Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1074/21.6JAPDL.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DUPLA CONFORME
IRRECORRIBILIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Tendo o arguido sido condenado em 1.ª instância na pena única de 7 anos e 3 meses de prisão, e tendo a pena sido reduzida para 6 anos e 8 meses de prisão pela Relação, o acórdão da Relação é confirmativo do acórdão de 1.ª instância, não lhe retirando a qualidade de “dupla conformidade” a circunstância de se ter nele considerado como não operante uma das qualificativas de um dos (mesmos) crimes da condenação em 1.ª instância e de se ter procedido a uma consequente redução da correspondente pena parcelar aplicada e da pena única.

II. A reformatio in melius nos termos operados no acórdão recorrido integra uma situação de “dupla conforme” no sentido que releva para a decisão sobre a recorribilidade; considerar o contrário conduziria ao resultado absurdo de negar o acesso ao Supremo nos casos de confirmação da condenação numa pena superior, permitindo-o nos casos em que tal pena sofreu redução.

III. Carece igualmente de razão o recorrente quando pugna pela admissibilidade do recurso à luz do art. 671.º, n.º 3, do CPC, pois em processo penal e em matéria de recursos, o Código de Processo Penal prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso; e a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso no caso sub judice.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 1074/21.6JAPDL, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo Central Cível e Criminal de ... – ... 1, foi proferido acórdão a decidir condenar o arguido AA, nascido a ........1960, como autor de: dois crimes de abuso sexual de criança agravado dos arts. 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do CP, um na pessoa de BB e o outro na pessoa de CC, na pena de 1 (um) ano de prisão para cada um; um crime de abuso sexual de criança agravado dos arts. 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do CP, na pessoa de CC, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão; um crime de violação agravada dos arts. 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do CP, na pessoa de BB, na pena de 6 (seis) anos de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão.

Mais foi condenado na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 10 (dez) anos, e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 10 (dez) anos.

E foi condenado, ao abrigo do disposto no art. 82.º-A, do CPP e art. 16.º, n.º 2, da Lei 130/15, de 4.09, no pagamento ao ofendido BB da quantia reparatória de € 2.000,00 (dois mil euros) e ao ofendido CC da quantia reparatória de € 1.000,00 (mil euros).

Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 13.07.2023, decidiu conceder parcial provimento ao recurso, e, em consequência, proceder à convolação do crime de abuso sexual de crianças agravado dos arts. 171.º, nºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 al. b), do CP, para o mesmo crime, mas com previsão nos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º n.º 1 al b), do CP; aplicar ao arguido, pela prática deste crime, a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, em substituição da anterior pena de 4 anos e 3 meses de prisão; proceder à reformulação do cúmulo jurídico de penas ficando o arguido/recorrente condenado na pena única de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão. No mais, foi confirmado o acórdão recorrido.

De novo inconformado, interpôs o arguido novo recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“1. O douto acórdão de que ora se recorre deveria ter sido dado como provado que o Recorrente introduziu um dedo no interior do ânus do jovem, penetrando-o.

2. O jovem tinha a roupa vestida, sendo por isso um obstáculo a que se possa enfiar um dedo no ânus de alguém; isto porque o menor BB tinha uns calções curtos vestidos e, além disso, como resulta das suas declarações, tinha ainda umas cuecas por debaixo dos calções.

3. Mais ainda, o menor estava sentado no carro, ao lado do ora Recorrente e estar sentado seria mais um obstáculo à alegada penetração.

4. Não resulta com a mínima clareza de que tenha havido penetração, logo violação.

5. O princípio in dubio pro reo, que decorre do princípio da presunção de inocência do arguido, com assento no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República, dando resposta ao problema da dúvida sobre o facto [e não sobre a interpretação da norma] impõe ao julgador que o non liquet da prova seja sempre resolvido a favor do arguido.

6. O que, no caso em apreço não aconteceu perante a prova produzida, nomeadamente a negação por parte do aqui Recorrente.

7. De acordo com critérios de normalidade e razoabilidade, não se pode, face ao exposto, deixar de ter dúvidas sérias e inultrapassáveis quanto à ocorrência do facto provado sob o ponto 21, tal como o mesmo foi dado como provado pelo tribunal recorrido.

8. No que tange quanto à qualificação jurídico-penal dos factos e as penas aplicadas, alinhamos de igual modo com a posição da Ex.ª Sr.ª Desembargadora que expende o seguinte no seu voto de vencida.

9. O arguido estava acusado pela prática de dois crimes de abuso sexual agravado p. e p. pelos artigos 171.º, nºs 1 e 2 e 177.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, cuja moldura penal é de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão.

10. O tribunal de 1.ª instância veio no final a condenar o aqui Recorrente pela prática de dois crimes de abuso sexual agravado p. e p pelos artigos 171.º, nº 3 alínea a) e 177.º n.º1, al. b) - importunação de menor de 14 anos através da prática de um dos actos previstos no artigo 170.º do CP - e de dois crimes de abuso sexual agravado p. e p. pelos artigos 171.º, nºs 1 e 2 e 177.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, sendo um deles pela punição prevista para o crime de violação, nos termos dos artigos 164.º,n.º2, al.b) e 177.º, n.º1 al. b) e n.º7 e nº 8, cuja moldura penal é de 4 anos e 6 meses de prisão a 15 anos de prisão.

11. Todas as condutas, relativas a cada uma das vítimas, inserem-se num processo de aliciamento que se desenvolveu continuamente num curto espaço de tempo até haver a expressa oposição das vítimas e dos seus familiares.

12. Os diversos actos praticados sobre cada uma das vítimas constituem um único crime, relativamente a cada uma delas, tal como, aliás, foi o arguido acusado pelo Ministério Público, findo que foi o inquérito.

13. É duvidoso que os actos praticados pelo arguido (passar a mão pelo joelho do menor BB e fazer-lhe carícias, sem mais, e tocar no joelho do menor CC e acariciá-lo ou colocar a mão do menor em cima da alavanca das mudanças e colocar depois a mão do arguido por cima), sendo actos descontextualizadas, possam considerar-se actos de natureza sexual para efeitos de integrarem a previsão do tipo objectivo do crime de importunação sexual do n.º3, alínea a) do artigo 171.º do Código Penal.

14. Citando José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro in Crimes Sexuais, Análise Substantiva e Processual, p.125-126.):«A importunação deve ser resultado de o ato exibicionista ou do contacto físico, ambos de natureza sexual, bem como da formulação de propostas de teor sexual, devendo existir um nexo causal entre ambos.

15. O legislador não tipificou os meios do exibicionismo, contactos de natureza sexual ou quais as propostas de teor sexual, pelo que serão todos aqueles que tenham esta natureza e em concreto tenham importunado a vítima (crime de execução livre).

16. Assim, os actos em causa, estão descontextualizados e deles não se diz sequer que tenham constituído um incómodo para os menores ou que estes tenham de algum modo reagido de forma negativa a tais actos e de algum modo se tenham sentido importunados.

17. Deste modo, o tribunal não deveria ter autonomizado esses actos dos demais actos de abuso sexual da sua natureza in casu, não sexual, mas antes de aliciamento para o abuso sexual que depois foi cometido sobre cada um dos menores.

18. Assim, quanto a esses crimes o aqui Recorrente deverá ser absolvido, dado não estar preenchido o elemento objectivo do tipo legal de crime em causa.

19. Quanto aos actos praticados sobre o menor BB por se entender não ter existido penetração anal, integram também o tipo objectivo do artigo 171.º, nº1 do C. Penal, crime punido com prisão de 1 a 8 anos.

20. Em qualquer dos crimes, não podemos concordar com o fundamento da agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, por não existir entre o arguido e os menores uma relação hierárquica ou dependência económica, ou laboral que justifique essa agravação.

21. Não é pelo simples facto do aqui Recorrente ser presidente do clube onde os menores jogavam futebol, que o mesmo tinha com aqueles uma relação hierárquica ou de trabalho; considera-se o contrário é ir para além do que a norma prevê, sendo essa interpretação susceptível de atentar contra o princípio da legalidade.

22. Quanto à medida concreta da pena diremos o seguinte, também em concordância com a Ex.ª Sr.ª Desembargadora que votou vencido.

23. Atento o disposto no artigo 40.º, nº1 do Código Penal, quanto às finalidades da pena - tutela dos bens jurídicos, a que está associada a função de prevenção geral positiva, e a reinserção social do condenado, a que está ligada a função de prevenção especial ou de socialização e que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º2 do mesmo artigo).

24. Sopesando as exigências de prevenção geral deste tipo de crime, sobretudo na vertente de satisfação de reparação perante a comunidade dos bens jurídicos violados pelo arguido, tendo ainda em conta que são diminutas as exigências de prevenção especial face à boa reinserção social do arguido e à inexistência de antecedentes criminais, a pena única a ser aplicada não deverá ser superior a 5 (cinco), suspensa na sua execução, ao abrigo do disposto no Art.º 50.º do CP, atendendo à personalidade do arguido, à inexistência de antecedentes criminais, à sua inserção social , laboral e familiar, não só com a condição de proceder ao pagamento das indeminizações atribuídas aos menores e com regime de prova.

25. Esta será uma decisão mais ressocializadora face ao conjunto dos factos praticados pelo Recorrente, o qual já tem 62 anos e esta é a primeira condenação pela prática de um crime.

26. Vivendo num meio pequeno, foi certamente já ostracizado pela comunidade e censurado socialmente.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1.° Inconformado com a pena de 6 anos e oito meses de prisão por quatro crimes sexuais contra crianças, vem o arguido pedir melhor justiça junto do Supremo Tribunal de Justiça, arguindo violação do princípio in dúbio por reo, errada identificação de quatro crimes, abusiva agravação dos mesmos e exagerada pena, que deveria ser suspensa.

2.° Efectivamente, o facto provado n.° 21.° dos acórdãos de primeira e segunda instância enferma de erro notório na apreciação da prova, que a jurisprudência admite seja conhecida pelo STJ dentro da economia do art.° 410 CPP, norma integrada no capítulo "tramitação unitária" do "Livro Dos Recursos".

3.° Erro notório melhor descrito e explanado no voto de vencido que acompanha o acórdão em crise, no qual nos revemos.

4.° Partindo de uma acusação pública por dois crimes de abuso sexual agravado, o arguido acaba condenado por quatro crimes de natureza sexual contra menores, mas tal operação viola os princípios de unidade de acção e resolução criminosa.

5.° Os factos praticados pelo arguido desenrolam-se num continuum, em crescendo, parecendo artificioso, s.m.o. segmentar as actividades do arguido sobre os dois menores, enxertando dois crimes adicionais na sua actuação.

6.° A agravação mantida pela Relação de Lisboa, confundida com o notório ascendente do arguido sobre os menores, identifica uma relação hierárquica no relacionamento entre o presidente de uma modesta agremiação desportiva e os dois jovens atletas nela inscritos.

7.° Esta agravação viola o princípio da tipicidade, pois que a relação hierárquica de que o legislador se socorreu para agravar os abusos sexuais, são relações hierárquicas típicas, o que não é o caso de uma relação informal entre o presidente de agremiação e os dois desportistas.

8.° Uma pena de prisão de cindo anos, suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova e a obrigação de indemnizar, face aos predictores positivos que o arguido evoca, faria a boa justiça do caso.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“No entanto, o Tribunal da Relação acabou por alterar a qualificação jurídica de um dos crimes por ter entendido pela verificação de um erro de direito, dado que os factos integradores de um dos crimes de que foi vítima o menor CC não se mostra qualificado nos termos do nº 2 do artº 171º do Código Penal, subsistindo apenas a punição pelo nº 1 de tal preceito. E apenas quanto a este crime entendeu – necessariamente – pela necessidade de alteração da pena concreta, mantendo as demais aplicadas pela 1ª instância.

Assim, o Tribunal da Relação procedeu à convolação do crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171º, nºs 1 e 2 e 177º nº 1 alínea b), do Cód. Penal, para o mesmo crime, mas com previsão nos arts. 171º, nº 1 e 177º nº 1 alínea b), do Cód. Penal, aplicando ao arguido, pela prática deste crime, a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, em substituição da anterior pena de 4 anos e 3 meses de prisão, e, procedendo à reformulação do cúmulo jurídico de penas, aplicando a pena única de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão.

Um dos elementos do colectivo votou vencido esta decisão, referindo que daria como não provada – atenta a dúvida quanto a esse facto decorrente de diversos elementos - que a introdução um dedo no interior do ânus do jovem ofendido, penetrando-o, pois que, como refere «na normalidade das situações, o facto de se ter roupa vestida é um obstáculo a que se possa enfiar um dedo no ânus de alguém e como resulta do facto provado sob o ponto 20 o menor BB tinha uns calções curtos vestidos e, além disso, como resulta das suas declarações, tinha ainda o mesmo umas cuecas por debaixo dos calções», a que aditou dificuldades decorrentes da gravação da prova.

Por outro lado, quanto à qualificação dos factos, referiu entender que os diversos atos praticados sobre cada uma das vítimas constituem um único crime, relativamente a cada uma delas, sendo que relativamente a alguns dos atos entendeu não se poder considerar estar-se perante atos de natureza sexual para efeitos do crime de importunação sexual, nem se verificar qualificação quanto aos demais por via da existência de relação hierárquica ou de trabalho. E, em consequência, que alteraria as penas e reduziria as mesmas, atingindo-se uma pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, que entendeu dever ficar suspensa na sua execução.

É fundamentalmente com base no referido neste voto de vencido que o arguido vem agora recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça. E – adianta-se -, com o total apoio do Ministério Público junto daquele Tribunal da Relação que, na sua resposta, pugna pela total procedência do recurso, precisamente pelos motivos referidos pela Exmª Senhora Desembargadora no seu voto.

No entanto, entendemos que nunca haverá, sequer, que apreciar a matéria em causa. Na verdade:

Como decorre da sua motivação, o arguido/recorrente AA começa por invocar a inconstitucionalidade do artº 400º, nº 1, al. f) do artº 400º do Código de Processo Penal, por violação dos arts. 13º e 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, ao tratar de forma diversa cidadãos em situações similares, acusados dos mesmos crimes e com a agravante de fazer essa destrinça com a perspetiva de que o crime compensa, pois que permite duplo grau de jurisdição em casos de decisões que condenem em penas superiores, muitas vezes por os arguidos terem antecedentes criminais que implicam a agravação da pena. Nesse sentido invoca dois acórdãos deste STJ, datados de 2003.

Depois, para o caso de assim não se entender, invoca como possibilitador do recurso, o artº 671º do CPCivil, aplicável por força do artº 4º do CPP e o artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Ultrapassada – no seu entender – a questão da (in)admissibilidade do recurso, formula motivação na qual – como já atrás se disse – se baseia em grande parte no entendimento expresso no voto de vencido, entendendo igualmente que não deveria ter sido dada como provada a introdução do dedo no ânus do menor, que se está perante a prática de apenas dois crimes, que alguns factos não configuram a prática dos ilícitos pelos quais se verificou condenação, que não se verifica situação de dependência que importe agravação dos crimes e que a pena aplicada se mostra excessiva, devendo ser reduzida e suspensa a pena de prisão.

Ora, sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que o recurso não pode prosseguir termos, devendo ser rejeitado, não havendo que entrar na apreciação das matérias a que o recorrente faz referência.

Como se referiu atrás, o arguido foi condenado, em 1ª instância, na pena única de 7 anos e 3 meses de prisão, resultante de cúmulo jurídico de penas aplicadas pela prática de crimes de abuso sexual de criança agravado e um de violação agravada, a mais alta das quais foi a referente a este último crime (6 anos de prisão).

O Tribunal da Relação confirmou a decisão quanto aos factos dados como provados, apenas alterando a qualificação jurídica de um dos crimes, desqualificando-o, o que importou, depois a reformulação do cúmulo jurídico que fixou em 6 anos e 8 meses de prisão.

Face a isto, verifica-se o que é chamado de «dupla conforme».

E, não sendo nenhuma das penas, nem a única, superior a 8 anos de prisão, o recurso não poderá ser admitido.

Na verdade – e como bem refere o próprio recorrente previamente à motivação – a lei não permite este recurso, atenta a redação do artº 400º, nº 1, al. f), do CPP, quando ali se refere que não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

Como referido no acórdão deste STJ no processo 22/08.3JALRA.E1.S1 (acórdão datado de 14.03.2018, em que foi relator o Conselheiro Lopes da Mota) «1. Só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, limitado ao reexame de matéria de direito, de acórdãos das Relações proferidos em recurso que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou que apliquem penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância. Esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso.»

Também o Acórdão deste Tribunal, de 07.12.2022 [Relator – Orlando Gonçalves], no processo 406/21.1JAPDL.L1.S1 assim entendeu:

«O direito ao recurso foi estabelecido no art.32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, passando a integrar expressamente os direitos de defesa do arguido.

Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, tratou-se “…de explicitar que, em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição, na medida em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas. Na falta de especificação o direito ao recurso traduz-se na reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto à matéria de direito quer quanto à matéria de facto. Era esta, de resto, a posição já defendida pela doutrina e acolhida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional desde sempre (cfr., por último, AcsTC n.ºs 638/98, 202/99 e 415/01).”

Na interpretação do conteúdo do direito ao recurso, o Tribunal Constitucional, designadamente, no acórdão n.º 49/2003, de 29 de janeiro de 2003, vem sustentando que este “…assenta em diferentes ordens de fundamentos.

Desde logo, a ideia de redução do risco de erro judiciário. Com efeito, mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais, a hipótese de um erro de julgamento – tanto em matéria de facto como em matéria de direito – é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem dúvida proporcionar a deteção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo.

Mais do que isso, o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a proceder à apreciação da decisão proferida, o que, naturalmente, tem a virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida nesta nova sede.

Por último, está ainda em causa a faculdade de expor perante um tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa.

Neste plano, a tónica é posta na possibilidade de o arguido apresentar de novo, e agora perante um tribunal superior, a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável, por forma a que a nova decisão possa ter em consideração a argumentação da defesa.

Resulta do exposto que os fundamentos do direito ao recurso entroncam verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. (…).

Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspetivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará. (…).

A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.

Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralisação, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada.”

O direito de recurso, consagrado na Lei Fundamental, mostra-se densificado nos artigos 399.º e seguintes do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.

Como princípio geral, estabelece o seu art.399.º, que é admissível o recurso dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, sempre que a irrecorribilidade não esteja prevista na lei.

Na redação originária do atual Código de Processo Penal, era apenas admitido um grau de recurso e nos julgamentos da competência do tribunal coletivo ou do júri apenas era admitido o recurso em matéria de direito, a interpor diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo do disposto no art.410.º, n.º2.

O regime de recurso previsto no Código de Processo Penal, sofreu, entretanto, diversas alterações.

Uma das mais relevantes foi a introduzida pela revisão da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, que passou a admitir um duplo grau de recurso, ainda que limitadamente.

Neste âmbito, a Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, introduziu no art.432.º do C.P.P., uma alínea b), nos termos da qual, se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça:

«De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art.400.º».

Com a reforma operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, foi alterada, ainda, a redação do n.º1 do art.400.º do C.P.P., passando a norma a dispor:

«1. Não é admissível recurso:

(…)

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infrações, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infrações».

Com as alterações ao regime de recursos quis o legislador circunscrever o recurso em segundo grau perante o STJ aos casos de maior gravidade, como assumiu na Proposta de Lei n.º 157/VII, que veio dar lugar à Lei n.º 59/98: “Faz-se um uso discreto do princípio da «dupla conforme», harmonizando objetivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça a casos de maior gravidade.”.

Tal desiderato foi assumido pelo legislador também na Exposição de Motivos da Proposta da Lei n.º 109/X - que deu lugar à Reforma de 2007 do Código de Processo Penal, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto - ao consignar expressamente que as alterações que quer introduzir no regime dos recursos têm o propósito de restringir o recurso para o STJ aos casos que classifica “de maior merecimento penal”.

Com as alterações introduzidas pela Reforma de 2007 deixou de ser a moldura abstrata da pena, a pena aplicável, a estabelecer o critério da irrecorribilidade nas alíneas e) e f) do n.º1 do art.400.º do C.P.P., e passou a ser a pena concreta, a pena aplicada ao caso concreto.

Da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII, que está na origem da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, que introduziu nova alteração ao regime de recursos, resulta que o legislador quis com esta nova Reforma promover o equilíbrio «…entre, por um lado, a necessidade de celeridade e eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade e, por outro lado, a garantia dos direitos de defesa do arguido», justificando a opção legislativa, no respeitante ao direito ao recurso, com a preocupação, mais uma vez, de preservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça «para os casos de maior gravidade».

Depois da alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, ao regime de recursos, o art.400.º do Código de Processo Penal, na parte com interesse para a presente questão, passou a ter a seguinte redação:

«1 - Não é admissível recurso:

(…)

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;»

Em sentido contrário, de restrição do recurso em segundo grau perante o STJ aos casos de maior gravidade, a Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, em vigor desde 21 de março de 2022, ao acrescentar, na parte final da al. e) do n.º1 do art.400.º do C.P.P,. a expressão «…, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;» alargou o recurso para o S.T.J. aos casos em que a Relação revertendo uma absolvição da 1.ª instância profere um acórdão condenatório.

Porém, no que respeita à alínea f), n.º1, do art.400.º do Código de Processo Penal, com particular relevância para o conhecimento da presente questão prévia, a Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, não lhe introduziu alterações.

Assim, são dois os requisitos cumulativos para que os acórdãos condenatórios proferidos pela Relação sejam irrecorríveis, nos termos da alínea f), n.º1, do art.400.º do Código de Processo Penal: (i) que o acórdão da Relação confirme a decisão da 1.ª instância (dupla conforme); e (ii) que a pena de prisão seja não superior a 8 anos de prisão.

Sendo propósito do legislador nas alterações introduzidas no art.400.º, n.º1, al. f), do C.P.P., reduzir a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos proferidos, em recurso pela Relação, substituindo no texto da lei a referência a pena aplicável, por pena aplicada, vem-se acolhendo na jurisprudência o entendimento de que ocorrendo “dupla conforme” e tendo sido aplicadas várias penas por diversos crimes em concurso que nos termos do art.77.º do C.P., devam ser aglutinadas numa única pena, só quanto à pena única superior a 8 anos de prisão e aos crimes punidos também com penas de tal dimensão, é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Constitui jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça, que o recurso não só não é admissível quanto às penas propriamente ditas não superiores a 8 anos de prisão, como também em relação a todas as questões com elas (e com os respetivos crimes) conexas.

Tem sido enfatizado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que estando este, “por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, estará também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares em caso de concurso de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas neste âmbito (cfr., por exemplo, os acórdãos de 11.4.2012, no Proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 25.6.2015, no Proc. 814/12.9JACBR.S1, de 3.6.2015, no Proc. 293/09.8PALGS.E3.S1, e de 6.10.2016, no Proc. 535/13.5JACBR.C1.S1, bem como, quanto à atenuação especial da pena, os acórdãos de 5.12.2012, no Proc. 1213/09.SPBOER.S1, e de 23.6.2016, no Proc. 162/11.1JAGRD.C1.S1)» [acórdão do STJ de 14.03.2018, processo 22/08.3JALRA.E1.S1, LOPES DA MOTA (relator), alojado em www.dgsi.pt , tal como sucederá com os demais acórdãos citados neste parecer sem menção expressa a outra fonte].”

O Tribunal Constitucional decidiu, em Plenário, no seu acórdão n.º 186/2013, «não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão».

Tal orientação foi reafirmada pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos n.ºs 212/2017 e 599/2018.»

Muitas decisões conformes com esta têm vindo a ser proferidas, todas por este STJ, entre as quais a mais recente que conhecemos é da data em que o presente parecer é elaborado (06.12.2023), no processo 58/20.6JBLSB.L1.S1, em que é relatora a Exmª Senhora Conselheira que desempenha iguais funções no presente processo.

Cumpre ainda referir que – como, aliás, vincado em muitos dos acórdãos que têm apreciado a matéria – ao contrário do alegado pelo recorrente, tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional ser o entendimento em causa conforme à Constituição. Na verdade, este Tribunal tem vindo a entender não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (Cfr., entre outros, os acórdãos n.º 189/2001, 451/03, 495/03, 640/2004, 255/2005, 64/2006, 140/2006, 487/2006, 682/2006, 645/09 e 174/2010), sendo que, concretamente sobre a conformidade constitucional da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, mesmo na redação anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, na perspetiva da violação do direito ao recurso, tem igualmente entendido no sentido da não inconstitucionalidade da limitação do acesso a um duplo grau de recurso ou triplo grau de jurisdição (v.g. os Acórdãos n.º 49/2003, 255/2005, 2/2006, 32/2006, 64/2006 487/2006, 682/06, 20/2007 424/2009 e 385/2011).

Finalmente, atento o que é ainda pelo recorrente invocado para possibilitar o seu recurso não obstante a dupla conforme, quando chama à colação o artº 671º do CPCivil, dizendo-o aplicável por força do artº 4º do CPP e do artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (ou melhor, das Direitos Humanos, atenta a Resolução do Conselho de Ministros nº 21/2019, de 29.01, nessa data publicada no DR), entendemos que não lhe assiste razão, pois que não se está perante qualquer lacuna a necessitar de recurso ao CPC. Como referido por este STJ no processo 2386/20.1T9OER.L1.S1, em Acórdão datado de 09.03.2023 (Relator – Orlando Gonçalves), «A opção do legislador do CPP de 1987, rompendo abertamente com a tradição que, há quase um século, geminara os recursos penais e cíveis, foi a de consagrar um regime dos recursos em processo penal com autonomia dogmática e metodológica em relação ao processo civil». No caso, o artº 400º, nº 1, al. f) do CPP limita de forma definitiva a possibilidade de um outro grau de recurso, não se podendo utilizar o CPC como meio de ultrapassar o naquele preceito claramente estabelecido.

Daqui que o parecer do Ministério Público vá no sentido de ser o recurso rejeitado, por inadmissível, ao estar em causa a situação mencionada na alínea f) do nº 1 do artº 400º do CPP, rejeição a que não obsta o facto de ter sido admitido anteriormente (atento o estabelecido no artº 414º, nº 3, do CPP).”

O arguido contrapôs “reafirmar na integra todo o arrazoado por si exposto no seu recurso e respectivas conclusões, pugnando, pois, pelo provimento do mesmo”.

O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. Os factos provados constantes do acórdão recorrido são os seguintes:

“1. O Arguido AA exerce as funções de Presidente do Sport ..., com sede na localidade de ..., em ..., sendo o ... uma das modalidades desportivas que o clube desenvolve, realizando treinos bissemanais às quartas e sextas-feiras, entre as 18H50 e as 20H50 no pavilhão da escola EB1 de ....

2. O transporte das 11 crianças que fazem parte da equipa de Futsal de casa para os treinos e vice-versa, é feito pelo Arguido numa carrinha de nove lugares cedida pela Junta de Freguesia ..., com a matrícula AB-..-CR.

3. Da equipa de ... fazem parte BB, nascido a .../.../2009, filho de DD e de EE residente na Segunda Rua ..., n.º 13 – C, ... e, ainda, CC, nascido a .../.../2009, filho de FF e de GG, residente na Rua das ..., n.º 7, ...,

4. Os quais, à data dos factos abaixo descritos tinham 12 anos de idade.

5. Para além do BB e do CC, fazem parte da equipa outros atletas de outras freguesias limítrofes, tais como, ... e ..., cujo transporte é do mesmo modo assegurado pelo Arguido.

6. A referida carrinha tinha, à frente, três lugares com assento, sendo, da esquerda para a direita, o lugar do condutor, um lugar central e o lugar do passageiro.

7. Em data não concretamente apurada do ano de 2021, mas anterior a 15/12/2021, e pelo menos uma vez, o Arguido durante as viagens, na área geográfica de ..., chegou a passar a mão pela perna esquerda de BB, na zona do joelho e a fazer-lhe carícias, sem que os demais ocupantes da viatura se apercebessem.

8. No dia 04/12/2021, pelas 13H00 CC encontrava-se a brincar com os amigos HH, II e JJ no campo de futebol das ..., em ... que se localiza próximo da casa do arguido, sita na Rua ..., n.º 25, ....

9. A dado momento, CC e o colega JJ, decidiram ajudar o Arguido a lavar as viaturas da Junta de Freguesia ....

10. Entretanto, o JJ foi-se embora e o CC pediu ao arguido que o levasse a casa, porquanto, a mãe tinha-lhe solicitado que lá estivesse pelas 16H00, ao que aquele respondeu afirmativamente, acrescentando que o levaria a casa se ele lhe desse 4 ou 5 beijos na sua bochecha, o que o CC fez na bochecha do lado direito.

11. De seguida, o Arguido solicitou a CC que entrasse na garagem da sua residência, sita na morada acima indicada, alegando que tinha uma coisa para lhe dar.

12. Já no interior da garagem o Arguido entregou ao CC dois sacos de peito de frango, que ele segurou com as mãos.

13. Porém, quando o jovem se dirigia para o exterior da garagem, o Arguido agarrou a cara do CC com as duas mãos e, acto contínuo, deu-lhe um beijo na boca, tendo-lhe introduzido a língua no interior da mesma, contra a sua vontade.

14. Tal situação durou entre 30 segundos e 1 minuto.

15. De seguida, quando o Arguido fazia o percurso para deixar CC na sua residência, parou na Casa do Povo e foi buscar um cabaz de compras que lhe ofereceu.

16. Acresce que, quando CC era o último atleta a ser entregue em casa, o Arguido levou-o a tomar refeições e a comer gelados, pelo menos, por quatro vezes em 2021, sendo uma dessas vezes juntamente com o Ofendido BB e as restantes três apenas com o Arguido.

17. Ainda naquele ano, pelo menos uma vez, o Arguido tocou com a mão no joelho esquerdo do CC, acariciando-o,

18. E ainda, também por uma vez, puxou a mão do CC, colocou-a em cima da alavanca das mudanças e, colocando a sua mão em cima da mão do Ofendido, manobrava a caixa de velocidades, forçando assim contacto físico com o menor.

19. No dia 15/12/2021, a hora não concretamente apurada, mas a seguir ao treino, o Arguido, depois de deixar os atletas nas suas casas e quando já se encontrava sozinho no interior da viatura com BB, no percurso entre as ... e a localidade de ..., em ..., imobilizou a carrinha que tripulava.

20. Após, o Arguido deslocou-se para o lugar central, disse ao Ofendido BB, que estava sentado no lugar mais à direita e trajava calções curtos e uma camisola, que gostava dele e, de seguida, tentou beijá-lo na boca, o que não logrou naquele momento, porque o ofendido conseguiu desviar-se.

21. Acto contínuo, o Arguido segurou o BB pelo seu braço direito com a sua mão esquerda, exercendo força muscular, e com a outra mão acariciou-o/apalpou-o em diversas partes do corpo, designadamente, o pénis e o rabo, chegando mesmo a introduzir um dedo no interior do ânus do jovem, penetrando-o, apesar de o estar a tocar por cima da roupa.

22. Ademais, ao mesmo tempo que passou a mão pelo corpo do BB, o Arguido passou a sua língua na cartilagem da orelha daquele.

23. Enquanto o Arguido actuou da forma descrita, BB tentou soltar-se, chegando mesmo a proferiu as expressões: “Pára, eu não gosto disso!”

24. A dado momento, o Arguido pegou no BB pelos braços e sentou-o na sua perna direita, dizendo-lhe que gostava de si e que só queria mais um beijo.

25. Nesse momento, BB, assustado, pensou que o arguido ia continuar a agir da forma descrita ou tentar ter relações sexuais consigo, mas parou.

26. Após, o arguido levou BB para casa e durante o percurso falaram do ....

27. O Arguido quis agir nos moldes descrito e fê-lo, não obstante estar ciente de que BB e CC, tinham apenas 12 anos de idade, que confiavam nele, na qualidade de Presidente do Clube de ..., aproveitando-se da sua vulnerabilidade, com o propósito de satisfazer os seus instintos sexuais, conhecedor de que ao agir do modo descrito atentava contra a liberdade e autodeterminação sexual daqueles e que punha em perigo o normal desenvolvimento da sua personalidade sexual, e, ainda assim, não se absteve de actuar nos termos referidos.

28. O Arguido tinha ainda perfeito conhecimento das consequências psicológicas que o seu comportamento provocava em BB e CC, quer por causa da sua idade, quer pelo sentimento de confiança que tinham para com ele.

29. O Arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente.

30. O arguido não tem antecedentes criminais.

31. À data dos factos, tal como no presente, AA, de 61 anos, habilitado com o 12.º ano de escolaridade, funcionário ..., residia com o seu agregado, constituído pela esposa, KK, funcionária ..., e pelo filho mais velho, LL, de ... anos, uma vez que a filha já se autonomizou do agregado de origem.

32. A família reside em casa própria, dispondo de boa condição de habitabilidade e conforto, com as necessidades básicas dos seus elementos satisfeitas por via dos rendimentos de trabalho dos mesmos.

33. O agregado é detentor de uma imagem social favorável, reconhecidos pelo envolvimento nas questões comunitárias.

34. O arguido é natural da freguesia das ..., onde sempre residiu, sendo o mais novo de uma fratria de 4 filhos, com o pai dedicado à actividade agropecuária por conta própria, e a mãe responsável pelo cuidado aos filhos e organização doméstica, formando a sua personalidade integrado em agregado nuclear, com fortes laços afetivos entre os seus elementos, com boas condições socioeconómicas e habitacionais, revelando que a família é, desde sempre, o centro da sua vida.

35. Descreveu uma infância muito feliz, com convívio regular com vizinhos e amigos, revelando que os avós paternos eram pessoas respeitadas na freguesia, porquanto participavam ativamente nas festividades locais, e providenciavam auxílio a famílias mais carenciadas.

36. Integrou a escola com idade normal, realizando um percurso escolar sem problemas de comportamento ou de aprendizagem, progredindo até ao ensino secundário, habilitando-se com o curso de administração e comércio pela Escola Industrial de ....

37. Durante o seu crescimento, foi dividindo as responsabilidades escolares com o apoio às atividades agrícolas da família, que realizava de forma regular.

38. Dedicou-se ao desporto, praticando atletismo e, com mais intensidade, futebol, integrando em equipas federadas, desligando-se, progressivamente, da prática regular, à medida que cresciam as responsabilidades familiares, profissionais e comunitárias.

39. Manteve-se no agregado de origem até aos 28 anos, tendo cumprido 18 meses de serviço militar obrigatório em quartel do Exército na ilha ..., iniciando, nessa altura, relação de namoro com aquela que viria a ser sua esposa e com a qual terá tido a primeira experiência sexual, ainda que declare que, durante a adolescência, tenha experimentado alguns relacionamentos amorosos, mas de curta duração, essencialmente com jovens da freguesia de residência com quem convivia.

40. Iniciou o percurso profissional após completar o serviço militar, desempenhando, inicialmente, funções de faxina, evoluindo posteriormente para serviços de maior responsabilidade, mantendo-se em casa dos pais, contribuindo com o ordenado para os gastos do agregado.

41. Com o evoluir do relacionamento, o arguido e a esposa contraíram matrimónio em 1985, adquirindo imóvel próprio, onde passaram a residir em conjunto, tendo o arguido iniciado, nessa altura, funções de Assistente ... da ... de ..., onde ainda se mantém.

42. O casal veio a ter dois filhos, e o arguido, que revelou acalentar, desde cedo, a vontade de assumir responsabilidades em Instituições locais, liderando-as, se possível, passou a dedicar-se ao trabalho em prol da comunidade.

43. Foi o próprio a reativar a equipa de Futebol do Sport ... do qual é Presidente, e de, em conjunto com o pároco local, ter estado na origem do agrupamento de Escuteiros da freguesia das ....

44. É hoje, e desde 2006, presidente da Casa do Povo de ..., cargo já desempenhado por estes seus ascendentes, e que se constituiu como uma ambição para ele.

45. AA revelou que o conhecimento dos factos pelos quais se encontra indiciado, teve nele um forte impacto, embora, não tenha deixado de trabalhar, nem procurado apoio psicológico ou psiquiátrico, embora tenha apoio do médico de família na prescrição de medicação para combater a ansiedade e para debelar as perturbações do sono.

46. Verbaliza alguma empatia para com as vítimas, adoptando uma postura crítica em relação a comportamentos como os descritos na acusação.

47. Como fatores de proteção destaca-se o ambiente familiar coeso e protetor, um quotidiano estruturado, uma imagem social positiva, o envolvimento nos assuntos da comunidade, uma condição económica estável, a par de competências pessoais e sociais.”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões que o recorrente pretende ver apreciadas respeitam à nulidade do acórdão por falta de exame crítico da prova, ao erro de julgamento da matéria de facto, à violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, à medida e espécie de pena.

Sucede que o Senhor Procurador-Geral Adjunto junto do Supremo suscitou a questão prévia da irrecorribilidade da decisão, de que cumpre começar por conhecer.

Ao que ora releva, em 1.ª instância o arguido foi condenado como autor de dois crimes de abuso sexual de criança agravado dos arts. 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do CP, na pena de 1 (um) ano de prisão por cada um deles; um crime de abuso sexual de criança agravado dos arts. 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do CP, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão; um crime de violação agravada dos arts. 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do CP, na pessoa de BB, na pena de 6 (seis) anos de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão.

O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão a conceder parcial provimento ao recurso do arguido, procedendo a “convolação do crime de abuso sexual de crianças agravado dos arts. 171.º, nºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 al. b), do CP, para o mesmo crime mas com previsão nos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º n.º 1 al b), do CP”, ou seja, retirando a qualificativa do n.º 2, e aplicando ao arguido, pela prática deste crime, a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, em substituição da anterior pena de 4 anos e 3 meses de prisão. Por último, procedeu à reformulação do cúmulo jurídico de penas ficando o arguido condenado na pena única de 6 anos e 8 meses de prisão, em detrimento da pena de 7 anos e 3 meses de prisão anteriormente aplicada.

Assim, o Tribunal da Relação confirmou totalmente a decisão de 1.ª instância quanto à matéria de facto, confirmou-a na parte relativa ao enquadramento jurídico dos factos e aos tipos de crime aplicados, à excepção da qualificativa referida, que foi retirada (procedeu-se aqui à alteração consistente na retirada de uma das qualificativas de um dos crimes da condenação), decidindo por último a subsequente redução da pena parcelar correspondente, a confirmação das restantes parcelares e a reformulação do cúmulo jurídico, também com redução da pena única.

Do exposto retira-se que, por um lado, a situação sub judice configura uma “dupla conforme” e, pelo outro, que inexistem penas aplicadas superiores a 8 anos de prisão. O recurso do arguido não pode, por isso, ser conhecido, já não deveria ter sido sequer admitido.

É clara e indiscutível a irrecorribilidade da decisão – a irrecorribilidade do acórdão da Relação que decidiu o recurso interposto da decisão de 1.ª instância, atenta a medida da pena (única) aplicada e a existência de dupla conformidade.

Com efeito, o art. 400.º do CPP é uma norma de excepção ao regime-regra de recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, regime-regra previsto no art. 399.º do CPP. E da limitação do direito ao recurso consagrada na norma em causa (art. 400.º), designadamente do seu n.º 1, al. f), decorre que não é admissível recurso “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão da 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Por consagração legal expressa, afirmada à exaustão na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, só é admissível recurso de decisão confirmatória da Relação quando a pena aplicada for superior a oito anos de prisão, só podendo constituir assim objecto de conhecimento do recurso interposto para o Supremo as questões que se refiram a condenação(ões) em pena superior a oito anos (seja pena parcelar ou pena única, mas exigindo-se sempre que sejam superiores a oito anos).

E a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça é bem ilustrativa da interpretação do art. 400.º, n.º 1, al. f), nas variantes e desenvolvimentos que, em concreto, não se justifica detalhar, atenta a clareza da situação sub judice, de irrecorribilidade da decisão.

Vejam-se os acórdãos citados pelo Ministério Público no parecer supra transcrito. E por todos veja-se também o acórdão do STJ de 11.03.2020 (Rel. Nuno Gonçalves), em que se desenvolveu que “só é admissível recurso de decisão confirmatória da Relação quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico. Irrecorribilidade que é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a fixação da matéria de facto, nulidades, os vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à matéria de facto ou à aplicação do direito, confirmadas pelo acórdão da Relação, conquanto a pena aplicada, parcelar ou conjunta, não seja superior a 8 anos de prisão. Trata-se de jurisprudência uniforme destes Supremo Tribunal, adotada e seguida no recente Ac. de 19/06/2019, desta mesma secção, onde se decidiu: “As questões subjacentes a essa irrecorribilidade, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, enfim das questões referentes às razões de facto e direito assumidas, não poderá o Supremo conhecer, por não se situarem no círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo Tribunal”.

Os dois os requisitos cumulativos, da irrecorribilidade dos acórdãos condenatórios proferidos pela Relação nos termos da al. f), do n.º 1, do art. 400.º do CPP, verificam-se aqui: a “dupla conforme” e a (confirmação da) condenação em pena de prisão não superior a 8 anos.

O acórdão da Relação é confirmativo do acórdão de 1.ª instância, não lhe retirando essa natureza de dupla conformidade a circunstância de se ter ali considerado como não operante uma das qualificativas de um dos (mesmos) crimes da condenação em 1.ª instância e de se ter procedido a uma consequente redução da correspondente pena parcelar aplicada e da pena única.

A reformatio in melius nos termos concretamente operados no acórdão recorrido integra uma situação de “dupla conforme” no sentido que releva aqui. Desde logo porque considerar o contrário conduziria ao resultado abstruso de negar o acesso ao Supremo nos casos de confirmação da condenação numa pena superior, permitindo-o nos casos em que tal pena sofreu uma redução.

Refira-se também que o Tribunal Constitucional sempre afirmou que o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido não impõe um duplo grau de recurso. E sempre considerou a constitucionalidade da norma do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, no sentido em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmam decisão de 1.ª instância e aplicam pena de prisão não superior a 8 anos. Veja-se toda a jurisprudência constitucional igualmente citada pelo senhor Procurador-Geral Adjunto no parecer supra transcrito.

Para terminar, consigna-se que carece igualmente de razão o recorrente quando pugna pela admissibilidade do recurso à luz do art. 671.º do CPC.

Em processo penal e em matéria de recursos, o Código (de processo penal) prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso. E a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso no caso sub judice. Duplo grau de recurso que a Constituição não consagra, sendo jurisprudência desde sempre pacífica, do Tribunal Constitucional, que o direito ao recurso constitucionalmente assegurado se basta com a garantia de um grau de recurso. Grau este que, no presente caso, se mostra concretamente assegurado.

E a norma processual civil cuja utilização se pretende não tem aplicação em processo penal, desde logo porque o art. 4.º do CPP pressupõe a existência de uma lacuna. Lacuna que não ocorre em matéria de recursos em processo penal, ao nível das linhas de organização do modelo e de classificação dos vários tipos de recurso.

Logo na fundamentação do Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 9/2005, o Supremo Tribunal de Justiça reafirmou a autonomização dos recursos em processo penal prosseguida pelo Código de Processo Penal vigente, jurisprudência que o decurso do tempo só veio consolidar. Fê-lo ali, designadamente, nos seguintes termos:

“O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respectivos prazos de interposição, está construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.

O regime de recursos em processo penal, tributário e dependente do recurso em processo civil no Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29), autonomizou-se com o Código de Processo Penal de 1987 (CPP/87), constituindo actualmente um regime próprio e privativo do processo penal, tanto nas modalidades de recursos como no modo e prazos de interposição, cognição do tribunal de recurso, composição do tribunal e forma de julgamento.

(…)

A autonomização do modelo de recursos constituiu mesmo um dos momentos de reordenamento do processo penal no CPP/87. A lei de autorização legislativa (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro), que concedeu autorização para a aprovação de um novo Código de Processo Penal, definiu expressamente como objectivo a construção de um modelo, que se pretendia completo, desde a concepção das fases do processo até aos termos processuais da reapreciação das decisões na concretização da exigência - que é de natureza processual penal no plano dos direitos fundamentais - de um duplo grau de jurisdição. A lei consagrou imposições determinantes no que respeitava ao regime de recursos, apontando para uma perspectiva autónoma e para uma regulação completa.”

A autonomia total do modelo e regime de recursos em processo penal, a par da regra da suficiência do processo penal consagrada no art. 7.º, n.º 1 do CPP, mantém-se até ao presente. E mantém-se com o sentido conhecido dado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, sempre sem censura de constitucionalidade, e em interpretação necessariamente sabida e até agora não contrariada pelo legislador.

E assim, não sendo admissível o presente recurso, não cumpre conhecer de nenhuma questão suscitada que pressupusesse, como necessária condição de conhecimento, essa admissão. E a tal não obsta a circunstância de o recurso ter sido admitido no Tribunal da Relação, pois a “decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior” (art. 414.º, n.º 3, do CPP).

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso por inadmissibilidade, face à irrecorribilidade da decisão (arts. 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b) do CPP).

Custas pelo recorrente, que se fixam em 5 UC, acrescendo a importância de 3 UC’s (art. 420.º, n.º 3, do CPP) .

Lisboa, 17.01.2024

Ana Barata Brito, relatora

Maria do Carmo Silva Dias, adjunta

Teresa Féria de Almeida, adjunta