação.
Na verdade, a motivação ora apresentada é uma cópia, quase integral, da motivação que apresentou com o recurso interposto da decisão da 1.ª instância, sendo que na pequena parcela em que não se verifica integral coincidência persiste a recorrente em impugnar o decidido na 1.ª instância, desta feita no que concerne à pretensa incorrecção na aplicação do princípio a que se refere o art.º 127° do Cód. Proc. Penal.
Fundamentalmente, a recorrente invoca na sua motivação ( como na motivação do recurso da decisão da 1.ª instância) os vícios do art.º 410° n° 2 do Cód. Proc. Penal e a violação do princípio constitucional da igualdade.
Tem o Supremo Tribunal de Justiça entendido que, tratando-se de matéria de facto, mesmo sob a invocação dos vícios do n° 2 do art.º 410° do CPP, não lhe cabe pronunciar-se, pois tendo a natureza de tribunal de revista não lhe cabe reapreciar a questão de facto, por maioria de razão quando já foi exercido um duplo grau de jurisdição de matéria de facto pela Relação (cfr., por todos, o Ac do STJ de 12-12-2002, transcrito em www.dgsi.pt).
Por outro lado, é também uniforme a jurisprudência segundo a qual, "estando em causa um recurso para o STJ de um acórdão da Relação, o mesmo não pode ter por objecto o acórdão da 1.ª instância, e se o recorrente se limita a impugnar este último acórdão verifica-se falta de impugnação a que alude o art.º 412° do CPP: enunciação dos fundamentos do recurso, isto é, das razões de discordância em relação à decisão recorrida (e não outra)" - Ac. do STJ de 6-6-2002, transcrito em www.dgsi.pt (no mesmo sentido, o Acórdão acima citado e o Ac. do STJ de 24-10-2002, proc. 2124/02).
Tendo em consideração o exposto, cremos que deverá o recurso ser rejeitado, dada a sua manifesta improcedência.»
Subidos os autos a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta aderiu, sem mais, à posição expressa pelo MP junto do tribunal a quo.
No despacho preliminar do relator foi entendido que o recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
Daí que os autos tenham vindo à conferência.

2. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Vejamos, antes de mais, os factos provados:

1. Aquando dos factos que ora se lhe imputa encontrava-se preso no E P de Coimbra o, respectivamente, marido e filho das arguidas, um tal ...... que, por sua vez era amigo de um outro recluso, ARCFS, melhor identificado nos autos, que, por sua vez, também era pessoa das relações das arguidas.
2. No dia 29/07/01 a arguida MC entregou à arguida ML, e esta entregou na portaria do EP vindo a referir, pedindo ao funcionário porteiro que a recebeu que o entregasse ao ARCFS, um saco de plástico aberto, contendo o que parecia serem apenas peças de fruta - bananas e laranjas - mas que na realidade continha também, dissimulada no interior de duas laranjas e dividida por dois preservativos servindo de embalagem, um total de 46,660 gr de heroína, substância estupefaciente integrante da Tabela I- A anexa ao já referido DL 15/93.
3. Dentro de outras duas laranjas estavam dissimulados sessenta comprimidos de piracetam, substância não integrante de qualquer das tabelas anexas ao sobredito diploma.
4. A arguida MC tinha conhecimento do sobredito conteúdo das quatro laranjas e sabia que incorria em crime detendo e entregando a heroína, por aquele modo, para chegar às mãos do Armando.
5. A arguida MC sabia que a droga seria pelo ARCFS ou por outro ou por outros reclusos vendida a consumidores no estabelecimento prisional.
6. Procedeu, no que vai dito, livre e conscientemente, bem sabendo que a lei lhe proscrevia a posse de tal produto e a entrega dele a outrem, a qualquer título.
7. A arguida ML tem um filho com 17 anos e uma filha com 4 anos de idade, respectivamente, e reside em casa da mãe, exercendo funções de auxiliar educativa na EB 2/3 da Mealhada.
8. É primária.

9. A Arguida MC aufere uma reforma no montante de cerca de 38.000$00, sofre de diabetes, e tem um filho com problemas de saúde.
10. Confessou parcialmente os factos, designadamente, a entrega do saco à sua nora, a 1.ª arguida, embora afirmando desconhecer que no mesmo estivesse droga ou os comprimidos apreendidos.
11. É primária.

Factos não provados:
1. Não se demonstrou que a arguida ML tivesse conhecimento do conteúdo das quatro laranjas, isto é, esta desconhecia que nas mesmas eram transportadas a heroína e comprimidos apreendidos, pelo que, consequentemente, também não se demonstrou que soubesse que a mesma era destinada à venda no EP, fosse por quem fosse.

Como salienta o MP salta à vista, a quase integral coincidência do objecto do recurso, com o levado à Relação, desde logo, a motivação praticamente inalterada e, sem dúvida, a repetição do teor literal das conclusões, mormente das primeiras 12 ora apresentadas pela recorrente com as que apresentou perante a Relação no recurso da decisão do colectivo de 1.ª instância.
Tudo girando sobre a matéria de facto adquirida em audiência, ora penas se tendo aditado uma difusa crítica ao modo como teria sido feito uso do poder de «livre apreciação»...em 1.ª instância...mas sem menção explícita no objecto do recurso apresentado perante a Relação.
Como se ponderou no recurso n.º 2935/02-5 com o mesmo relator, quando o Supremo Tribunal de Justiça é confrontado com um recurso da Relação, sãos os fundamentos do decidido em 2.ª instância que importa verificar e, não, os da decisão de 1.ª instância já sufragados pelo tribunal recorrido.
Daí que, em casos como o presente em que a recorrente (já em segunda edição, portanto), se limita a uma espécie de recauchutagem informática dos fundamentos do recurso que apresentou perante a Relação, sem nada trazer de novo à discussão, verdadeiramente não apresenta motivação.
Que, para não se volver numa fastidiosa e inútil repetição de argumentos, deverá incidir, isso, sim, e se for esse o caso, sobre a argumentação do tribunal recorrido que é o da Relação, e, não, como censuravelmente vai acontecendo, sobre o que foi decidido em 1.ª instância.
Confrontando aquelas conclusões da motivação ora apresentada ao Supremo Tribunal (supra transcritas) com as da que culminaram o recurso apresentado ao tribunal recorrido aquela estranha coincidência, quase integral, tendo-se no fundo a recorrente limitado a adaptar informaticamente as menções que fizera à sentença colegial da 1.ª instância ora ao acórdão da Relação, logo se vê, assim, que, tirando a introdução no objecto do recurso da pretensa violação do princípio da livre apreciação da prova, dirigido mais ao acórdão da 1.ª instância que ao da Relação (que é o recorrido), a "nova" motivação é...afinal "velha", pois é, praticamente sem tirar nem pôr, a reprodução recauchutada da que foi apreciada pela Relação, e que o acesso a meios informáticos veio transformar tarefa muito fácil e cómoda.
A comodidade, porém, não sobreleva nem pode sobrelevar as normas processuais, até porque, se é de comodidade que se trata, também aqui não seria difícil reproduzir ipsis verbis o tratamento que o tribunal recorrido deu a todas as questões ora em segundo fôlego.
E ficar-nos-íamos por um indisfarçável diálogo de surdos porventura, agora, com a vantagem de tal repetição, ter de ser ouvida pela recorrente.
De todo o modo, afrontado o que é uso designar por lealdade processual.
"Pretendeu-se que os recursos não sejam um modo de entorpecimento da justiça, um monólogo com vários intérpretes ou um jogo de sorte e azar"(1).
O que tudo nos remete para a deficiência, por omissão, de motivação bastante para que mereça ser conhecido, tudo nos precisos termos do artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pois, não poderá a recorrente deixar de reconhecer, como inadaptada, pelo menos, ao recurso do acórdão da Relação, todas ilações sobre a fixação da matéria de facto, que, para além de escapar à esfera de competência do Supremo, foi levada a cabo pelo tribunal ora recorrido. De uma vez por todas: o recurso aqui trazido não é da decisão da 1.ª instância, é - só pode ser - do acórdão da Relação que sobre aquele se pronunciou!
Nem se pretenda, que as alegações suprem ou podem suprir a falta.
É que, «frequentemente se confunde a função da motivação com a das alegações, mas são diferentes. A audiência não se destina a repetir o conteúdo da motivação; esse já foi analisado pelo tribunal.
Também não se destina a alterar o âmbito do recurso, já fixado pelas conclusões da motivação, mas essencialmente a analisar as questões que o tribunal entende merecerem exame especial. Frequentemente sucede que da análise da motivação e da resposta não se suscitam questões a merecerem exame especial e, por isso, é natural que o relator elabore logo o respectivo projecto de acórdão. Será mesmo o caso mais frequente, pois a motivação do recurso e a resposta à motivação devem escalpelizar todas as questões que constituem o seu objecto»(2-3).
Donde, a inapelável conclusão de que o recurso em tudo o que reedita o pretenso inconformismo do recorrente perante o deliberado em 1.ª instância não pode ser conhecido - não deveria, mesmo, ter sido admitido - por carência absoluta de motivação - art.º 411.º, n.º 3, e 414.º, n.º 2, e 417.º, n.º 3, a), do CPP.
E porque assim, nessa exacta medida, pode defender-se que o acórdão da Relação transitou em julgado - art.º 677.º do diploma adjectivo subsidiário. O que, por outra via, seria circunstância impeditiva do conhecimento desse segmento do recurso - art.ºs 493.º, n.º 2, e 494.º i), do mesmo diploma.
De todo o modo, esse acervo conclusivo gira à volta de matéria de facto sobre a qual já se debruçaram as instâncias.
E como se sabe, sob tal prisma, o Supremo Tribunal de Justiça, tem capacidade de intervenção assaz limitada, de resto como já foi decidido em vários arestos com intervenção do ora relator, nomeadamente, no recurso n.º 515/03-5, oriundo da mesma Relação.
Com efeito(4), em regra, «o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação» (art. 427.º do Código de Processo Penal).
E só excepcionalmente (5) - em caso «de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito» - é que é possível recorrer directamente para o STJ (art.s 432.º, d), e 434.º).
Ora, como resulta do exposto, o actual recurso - proveniente da Relação (e não, directamente, do tribunal colectivo) - versa claramente sobre o reexame de matéria de facto.
De qualquer modo, não visa, exclusivamente, o reexame da matéria de direito (art.º 434.º do CPP).
Aliás, o reexame pelo Supremo Tribunal exige a prévia definição (pela Relação) dos factos provados.
E, no caso, a Relação manteve definitivamente o rol dos «factos provados».
De resto, a revista alargada prevista no art. 410.º, n.ºs 2, e 3 do Código de Processo Penal, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).
Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido - em caso de prévio recurso para a Relação - quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.s 427.º e 428.º n.º 1).
Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma:
- se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça (6-7);
- ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação (8), caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art.º 432.º b).
Só que, nesta hipótese, o recurso - agora, puramente, de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.
E é só aqui - com este âmbito restrito - que o Supremo Tribunal de Justiça pode ter de avaliar da subsistência dos aludidos vícios da matéria de facto, que no caso, porém, também não se vislumbram.
O que significa que está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação.
Enfim, resta apreciar a questão da livre apreciação da prova feita pelo tribunal da 1.ª instância que a recorrente considera feita em violação do disposto no artigo 127.º do CPP.
É claro que também esta questão não pode agora ser objecto de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça.
É que, sendo questão não objecto de recurso para a Relação, uma questão nova, portanto, está fora de cogitação esse pretenso conhecimento, uma vez que, além do mais, essa vertente da decisão não tendo sido objecto de recurso, assumiu foros de caso julgado, portanto agora de força processual inultrapassável.
De todo o modo, sempre se dirá, como remate, que, pelo menos, alguma da mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal, mormente em arestos lavrados pelo relator, tem sufragado o entendimento de que o uso dos poderes de livre apreciação da prova pelas instâncias é, até certo ponto, sindicável em via de recurso.
Ponto é que, através da necessária objectivação e motivação se atinja que tais poderes foram usados para além do que permitiriam as regras da experiência e da vida, fundando assim uma conclusão inaceitável, designadamente, expressando certezas quando devia ficar-se pela dúvida ou vice-versa.
Mas nada disso resulta in casu da motivação e objectivação da apreciação feita pelas instâncias, mormente do acórdão recorrido, pese embora a recorrente tenha entendimento divergente quanto à valoração que o tribunal... de 1.ª instância...fez do seu próprio depoimento.
3. Termos em que, por manifesta inadmissibilidade - porque versa matéria de facto - e manifesta falta de fundamento, rejeitam o recurso e condenam a recorrente em 7 unidades de conta de taxa de justiça, a que acresce a sanção processual de 5 UC, nos termos do disposto no artigo 420.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.

Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Maio de 2003
Pereira Madeira
Simas Santos
Santos Carvalho
Tem voto de conformidade do Exmo. Conselheiro Costa Mortágua que não assina por não estar presente, digo, sem efeito este acrescento
____________________
1 - Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, edição do CEJ, Almedina Coimbra, págs. 385
2 - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, Verbo, págs. 362
3 - O sublinhado é da iniciativa do relator.
4 - A fundamentação que segue imediatamente é parcialmente coincidente, porque concordante, com a expendida no acórdão deste Supremo Tribunal proferido no recurso n.º 1292/01-5 relatado pelo Ex.mo Conselheiro Carmona da Mota e subscrito pelo ora relator como 1.º adjunto, de resto seguida em muitos outros posteriores que versam o tema em causa e que seria ocioso enumerar aqui.
5 - «Exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça»
6 - Caso em que o recurso, pois que de revista alargada se trata, poderá ter como fundamentos «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada» (art.º 410.º n.º 3) e, «desde que o vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) erro notório na apreciação da prova» (art. 410.º n.º 2).
7 - E há mesmo quem advogue, mesmo a nível da jurisprudência do Supremo, que o pode fazer também para Relação, optando por um dos dois.
8 - «As relações conhecem de facto e de direito» - art.º 428.º n.º 1.