Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1519/15.4JAPRT.P1.S2
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO DA SILVA DIAS
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
USO DE DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO OU DE VIAGEM ALHEIO
COAUTORIA
CONDENAÇÃO
Data do Acordão: 06/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

1. Todos sabemos que a figura da co-autoria (incluída também no conceito de “autoria” definido pelo art. 26.º do CP) exige a verificação de 2 requisitos: o acordo (decisão ou plano conjunto, ainda que tácito) e a execução conjunta do facto típico (cada coautor contribui objetivamente para a execução do facto típico, podendo essa execução ser parcial, portanto, circunscrever-se a uma parte da ação conjunta mas, de qualquer forma, terá de ser indispensável à obtenção do resultado pretendido).

2. Enquanto o acordo conjunto representa o elemento subjetivo da coautoria, a execução conjunta representa o seu elemento objetivo. Mas, “o domínio funcional do facto constitui o sinal próprio da coautoria, em que o agente decide e executa o facto em conjunto com outros”.

3. Resulta dos factos apurados, a “decisão prévia comum” tácita (que mais não é do que uma intenção) e a concreta ação de cada coautor (sendo o contributo de ambos que permitiu a celebração da referida escritura de compra e venda naquele dia 22.05.2015, tendo o referido indivíduo não identificado passado por ser o tio da arguida, conseguindo atingir o resultado pretendido, assim causando prejuízo àquele de quem usurparam a identidade e com a referida declaração falsa alcançado, como queriam, o benefício para a arguida), podendo concluir-se que ambos e, particularmente aqui a arguida/recorrente tinha o chamado domínio funcional do facto.

4. Perante tais factos não restam dúvidas, pois, que ao atuar de comum acordo e concertado, com o referido arguido (que usou da identidade alheia e com o que foi planeado previamente, efetuou aquela declaração falsa), a arguida agiu com intenção de causar prejuízo ao seu tio e de obter vantagem económica para si a que não tinha direito, preenchendo os factos provados a autoria do crime de falsificação de documento p. e p. no artigo 256.º, n.ºs 1, alíneas c) e d), e 3, do Código Penal (este último preceito por referência aos artigos 363.º, n.º 3, e 269.º e seguintes do Código Civil), não podendo assim aquela deixar de ser condenada pela sua prática.

5. Do mesmo modo, quando a arguida facultou ao indivíduo que consigo celebrou a escritura pública em causa nos autos, um cartão de cidadão (que constitui «documento de identificação», na aceção da incriminação em apreço, nos moldes previstos no artigo 255.º, alínea c), do corpo de normas aludido) de que era titular o aqui assistente, seu tio, para que o dito indivíduo o pudesse usar, como veio efetivamente a usar, de modo a identificar-se como sendo o respetivo titular, tudo de acordo com o combinado com a arguida, com vista à concretização, conjuntamente com o dito indivíduo, dos seus intentos delituosos, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei, constituiu-se autora de um crime de uso de documento de identificação alheio p. e p. no artigo 261.º, n.º 1, do Código Penal.

Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 1519/15.4JAPRT.P1.S2

Recurso

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

I. Neste processo n.º 1519/15.4JAPRT do Juízo Local Criminal do ..., ..., comarca do ..., foi proferida em ........2022 sentença que absolveu a arguida AA dos crimes pelos quais estava pronunciada, em concreto, um crime de burla qualificada p. e p. nos arts. 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, al. a), do CP, um crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256.º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 3, do CP e um crime de uso de documento de identificação alheio p. e p. no art. 261.º, n.º 1 do CP e, bem assim, julgou improcedente o pedido de declaração de perda de vantagens a favor do Estado efetuado pelo Ministério Público, igualmente a absolvendo desse mesmo pedido.

II. Por via do recurso do Ministério Público, a Relação do Porto, por acórdão de 23.11.2022, retificado por acórdão de 7.12.2022, julgou parcialmente procedente o recurso do Ministério Público, assim alterando, do modo aí indicado, a decisão sobre a matéria de facto, sendo a arguida absolvida do crime de burla qualificada p. e p. nos arts. 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, al. a), do CP, mas condenada pela prática de um crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256.º, n.º 1, als. c) e d) e n.º 3, do CP e de um crime de uso de documento de identificação alheio p. e p. no art. 261.º, n.º 1 do CP, sendo determinado o reenvio dos autos à 1ª instância para a realização de novo julgamento destinado a apurar os fatores relevantes para a determinação da medida e escolha das penas concretas a aplicar à arguida pelos crimes por ela cometidos e proceder à imposição das penas que se mostrem cabidas ao caso.

III. Entretanto, a arguida recorreu para o STJ e, por acórdão de 25.10.2023, foi decidido declarar nulo o acórdão recorrido, nos termos dos arts. 369.º, 374.º, n.º 3, al. b), 375.º, 379.º, n.º 1, al. a), al. c) e n.º 3 e 425.º, n.º 4, do CPP, por omissão de pronúncia sobre a questão da determinação da sanção a aplicar à arguida, determinando-se a devolução dos autos à Relação para o mesmo tribunal que proferiu tal decisão, suprir a deficiência apontada, ficando prejudicado o conhecimento do recurso da arguida.

IV. Assim, o TRP supriu a nulidade apontada da omissão de pronúncia sobre a questão da determinação da sanção a aplicar à arguida e, por acórdão de 6.03.2024 fez constar o seguinte do dispositivo com relevância para o conhecimento do presente recurso:

Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o presente recurso e, consequentemente, em:

a) Modificar, pelas razões expostas no parágrafo 16 e segs., a matéria de facto dada por assente na decisão recorrida, de modo a que nela passem a constar os seguintes factos (com consequente eliminação do elenco da factualidade considerada não provada), bem como as alterações à factualidade dada por assente a seguir indicadas com vista a garantir a sequência lógica da matéria de facto relevante para a decisão do pleito:

4A) Em data não concretamente apurada, mas sempre anterior ao dia .../.../2015, o aqui assistente deu conhecimento, designadamente, ao seu irmão e sobrinha, da sua intenção de dispor dos imóveis de sua propriedade a favor de instituições religiosas;

5) À data dos factos a seguir descritos, a arguida tinha na sua posse um Cartão de Cidadão de BB com o n.º ..., válido até .../.../2016;

5A) De modo a fazer seus vários bens imóveis propriedade do assistente, a arguida conluiou-se, então, com um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, com características físicas semelhantes ao seu tio, a quem entregou o aludido Cartão de Cidadão, de modo a que o mesmo pudesse fazer-se passar pelo assistente;

5B) Na concretização dos seus intentos, no dia .../.../2015 a arguida apresentou-se no Cartório Notarial da Notária CC, sito na ..., na cidade do ..., acompanhada do referido indivíduo, cuja identidade não foi possível apurar;

6) Aí, este indivíduo identificou-se como sendo o assistente, apresentando o cartão de cidadão que a arguida lhe havia entregue, desse modo conseguindo convencer os funcionários do dito Cartório (e a respetiva Notária) que se tratava efetivamente do tio da arguida e aqui assistente, tendo então outorgado, com esta, escritura pública do seguinte teor:

[reprodução do teor da escritura pública constante deste mesmo ponto da matéria de facto dada por assente na decisão recorrida]

6A) A arguida tinha perfeito conhecimento de que a pessoa que consigo se apresentou no referido Cartório Notarial no dia .../.../2015 não era o seu tio BB e que a outorga daquela escritura não refletia a vontade deste;

8A) A arguida atuou nos moldes descritos com a intenção, lograda, de enganar a Notária responsável pelo Cartório Notarial aludido quanto à identidade da pessoa que a acompanhava, levando-a assim a celebrar a escritura pública em causa nos autos e, dessa forma, fazer seus os bens imóveis melhor descritos em tal instrumento público, pertencentes ao seu tio, de valor concretamente não apurado, mas nunca inferior a meio milhão de euros;

8B) O indivíduo que agiu juntamente com a arguida sabia que utilizava um documento de identificação que lhe não pertencia e que subscrevia a escritura pública em que participou com um nome o do assistente que não era o seu;

8C) A arguida atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

b) Modificar ainda, pelas razões expostas no parágrafo 46 e segs., a matéria de facto dada por assente na decisão recorrida a partir do facto provado n.º 9, inclusive, de modo a que nela passem a constar os seguintes factos:

9) AA é filha única;

10) Natural de ..., o seu processo de desenvolvimento decorreu naquela cidade, integrada no agregado familiar de origem que considera sempre lhe ter proporcionado boas condições de vida, quer ao nível da dinâmica familiar quer da situação económica, que descreve como favorecida, fruto do património familiar e da atividade laboral diferenciada que os pais desenvolveram na administração pública e, no caso do pai, após aposentação, também como empresário da construção civil;

11) Após conclusão do ensino secundário e com o objetivo de prosseguir a formação académica, aos 17 anos diz ter vindo para a cidade do ... e passado a residir em apartamento propriedade da família, que durante cerca de 5/6 anos partilhou com onúnico tio paterno e padrinho (o assistente no processo, BB), com o qual alega ter mantido proximidade afetiva e em relação ao qual admirava o estilo de vida que adotava;

12) AA descreve um percurso académico com registo de frequência de outras licenciaturas na Universidade ..., nomeadamente em ... na Faculdade ..., tendo acabado por optar pela licenciatura em Direito em instituição particular, no caso, a Universidade ..., a qual concluiu no ano letivo de ...9.../97;

13) Em paralelo informou que frequentou aulas de japonês, opção que enquadra na apetência para aprender línguas estrangeiras, tendo naquele contexto acedido a uma bolsa para, durante 6 meses, ir estudar no ...;

14) Segundo referiu, ali acabou por ser convidada a colaborar com a professora de... da escola que frequentou, tendo permanecido naquele país durante 5 anos, para o que também refere ter contribuído o agrado pelos usos/costumes do país;

15) Informa ter sido durante aquele período que o tio decidiu ir viver para a ...;

16) Regressada a ... frequentou um curso de mediação de conflitos que decorreu de ...

... de ... de 2004, na Universidade ...;

17) Em termos profissionais a arguida informou que decidiu enveredar pela área do turismo e, com o apoio económico do pai, foram adquiridos apartamentos e, em ..., também uma empresa do ramo da hotelaria «...», cujo edifício, situado próximo do centro da cidade já estava direcionado para aquela área (uma Residencial);

18) Segundo referiu, foram efetuadas obras de recuperação na origem do «Hotel ...», que detém a categoria de ..., segundo a própria, pelo facto de ser um edifício sem elevador;

19) Nesta empresa a arguida refere ter assumido a função de diretora;

20) Em paralelo com esta atividade foi explorando os que denomina como apartamentos turísticos;

21) Contudo na sequência da pandemia de COVID 19, refere ter-se confrontado com ausência de hóspedes para os mesmos, pelo que optou por os arrendar;

22) Em termos pessoais informou que em 2003 estabeleceu união de facto, da qual resultou o nascimento de dois filhos, que contam presentemente 19 e 11 anos de idade;

23) À data dos factos na origem do presente processo, a arguida permanecia integrada no agregado familiar constituído pelo companheiro (empresário), pelos dois filhos, sendo descrita uma dinâmica familiar funcional;

24) Desde 2013 que residem na morada constante do presente processo, que se trata de uma moradia geminada, de tipologia 4, com jardim e que consideram disponibilizar boas condições de habitabilidade e conforto, que foi adquirida pelo pai da arguida;

25) O imóvel fica integrado em meio exclusivamente residencial, não conotado com especial incidência de problemáticas sociais e criminais.

26) A arguida, como presentemente, mantinha a atividade profissional dedicada à gestão do hotel (onde refere contar com a colaboração de dois funcionários fixos e de um estagiário) e dos apartamentos arrendados, considerando que esta atividade se revela muito absorvente e pela qual revela agrado;

27) Em termos de rentabilidade, apenas informou que a empresa não tem dívidas;

28) AA descreveu manutenção de proximidade afetiva com o tio, que visitava semanalmente na ... e não com mais frequência por força do trabalho que desenvolvia e cuidados a dispensar aos dois filhos;

29) Em temos pessoais informou que mantinha a atividade laboral dedicada à exploração do hotel e dos apartamentos;

30) Ao nível da situação económica segundo referiu, ela e o companheiro mantiveram sempre economias separadas, sendo que aquele, que explorava uma empresa direcionada para o fabrico e montagem de cozinhas por medida, confrontou-se com dificuldades que culminaram em situação de insolvência da empresa há cerca de 8/9 anos, conjuntura que veio a comprometer o relacionamento afetivo;

31) Desde então, o casal vive separado, referindo a arguida desconhecer a situação profissional do pai dos filhos, por não desejar abordar tal assunto, mantendo, aquele, permanências irregulares no agregado familiar da arguida, alternando períodos, na morada que o próprio possui ou no estrangeiro;

32) AA refere, contudo, contar com apoio do pai dos filhos e também com o do filho mais velho ao nível da gestão dos seus negócios e com os que são propriedade do pai da arguida, também em ...;

33) Por força do acentuar de problemas de saúde do pai da arguida, os pais (ambos com 89 anos de idade) passaram a integrar o agregado familiar da arguida, sendo descrita uma dinâmica familiar positiva;

38) AA descreve uma situação económica equilibrada graças ao apoio económico que sempre lhe foi disponibilizado pelos pais;

39) Assim a arguida refere auferir um salário líquido no valor de € 674,40, a que se acresce o apoio económico dos pais que não quantificou;

40) Apresenta uma despesa fixa com a habitação no valor de € 260,94;

41) A arguida refere que os seus tempos livres, maioritariamente, decorrem com a família, a quem se revela afetivamente ligada, por vezes convivendo com amigas de longa data;

42) Como projeto de vida indica o de apresentar uma candidatura aos competentes serviços de apoio ao Turismo para a construção e exploração de 15 apartamentos em regime de aparthotel;

43) As fontes do meio sócio familiar contactadas pelos serviços de reinserção social descreveram a arguida como mulher especialmente dedicada à família e muito focada no trabalho, que se revela desprendida de bens materiais e que cultiva uma filosofia de vida muito pragmática e orientada pelos valores tradicionais;

44) Como principal impacto decorrente do presente processo a arguida indica sentimentos de incompreensão e revolta, pelo facto de ter sido constituída arguida em situação na qual não se revê e que considera prejudicar o seu bom nome;

45) Expressa ainda sentimentos stress e receio, com ideação persecutória, onde enquadra o presente processo e o recurso da decisão proferida na primeira instância;

46) Em abstrato a arguida efetua análise crítica negativa sobre a natureza dos factos pelos quais se encontra acusada, reconhecendo a ilicitude de tais comportamentos e de vítimas.

47) A arguida não encara a possibilidade de condenação, pelo que não equacionou a possibilidade de adesão a uma eventual medida de execução na comunidade.

48) Em conclusão, indicam os serviços de reinserção social considerar que a arguida reúne condições para a execução de uma medida na comunidade, que melhor lhe permitirá interiorizar o desvalor da sua conduta.»

c) Absolver a arguida, pelas razões constantes do ponto 43 e segs., da prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal;

d) Condenar a arguida, pelas razões constantes do ponto 51 e segs., pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs 1, alíneas c) e d), e 3, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;

e) Condenar a arguida, pelas razões constantes do ponto 54 e segs., pela prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

f) Em cúmulo, condenar a arguida na pena única de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão;

g) Suspender, por idêntico período ao da sua duração, a pena ora aplicada à arguida, mediante sujeição desta a regime de prova, nos termos que vierem a ser previstos no plano de reinserção social a elaborar oportunamente pelos serviços de reinserção social competentes e sob seu acompanhamento, e, bem assim, ao pagamento, no decurso do prazo de suspensão, da quantia de 5 000 (cinco mil euros) à associação ...».

V. Não se conformando com tal decisão a arguida recorreu para o STJ, pugnando pela sua absolvição, apresentando as seguintes conclusões (transcrição sem negritos nem sublinhados):

A. A decisão recorrida enferma de vícios, concretamente, de erro notório na apreciação da prova e da insuficiência da matéria de facto para a decisão (art.410º, n.º 2, als. a) e c) do CPP).

B. Na sequência do erro na apreciação e valoração da prova cometido pelo Tribunal da Relação, este alterou o elenco dos factos dados por assentes, introduzindo os seguintes:

«4A) Em data não concretamente apurada, mas sempre anterior ao dia .../.../2015, o aqui assistente deu conhecimento, designadamente, ao seu irmão e sobrinha, da sua intenção de dispor dos imóveis de sua propriedade a favor de instituições religiosas;» o Tribunal apenas sustenta tal facto no depoimento da testemunha DD (irmão do assistente), não tendo demonstrado nem provado que a aqui arguida tivesse conhecimento do mesmo.

«5) À data dos factos a seguir descritos, a arguida tinha na sua posse um Cartão de Cidadão de BB com o n. ..., válido até .../.../2016» tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que era a arguida (e não o assistente) que tinha na sua posse o cartão de cidadão. Sendo certo que, mesmo que fosse, nenhum ilícito criminal se poderá retirar deste facto. A verdade é que qualquer pessoa pode ter na sua posse um cartão de cidadão de terceiro, sem que isso seja considerado um crime.

«5A) De modo a fazer seus vários bens imóveis propriedade do assistente, a arguida conluiou-se, então, com um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, com características físicas semelhantes ao seu tio, a quem entregou o aludido Cartão de Cidadão, de modo a que o mesmo pudesse fazer-se passar pelo assistente;» tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que era a arguida tenha assim atuado. Antes resultou da prova produzida e das regras da experiência comum que a arguida, na sequência dos já anteriores registos provisórios (que caducavam naquela data .../.../2015), quis continuar a proteger o património do assistente contra as possíveis burlas (atendendo a que aquele já havia sido vítima de várias em momentos anteriores); mais não resultou demonstrado nem provado, com segurança, que a pessoa que compareceu no dia .../.../2015 no Cartório Notarial não tenha sido o aqui assistente, sendo certo, todavia, que a testemunha EE reconheceu e indicou o aqui assistente como tendo sido a pessoa que esteve presente no dia da escritura e a testemunha CC reconheceu o aqui assistente, embora não conseguindo afirmar com certeza em qual dos dias o viu.

«5B) Na concretização dos seus intentos, no dia .../.../2015 a arguida apresentou-se no Cartório Notarial da Notária CC, sito na ..., na cidade do ..., acompanhada do referido indivíduo, cuja identidade não foi possível apurar;» dá-se por reproduzido o referido quanto ao facto anterior.

«6) Aí, este indivíduo identificou-se como sendo o assistente, apresentando o cartão de cidadão que a arguida lhe havia entregue, desse modo conseguindo convencer os funcionários do dito Cartório (e a respetiva Notária) que se tratava efetivamente do tio da arguida e aqui assistente, tendo então outorgado, com esta, escritura pública do seguinte teor: [reprodução do teor da escritura pública, já constante da matéria de facto assente na decisão recorrida]» tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que era a arguida que tinha na sua posse o cartão de cidadão do assistente e, a ter, sequer que o tenha entregue a alguém que não ao próprio assistente. Antes resultou da prova produzida e das regras da experiência comum, que tanto a Notária como a funcionária verificaram a identidade da pessoa que compareceu no dia da escritura e que nada lhes pareceu suspeito ou anormal. A pessoa que ali se apresentou tinha na sua posse um cartão de cidadão válido e que correspondia (fisicamente, pela idade e pela imagem) à pessoa identificada no referido documento de identificação. Não resultou demonstrado nem provado que houve qualquer engano e intenção de engado por parte da arguida às pessoas do Cartório.

«6A) A arguida tinha perfeito conhecimento de que a pessoa que consigo se apresentou no referido Cartório Notarial no dia .../.../2015 não era o seu tio BB e que a outorga daquela escritura não refletia a vontade deste;» tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que a arguida tenha atuado desse modo. Pelo contrário, resultou da prova produzida e das regras da experiência comum que existia uma intenção de proteger o património do assistente de terceiros, situação que é também corroborada pelos anteriores registos provisórios.

«8A) A arguida atuou nos moldes descritos com a intenção, lograda, de enganar a Notária responsável pelo Cartório Notarial aludido quanto à identidade da pessoa que a acompanhava, levando-a assim a celebrar a escritura pública em causa nos autos e, dessa forma, fazer seus os bens imóveis melhor descritos em tal instrumento público, pertencentes ao seu tio, de valor concretamente não apurado, mas nunca inferior a meio milhão de euros;» tal facto decorre de construções arbitrárias e contraditórias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que a arguida tenha atuado desse modo. Pelo contrário, resultou da prova produzida e das regras da experiência comum, aliás, como inclusive foi admitido pelo Tribunal da Relação, que tal negócio se tratava de uma venda fictícia, mais uma vez, com vista a proteger o património do assistente de terceiros.

«8B) O indivíduo que agiu juntamente com a arguida sabia que utilizava um documento de identificação que lhe não pertencia e que subscrevia a escritura pública em que participou com um nome o do assistente que não era o seu;» tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que a pessoa que esteve presente na escritura não foi efetivamente o aqui assistente.

«8C) A arguida atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.» tal facto decorre de construções arbitrárias e contraditórias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que a arguida tenha atuado desse modo.

C. Os factos introduzidos pelo Tribunal da Relação contrariam, do ponto de vista de um homem médio, a lógica e as regras da experiência comum. Existe uma desconformidade entre os factos agora dados como assentes e a prova produzida em audiência, assim como o Tribunal da Relação decidiu de forma contraditória face àquilo que se provou.

D. O Tribunal da Relação assume como facto assente que a testemunha CC confirmou que a pessoa que a abordou no dia .../.../2015 foi o aqui assistente, logo, sendo pessoas diferentes as que se apresentaram nos dias ... e ..., seria forçoso concluir que a pessoa que foi à escritura não era o assistente.

E. Contudo: i) o auto de reconhecimento é inválido; ii) o auto de reconhecimento não foi confrontado à testemunha em sede de audiência, nem sujeito ao contraditório; iii) o auto de reconhecimento não diz que a testemunha indicou que o Sr. BB «era a pessoa que se lhe tinha apresentado no dia .../.../2015», mas apenas que aquela pessoa era «semelhante»; iv) a admitir-se, por hipótese, que as pessoas que compareceram num dia e noutro seriam diferentes (como se faz crer na decisão recorrida), as mesmas teriam de ser, entre si, semelhantes situação que sempre geraria dúvida que não podia deixar de ser relevada; v) certo é que, em sede de audiência, a testemunha referiu que não conseguia dizer quem era o “verdadeiro” BB e, por isso, não conseguia afirmar se a pessoa que se apresentou no dia da escritura era ou não o aqui assistente.

F. Por isso, qualquer homem médio que leia a decisão recorrida, facilmente se apercebe, segundo as regras da experiência comum, que o Tribunal da Relação errou na apreciação e valoração que fez das provas produzidas em julgamento, tendo-se baseado em critérios arbitrários, meramente conclusivos e também contraditórios com as regras de valoração das provas.

G. Por outro lado, o auto de reconhecimento em causa (e que tanto sustenta as ilações do Tribunal da Relação) é inválido, pois não é genuíno e fiel ao reconhecimento que efetivamente foi feito pela testemunha EE, contendo declarações incorretas!

H. Erro, aliás, que também o próprio Tribunal da Relação não deixou de reconhecer no acórdão ora recorrido quando refere «…tendo ela esclarecido que o auto de reconhecimento aludido enferma de erro manifesto (ela não viu a pessoa que se apresentou no Cartório onde trabalha no dia .../.../2015, portanto não podia reconhecê-la)…».

I. Não obstante reconhecer o erro, o Tribunal da Relação retirou do depoimento prestado pela testemunha EE em sede de audiência de discussão e julgamento que «o reconhecimento que fez - tanto quanto se recordava – se destinava a identificar a pessoa que tinha comparecido para outorgar a escritura em causa nestes autos (o que resulta também do auto da diligência), sendo que nenhum dos participantes na linha de reconhecimento era a pessoa em questão». [sublinhado e negrito nosso]

J. Ora, um homem médio que lê a decisão recorrida facilmente se apercebe que a decisão enferma de erro manifesto, mais uma vez, o raciocínio do Tribunal da Relação está ferido de um raciocínio ilógico e arbitrário, porquanto:

i) se a testemunha EE identificou no auto de reconhecimento o Sr. BB;

ii) e se a testemunha EE apenas viu a pessoa presente no dia da escritura, não se tendo cruzado nem visto o senhor que apareceu no Cartório no dia .../.../2015;

iii) então, necessariamente, a pessoa que a testemunha identificou entre as pessoas que se encontravam na linha de reconhecimento foi a pessoa que viu no dia da escritura.

K. Dito de outro modo, a pessoa que a testemunha EE viu, confirma que reconheceu e com quem esteve presente no dia da celebração da escritura foi o aqui assistente.

L. Pelo que, em sentido contrário ao que refere o acórdão, o homem médio concluiria que o assistente Sr. BB esteve presente no referido Cartório no dia .../.../2015.

M. Além disso, resultou da prova produzida que:

- existiam várias pessoas que agiam sempre em torno do aqui assistente, designadamente pessoas do Lar onde se encontrava, “...”, quer os seus dirigentes, quer funcionários do mesmo, diversos advogados e ainda outras pessoas;

- o assistente era uma pessoa de alguma idade e proprietário de um vasto património imobiliário;

- o assistente foi vítima de várias burlas ao seu património, inclusive de pessoas que trabalhavam no Lar onde se encontrava;

- a arguida e o seu pai eram as únicas pessoas familiares próximas do assistente e, por isso, tal como também resultou da prova feita, estes procuraram proteger o património do assistente;

- existiam já vários registos provisórios que tinham sido anteriormente efetivados.

N. Pelo que, seria, de acordo com as regras da experiência comum, expectável que os familiares próximos (e sendo eles os únicos) celebrassem escrituras fictícias para proteger o património do assistente das más intenções de terceiros.

O. E fictícias - como o próprio nome indica - significa que seriam escrituras simuladas, não tendo a arguida em vista a apropriação de tais bens para si às custas do património do assistente, mas apenas a sua proteção de terceiros.

P. Além de que os referidos registos provisórios caducavam - pelo menos quanto aos imóveis aqui em causa - no dia .../.../2015, o que também justifica que a escritura se tenha celebrado naquela data.

Q. Ademais, também resulta da prova e da decisão recorrida que no mesmo dia .../.../2015 em que foi celebrada a escritura aqui em causa, foi igualmente celebrada uma doação do assistente de grande parte do seu património (26 prédios rústicos).

R. Ora, não faz sentido que o Tribunal da Relação refira, na decisão recorrida, que «não se afigura razoável que o assistente perdesse o controlo da melhor parte do seu património sem receber o que quer que fosse em troca, sendo certo que nada indicia nos autos que ele pretendesse despojar-se de bens que lhe davam segurança económica», referindo-se à venda fictícia (aliás, que até admite que seja fictícia) do assistente à arguida, quando nessa mesma data o assistente doa grande parte do seu património a terceiros!

S. Por outro lado, resultou da prova feita e decorre da decisão recorrida que o assistente tinha vários cartões de cidadão em seu poder. Pelo que, face às regras da experiência comum e à prova produzida, não seria de estranhar que, de facto, o assistente tenha utilizado cartões de cidadão distintos em ambas as escrituras. Acresce, ainda, que,

T. Mesmo que, por hipótese, se admitisse que foi o assistente que, após celebrar a escritura no dia .../.../2015, lá regressou no dia .../.../2015, tal não seria assim tão inusitado, face à prova feita e às regras da experiência comum. Porquanto:

U. Resultou da prova feita que o assistente padecia de uma situação demencial, de diversos problemas de saúde, designadamente patologia do foro neurológico, psico-motor e psiquiátrico, o que pode explicar a instabilidade do assistente. Assim como as influências de estranhos e de terceiros (nomeadamente pessoas do lar onde se encontrava, quer de seus dirigentes, quer de funcionários do mesmo, e ainda advogados e outras pessoas) a que estava sujeito, e máxime por ter ido no dia ........2015 ao cartório acompanhado por um grupo de senhoras, que não se identificaram, mas que de acordo com o Tribunal da Relação seria a FF que o havia burlado anteriormente por decisão transitada em julgado e pela qual se encontrava a cumprir pena no estabelecimento prisional.

V. Além disso, o comportamento processual do assistente refletido ao longo deste processo, revela bem o estado de saúde em que o mesmo se encontrava, podendo ainda revelar algo mais, como seja o quão influenciável e manipulável era o aqui assistente.

W. Se assim é e se tais factos resultaram da prova feita, então, de acordo com as regras da experiência comum, será também expectável (ou pelo menos não poderá deixar de ser verosímil ou admissível) que o assistente, após celebrar a escritura num dia, por vontade própria, mais tarde, por influência de terceiros, tenha lá regressado para evitar a venda anteriormente realizada e se comportado nos termos por esses terceiros indicados.

X. E, portanto, perante este estado de dúvida, não podia o Tribunal da Relação admitir que o assistente só compareceu no Cartório no dia .../.../2015 e que não foi ele quem celebrou a escritura no dia .../.../2015.

Y. Muito menos admitindo a Relação que o Assistente no dia .../.../2015 foi acompanhado até ao Cartório pela burlona FF que foi condenada por burlar o Assistente e se encontrava à data do julgamento a cumprir pena de prisão efetiva por esses crimes. - pág. 35 linhas 21 e 22 do acórdão sub iudice. Acresce que,

Z. A decisão recorrida enferma, também, de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, uma vez que não decorre da matéria de facto provada que a arguida tenha praticado um crime de falsificação de documento (art. 256º, n.º 1, als. c) e d) e n.º 3 do Código Penal), nem um crime de uso de documento de identificação alheio (art. 261º, n.º 1, do Código Penal).

AA. Não decorre da matéria de facto provada que a arguida tenha emitido uma declaração falsa - logo, não está verificado o elemento objetivo do crime de falsificação de documento.

BB. E não decorre da matéria de facto provada que a arguida tenha usado documento de identificação emitido a favor de outra pessoa - logo, não está verificado o elemento objetivo do crime de uso de documento de identificação alheio. Mais,

CC. Foi violado o princípio “in dubio pro reo” e o art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa. Finalmente,

DD. Não estão verificados os elementos objetivo e subjetivo dos crimes:

- a arguida não emitiu falsa declaração; (elemento objetivo crime de falsificação de documento)

- a arguida não usou documento de outrem; (elemento objetivo - crime de uso de documento de identificação alheio)

- resulta da prova constante do acórdão sub iudice, do contrato de ........2018 (fls. 1474 a 1477 vso.) e dos registos provisórios que a arguida interveio para proteger o património do assistente das investidas e burlas de terceiros. Relembra-se que já existiam condenações de funcionários da ..., por burla de que o Assistente foi vítima, e de terceiros que lhe retiraram o seu património. Por isso existiam já sucessivos, registos provisórios prévios à celebração da escritura, com vista à proteção do património do assistente. (elemento subjetivo)

Termina pedindo o provimento do recurso, com a consequente revogação do acórdão da Relação e a sua absolvição da prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, alíneas c) e d), e n.º 3, do Código Penal e da prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261º, n.º 1 do Código Penal.

VI. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, sustentando que o recurso da arguida não merece provimento (alegando, em resumo, que para além de não se verificarem os vícios apontados previstos no art. 410.º, n.º 2, a) e c), do CPP, o que acontece é que a recorrente apresenta a sua divergência relativamente à convicção adquirida pelo Tribunal da Relação, o que não se confunde com erro notório na apreciação da prova, sendo certo que a decisão contém todos os factos que permitem a sua condenação, não existindo dúvidas fundadas e insuperáveis, para se poder invocar a violação do princípio in dubio pro reo e, estando preenchidos todos os pressupostos objetivos e subjetivos dos crimes pelos quais foi condenada).

VII. Voltaram a subir os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido de concordar com a Resposta apresentada na Relação - acrescentando, em resumo, por um lado, que no auto de reconhecimento em questão, levado a cabo em ........2018, estiverem, além do mais, presentes o MP titular do inquérito e o defensor oficioso, sendo que nenhuma nulidade ou irregularidade foi arguida, não tendo o mesmo que ser lido ou examinado em audiência de julgamento, sendo apenas uma das várias provas em que se fundou a convicção da Relação no sentido da conclusão segura dos factos dados como provados e, por outro lado, no que se refere ao invocado erro de direito, este não se verifica também porque a arguida agiu em coautoria com o individuo cuja identidade não foi possível apurar, tendo sido ela que forneceu o cartão de cidadão do tio àquele para a prática dos factos, bem sabendo assim que a pessoa não era a legítima detentora do documento, documento que foi utilizado na sua presença e com a sua intervenção, em seu beneficio, na elaboração do documento que não correspondia à realidade das coisas, daí resultando que seja autora dos crimes pelos quais foi condenada, tendo em vista a definição de autoria prevista no art. 26.º do CP - concluindo igualmente pelo não provimento do recurso.

VIII. A arguida respondeu ao Parecer do Sr. PGA mantendo o que já alegara no recurso e, refutando os argumentos por aquele Magistrado acrescentados (resumidamente, por um lado, quer por, além do mais, o auto de reconhecimento em questão ser inválido e por outro lado, por nem se ter provado a coautoria).

IX. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

Fundamentação

X. Resulta dos autos, com interesse para a presente decisão, o seguinte que consta do acórdão recorrido do TRP de ........2024:

(…)

Cumpridos os legais trâmites há agora que decidir.

Mantém-se a advertência prévia já constante da decisão original: o assistente originário nos autos, tio da arguida, faleceu no decurso da tramitação do processo, como se refere na matéria de facto dada por assente, tendo a posição do mesmo, entretanto, sido ocupada pelo seu irmão, pai da mesma arguida. De modo a evitar dúvidas, importa esclarecer que, nas considerações subsequentes, sempre que se aludir ao assistente, e salvo indicação em contrário, é o assistente originário, não o «atual» assistente, que se pretende referir.

II

O presente recurso merece parcial provimento.

1. A sentença recorrida contra o que pretende o Digno recorrente não padece de qualquer vício de fundamentação que determine a sua nulidade, por via das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.

Com efeito, analisadas as razões em que funda o Digno recorrente tal pretensão, retira-se claramente que o que ele censura à decisão recorrida é o facto de nela não se ter efetuado uma distinta valoração da prova produzida (coincidente, naturalmente, com a que ele defende nas suas alegações de recurso), o que obviamente não corresponde a qualquer falta de fundamentação (no sentido, amplo, de omissão de indicação bastante das razões que conduziram à formação da convicção do Tribunal no tocante à matéria de facto relevante para a decisão, em qualquer das vertentes em que esta se analisa): a sentença recorrida está devidamente motivada no que tange às razões que levaram o Tribunal a quo a fixar a matéria de facto (provada e não provada) nos termos em que o fez; se essas razões são ou não procedentes, se são ou não convincentes para os respetivos destinatários, é questão que tem de ser discutida em sede de impugnação da dita valoração, a que, aliás, se dedica o recorrente ao longo de todas as suas alegações e que a seguir se tratará.

2. Já contrariamente ao que entendido foi na decisão recorrida, a prova produzida perante o Tribunal a quo é suficiente para, afastando o estado de incerteza naquela invocado, concluir pela prática, por parte da arguida, das condutas que lhe são imputadas nos autos.

a) Os factos básicos que interessam para a decisão do presente pleito são relativamente incontrovertidos.

Assim, nenhuma dúvida existe que no dia .../.../2015, foi celebrada uma escritura pública em Cartório Notarial sito na ..., na cidade do ..., na qual foram outorgantes a aqui arguida e, alegadamente, o assistente nestes autos (tio daquela), entretanto falecido na pendência do presente processo, como se referiu, escritura essa através da qual o aludido assistente supostamente declarou vender à sua sobrinha, pelo preço global de € 414 661,99 (também supostamente já recebido), um conjunto de bens imóveis (de valor real não concretamente apurado, mas seguramente superior ao indicado, que corresponde ao valor matricial dos ditos imóveis), identificados no mesmo instrumento público; para tanto, no dia e hora marcados para a celebração da dita escritura, a arguida compareceu no pertinente Cartório, na companhia de alguém que se identificou como sendo o assistente, apresentando, como prova da sua respetiva identidade, um cartão de cidadão legalmente emitido e ainda dentro da respetiva data de validade, em nome do mesmo assistente. Também é incontrovertido que, no subsequente dia .../.../2015, se apresentou no dito Cartório Notarial um grupo de pessoas, suscitando a questão de a aludida escritura ter sido celebrada por pessoa distinta do aqui assistente, ou seja, alegando que alguém se teria dirigido ao mencionado cartório e assinado a dita escritura fazendo-se passar pelo assistente e abusando da sua identidade e assinatura. Face a tal situação, nesse mesmo dia .../.../2015, a Notária responsável pelo Cartório em apreço, depois de confirmar que também a pessoa que se lhe apresentava como sendo o assistente era portadora de cartão de cidadão, legalmente emitido e válido, confirmando a respetiva identidade, lavrou a declaração acima reproduzida, concluindo, na mesma, que

«[p]ese embora tenha constatado que a pessoa que perante mim, no dia ...-...-2015 outorgou a escritura não era, de facto, a mesma que no dia ...-...-2015 compareceu no Cartório, o certo é que, quer o cartão de cidadão exibido na escritura, quer o que foi exibido posteriormente em ...-...-2015, estavam ambos válidos e pertenciam à mesma pessoa, uma vez que o número de identificação civil era o mesmo, mas eram duas vias diferentes daquele documento».

Já quanto aos demais factos que à arguida eram imputados na acusação e pronúncia contra ela formuladas nos autos, declarou-se, no entanto, o Tribunal a quo, em dúvida insanável, essencialmente porque:

«face a tudo o expendido não é possível ao Tribunal concluir, com a certeza e a segurança que uma condenação impõe, que não tenha sido o assistente a estar presente na referida escritura e que tenha sido a sua sobrinha, aqui arguida, a montar todo este esquema ardiloso com vista a ficar com o seu património, pelo que não ficou assim demonstrado que a arguida tenha montado um esquema fraudulento e enganador, que apresentou à notária, ludibriando-a, com a única intenção de se apropriar dos bens imóveis de seu tio, bem sabendo que agia contra a vontade deste.

Se é certo que o Tribunal não pode atestar - perante a prova que se produziu - que a arguida nada tenha feito, também o contrário não resultou com segurança e certeza da prova produzida.»

b) Esta posição do Tribunal recorrido choca, no entanto, com a prova perante si (validamente) produzida e com as regras da experiência comum.

Assim, o Tribunal a quo não valorou corretamente os depoimentos das testemunhas CC e EE, respetivamente Notária e funcionária do Cartório Notarial onde foi celebrada a escritura pública aqui em questão.

Com efeito, a primeira das aludidas testemunhas, no decurso do seu depoimento, em momento algum manifestou qualquer dúvida de que a pessoa que se lhe apresentou no dia .../.../2015 não era a pessoa que se lhe apresentou no subsequente dia .../.../2015 (portanto, apenas 4 dias depois da celebração da escritura aqui em causa, quando a sua memória dos eventos ainda estava fresca), não havendo razão alguma para colocar em causa a credibilidade de tal depoimento nessa parte, tanto mais que foi esse facto que a levou a lavrar a declaração atrás transcrita.

A própria decisão recorrida não deixa de o reconhecer, fundando a dúvida insanável em que alega encontrar-se (sobretudo) na circunstância de que «a referida testemunha (…) di[sse] que (…) não pod[ia] atestar, com certeza e segurança, que o verdadeiro BB fosse a pessoa que se apresentou na escritura ou no outro dia, apenas podendo dizer que eram pessoas diferentes», e não propriamente em qualquer incerteza do depoimento da testemunha nesta parte. E embora posteriormente acrescente «mesmo admitindo que as pessoas eram diferentes» (os sublinhados são nossos), parecendo duvidar desse facto apesar da posição anteriormente assumida, sempre acrescenta, no que que se antolha como o ponto essencial em que ancora a sua dúvida: «não conseguimos saber, com um grau de certeza e segurança, quem era o “verdadeiro” BB - se a pessoa que esteve presente na escritura datada de .../.../2015 ou se a pessoa que se apresentou no Cartório, juntamente com várias senhoras, no dia .../.../2015».

Esta conclusão, contudo, é também insustentável face à prova produzida em audiência, verificando-se, igualmente aqui, um erro na sua apreciação.

Ainda que se pudesse admitir que a identificação a que, no dia .../.../2015, procedeu a testemunha CC não permite, com a necessária segurança, concluir que quem se deslocou ao Cartório onde a mesma é Notária foi efetivamente o aqui assistente, o certo é que, no decurso do inquérito (e como se refere na decisão recorrida), as testemunhas CC e EE foram chamadas a realizar reconhecimento presencial (cfr. o auto de fls. 961-962) com vista a apurar se a pessoa que compareceu no Cartório Notarial aquando da celebração da escritura aqui em causa seria algum dos participantes na diligência, tendo nessa altura a testemunha CC afastado claramente tal possibilidade, mas esclarecendo que um dos presentes na linha de reconhecimento era a pessoa que se lhe tinha apresentado no dia .../.../2015, precisamente o aqui assistente, de cuja identidade não se pode, destarte, duvidar, seja porque nesse dia ele foi identificado pelos agentes policiais envolvidos na diligência de reconhecimento (também por meio do correspondente cartão de cidadão), seja porque um dos elementos presentes na linha de reconhecimento era o pai da arguida e irmão do próprio assistente, que não colocou em causa a identificação que deste foi então feita.

De todo o exposto é, pois, seguro, que a pessoa que abordou a testemunha CC no dia .../.../2015 foi o aqui assistente.

Para além disto, também o aludido depoimento da testemunha EE é relevante quanto a este ponto, porquanto tendo ela esclarecido que o auto de reconhecimento aludido enferma de erro manifesto (ela não viu a pessoa que se apresentou no Cartório onde trabalha no dia .../.../2015, portanto não podia reconhecê-la), deixou igualmente claro que o reconhecimento que fez - tanto quanto se recordava - se destinava a identificar a pessoa que tinha comparecido para outorgar a escritura em causa nestes autos (o que resulta também do auto da diligência), sendo que nenhum dos participantes na linha de reconhecimento era a pessoa em questão. Também por aqui, pois, é seguro concluir que o assistente neste processo não esteve presente no referido Cartório no dia .../.../2015.

Nestas circunstâncias, e ao contrário do que se defende na decisão recorrida, forçoso é concluir que a pessoa do sexo masculino que, juntamente com a aqui arguida, outorgou a escritura pública em causa nestes autos não era o assistente, pois que este seguramente não compareceu no Cartório Notarial onde a mesma foi celebrada antes do dia .../.../2015, nenhuma dúvida razoável se podendo manter a respeito de tal facto.

c) Esta conclusão é ainda reforçada quando se valoram globalmente os factos dados como assentes e outros que ressumam da prova (sobretudo) testemunhal e documental que se encontrava à disposição do Tribunal recorrido.

Em primeiro lugar, não há qualquer dúvida que o aqui assistente manifestou vontade de deixar os bens que foram objeto da escritura pública em causa nos autos a entidades religiosas, e que isso era do conhecimento dos seus familiares próximos, pois que o seu próprio irmão o reconheceu durante o seu depoimento. Não faria assim sentido que o assistente resolvesse, sem mais, «vender» ficticiamente à sua sobrinha uma porção muito significativa do seu património imobiliário, o que o impedia de concretizar aquela sua intenção, ainda que fosse, como alega a arguida, para «colocar a salvo» os imóveis em questão (também do próprio assistente, dir-se-ia, pois que com a respetiva venda deixaria de poder dispor deles como entendesse).

Em segundo lugar, não há qualquer dúvida que a «venda» em causa nos autos não correspondia efetivamente a qualquer negócio de transmissão onerosa dos imóveis propriedade do aqui assistente, algo que a própria arguida reconhece sem rebuço, esclarecendo mesmo que só não foi realizada uma doação por isso implicar custos notariais mais elevados. Assim sendo, o assistente perdia o controlo da melhor parte do seu património, sem receber o que quer que fosse em troca, o que não se afigura razoável, sendo certo que nada nos autos indicia que pretendesse ele despojar-se de bens que lhe davam segurança económica, considerando a sua situação.

Em terceiro lugar, o aqui assistente, no dia em que foi celebrada a escritura em causa nos presentes autos, outorgou outra escritura, junta aos autos a fls. 138 e segs., na qual é identificado por referência ao seu cartão de cidadão com limite de validade em .../.../2018 (precisamente o mesmo com que se apresentou a pessoa que, no dia .../.../2015, abordou a testemunha CC e se lhe identificou como sendo o assistente). Curiosamente, na escritura em causa nestes autos a identidade do vendedor é estabelecida utilizando um cartão de cidadão com data de validade anterior (.../.../2016), nenhuma razão havendo para que fossem utilizados documentos de identificação diferentes, no mesmo dia, em atos equivalentes, quando o assistente estava na posse de um cartão de cidadão plenamente válido, salvo, naturalmente, se se admitir (pelo menos) que a arguida utilizou um cartão de cidadão sem confirmar, com o seu tio, se era esse ou não o cartão que utilizava para se identificar, o que também se afigura pouco verosímil, se a celebração da escritura aqui em causa tivesse sido por este desejada e voluntariamente realizada.

Em quarto lugar, mesmo tendo em consideração os eventuais problemas de saúde mental que afligiram o assistente nos últimos anos da sua vida, o certo é que se ele tivesse tido conhecimento, e tivesse concordado, com a celebração da escritura em causa nos autos, não se teria seguramente deslocado ao Cartório onde esta foi outorgada, ainda que tivesse mudado de opinião relativamente ao negócio que a mesma se destinou a titular, nos moldes em que o fez, até sem primeiro falar com a sua sobrinha e indagar, junto dela, o que se estava a passar (o que esta, aliás, não alegou ter sucedido em momento algum).

Em quinto lugar, e ainda que o depoimento da testemunha FF, dado o seu comportamento anterior em relação ao assistente, não mereça, de facto, particular credibilidade, não parece que seja de duvidar que ela se dirigiu ao Cartório onde foi celebrada a escritura aqui em causa na companhia do assistente (o que permite estabelecer, novamente sem qualquer dúvida, a identidade da pessoa que se apresentou à testemunha CC no dia .../.../2015), e que este não lhe mostrou, em qualquer momento, ter conhecimento da realização de qualquer escritura de compra e venda dos bens imóveis alegadamente por si vendidos à arguida nos autos (até que se esclareceram, em parte devido a diligências desenvolvidas pela testemunha, os factos relativos a tal negócio).

Tudo aponta, assim, para que a escritura pública em causa nos presentes autos foi marcada e outorgada sem que o assistente nisso tivesse qualquer participação, ou sem que ele o consentisse, o que quadra com o comportamento que ele adotou logo que obteve o conhecimento necessário acerca do negócio celebrado.

O valor indiciário dos factos acabados de mencionar não é posto em causa pelo eventual estado de progressiva deterioração mental que afetou o aqui assistente nos últimos anos de vida, já que não resulta do processo, nem ninguém alegou, que, à data em que a escritura pública em causa nos autos foi outorgada (tal como a escritura que nesse mesmo dia o assistente seguramente celebrou) não estivesse ele ainda na posse das necessárias faculdades intelectuais para dispor do seu património, embora porventura (cada vez mais) suscetível a influências exteriores.

Não existem, pois, razões para crer que o assistente, se tivesse concordado e participado na outorga da escritura aqui em causa, se esqueceria de imediato do que tinha feito, mostrando-se, perante as pessoas com quem contactou a esse propósito, surpreso (e indignado) com um negócio que objetivamente o privava de boa parte do seu património, e que, de forma clara, mostrou rejeitar, não se limitando a manifestar mero arrependimento em relação à celebração do mesmo.

Das considerações antecedentes não pode deixar de retirar-se, pois, que o assistente não teve qualquer intervenção na celebração da escritura pública em causa nestes autos, nem autorizou o negócio através dela formalizado.

Ora, neste quadro de coisas, não pode senão concluir-se, também, que a celebração da escritura em causa nos autos foi «orquestrada» pela arguida: ela conhecia perfeitamente o seu tio, de modo que seguramente não foi enganada pelo indivíduo que a acompanhou até ao Cartório Notarial, só ela, na díada, tinha acesso ao cartão de cidadão do seu tio e podia dele dispor, só ela tinha interesse em fazer seus os imóveis objeto da «venda» titulada pela aludida escritura pública, não se vislumbrando qualquer outro motivo para o seu comportamento - mediante conluio com uma terceira pessoa, à margem da vontade e sem o conhecimento do aqui assistente, celebrando um negócio completamente simulado em prejuízo deste.

Mesmo admitindo que o assistente possa ter, em algum momento, ponderado a possibilidade de transmitir, para a sua sobrinha (e aqui arguida), a propriedade sobre os imóveis em referência, designadamente para evitar que pudesse ser manipulado, ou enganado, a deles dispor a favor de terceiros contra a sua real vontade, dos elementos probatórios já referidos resulta, com segurança, que, pelo menos aquando da celebração da escritura pública aqui em causa, não tinha ele decidido proceder a tal transmissão, nem a autorizou (até porque, como a própria arguida reconheceu, o património em causa já se encontrava salvaguardado pelo registo provisório da respetiva aquisição).

Daqui decorre, a nosso ver, que a atuação da arguida só pode compreender-se como uma forma de avantajar-se com o património do assistente, ainda que, em último termo, dessa forma também impedisse, ao menos indiretamente, que o mesmo fosse dissipado, porventura em moldes também não propriamente desejados pelo seu tio.

Fosse esta a única intenção da arguida, e estivesse ela completamente desinteressada em ficar com os imóveis pertencentes ao seu tio, seguramente que não teria atuado contra a vontade dele, agindo do modo já descrito, enganando a Notária que celebrou a escritura pública aqui em causa, bem como pelo menos uma funcionária do respetivo Cartório quanto à identidade da pessoa que assumiu, nessa mesma escritura, a posição de vendedor, que, ademais, não podia desconhecer corresponder a atos proscritos, e punidos, pelo ordenamento jurídico, já que tal conhecimento faz parte do acervo de saberes que qualquer pessoa com um processo de socialização adequado detém, muito mais o possuindo quem tem formação jurídica, como ocorre com a arguida.

Tudo isto aponta, pois, para um interesse muito próprio, e que poderia justificar o risco corrido pela arguida: a obtenção de um património imobiliário significativo, sem qualquer contrapartida, evitando que o assistente nos autos pudesse dispor dele a favor de terceiros, como, aliás, repetidamente disse ser sua intenção.

d) Nestas circunstâncias, pois, haverá que alterar a matéria de facto dada por assente na decisão recorrida, de modo a aí incluir, por um lado, que o aqui assistente, em data anterior a .../.../2015, manifestou ao seu irmão e à filha deste, a aqui arguida, a sua intenção de deixar os seus bens imóveis, incluindo os que foram objeto da escritura pública em causa nos presentes autos, a instituições ligadas à Igreja Católica (o que o pai da arguida, e esta própria, embora de forma menos clara, confirmaram em audiência); por outro lado, que o indivíduo do sexo masculino que, juntamente com a arguida, celebrou a mesma escritura, não era o aqui assistente; e, por outro lado ainda, que a arguida atuou nos moldes em que atuou com vista a apropriar-se dos bens imóveis objeto da escritura pública aludida, não obstante saber que agia contra os ditames do ordenamento jurídico.

Na ausência de prova adequada do seu montante, o valor dos imóveis objeto da escritura pública em causa nos autos, relevante seja para a qualificação jurídica dos factos aqui em causa, seja para a determinação da medida concreta da pena, e que por isso também deverá ser integrado na factualidade dada por assente, só por referência ao respetivo valor tributário pode ser fixado.

As considerações anteriores resultam, assim, na introdução, entre os factos dados por assentes na decisão recorrida (com consequente eliminação do elenco da factualidade considerada não provada) do seguinte (bem como as alterações à factualidade dada por assente a seguir indicadas, de modo a garantir a sequência lógica da matéria de facto a dar como provada)1:

4A) Em data não concretamente apurada, mas sempre anterior ao dia .../.../2015, o aqui assistente deu conhecimento, designadamente, ao seu irmão e sobrinha, da sua intenção de dispor dos imóveis de sua propriedade a favor de instituições religiosas;

5) À data dos factos a seguir descritos, a arguida tinha na sua posse um Cartão de Cidadão de BB com o n.º 30836075 3zz9, válido até .../.../2016.

5A) De modo a fazer seus vários bens imóveis propriedade do assistente, a arguida conluiou-se, então, com um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, com características físicas semelhantes ao seu tio, a quem entregou o aludido Cartão de Cidadão, de modo a que o mesmo pudesse fazer-se passar pelo assistente;

5B) Na concretização dos seus intentos, no dia .../.../2015 a arguida apresentou-se no Cartório Notarial da Notária CC, sito na ..., na cidade do ..., acompanhada do referido indivíduo, cuja identidade não foi possível apurar;

6) Aí, este indivíduo identificou-se como sendo o assistente, apresentando o cartão de cidadão que a arguida lhe havia entregue, desse modo conseguindo convencer os funcionários do dito Cartório (e a respetiva Notária) que se tratava efetivamente do tio da arguida e aqui assistente, tendo então outorgado, com esta, escritura pública do seguinte teor: [reprodução do teor da escritura pública, já constante da matéria de facto assente na decisão recorrida]

6A) A arguida tinha perfeito conhecimento de que a pessoa que consigo se apresentou no referido Cartório Notarial no dia .../.../2015 não era o seu tio BB e que a outorga daquela escritura não refletia a vontade deste;

8A) A arguida atuou nos moldes descritos com a intenção, lograda, de enganar a Notária responsável pelo Cartório Notarial aludido quanto à identidade da pessoa que a acompanhava, levando-a assim a celebrar a escritura pública em causa nos autos e, dessa forma, fazer seus os bens imóveis melhor descritos em tal instrumento público, pertencentes ao seu tio, de valor concretamente não apurado, mas nunca inferior a meio milhão de euros;

8B) O indivíduo que agiu juntamente com a arguida sabia que utilizava um documento de identificação que lhe não pertencia e que subscrevia a escritura pública em que participou com um nome o do assistente que não era o seu;

8C) A arguida atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Já quanto aos demais factos que o Digno recorrente pretende ver aditados à matéria dada por assente, não se vislumbra interesse na sua inclusão entre o acervo fáctico relevante para a decisão a proferir, uma vez que se trata de eventos posteriores aos que interessam para a apreciação da eventual responsabilidade criminal da arguida pelo seu comportamento que constitui objeto destes autos.

e) A decisão recorrida não contém os elementos necessários para que este Tribunal possa fixar a pena a impor à arguida pela prática dos crimes já indicados, o que exige igualmente a complementação da factualidade dada por assente neste ponto.

Com efeito, da decisão recorrida, a propósito da vida pregressa e da situação social, económica e familiar da arguida, consta apenas que «[a] arguida nasceu no dia .../.../1971, tendo atualmente 51 anos de idade, é solteira, empresária hoteleira» e «não tem antecedentes criminais (cfr. CRC junto aos autos)».

Tais factos são insuficientes para permitir a ponderação imposta pelo artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, exigindo a ampliação da matéria de facto neste ponto a todos os fatores aí mencionados e relevantes para a determinação concreta das penas a aplicar à arguida pela sua conduta já aludida.

Neste sentido, à factualidade dada por assente deverá aditar-se, ademais, a seguinte factualidade (substituindo-se assim o texto que integra os parágrafos 9) e 10) dos factos provados, bem como a epígrafe que antecede este último):

9) AA é filha única;

10) Natural de ..., o seu processo de desenvolvimento decorreu naquela cidade, integrada no agregado familiar de origem que considera sempre lhe ter proporcionado boas condições de vida, quer ao nível da dinâmica familiar quer da situação económica, que descreve como favorecida, fruto do património familiar e da atividade laboral diferenciada que os pais desenvolveram na administração pública e, no caso do pai, após aposentação, também como empresário da construção civil;

11) Após conclusão do ensino secundário e com o objetivo de prosseguir a formação académica, aos 17 anos diz ter vindo para a cidade do ... e passado a residir em apartamento propriedade da família, que durante cerca de 5/6 anos partilhou com o único tio paterno e padrinho (o assistente no processo, BB), com o qual alega ter mantido proximidade afetiva e em relação ao qual admirava o estilo de vida que adotava;

12) AA descreve um percurso académico com registo de frequência de outras licenciaturas na ..., nomeadamente em ... na ..., tendo acabado por optar pela licenciatura em Direito em instituição particular, no caso, a ..., a qual concluiu no ano letivo de ...9.../97;

13) Em paralelo informou que frequentou aulas de japonês, opção que enquadra na apetência para aprender línguas estrangeiras, tendo naquele contexto acedido a uma bolsa para, durante 6 meses, ir estudar no ...;

14) Segundo referiu, ali acabou por ser convidada a colaborar com a professora ... da escola que frequentou, tendo permanecido naquele país durante 5 anos, para o que também refere ter contribuído o agrado pelos usos/costumes do país;

15) Informa ter sido durante aquele período que o tio decidiu ir viver para a ...;

16) Regressada a ... frequentou um curso de mediação de conflitos que decorreu de ... de ... de 2004, na ...;

17) Em termos profissionais a arguida informou que decidiu enveredar pela área do turismo e, com o apoio económico do pai, foram adquiridos apartamentos e, em ..., também uma empresa do ramo da hotelaria «...», cujo edifício, situado próximo do centro da cidade já estava direcionado para aquela área (uma Residencial);

18) Segundo referiu, foram efetuadas obras de recuperação na origem do «...», que detém a categoria de ..., segundo a própria, pelo facto de ser um edifício sem elevador;

19) Nesta empresa a arguida refere ter assumido a função de diretora;

20) Em paralelo com esta atividade foi explorando os que denomina como apartamentos turísticos;

21) Contudo na sequência da pandemia de COVID 19, refere ter-se confrontado com ausência de hóspedes para os mesmos, pelo que optou por os arrendar;

22) Em termos pessoais informou que em ... estabeleceu união de facto, da qual resultou o nascimento de dois filhos, que contam presentemente 19 e 11 anos de idade;

23) À data dos factos na origem do presente processo, a arguida permanecia integrada no agregado familiar constituído pelo companheiro (empresário), pelos dois filhos, sendo descrita uma dinâmica familiar funcional;

24) Desde ... que residem na morada constante do presente processo, que se trata de uma moradia geminada, de tipologia 4, com jardim e que consideram disponibilizar boas condições de habitabilidade e conforto, que foi adquirida pelo pai da arguida;

25) O imóvel fica integrado em meio exclusivamente residencial, não conotado com especial incidência de problemáticas sociais e criminais.

26) A arguida, como presentemente, mantinha a atividade profissional dedicada à gestão do hotel (onde refere contar com a colaboração de dois funcionários fixos e de um estagiário) e dos apartamentos arrendados, considerando que esta atividade se revela muito absorvente e pela qual revela agrado;

27) Em termos de rentabilidade, apenas informou que a empresa não tem dívidas;

28) AA descreveu manutenção de proximidade afetiva com o tio, que visitava semanalmente na ... e não com mais frequência por força do trabalho que desenvolvia e cuidados a dispensar aos dois filhos;

29) Em temos pessoais informou que mantinha a atividade laboral dedicada à exploração do hotel e dos apartamentos;

30) Ao nível da situação económica segundo referiu, ela e o companheiro mantiveram sempre economias separadas, sendo que aquele, que explorava uma empresa direcionada para o fabrico e montagem de cozinhas por medida, confrontou-se com dificuldades que culminaram em situação de insolvência da empresa há cerca de 8/9 anos, conjuntura que veio a comprometer o relacionamento afetivo;

31) Desde então, o casal vive separado, referindo a arguida desconhecer a situação profissional do pai dos filhos, por não desejar abordar tal assunto, mantendo, aquele, permanências irregulares no agregado familiar da arguida, alternando períodos, na morada que o próprio possui ou no estrangeiro;

32) AA refere, contudo, contar com apoio do pai dos filhos e também com o do filho mais velho ao nível da gestão dos seus negócios e com os que são propriedade do pai da arguida, também em ...;

33) Por força do acentuar de problemas de saúde do pai da arguida, os pais (ambos com 89 anos de idade) passaram a integrar o agregado familiar da arguida, sendo descrita uma dinâmica familiar positiva;

38) AA descreve uma situação económica equilibrada graças ao apoio económico que sempre lhe foi disponibilizado pelos pais;

39) Assim a arguida refere auferir um salário líquido no valor líquido de € 674,40, a que acresce o apoio económico dos pais que não quantificou;

40) Apresenta uma despesa fixa com a habitação no valor de € 260,94;

41) A arguida refere que os seus tempos livres, maioritariamente, decorrem com a família, a quem se revela afetivamente ligada, por vezes convivendo com amigas de longa data;

42) Como projeto de vida indica o de apresentar uma candidatura aos competentes serviços de apoio ao Turismo para a construção e exploração de 15 apartamentos em regime de aparthotel;

43) As fontes do meio sócio familiar contactadas pelos serviços de reinserção social descreveram a arguida como mulher especialmente dedicada à família e muito focada no trabalho, que se revela desprendida de bens materiais e que cultiva uma filosofia de vida muito pragmática e orientada pelos valores tradicionais;

44) Como principal impacto decorrente do presente processo a arguida indica sentimentos de incompreensão e revolta, pelo facto de ter sido constituída arguida em situação na qual não se revê e que considera prejudicar o seu bom nome;

45) Expressa ainda sentimentos stress e receio, com ideação persecutória, onde enquadra o presente processo e o recurso da decisão proferida na primeira instância;

46) Em abstrato a arguida efetua análise crítica negativa sobre a natureza dos factos pelos quais se encontra acusada, reconhecendo a ilicitude de tais comportamentos e de vítimas.

47) A arguida não encara a possibilidade de condenação, pelo que não equacionou a possibilidade de adesão a uma eventual medida de execução na comunidade.

48) Em conclusão, indicam os serviços de reinserção social considerar que a arguida reúne condições para a execução de uma medida na comunidade, que melhor lhe permitirá interiorizar o desvalor da sua conduta.»

A matéria que antecede resulta, no essencial, do relatório social elaborado nos autos, que, na ausência de razões para o colocar em causa, se seguiu, salvo no tocante aos factos que nele são referidos e que, direta ou indiretamente, surgem como formas de influenciar a discussão da responsabilidade jurídico-penal da arguida relativamente ao factos que praticou.

A questão da culpabilidade, como facilmente se entende, foi já apreciada na decisão originariamente proferida por este Tribunal, e nenhuma razão se vislumbra, dado o objeto limitado fixado pelo Supremo Tribunal de Justiça para a prolação da presente decisão, para que a revisitemos.

Por outro lado, nenhum sentido faria aceitar afirmações com origem direta na arguida que contrariam os elementos probatórios supra analisados e disponíveis nos autos, como ocorre, v. g., quando alega ter gozado da confiança do seu tio à data em que praticou os factos por que aqui responde, o que é desmentido pelo simples teor do auto de denúncia que deu origem ao processo; ou quando tenta explicar a sua conduta por referência a supostos acordos concluídos com o seu tio, quando o comportamento deste revela que não tinha ele, sequer, conhecimento do ato que foi outorgado em seu nome (como, de novo, o revela clamorosamente o teor do referido auto de denúncia).

Nessa parte, pois, afastaram-se as considerações constantes do relatório social, de modo a reconduzir a matéria de facto a aditar à sentença proferida em 1.ª instância aos elementos indispensáveis à concretização da tarefa que nos foi confiada.

Direito

XI. Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP (cf. art. 434.º do CPP).

Ora, analisadas as conclusões do recurso apresentado pela arguida para o STJ, verifica-se que recorre do acórdão do TRP de ........2024 (agora completo nos termos anteriormente ordenados por este STJ), pretendendo a sua revogação e, consequente, absolvição, invocando, para o efeito, as seguintes questões:

- vícios do art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do CPP e violação do princípio in dubio pro reo quanto à decisão sobre a matéria de facto relativa à pronúncia ampliada pela Relação;

- errada interpretação na subsunção dos factos ao direito.

Vejamos então.

1ª questão (vícios do art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do CPP e violação do princípio in dubio pro reo quanto à decisão sobre a matéria de facto relativa à pronúncia ampliada pela Relação)

A recorrente alega, em resumo, que a decisão sobre a matéria de facto relativa à pronúncia, na parte ampliada pela Relação, padece de insuficiência de factos para a decisão e de erro notório na apreciação da prova, recorrendo, para sustentar o seu raciocínio, a elementos que constam da decisão recorrida, bem como a elementos externos a ela (v.g. que teriam sido verbalizados pelas testemunhas em audiência).

Para além disso, quanto ao erro notório na apreciação da prova apoia-se no facto do auto de reconhecimento a que se faz apelo na decisão recorrida ser inválido, não ter sido sujeito a contraditório, nem a testemunha CC foi com ele confrontado em audiência, para além da testemunha EE referir que o mesmo continha declarações incorretas, o que foi também reconhecido pela Relação e, assim enfermar de erro manifesto, para além de não ser concludente no sentido de não ter sido o assistente quem compareceu na escritura em causa nos autos, celebrada em ........2015, o que evidenciaria, aos olhos do homem médio e segundo as regras da experiência comum, que a Relação errou na apreciação e valoração que fez das provas produzidas em julgamento, baseando-se em critérios arbitrários, conclusivos e contraditórios, para além de que era expetável que os familiares próximos (sendo eles os únicos) procurassem proteger o assistente das más intenções de terceiros (de todos aqueles que o rodeavam, sendo que já tinha sido vítima de várias burlas) e celebrassem escrituras fictícias, não tendo a arguida em vista a apropriação de tais bens para si à custa do património do assistente, mas apenas a sua proteção de terceiros, tanto mais que os registos provisórios que existiam quanto aos imóveis caducavam em ........2015, data em foi celebrada a escritura em causa e foi igualmente celebrada uma doação do assistente de grande parte do seu património (26 prédios rústicos). Por outro lado, nada impedia que o assistente, que até tinha vários cartões de cidadão distintos válidos, tivesse usado cartões distintos nessas escrituras, assim como tivesse ido ao cartório em questão quer no dia ........2015 celebrar a escritura, quer depois dias depois no dia ..., acompanhado por um grupo de senhoras que não se identificaram (mas não pela FF que se encontrava a cumprir prisão efetiva por burla ao assistente, como também se refere no acórdão recorrido), não se podendo esquecer que o mesmo revelava um estado de saúde que se vinha a degradar, sendo manipulável e influenciável.

Quanto à insuficiência de factos para a decisão alega que não decorre da matéria de facto que tivesse emitido declaração falsa ou que tivesse usado documento de identificação emitido a favor de outra pessoa, o que significa que não se mostram preenchidos os elementos objetivos dos crimes pelos quais foi condenada.

Finalmente alega que não podia o tribunal senão ficar na dúvida, quanto à veracidade da ocorrência dos factos como vêm descritos na pronúncia, sendo que os elementos disponíveis não são suficientes para condenar a arguida, razão pela qual foi violado o princípio in dubio pro reo, articulado com o princípio da presunção de inocência.

Assim.

Como sabido, visto o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. e), 432.º, n.º 1, al. b) e 434.º do CPP, este STJ pode conhecer dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP invocados pelo recorrente.

Ora, os vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP terão de resultar do texto da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum2.

Dispõe o art. 410.º, n.º 2, do CPP:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP) “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”3

Por sua vez, o erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP) “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”4

Como sabido, na busca do convencimento sobre o caso submetido a julgamento, funciona (também) a regra básica (herdada do sistema da prova livre), consagrada no artigo 127.º do CPP, da livre apreciação da prova, a qual comporta algumas “exceções”, que se prendem com aspetos particulares da prova testemunhal, das declarações do arguido e das provas pericial e documental.

A ideia da livre apreciação da prova, «uma liberdade de acordo com um dever»5, assenta nas regras da experiência6 e na livre convicção do julgador.

Esse critério de apreciação da prova, implica que o julgador proceda a uma valoração racional, objetiva e crítica da prova produzida, valoração essa que, por isso, não se pode confundir com qualquer “arte de julgar”.

Com efeito, como tem vindo repetidamente a afirmar a nossa jurisprudência7, a livre apreciação da prova não significa “apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova”, nem apreciação subjetiva do julgador, o que, aliás, está de acordo com a posição defendida, entre outros, por GG e por HH.

Este último Autor esclarece que a livre valoração da prova deve ser entendida como «valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão»8.

Do exposto decorre, por outro lado, uma «íntima conexão existente entre o princípio da livre apreciação da prova, o princípio da presunção de inocência, o dever de fundamentação das sentenças, o direito ao recurso, e o direito à tutela efectiva»9.

Ora, analisando o texto da decisão sob recurso verifica-se que foram apresentados vários argumentos para demonstrar a razão pela qual a Relação entendeu que aprova produzida perante o tribunal a quo era suficiente, para afastar o estado de incerteza invocado e dar como provados aqueles factos constantes do despacho de pronúncia (pontos 4A, 5, 5A, 5B, 6, 6A, 8A, 8B e 8C), que a 1ª instância deu como não provados, invocando ter ficado no estado de dúvida inultrapassável.

E, é precisamente contra essa argumentação, particularmente, quando apela ao auto de reconhecimento que foi feito pelas testemunhas CC (notária em cujo cartório foi celebrada a escritura simulada de compra e venda de ........2015) e EE (funcionária do mesmo Cartório) que a arguida/recorrente se insurge, invocando que a própria Relação o considerou como padecendo de erro, mas baseando-se em declarações que teriam sido prestadas pela testemunha EE, concluindo que, como tal, não o podia ter atendido, pois, nessa perspetiva, antes o devia ter julgado, desde logo, inválido.

De facto, resulta do texto da decisão recorrida, que a notária, testemunha CC, ao deparar-se no seu Cartório, com aquele grupo de pessoas no dia ........2015 (ou seja, passado 4 dias da celebração da escritura em causa), logo verificou que a pessoa que ali então se apresentou como sendo o assistente BB (que figurava como vendedor na dita escritura de ........2015, enquanto que a compradora era a arguida, sendo a relação entre ambos de tio e sobrinha), portador de cartão de cidadão, legalmente emitido e válido, era pessoa diferente daquela que comparecera 4 dias antes (em ........2015), sendo, por isso, que lavrou a seguinte declaração:

«[p]ese embora tenha constatado que a pessoa que perante mim, no dia ...-...-2015 outorgou a escritura não era, de facto, a mesma que no dia ...-...-2015 compareceu no Cartório, o certo é que, quer o cartão de cidadão exibido na escritura, quer o que foi exibido posteriormente em ...-...-2015, estavam ambos válidos e pertenciam à mesma pessoa, uma vez que o número de identificação civil era o mesmo, mas eram duas vias diferentes daquele documento».

A testemunha CC não teve dúvidas em que aquela pessoa que lhe apareceu no dia ........2015 não era a mesma que celebrou a escritura de ........2015, como vendedor e, nessa parte, o seu depoimento merecia credibilidade, como bem explicou a Relação.

Ora, esse grupo de pessoas que ali apareceu suscitou precisamente a questão de alguém se ter dirigido ali ao cartório e assinar a dita escritura, fazendo-se passar pelo assistente, abusando da sua assinatura e do seu nome.

Claro que a testemunha CC, assim como a funcionária II, não o (ao vendedor) conheciam e, por isso, é que para o identificarem na escritura de ........2015 tiveram de recorrer aos procedimentos habituais, fazendo a identificação pelo cartão de cidadão.

No entanto, o facto dessas testemunhas não conhecerem o assistente BB não inviabilizava que o tribunal da 1ª instância tivesse dirimido a aparente dúvida sobre se este tinha ou não estado presente como vendedor na escritura celebrada em ........2015.

Mesmo admitindo-se que o auto de reconhecimento elaborado durante o inquérito em ........2018 é inválido e, por isso, não tem valor como meio de prova, por ter sido feito com as duas testemunhas em conjunto no mesmo ato de reconhecimento (em vez de ser separadamente, como determina o art. 149.º, n.º 1 do CPP), visto o disposto nos arts. 149.º, n.º 1 e n.º 3 e 147.º, n.º 7 do CPP, ainda assim, como refere a Relação, no grupo de pessoas, que naquele dia ........2015 se deslocou ao Cartório foi também a testemunha FF, que conhecia bem o assistente BB (o qual até o tinha burlado e tinha sido condenada pelos crimes que havia cometido em que ele fora vítima, tendo inclusivamente, posteriormente cumprido pena de prisão), não havendo assim dúvidas quanto à sua identificação.

E, apesar do depoimento da testemunha FF não ter merecido “particular” credibilidade à Relação (cf. diferente apreciação feita pela 1ª instância), o que relevou para a Relação foi o facto de ela ter então acompanhado o assistente BB em ........2015 ao Cartório onde foi celebrada a escritura e, assim, como se refere na motivação da decisão recorrida, isso permitir estabelecer, “sem qualquer dúvida, a identidade da pessoa que se apresentou à testemunha CC no dia ........2015”.

Repare-se que, ao contrário do que alega a recorrente, não foi a Relação, mas antes a 1ª instância, que considerou que o depoimento da testemunha FF não merecia qualquer credibilidade.

A Relação podia ter atribuído, como atribuiu, valor ao segmento do depoimento da testemunha FF, quando se referiu a ter acompanhado o assistente BB em ........2015 ao Cartório onde foi celebrada a escritura (data em que não estava presa em cumprimento de pena, ao contrário do que alega a recorrente), na altura em que o mesmo foi com o tal grupo de pessoas, mesmo que a 1ª instância não tivesse valorado esse depoimento.

Daí que, tendo feito a Relação uma avaliação das provas diferente da 1ª instância, podia ter valorado esse segmento do dito depoimento, mesmo que, na sua totalidade, não lhe merecesse “particular” credibilidade.

Além disso, o próprio assistente BB nesse mesmo dia ........2015 apresentou o auto de denúncia de fls. 4 e 6 (como se refere na sentença da 1ª instância), contra a arguida, referindo-se que, na dita queixa, onde se identificou com o cartão de cidadão com data de validade até ........2018, no local da assinatura do denunciante, consta uma assinatura através de impressão digital, constando ainda a seguinte menção: “O queixoso informou que tem um comprometimento motor do braço direito, que o impede de assinar, não o conseguindo fazer com a mão esquerda, pelo que vai apor a impressão digital do dedo indicador da mão direita, o que faz na presença da pessoa que o acompanhava, a testemunha indicada, JJ.”. Consta ainda que a dita KK, pessoa que acompanhava o assistente, era consultora imobiliária.

Podemos, pois, concluir, como afirma a Relação (ainda que em parte por motivos diferentes, na medida em que este STJ não atende ao auto de reconhecimento, pelas razões acima indicadas), que de facto, a 1ª instância não valorou corretamente os depoimentos das testemunhas CC e EE (sendo irrelevantes as considerações feitas pela recorrente quanto ao auto de reconhecimento, uma vez que o mesmo não é atendido como meio de prova10).

Portanto, é indiferente que a testemunha CC não consiga dizer qual é o verdadeiro BB, pois, pelo que acima se referiu, qualquer cidadão médio, de acordo com as regras da experiência comum, considerando a demais prova indicada (testemunha FF, no segmento apontado que foi valorizado e prova da denúncia apresentada pelo próprio assistente, que também foi ao Cartório e que deu causa a que a Notária fizesse a referida declaração no dia ........2015), concluía que foi o verdadeiro o que se apresentou no dia ........2015, mas que não esteve presente em ........2015, pois esse já era pessoa diferente, tal como resulta ainda do depoimento da testemunha CC.

Mas, outras provas indicadas na decisão recorrida confortam esta conclusão, evidenciando que segundo as regras da experiência comum, para o cidadão comum, apesar da situação de saúde do assistente, não era normal que, no mesmo dia (........2015) por um lado o assistente fosse celebrar duas escrituras em dois cartórios distintos (o normal era celebrar no mesmo cartório) e, por outro lado, uma fosse aquela em que participou a arguida como compradora, no cartório da Drª. CC, em que foi usado o cartão de cidadão do tio que ela tinha em seu poder (com o prazo de validade até ........2016), que era de compra e venda de imóveis e fictícia e, a outra de doação, celebrada noutro cartório também no ..., mas em que foi usado o cartão de cidadão que então o BB tinha em seu poder (válido até ........2018) e que igualmente usou no dia ........2015, quando foi com o grupo de pessoas ao cartório da Drª. CC suscitar precisamente a questão de alguém se ter dirigido ali ao cartório e assinar a dita escritura, fazendo-se passar precisamente por si próprio, abusando da sua assinatura e do seu nome (e, por isso, dizemos, que esse último cartão de cidadão válido até ........2018 era o que o BB tinha em seu poder e usava, tanto mais que até usou igualmente no mesmo dia ........2015 quando apresentou a queixa-crime contra a sobrinha, aqui arguida).

Estranho e fora das regras da normalidade para o cidadão comum, é a arguida, mesmo sendo sobrinha, ter em seu poder um cartão de cidadão daquele seu tio, quando não o acompanhava, tanto mais que nem era tutora dele.

As regras da lógica e do normal acontecer dizem que, ao menos enquanto não perdesse outro cartão de cidadão, o BB andasse com o mesmo cartão de cidadão e, por isso, de alguma forma se percebe que o mesmo cartão de cidadão (válido até ........2018) apareça quer na escritura de doação celebrada em ........2015 (o que até estava de acordo com a forma como queria dispor do seu vasto património, o que era do conhecimento do seu irmão e da arguida), quer quando foi ao Cartório da Drª. CC quatro dias depois, em ........2015, denunciar um ato abusivo, que o fez também apresentar queixa-crime, estivesse ou não influenciado por outras pessoas que andavam à sua volta, fossem da ..., onde residia, ou ainda fossem outras pessoas.

Arbitrário e contra as regras da experiência comum é antes pensar que o assistente utiliza diferentes cartões de cidadão no mesmo dia, quando até se vê, que no espaço de 4 dias usa o mesmo cartão e, certamente não podia usar o outro que tinha válido porque estava em poder da sobrinha/arguida.

Daí que nem o raciocínio da Relação feito a esse propósito evidencia qualquer dúvida, nem tão pouco existe qualquer violação do princípio in dubio pro reo.

Não se pode também deixar de ter em atenção o valor patrimonial tributário dos bens imóveis da escritura de compra e venda celebrada em ........2015, bem como o valor declarado do preço de venda, apesar de não se ter apurado o seu valor real, e ponderar a vontade do assistente de deles dispor (tal como de todo o seu património) a favor de instituições religiosas, o que deu conhecimento aos seus únicos familiares mais próximos, precisamente ao irmão (DD) e sobrinha (arguida), filha do referido irmão, sendo antes contraditório e inexplicável, por ir contra a sua vontade (e, por isso se compreendendo a deslocação que fez ao referido cartório em ........2015 e denúncia criminal que apresentou no mesmo dia contra a arguida) que se dispusesse a fazer uma escritura de compra e venda simulada à sobrinha.

O que seria normal, pelas regras da experiência comum, para o cidadão médio, se queria oferecer alguma coisa a algum familiar, era fazer uma doação (como fez a entidades terceiras, por exemplo, religiosas, no mesmo dia ........2015, ao ...), independentemente do seu maior custo e não fazer negócios simulados; de resto, como tinha advogados, sempre teria meios de acautelar o seu património para evitar ser alvo de burlas por terceiros, como já antes tinha acontecido.

E, que aquela escritura de compra e venda celebrada em ........2015 era simulada foi também aceite pela própria arguida, não deixando de ser estranha a justificação dada para a sua realização, quando o assistente seu tio tinha advogados que certamente sabiam como defender/salvaguardar o seu património de terceiros (fossem eles quem fossem) que o quisessem prejudicar, sem ser através de negócios obscuros e, ao mesmo tempo, saberiam satisfazer os seus desejos e destino que queria dar ao seu património que era também conhecido da família mais próxima (irmão e sobrinha, aqui arguida).

De resto, como bem refere a Relação, mesmo que o assistente se tivesse arrependido ou mudado de opinião relativamente ao negócio de ........2015 em que foi interveniente a arguida, por eventualmente se ter esquecido (vamos supor) o que era mais natural, dado que haveria uma boa relação entre tio e sobrinha, era que ambos falassem sobre o assunto, perguntando-lhe o que se estava a passar (o que, pelos vistos, a arguida não alegou ter sucedido em momento algum).

O que é anómalo e vai contra as regras da normalidade e da experiência comum, para o cidadão comum, é verificar, por exemplo, que no mesmo mês em que o irmão/pai da arguida propõe a ação de interdição contra o assistente (o que sucedeu em ........2018, sendo decretada em ........2018, com início há pelo menos 2 anos, portanto, com início em pelo menos ........2016), o mesmo BB, vá se lá saber porquê (uma vez que até tinha apresentado queixa-crime pela compra e venda dos imóveis realizada em ........2015, invocando que não foi feita por si), realiza o contrato com a arguida de ........2018 (em que se pronuncia sobre o destino dos imóveis identificados na compra e venda de ........2015), bem sabendo a arguida, que nessa altura o seu tio já sofria de estado demencial em estado avançado, mas mesmo assim celebrando e assinando o contrato.

E, depois do falecimento do tio (em ........2019), sendo único herdeiro o pai da arguida, em ........2019, a arguida e seu pai, celebram uma escritura em que declaram que revogam a que foi celebrada em ........2015 e ainda o pai da arguida declara que restitui a esta (à arguida) a totalidade do preço da compra, por cheque que é exibido, pelo que se encontra paga11.

Ora, esses contratos, para este efeito, evidenciam bem, como a própria escritura de ........2015 não correspondeu à vontade do BB.

Dizem as regras de experiência comum, que não seria de esperar que a arguida, licenciada em Direito, com formação superior, considerando até o estado de saúde demencial do seu tio, aceitasse celebrar e assinar aquele contrato de ........2018, ainda para mais relacionado com imóveis referidos naquela escritura pública de ........2015, sobre a qual existia uma queixa-crime contra si feita pelo tio, sem previamente dar a conhecer o que se passava no respetivo processo-crime.

Por isso, como bem diz a Relação, “O valor indiciário dos factos acabados de mencionar não é posto em causa pelo eventual estado de progressiva deterioração mental que afetou o aqui assistente nos últimos anos de vida, já que não resulta do processo, nem ninguém alegou, que, à data em que a escritura pública em causa nos autos foi outorgada (tal como a escritura que nesse mesmo dia o assistente seguramente celebrou) não estivesse ele ainda na posse das necessárias faculdades intelectuais para dispor do seu património, embora porventura (cada vez mais) suscetível a influências exteriores. Não existem, pois, razões para crer que o assistente, se tivesse concordado e participado na outorga da escritura aqui em causa, se esqueceria de imediato do que tinha feito, mostrando-se, perante as pessoas com quem contactou a esse propósito, surpreso (e indignado) com um negócio que objetivamente o privava de boa parte do seu património, e que, de forma clara, mostrou rejeitar, não se limitando a manifestar mero arrependimento em relação à celebração do mesmo. Das considerações antecedentes não pode deixar de retirar-se, pois, que o assistente não teve qualquer intervenção na celebração da escritura pública em causa nestes autos, nem autorizou o negócio através dela formalizado.”

Ao contrário do que alega a recorrente não se provou que a arguida procurou proteger o património do assistente.

De resto, é do conhecimento do cidadão comum, que quando há familiares que querem proteger os bens de outros familiares que possam ser prejudicados por terceiros, nomeadamente quando tem vasto património como aqui sucede, recorrem a meios legais para o fazerem e não a negócios fictícios ou simulados, a partir do plano engendrado pela arguida, melhor descrito nos factos provados.

O comportamento inconstante do assistente é evidente no ano de ... com as variadas declarações e procurações que vai fazendo entre ... e julho (o que não é de estranhar face aos seus problemas de saúde que se agravaram, como resulta da prova documental existente nos autos, nomeadamente relativa ao seu quadro clínico de demência, sinalizada claramente, por exemplo, em ........2016), mas a escritura que se discute neste processo reporta-se a ........2015 e a ida ao Cartório notarial para denunciar o abuso e que tinha sido outra pessoa a apropriar-se indevidamente da sua identidade, bem como a queixa-crime apresentada contra a arguida, sua sobrinha, aconteceram 4 dias depois, isto é, em ........2015.

A avaliação das provas que foi feita pelo tribunal da Relação não contraria as regras da experiência comum, não se verificando sequer qualquer violação do disposto no art. 127.º do CPP.

As divergências da recorrente, quando apresenta a sua própria análise das provas produzidas em julgamento, são irrelevantes porque era ao Tribunal da Relação que incumbia valorar todas essas provas, quando apreciou o recurso interposto pelo MP da sentença absolutória da 1ª instância, não se podendo confundir essas divergências com a invocação de suposto erro notório na apreciação da prova, que no caso não existe.

Esqueceu a recorrente que o que é relevante é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, e não a sua (da recorrente) convicção pessoal.

Não se vê que a Relação tivesse usado de “pré-juízos”, ou “impressões” para avaliar as provas que indicou na fundamentação do acórdão sob recurso.

Tão pouco se deteta que tivesse presumido os factos que deu como provados, com os quais a recorrente discorda.

Por isso, não há qualquer surpresa quanto ao teor da decisão proferida sobre a matéria de facto pela Relação, particularmente nos pontos que a recorrente impugna.

Não foi violado o princípio in dubio pro reo, visto que o tribunal da Relação conseguiu obter a certeza dos factos que deu como provados, como igualmente se verifica do texto da respetiva fundamentação da decisão recorrida, mostrando bem a razão pela qual, também assim, deveria ter decidido a 1ª instância.

As provas indicadas pela Relação são suficientes para sustentar, de forma objetiva, racional e com a necessária segurança, os factos que foram dados como provados e que a recorrente impugna.

Ao contrário do que alega e repete a recorrente não há apreciação arbitrária, nem contraditória da Relação.

Para além de não haver violação dos princípios da presunção de inocência, nem do in dubio pro reo, tão pouco se evidencia que tivesse havido errada interpretação ou incorreta avaliação das provas produzidas em julgamento.

E, uma vez que a decisão proferida pela Relação se mostra sustentada em provas suficientes, produzidas em julgamento, apenas se pode concluir que também não foi afrontado o princípio da presunção de inocência (sequer na dimensão do in dubio pro reo e tão pouco foi feita qualquer interpretação restrita desses dois princípios), nem o disposto no art. 32º da CRP.

Daí que, perante todas as provas produzidas perante a 1ª instância, não fosse lógico nem razoável que surgissem quaisquer dúvidas, sobre o modo de agir da arguida, dado como provado pela Relação.

A recorrente para sustentar o seu ponto de vista, baseia-se na argumentação da 1ª instância que, porém, não subsiste perante a apreciação feita pela Relação, acima analisada.

As dúvidas que a 1ª instância referiu ter não tem razão de ser, como bem explicou a Relação, devendo ter-se em atenção tudo o que acima se analisou e, sempre tendo presente, que neste STJ, não se ponderou o auto de reconhecimento como meio de prova.

Por isso, não se pode concluir, como sugere a recorrente, que o tribunal se confrontou com duas versões possíveis e plausíveis, tendo optado, para além da dúvida razoável, pela mais desfavorável, à arguida.

Improcede, pois, a argumentação da recorrente, não havendo censura a fazer à decisão da Relação quando conclui por dar como provada a matéria que a recorrente impugna.

O acórdão da Relação sob recurso, sendo de evidente clareza, mostra coerência lógica entre factos provados e não provados, não enfermando de qualquer contradição entre a motivação e a decisão proferida, e não patenteando qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.

Basta ler com atenção todos os factos dados como provados para se perceber que os mesmos sustentam a decisão de condenação que foi proferida em relação aos crimes pelos quais a recorrente foi condenada.

Lendo a decisão sobre a matéria de facto dada como provada não se pode concluir que haja insuficiência de factos.

Os factos ali descritos estão suficientemente caracterizados, permitindo, proferir uma decisão, designadamente a que foi proferida, como adiante melhor se verá.

Ao contrário do que defende a recorrente, resulta do texto da decisão recorrida que os factos que foram dados como provados permitiam ao tribunal proferir uma decisão, tendo em atenção as várias soluções possíveis e plausíveis que decorrem da delimitação do objeto do processo.

Aliás, o que sucede neste caso é que a recorrente parece confundir o vício previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP com a invocação de eventual erro de direito.

As provas indicadas pela Relação (ressalvado o auto de reconhecimento que, como referido, não foi atendido por este STJ) são suficientes para sustentar, de forma objetiva, racional e com a necessária segurança, os factos que foram dados como provados.

Perante a avaliação conjunta dessas provas compreende-se que a Relação não tivesse ficado com quaisquer dúvidas quanto aos factos que deu como provados.

E, muito menos se evidencia do texto da decisão sob recurso, que exista qualquer raciocínio ilógico ou qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.

Assim, para além dos factos apurados permitirem ao tribunal proferir uma decisão (o que mostra a sua suficiência), não se deteta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão (nem sequer foi exposto qualquer raciocínio ilógico ou contraditório na fundamentação que apontasse para decisão contrária à da condenação), sendo certo que a apreciação feita pela Relação não contraria as regras da experiência comum e tão pouco evidencia qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.

Na decisão sob recurso não há distorções de ordem lógica e tão pouco foi feita qualquer apreciação que seja ilógica, arbitrária, incongruente ou insustentável.

E, o que é decisivo é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência e não as apreciações subjetivas da recorrente, que se revelem inconsequentes.

Portanto, improcede toda a argumentação do recorrente ora em análise, relativa à decisão recorrida sobre a matéria de facto, sendo certo que não foram violados os princípios e preceitos legais por ele invocados.

Em conclusão: não ocorrendo os vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, nem nulidades ou irregularidades de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto acima transcrita, a qual se mostra devidamente sustentada e fundamentada.

2ª questão

Invoca a recorrente que houve uma errada interpretação na subsunção dos factos ao direito quanto aos crimes pelos quais foi condenada, uma vez que por um lado não emitiu uma declaração falsa (só emitiu a declaração de querer comprar) e a ter existido crime de falsificação de documento foi de quem emitiu a declaração falsa, portanto, o vendedor e não a arguida, que não produziu documento falso, para além de igualmente não se ter provado o tipo subjetivo (antes se provou que interveio para proteger o património do assistente das investidas e burlas de terceiros) e, por outro lado, não usou documento de identificação de outrem e tão pouco se verifica o tipo subjetivo do crime de uso de identificação alheio pelo qual também foi condenado.

Vejamos.

A matéria de facto dada como assente na Relação, que aqui interessa atender, foi a seguinte:

1) O Assistente BB nasceu no dia .../.../1930, solteiro e residiu na ..., no ..., desde há pelo menos 25 anos.

2) O Assistente faleceu na pendência destes autos no dia .../.../2019 (cfr. Assento de Óbito de fls. 1489).

3) BB era proprietário de um vasto património imobiliário.

4) O Assistente tinha como únicos familiares próximos um irmão, DD e a arguida, AA, sua sobrinha, filha deste irmão, aqui arguida.

4A) Em data não concretamente apurada, mas sempre anterior ao dia .../.../2015, o aqui assistente deu conhecimento, designadamente, ao seu irmão e sobrinha, da sua intenção de dispor dos imóveis de sua propriedade a favor de instituições religiosas;

5) À data dos factos a seguir descritos, a arguida tinha na sua posse um Cartão de Cidadão de BB com o n.º 30836075 3zz9, válido até .../.../2016.

5A) De modo a fazer seus vários bens imóveis propriedade do assistente, a arguida conluiou-se, então, com um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, com características físicas semelhantes ao seu tio, a quem entregou o aludido Cartão de Cidadão, de modo a que o mesmo pudesse fazer-se passar pelo assistente;

5B) Na concretização dos seus intentos, no dia .../.../2015 a arguida apresentou-se no Cartório Notarial da Notária CC, sito na ..., na cidade do ..., acompanhada do referido indivíduo, cuja identidade não foi possível apurar;

6) Aí, este indivíduo identificou-se como sendo o assistente, apresentando o cartão de cidadão que a arguida lhe havia entregue, desse modo conseguindo convencer os funcionários do dito Cartório (e a respetiva Notária) que se tratava efetivamente do tio da arguida e aqui assistente, tendo então outorgado, com esta, escritura pública do seguinte teor: [reprodução do teor da escritura pública, já constante da matéria de facto assente na decisão recorrida, a saber:

“Que pela presente escritura, pelo preço global de quatrocentos e catorze mil e seiscentos e setenta e um euros e noventa e nove cêntimos, já recebido, vende à segunda outorgante livre de quaisquer ónus e encargos, os seguintes bens imóveis:

a)fracção autónoma designada pela letra “M”, destinada a habitação localizada no quinto andar esquerdo com entrada pelo nº ... da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., com valor patrimonial tributário de 26.023,48€;

b) fracção autónoma designada pela letra “R” destinada a habitação localizada no segundo andar, designada por dois ponto dois, com entrada pelos nºs ... da ... e ... da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., com valor patrimonial tributário de 45.404,11€;

c) fracção autónoma designada pela letra “J” destinada a habitação localizada no primeiro andar, designada por um ponto dois com entrada pelos nºs ... da ... e ... da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., com valor patrimonial tributário de 38.160,00€;

d) Fracção autónoma designada pela letra “G” localizada no segundo andar centro, com entrada pelo nº ...na ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., com valor patrimonial tributário de 24.651,00€;

e) Fracção autónoma designada pela letra “F” destinada a habitação localizada no segundo andar traseiras, com entrada pelo nº ...da ..., compreendendo um lugar de aparcamento localizado no rés-do-chão, com acesso pelo nº 525 da mesma Rua, actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo 11334- F- Bonfim com valor patrimonial tributário de 45.583,83€;

f) Fracção autónoma designada pela letra “AI” apartamento localizado no terceiro andar esquerdo, com entrada pelo nº 38 da ... e porta de acesso designada pelo número quarenta e dois e quarto de banho em separado, com porta de acesso designada pelo mesmo número quarenta e dois, actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ... União de freguesias de ..., com valor patrimonial tributário de 21.313,55€;

g) Fracção autónoma designada pela letra “F” sala número cinco, localizado no segundo andar com entrada pelo nº ... da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., da União das Freguesias ..., com valor patrimonial tributário de 27.160,79€;

h) Fracção autónoma designada pela letra “H” destinada a habitação localizada no quarto andar frente esquerdo, com terraço na frente, com entrada pelo nº ... da ..., actualmente inscrita na respectiva

matriz sob o artigo ... com valor patrimonial tributário de 40.365,23€;

i)Fracção autónoma designada pela letra “Y” localizada no segundo andar esquerdo frente,com entrada pelo nº ... da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., com valor patrimonial tributário de 28.050,00€;

j) prédio urbano correspondente a terreno para construção situado na ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial desse Concelho sob o nº ..., actualmente inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...-União das freguesias de Fânzeres e ..., com valor patrimonial tributário de 117.960,00€.

Que aceita a presente venda nos termos exarados;

Que o registo provisório de aquisição de todos estes imóveis já se encontra efectuado no registo predial pela inscrição sob a apresentação mil quatrocentos e sessenta e seis, de ....”

6A) A arguida tinha perfeito conhecimento de que a pessoa que consigo se apresentou no referido Cartório Notarial no dia .../.../2015 não era o seu tio BB e que a outorga daquela escritura não refletia a vontade deste;

7) No dia .../.../2015, por um grupo de pessoas que se dirigiu ao referido Cartório Notarial foi suscitada a questão de a escritura celebrada no dia .../.../2015 ter sido celebrada alegadamente por pessoa distinta do aqui assistente, ou seja, que alguém se teria dirigido ao dito cartório e assinado a dita escritura fazendo-se passar pelo verdadeiro BB e abusando da sua assinatura e identidade.

8) Face a tal situação, nesse mesmo dia .../.../2015, a Notária, Dra. CC, num esforço de reconstituição dos factos ocorridos nos dias anteriores, confirmou que a pessoa que havia estado no seu cartório no dia .../.../2015 identificando-se como BB a outorgar a escritura supra aludida e aquela que se apresentava no seu cartório no dia .../.../2015, não eram a mesma pessoa, tendo lavrado a seguinte declaração:

“No passado dia ...-...-2015 no Cartório Notarial de que sou Notária titular, foi outorgada escritura pública de compra e venda, de que se junta cópia e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, tendo comparecido como outorgantes, BB, NIF 163.134.758, solteiro, maior, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente na ..., titular do cartão de cidadão nº 30836075 3zz9 válido até ...-...-2016, como vendedor e AA, NIF ..., solteira, maior, natural da freguesia da ..., concelho de ..., residente na ... , titular do cartão de cidadão nº ... válido até ...-...-2018, cujas identidades verifiquei pelos aludidos documentos de identificação. Na sequência da outorga da escritura, foi a mesma sujeita a registo predial, tendo sido requerida no mesmo dia, a conversão dos registos provisórios de aquisição que incidiam sobre os prédios objecto da aludida escritura, e que caducavam naquela data, pedido este que foi distribuído à Conservatória do Registo Predial ... No dia ...-...-2015 compareceu no BB, NIF ..., solteiro, maior, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente na ..., titular do cartão de Cidadão nº ..., válido até ..., cuja identidade verifiquei pelo aludido documento de identificação, E declarou, perante mim, que tomou conhecimento da outorga da mencionada escritura de compra e venda, em que interveio como vendedor, mas que não foi ele quem outorgou a referida escritura de compra e venda, mas sim outra pessoa que se apropriou indevidamente da sua identidade. Pese embora tenha constatado que a pessoa que perante mim, no dia ...-...-2015 outorgou a escritura não era, de facto, a mesma que no dia ...-...-2015 compareceu no Cartório, o certo é que, quer o cartão de cidadão exibido na escritura, quer o que foi exibido posteriormente em ...-...-2015, estavam ambos válidos e pertenciam à mesma pessoa, uma vez que o número de identificação civil era o mesmo, mas eram duas vias diferentes daquele documento.”

8A) A arguida atuou nos moldes descritos com a intenção, lograda, de enganar a Notária responsável pelo Cartório Notarial aludido quanto à identidade da pessoa que a acompanhava, levando-a assim a celebrar a escritura pública em causa nos autos e, dessa forma, fazer seus os bens imóveis melhor descritos em tal instrumento público, pertencentes ao seu tio, de valor concretamente não apurado, mas nunca inferior a meio milhão de euros;

8B) O indivíduo que agiu juntamente com a arguida sabia que utilizava um documento de identificação que lhe não pertencia e que subscrevia a escritura pública em que participou com um nome o do assistente que não era o seu;

8C) A arguida atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

(…)

Quanto ao enquadramento jurídico-penal escreveu-se o seguinte no referido ac. do TRP impugnado:

3. Contrariamente ao que entende o Digno recorrente, a matéria de facto dada por assente não sustenta a condenação da arguida pela prática do crime de burla qualificada que lhe é imputado nos autos.

O crime de burla é, como se sabe, um crime de resultado (de dano), exigindo a sua consumação que, à conduta do agente, se siga a produção de uma alteração do mundo exterior, espácio-temporalmente distinta daquela (vd., v. g., FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, tomo I, 3.ª ed., 11.º Cap., § 38, pág. 356), no caso, a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo da infração ou de um terceiro, por via da realização, por parte destes, de atos de - disposição - idóneos a produzir a diminuição daquele mesmo património (assim, por todos, A. M. ALMEIDA COSTA, anotação ao artigo 217.º do Código Penal em FIGUEIREDO DIAS (fundador)/M. COSTA ANDRADE (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, vol. 1, §§ 4, pág. 345, 12 e 13, págs. 364-365).

Se o crime de burla dispensa a identidade entre quem é enganado pela conduta do agente e o titular do património que este pretende dessa forma atingir (o «prejudicado»), já não dispensa, no entanto, a identidade entre o enganado e a pessoa que pratica os atos de disposição patrimonial que produzem (são causalmente adequados a produzir) o resultado típico legalmente exigido (o prejuízo patrimonial). Por isso mesmo, nos casos em que não se verifica aquela identidade (os ditos casos de «burla triangular»), é indispensável que o enganado para dizê-lo de forma sintética tenha a possibilidade de dispor do património do sujeito passivo do crime (para um conspecto geral da discussão doutrinal a propósito da relação que há de interceder entre o enganado e o património atacado nos casos de burla «triangular», vd. THOMAS HILLENKAMP/KAI KORNELIUS, 40 Probleme aus dem Strafrecht Besonderer Teil, 13.ª ed., págs. 176 e segs.).

Ora, a pessoa sobre a qual atuaram a arguida e o seu comparsa, e que foi, assim, «enganada», a Notária que outorgou a escritura pública em causa nestes autos, não se encontrava em posição de realizar qualquer ato de disposição patrimonial que afetasse efetivamente, diminuindo-o, o património do aqui assistente, pois que a sua intervenção se limita, como decorre do artigo 1.º, n.º 1, do Código do Notariado, «a dar forma legal e conferir fé pública aos atos jurídicos extrajudiciais», e, se necessário, a «prestar assessoria às partes na expressão da sua vontade negocial», nos termos previstos no n.º 2 do mesmo preceito legal, não se incluindo entre as suas funções a tomada de qualquer decisão que afete, de forma direta e imediata, o património de quem quer que seja.

Por outro lado, é evidente que nem a arguida, nem o seu comparsa, detinham quaisquer poderes, jurídicos ou meramente fácticos, para dispor validamente do património do aqui assistente, o que significa que o contrato que celebraram, na medida em que incidiu sobre bens alheios relativamente a ambos, é nulo, não produzindo quaisquer efeitos em relação a terceiros, incluindo o aqui assistente (cfr. o artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil; o regime previsto nos artigos 892.º e segs. não tem aplicação atento o preceituado no artigo 904.º do mesmo corpo de normas, mas redundaria em resultado similar).

Da «transmissão» da propriedade sobre os imóveis do aqui assistente assim supostamente efetuada por arguida e seu comparsa, portanto, não resultou, para o património daquele, qualquer prejuízo efetivo, ainda que não se olvide que a celebração da escritura pública em apreço (e, bem assim, o eventual ulterior registo da suposta aquisição efetuada pela arguida, matéria que, no entanto, não foi validamente incluída no objeto dos autos), debilitaria, até ao esclarecimento completo da situação e eliminação dos seus possíveis efeitos práticos (o que poderia implicar o recurso à via judicial, com os custos e incertezas inerentes), a posição do mesmo assistente em relação ao seu próprio património. Isso, porém. já não resultaria diretamente de qualquer disposição patrimonial que ainda pudesse imputar-se ao «enganado» pela conduta da arguida e seu comparsa, mas do uso (necessariamente posterior) que eles fizessem da escritura celebrada.

Por outro lado, não se reconduzindo a conduta da arguida e seu comparsa a qualquer das situações previstas nas diferentes alíneas do n.º 2 do artigo 22.º do Código Penal, não entra igualmente aqui em consideração o preceituado no artigo 217.º, n.º 2, do mesmo corpo de normas.

4. A factualidade dada por assente, com as alterações que, como referido, lhe há que introduzir, permite concluir ter a arguida cometido os crimes de falsificação de documento e de uso de documento de identificação alheio cuja prática lhe é imputada nos autos.

a) Conforme decorre da matéria de facto dada como assente, a arguida, em conluio com o seu mencionado comparsa, apresentou-se no Cartório Notarial atrás identificado, onde o seu dito acompanhante, nos moldes já descritos, se identificou como sendo o assistente nos presentes autos, outorgando, de seguida, nessa qualidade, tomando parte e subscrevendo sob nome que não era seu, a escritura pública já várias vezes mencionada, dispondo de imóveis que não lhe pertenciam de facto, que a arguida declarou adquirir (supostamente) ao seu tio, aqui assistente, tudo, precisamente, para que esta, como era sua intenção, pudesse fazer seus tais bens, pertencentes ao seu tio, sem a eles ter qualquer direito legítimo, gerando um título bastante que justificasse a sua pretensão a ser reconhecida como proprietária dos mesmos e, ademais, permitindo-lhe, designadamente, proceder ao registo da transmissão do direito de propriedade sobre esses mesmos bens a seu favor, com os efeitos daí decorrentes.

As declarações assim realizadas, especialmente as respeitantes à identidade do indivíduo que compareceu no aludido Cartório Notarial, não correspondiam, pois, à verdade (eram falsas), sendo que destarte foi registado em escritura pública (que constitui um documento autêntico) um conteúdo suscetível de influir, ao menos formalmente, sobre a situação jurídica dos bens imóveis objeto de tal instrumento público, conferindo aparência de seriedade à pretensão da arguida de ser reconhecida como titular do direito de propriedade sobre eles (e que, portanto, não pode deixar de ser juridicamente relevante).

Tendo a arguida atuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, com vista à obtenção de vantagem económica a que não tinha direito, preenche, pois, a factualidade dada por assente, e se bem se vê, inteiramente, a previsão do artigo 256.º, n.ºs 1, alíneas c) e d), e 3, do Código Penal (este último preceito por referência aos artigos 363.º, n.º 3, e 269.º e seguintes do Código Civil), não podendo assim aquela deixar de ser condenada pela sua prática.

b) De igual modo, a conduta da arguida preenche integralmente a previsão do artigo 261.º, n.º 1, do Código Penal, já que facultou ela, ao indivíduo que consigo celebrou a escritura pública em causa nos autos, um cartão de cidadão (que constitui «documento de identificação», na aceção da incriminação em apreço, nos moldes previstos no artigo 255.º, alínea c), do corpo de normas aludido) de que era titular o aqui assistente, para que o dito indivíduo o pudesse usar, como ele veio efetivamente a usá-lo, de modo a identificar-se como sendo o respetivo titular, tudo o que era do conhecimento (e desejo) da arguida, com vista à concretização, conjuntamente com o dito indivíduo, dos seus intentos delituosos, bem sabendo ser a sua conduta contrária aos ditames da ordem jurídica.

A conduta da arguida poderia ainda subsumir-se ao n.º 2 do preceito legal aludido (facultação de documento de identificação alheio a terceiro, conduta necessariamente prévia ao seu respetivo uso).

Contudo, e considerando que mesmo em relação ao uso do documento de identificação em questão teve a arguida intervenção, atuando mancomunada com comparsa que, no limite, poderia ter desmascarado, se assim o tivesse querido, fazendo fracassar o plano criminoso que executaram, não pode deixar de reconhecer-se que partilhou com ele o (con)domínio do facto, e nessa medida não pode deixar de ser reconhecida como sua coautora (artigo 26.º, 3.ª alternativa, do Código Penal) e por ele (mas só por ele) punida, pois que a incriminação em questão abrange a totalidade do desvalor do ilícito cometido.

Vejamos então a questão colocada pela recorrente do invocado erro de direito.

A recorrente invoca que, por não ter sido ela a emitir a falta declaração e por não ter usado documento de identificação alheio, que não cometeu os crimes pelos quais foi condenada.

Porém, não teve em devida atenção a matéria de facto apurada, da qual resulta que a recorrente/arguida agiu em coautoria com o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, mas com características físicas semelhantes ao seu tio, com o qual se conluiou, a quem entregou o Cartão de Cidadão que tinha em seu poder e que era do seu tio, de modo a que o mesmo pudesse fazer-se passar por ele (pelo seu tio BB), como passou e, foi na concretização dos seus intentos, que no dia .../.../2015 a arguida apresentou-se no Cartório Notarial da Notária CC, sito na ..., na cidade do ..., acompanhada do referido indivíduo, cuja identidade não foi possível apurar e, aí esse indivíduo identificou-se como sendo o assistente, apresentando o cartão de cidadão que a arguida lhe havia entregue, desse modo conseguindo convencer os funcionários do dito Cartório (e a respetiva Notária) que se tratava efetivamente do tio da arguida (o dito BB), tendo então outorgado, com esta, a escritura pública do de compra e venda dos imóveis referida nos factos provados.

Mais se provou que a arguida atuou nos moldes descritos com a intenção, lograda, de enganar a Notária responsável pelo Cartório Notarial aludido quanto à identidade da pessoa que a acompanhava, levando-a assim a celebrar a escritura pública em causa nos autos e, dessa forma, fazer seus os bens imóveis melhor descritos em tal instrumento público, pertencentes ao seu tio, de valor concretamente não apurado, mas nunca inferior a meio milhão de euros, atuando livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, assim como o indivíduo que agiu juntamente com a arguida sabia que utilizava um documento de identificação que lhe não pertencia e que subscrevia a escritura pública em que participou com um nome o do assistente que não era o seu.

Destes factos resulta, como esclarece o Sr. PGA, que a arguida é “autora dos crimes pelos quais foi condenada, nos moldes em que a autoria é definida no art. 26.º do CP, não sendo relevante nada do que, também nesta parte invoca.”

Todos sabemos que a figura da co-autoria (incluída também no conceito de “autoria” definido pelo art. 26.º do CP) exige a verificação de 2 requisitos: o acordo (decisão ou plano conjunto, ainda que tácito) e a execução conjunta do facto típico (cada coautor contribui objetivamente para a execução do facto típico, podendo essa execução ser parcial, portanto, circunscrever-se a uma parte da ação conjunta mas, de qualquer forma, terá de ser indispensável à obtenção do resultado pretendido)12.

Enquanto o acordo conjunto representa o elemento subjetivo da coautoria, a execução conjunta representa o seu elemento objetivo13.

Mas, “o domínio funcional do facto constitui o sinal próprio da coautoria, em que o agente decide e executa o facto em conjunto com outros”14.

Ora, resulta dos factos apurados, a “decisão prévia comum” tácita (que mais não é do que uma intenção) e a concreta ação de cada coautor (sendo o contributo de ambos que permitiu a celebração da referida escritura de compra e venda naquele dia ........2015, tendo o referido indivíduo não identificado passado por ser o tio da arguida, conseguindo atingir o resultado pretendido, assim causando prejuízo àquele de quem usurparam a identidade e com a referida declaração falsa alcançado, como queriam, o benefício para a arguida), podendo concluir-se que ambos e, particularmente aqui a arguida/recorrente tinha o chamado domínio funcional do facto15.

Perante tais factos não restam dúvidas, pois, que ao atuar de comum acordo e concertado, com o referido arguido (que usou da identidade alheia e com o que foi planeado previamente, efetuou aquela declaração falsa), a arguida agiu com intenção de causar prejuízo ao seu tio e de obter vantagem económica para si a que não tinha direito, preenchendo os factos provados a autoria do crime de falsificação de documento p. e p. no artigo 256.º, n.ºs 1, alíneas c) e d), e 3, do Código Penal (este último preceito por referência aos artigos 363.º, n.º 3, e 269.º e seguintes do Código Civil), não podendo assim aquela deixar de ser condenada pela sua prática.

Do mesmo modo, quando a arguida facultou ao indivíduo que consigo celebrou a escritura pública em causa nos autos, um cartão de cidadão (que constitui «documento de identificação», na aceção da incriminação em apreço, nos moldes previstos no artigo 255.º, alínea c), do corpo de normas aludido) de que era titular o aqui assistente, para que o dito indivíduo o pudesse usar, como veio efetivamente a usar, de modo a identificar-se como sendo o respetivo titular, tudo de acordo com o combinado com a arguida, com vista à concretização, conjuntamente com o dito indivíduo, dos seus intentos delituosos, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei, constituiu-se autora de um crime de uso de documento de identificação alheio p. e p. no artigo 261.º, n.º 1, do Código Penal.

Improcede, pois, a argumentação da recorrente, sendo certo que não foram violadas as normas e preceitos invocados pela recorrente.

Dispositivo

Pelo exposto, acordam nesta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso da arguida AA.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 UC`s.

*

Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 19.06.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta)

Antero Luís (Adjunto)

________________________

1. Transcrição da decisão sobre a matéria de facto da sentença proferida na 1ª instância (antes da alteração introduzida pela Relação):

  Da prova produzida, resultaram os seguintes:

  1. FACTOS PROVADOS:

  1) O Assistente BB nasceu no dia .../.../1930, solteiro e residiu na ..., no ...,

  desde há pelo menos 25 anos.

  2) O Assistente faleceu na pendência destes autos no dia .../.../2019 (cfr. Assento de Óbito de fls. 1489).

  3) BB era proprietário de um vasto património imobiliário.

  4) O Assistente tinha como únicos familiares próximos um irmão, DD e a arguida, AA, sua sobrinha, filha deste irmão, aqui arguida.

  5) À data dos factos, a arguida tinha na sua posse um Cartão de Cidadão de BB com o n.º ..., válido até .../.../2016.

  6) No dia ... de ... de 2015 foi celebrada uma escritura pública no Cartório Notarial, sito na ..., cujo teor é o seguinte:

  “Que pela presente escritura, pelo preço global de quatrocentos e catorze mil e seiscentos e setenta e um euros e noventa e nove cêntimos, já recebido, vende à segunda outorgante livre de quaisquer ónus e encargos, os seguintes bens imóveis:

  a)fracção autónoma designada pela letra “M”, destinada a habitação localizada no quinto andar esquerdo com entrada pelo nº ... da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., com valor patrimonial tributário de 26.023,48€;

  b) fracção autónoma designada pela letra “R” destinada a habitação localizada no segundo andar, designada por dois ponto dois, com entrada pelos nºs ... da ... e ... da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., com valor patrimonial tributário de 45.404,11€;

  c) fracção autónoma designada pela letra “J” destinada a habitação localizada no primeiro andar, designada por um ponto dois com entrada pelos nºs ... da ... e ...da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo..., com valor patrimonial tributário de 38.160,00€;

  d) Fracção autónoma designada pela letra “G” localizada no segundo andar centro, com entrada pelo nº ... na ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo..., com valor patrimonial tributário de 24.651,00€;

  e) Fracção autónoma designada pela letra “F” destinada a habitação localizada no segundo andar traseiras, com entrada pelo nº ... ..., compreendendo um lugar de aparcamento localizado no rés-do-chão, com acesso pelo nº ... da mesma Rua, actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ... com valor patrimonial tributário de 45.583,83€;

  f) Fracção autónoma designada pela letra “AI” apartamento localizado no terceiro andar esquerdo, com entrada pelo nº ... da ... e porta de acesso designada pelo número quarenta e dois e quarto de banho em separado, com porta de acesso designada pelo mesmo número quarenta e dois, actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...AI União de freguesias de ..., com valor patrimonial tributário de 21.313,55€;

  g) Fracção autónoma designada pela letra “F” sala número cinco, localizado no segundo andar com entrada pelo nº ...da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., da União das Freguesias de ..., com valor patrimonial tributário de 27.160,79€;

  h) Fracção autónoma designada pela letra “H” destinada a habitação localizada no quarto andar frente esquerdo, com terraço na frente, com entrada pelo nº ... da Rua ..., actualmente inscrita na respectiva

  matriz sob o artigo ... com valor patrimonial tributário de 40.365,23€;

  i)Fracção autónoma designada pela letra “Y” localizada no segundo andar esquerdo frente,com entrada pelo nº ... da ..., actualmente inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., com valor patrimonial tributário de 28.050,00€;

  j) prédio urbano correspondente a terreno para construção situado na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial desse Concelho sob o nº ..., actualmente inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... e ..., com valor patrimonial tributário de 117.960,00€.

  Que aceita a presente venda nos termos exarados;

  Que o registo provisório de aquisição de todos estes imóveis já se encontra efectuado no registo predial pela inscrição sob a apresentação mil quatrocentos e sessenta e seis, de vinte de Novembro de dois mil e catorze.”

  7) No dia .../.../2015, por um grupo de pessoas que se dirigiu ao referido Cartório Notarial foi suscitada a questão de a escritura celebrada no dia .../.../2015 ter sido celebrada alegadamente por pessoa distinta do aqui assistente, ou seja, que alguém se teria dirigido ao dito cartório e assinado a dita escritura fazendo-se passar pelo verdadeiro BB e abusando da sua assinatura e identidade.

  8) Face a tal situação, nesse mesmo dia .../.../2015, a Notária, Dra. CC, num esforço de reconstituição dos factos ocorridos nos dias anteriores, confirmou que a pessoa que havia estado no seu cartório no dia .../.../2015 identificando-se como BB a outorgar a escritura supra aludida e aquela que se apresentava no seu cartório no dia .../.../2015, não eram a mesma pessoa, tendo lavrado a seguinte declaração:

  “No passado dia ...-...-2015 no Cartório Notarial de que sou Notária titular, foi outorgada escritura pública de compra

  e venda, de que se junta cópia e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, tendo comparecido como outorgantes, BB, NIF 163.134.758, solteiro, maior, natural da freguesia de Paços, concelho de ..., residente na ..., titular do cartão de cidadão nº ...válido até ...-...-2016, como vendedor e AA, NIF ..., solteira, maior, natural da freguesia da Sé,

  concelho de ..., residente na ... , titular do cartão de cidadão nº 09542097 5zz9 válido até ...-...-2018, cujas identidades verifiquei pelos aludidos documentos de identificação. Na sequência da outorga da escritura, foi a mesma sujeita a registo predial, tendo sido requerida no mesmo dia, a conversão dos registos provisórios de aquisição que incidiam sobre os prédios objecto da aludida escritura, e que caducavam naquela data, pedido este que foi distribuído à .... No dia ...-...-2015 compareceu no BB, NIF 163.134.758, solteiro, maior, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente na ..., titular do cartão de Cidadão nº 30836075 3zy1, válido até ..., cuja identidade verifiquei pelo aludido documento de identificação, E declarou, perante mim, que tomou conhecimento da outorga da mencionada escritura de compra e venda, em que interveio como vendedor, mas que não foi ele quem outorgou a referida escritura de compra e venda, mas sim outra pessoa que se apropriou indevidamente da sua identidade. Pese embora tenha constatado que a pessoa que perante mim, no dia ...-...-2015 outorgou a escritura não era, de facto, a mesma que no dia ...-...-2015 compareceu no Cartório, o certo é que, quer o cartão de cidadão exibido na escritura, quer o que foi exibido posteriormente em ...-...-2015, estavam ambos válidos e pertenciam à mesma pessoa, uma vez que o número de identificação civil era o mesmo, mas eram duas vias diferentes daquele documento.”

  Mais se provou:

  9) A arguida não tem antecedentes criminais (cfr. CRC junto aos autos).

  Provou-se ainda que:

  10) A arguida nasceu no dia .../.../1971, tendo atualmente 51 anos de idade, é solteira, empresária hoteleira.

  2. FACTOS NÃO PROVADOS:

  a) Em data não concretamente apurada mas anterior a .../.../2015, BB deu conhecimento aos seus familiares, irmão e sobrinha, da sua intenção de alienar os imóveis sua propriedade.

  b) A arguida, com a intenção de se apropriar dos bens imóveis supra descritos, propriedade de seu tio, em conluio com indivíduo de características físicas semelhantes àquele e a quem entregou o C.C. que estava em sua posse, determinou a Notária Dra. CC a celebrar a escritura de compra e venda, convencida erradamente de que quem se apresentava na sua presença era o próprio BB.

  c) A arguida tinha perfeito conhecimento de que a pessoa que consigo se apresentou no cartório no dia .../.../2015 não era o seu tio BB e que a outorga daquela escritura não revelava a vontade deste.

  d) Fê-lo com intenção de se apropriar dos bens imóveis pertença de seu tio.

  e) O indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, em conluio com a arguida, declarou e assinou a escritura de compra e venda fazendo crer à notária que quem assinava era o verdadeiro BB, bem sabendo que abusava do documento de identificação daquele e da sua assinatura.

  f) A arguida com a descrita atuação montou um esquema ardiloso, fraudulento e enganador, que apresentou à notária, ludibriando-a, com a única intenção de se apropriar dos bens imóveis de seu tio, bem sabendo que agia contra a vontade deste.

  g) A arguida, levando consigo indivíduo com características físicas semelhantes ao seu tio e entregando a este o C.C. daquele, iludiu e enganou a notária com a intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo por meio de erro ou engano sobre a identidade de seu tio BB que astuciosamente engendrou e que sabia não ser verdade.

  h) Com a sua atuação a arguida logrou apropriar-se de bens imóveis cujo montante concreto não foi possível apurar mas que se computam em quantia superior a um milhão de euros.

  i) A arguida, sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e não obstante atuou livre voluntária e conscientemente.

  *

  No mais, e no que concerne à matéria constante na acusação, pronúncia e contestação e que não foi enunciada como provada ou não provada, consigna-se qual tal se fundamenta na circunstância de se tratar de matéria conclusiva e / ou

  de Direito, ou mera repetição, ou matéria não relevante para a decisão da causa.

  3. MOTIVAÇÃO:

  O Tribunal fundou a sua convicção, no que respeita à factualidade provada e não provada, na conjugação das declarações da arguida, com os depoimentos das testemunhas ouvidas e com o vasto suporte documental junto aos autos, designadamente o auto de denúncia de fls. 4 a 18, cópia de documentos de identificação de fls. 217 a 223, 231 a 233, 248, 775 a 783, cópia de despacho de fls. 309 a 313 CD de fls. 340 e de fls. 469, participação / declaração de CC de fls. 108 a 109, print de email alegadamente de AA, de fls. 509, certidão da escritura de compra e venda de .../.../2015 de fls. 524 a 531, cópias de declarações médicas de fls. 550 a 552 e 756, escritura de doação de fls.732 a 739, escritura de habilitação de herdeiros de fls. 740 a 754, parecer técnico de perícia científica Original da escritura de compra e venda outorgada em .../.../2015 no Cartório sito na ..., original da escritura de doação outorgada em .../.../2016, no Cartório sito na ..., original da escritura de doação outorgada em .../.../2015, no Cartório sito na ..., original da escritura de partilhas outorgada em .../.../2013, no Cartório sito na ..., a escritura de habilitação de herdeiro de fls. 1498 e ss., o testamento de fls. 1499 verso e ss., a escritura de revogação de compra e venda realizada pela escritura em causa nos autos, de fls. 1508 e ss., certidão de fls. 1646 e ss., relatório pericial de fls. 1713 criticamente apreciados e conjugados com as conclusões que derivam da aplicação de regras da lógica e da experiência comum ao caso concreto.

  Foram ouvidas as seguintes testemunhas: CC (Notária que celebrou a escritura aqui em causa), EE (funcionária do ... CC) DD (irmão do assistente; pai da arguida), LL (foi advogada do assistente nestes autos), MM (foi advogado da arguida neste processo), FF (foi funcionária da ...; arguida em processos em que o aqui assistente era ofendida, tendo sido condenada conforme certidões que se mostram juntas aos autos a fls. 1708 e ss.), NN (encarregada de setor na ...).

  A arguida negou os factos de que vem acusada, assumindo a realização da escritura pública que está aqui em causa, mas dizendo ter o assistente, seu tio, estado presente e assinado a mesma com o seu próprio punho. Relativamente ao

  facto de ter na sua posse o cartão de cidadão do assistente, a mesma explicou as circunstâncias em que o detinha, mais dizendo que o seu tio tinha vários cartões pois perdia a noção de onde os colocava e acabava por tirar outro. Mais referiu que assim agiram no sentido de por a salvo o património imobiliário que o seu tio tinha, uma vez que o mesmo estava a ser alvo de recorrentes burlas, mormente por parte de uma D. FF, funcionária da ... (tal situação mostra-se igualmente plasmada nestes autos - cfr. autos de denúncia existentes contra esta D. FF, bem como certidão dos acórdãos proferidos). Mais referiu que a partir de determinada altura deixaram de poder contactar o seu tio no Lar, sendo-lhe vedado o acesso, sendo que o mesmo estava a ser manipulado por diversas pessoas, designadamente da direção do próprio Lar e de funcionários. Descreveu os problemas de saúde de que o seu tio padecia.

  O pai da arguida, a testemunha DD (irmão do assistente) corroborou, no essencial, as declarações da filha, referindo que o seu irmão começou a ficar pior de saúde e que começou “a ficar sem nada”, devido à atuação de pessoas de dentro da ... e pessoas de fora. Referiu que o seu irmão queria deixar tudo às Ordens Religiosas, nunca tendo querido nada para si. Relativamente ao testamento existente põe em causa que tenha sido o seu irmão a fazer, pois à data o mesmo já estava mentalmente muito deteriorado. Mais referiu que visitava frequentemente o seu irmão, assim como a sua filha, até à situação ocorrida. Disse que nunca quis os bens do seu tio, nem a sua filha. Disse ainda que na ... manipularam o seu irmão, com vista a controlar o destino que ele fosse dar aos seus bens. Mais declarou que, a partir de determinada altura, foram impedidos de visitar o seu irmão. Disse que não esteve na escritura nem soube, na altura, que ela se iria realizar. Mais referiu que andavam sempre “à volta” do seu irmão, um grupo de pessoas, de senhoras. Na sua perspetiva o irmão começou a ficar isolado dentro da Ordem e a ser manipulado por pessoas que estavam ali à sua volta, mais dizendo que havia vários cartões de cidadão e várias procurações do seu irmão, sendo a preocupação proteger os bens, porque estava tudo a desaparecer.

  A testemunha MM (foi advogado da arguida neste processo, não se levantando quaisquer questões de sigilo profissional, por ter sido arrolado pela sua cliente - titular da proteção que o sigilo visa garantir), num depoimento bastante longo e pormenorizado, descreveu todas as circunstâncias em que ocorreram os factos, mormente o estado de saúde do Sr. BB e o que levou à realização dos registos provisórios e à escritura

  que está em causa nos autos, precisamente para proteger o património de terceiros, devido até a situações que já tinham acontecido, designadamente com a tal D. FF, funcionária da .... Disse que quanto à primeira escritura que o Sr. BB fez, a perceção que teve foi que a sua intenção era dar tais imóveis à sobrinha, aqui arguida. Já quanto à segunda escritura, a intenção do Sr. BB era proteger os bens, daí os ter colocado em nome da sobrinha. Mais referiu que esteve com o Sr. BB dias antes da escritura, crendo que este estava consciente do que estava em causa - que seria para resguardar de uma forma mais definitiva o seu património (que não apenas através dos registos provisórios). Quanto à arguida refere que a sua intenção foi sempre proteger os bens do tio. Mais esclareceu que o assistente lhe disse, por diversas vezes, que a sua sobrinha estava a tratar de tudo, nunca tendo dito mal dela, estando por isso convicto de que tudo estava a ser encaminhado para proteção do seu património. Disse que o Sr. BB nunca pôs em causa o que estava a ser feito pela sua sobrinha, aqui arguida. Mais referiu que, numa fase inicial, até pensaram que tudo isto, todo este processo, estava a ser encabeçado pela D. FF, mas depois apuraram que tudo estava a ser arquitetado pela ..., cujo advogado era o advogado aqui nos autos do Sr. BB, o Dr. OO, situação que vai de encontro ao relatado nos autos a fls. 1119 a 1131. Mais esclareceu que lhe propuseram a entrega dos bens à ... para pôr fim a este processo, mais dizendo que estas pessoas sabiam tudo o que se passava neste processo crime. Disse ainda que a aqui arguida lhe pediu para falar com o Dr. OO, o que fez, tendo este lhe dito que o processo acabaria se a arguida lhe entregasse € 100.000 e que após esta “sugestão” as conversas com o Dr. OO terminaram. Quanto à sua intervenção no processo referiu que, por motivos pessoais, teve necessidade de deixar de ser advogado no processo, tendo mesmo mudado de vida e de cidade. Confirma os emails por si escritos e que estão juntos aos autos, confirmando o seu teor. Mais referiu que é sua convicção que foi o Sr. BB quem esteve presente no Cartório, no dia da escritura, designadamente por tudo o que havia falado com ele, sabendo o que estava em causa. Deste depoimento foi possível perceber os contornos desta factualidade e de tudo o que girou em torno do aqui assistente, da arguida e de todo este processo.

  Quanto ao depoimento de LL (foi advogada do assistente nestes autos), não obstante não ter sido invocada escusa com base no sigilo profissional, o tribunal não pode deixar de ponderar o facto de ter prestado depoimento sobre factos ocorridos no âmbito da relação de mandato com o falecido assistente, pelo que cairão no âmbito do previsto no art. 92º, n.º 1, alínea a) do Estatuto da Ordem dos Advogados. Com efeito, não obstante ter a testemunha tido conhecimento de alguns factos em momento anterior ao início da relação de mandato, é impossível traçar uma fronteira clara entre o que tenha e não tenha sido objeto dessa relação profissional. De todo o modo, mais se diga que ainda que o tribunal fosse valorar na sua integralidade tal depoimento, do mesmo não resultou a infirmação da convicção gerada pelos demais meios de prova, nos termos expostos nesta fundamentação de facto, pelo que não traria qualquer modificação à matéria de facto provada e não provada.

  Foi ainda ouvida FF (foi funcionária da ...; arguida em processos em que o aqui assistente era ofendido, tendo sido condenada conforme certidões que se mostram juntas aos

  autos a fls. 1708 e ss.) que confirmou que conheceu o Sr. BB e que foi condenada por crimes de burla e de falsificação “por causa do Sr. BB” estando em causa vários bens imóveis, negando, no entanto, que tenha ficado com bens daquele. Mais referiu que teve conhecimento desta situação através do que o próprio assistente lhe confidenciou. Disse ainda que o objetivo da sobrinha era ganhar a confiança dele e convencê-lo a colocar os bens em nome dela. Este depoimento não mereceu qualquer credibilidade, quer pela forma como depôs, quer por algumas afirmações inusitadas e sem qualquer sentido proferidas (mormente relacionadas com o próprio filho), totalmente fora do contexto, quer pelo que resulta dos autos, mormente das certidões que estão juntas ao processo.

  A testemunha NN (encarregada de setor na ... há 33 anos) referiu que conheceu o Sr. BB como residente no sector vitalício da .... Mais referiu que ele era pouco comunicativo e que às vezes estava com um senhor que acha que era o advogado dele. Disse ainda que quanto a esta escritura nada sabe. Mais esclareceu que já foi ouvida num tribunal criminal por causa de “uma doutora que falcatruou esse senhor”, uma Dra. FF, que trabalhava na .... Disse que nunca acompanhou o Sr. BB a qualquer cartório, apenas acompanhando ao médico e sempre com indicação superior. Deste modo, quanto à matéria em apreço nada de relevante sabia.

  Por fim, e quanto à escritura em causa, depôs a testemunha CC, Notária que celebrou a referida escritura, que esclareceu as circunstâncias em que tudo ocorreu, que não lhe suscitou qualquer dúvida a realização da escritura, que foi verificada a identidade dos contraentes, os respetivos cartões de cidadão, sendo que havia já registos provisórios dos bens, o que lhe deu ainda mais segurança. Mais referiu que procedeu como habitualmente, fazendo as verificações necessárias, tendo tudo acontecido com normalidade, nada lhe tendo causado estranheza. Disse ainda que passados uns dias, apareceu no seu Cartório um grupo de senhoras, acompanhadas de um senhor, dizendo que ele era o verdadeiro “BB” e que a pessoa que se apresentou na escritura não era o próprio. Disse ainda que lhe foi apresentado um outro cartão de cidadão, igualmente válido. Esclareceu que

  perante tal situação decidiu fazer uma declaração e participar tais factos. Quando questionada, referiu que não consegue dizer quem era o “verdadeiro” BB”, tanto que não o conhecia. Não consegue assim afirmar se a pessoa que se apresentou no dia da escritura era ou não o aqui assistente. Esta testemunha, em sede de inquérito fez um reconhecimento: perante o assistente, o irmão do assistente (DD) e uma terceira

  pessoa e referiu que não reconhecia qualquer uma das três pessoas como tendo sido aquela que compareceu à aludida escritura e que apenas reconhece a pessoa que se encontra colocada no lugar 3 (BB) como sendo a pessoa que lhe apareceu depois no seu Cartório. No entanto, em julgamento, a referida testemunha já não conseguiu manter a mesma certeza, dizendo que no dia da escritura tudo aconteceu com normalidade, que confirmou as identidades das pessoas e que não pode atestar, com certeza e segurança, que o verdadeiro BB fosse a pessoa que se apresentou na escritura ou no outro dia, apenas podendo dizer que eram pessoas diferentes.

  Foi ouvida também EE, funcionária do ... CC, que descreveu as circunstâncias em que foi celebrada a escritura no dia .../.../2015 e que tudo decorreu com normalidade, de acordo com os procedimentos habituais do Cartório. Mais referiu que foi ela própria que verificou os documentos e nada de anormal se suscitou. Disse ainda que passados uns dias dirigiram-se lá algumas pessoas, juntamente com um senhor,

  querendo falar com a Dra. CC. Esclareceu que não esteve presente nesse momento, não tendo tido, por isso, contacto com estas pessoas, designadamente com o senhor em causa. Confirmou a elaboração da declaração por parte da Dra. CC. Explicou os procedimentos habituais na realização de uma escritura, como sendo a indicação do número de contribuinte (para a emissão das guias), naturalidade, residências e cartão de cidadão, sendo feita sempre uma dupla verificação, dizendo que na altura não houve nada que suscitasse qualquer dúvida. Disse que na altura ficaram “muito atrapalhados” / assustados com tudo o que aconteceu, daí a elaboração da declaração para assegurar que tudo ficasse “suspenso” até se averiguar ao certo a situação. Diz que se recorda da aqui arguida da situação em apreço, não conseguindo lembrar-se do senhor, nem do comportamento do mesmo na sala aquando da celebração da escritura, dizendo que tinha alguma idade. Mais acrescentou que a Dra. CC comentou que mais tarde apareceu lá a arguida para falar / reunir, já tendo tentado falar com ela anteriormente pelo telefone, dizendo que a Dra. CC não queria falar pois, como havia surgido esta questão, entendeu por bem que deveria ser primeiro tudo esclarecido. Disse ainda que neste caso concreto havia registos provisórios. Confrontada com o auto de reconhecimento (fls. 961 e 962) referiu que não corresponderá à verdade o que aí ficou a constar, pois apenas esteve com as pessoas no dia da escritura e não no dia em que compareceu o grupo de pessoas.

  Quanto a esta matéria o Tribunal teve em conta a escritura em causa, constante de fls. 8 a 14, o documento do Instituto dos Registos e Notariado de fls. 52, a declaração emitida pela Dra. CC e constante de fls. 53 verso, a participação ao DIAP feita pela Dra. CC e constante de fls. 108 a 109 e o teor dos Registos Prediais de fls. 654 a 689.

  Mais se verificou que os Cartões de Cidadão usados no dia .../.../2015 e no dia .../.../2015, pertença do aqui assistente BB, estavam ambos válidos, sendo que o CC exibido no dia .../.../2015 tinha o n.º ...

  3zz9, válido até .../.../2016 e o CC exibido no dia .../.../2015 tinha o n.º ..., válido até .../.../2018 (cfr. declaração de fls. 108 e 109).

  Se não é normal que sejam exibidos dois cartões de cidadão diferentes, sendo a mesma pessoa a fazê-lo - o que nos poderia conduzir à conclusão que, de facto, as pessoas que se apresentaram em ambos os dias são diferentes -, o que é certo é que também ficou patente que o aqui assistente tinha vários cartões de cidadão em seu poder e que várias pessoas teriam acesso aos mesmos, sendo que o próprio também poderia usar indistintamente um ou outro(s). Quanto a este ponto atendeu-se aos prints relativos aos CC de fls. 217 a 224; cópias dos CC de fls. 231 a 233, fls. 247 e 248, de fls. 775 a 783.

  Por outro lado, mesmo admitindo que as pessoas eram diferentes – a própria testemunha CC referiu que a pessoa que se apresentou no dia .../.../2015 não era a mesma que se havia apresentado no dia .../.../2015 – não conseguimos saber, com um grau de certeza e segurança, quem era o “verdadeiro” BB - se a pessoa que esteve presente na escritura datada de .../.../2015 ou se a pessoa que se apresentou no Cartório, juntamente com várias senhoras, no dia .../.../2015.

  Além do mais, decorre dos autos - quer do seu mero compulso, quer da prova testemunhal que se produziu -, que gravitavam à volta do aqui assistente várias pessoas, para além dos seus familiares próximos (irmão e sobrinha), designadamente pessoas do Lar onde se encontrava (“...”), quer seus dirigentes, quer funcionários do mesmo, diversos advogados e ainda outras pessoas. Sendo certo que não ficaram patente as reais e verdadeiras intenções e motivações de todas estas pessoas, o certo é que havia muita gente que tinha um “acesso” privilegiado ao aqui assistente e também à sua documentação, notando-se claramente que tinham influência sobre o mesmo. Tal situação ficou bem patente do depoimento da testemunha MM, bem como do depoimento do irmão do assistente e também da documentação que se mostra junta aos autos, designadamente a fls. 1119 a 1131.

  Isto para dizer que, além da arguida e do seu pai, que, de facto, podiam ter um interesse direto nesta situação - designadamente para evitar que o assistente entregasse o seu património a terceiros, mormente ordens religiosas e / ou ... ou outros terceiros, - também outras pessoas se moviam em torno do assistente com motivações e intenções que não ficaram para nós totalmente claras. E comprovando tal facto, a condenação da própria FF, ex. funcionária do Lar, por diversos crimes contra também o aqui assistente, estando até em cumprimento de prisão efetiva (cfr. certidões dos Acórdãos juntas aos autos).

  Por fim, e no que se refere às perícias realizadas, as mesmas foram inconclusivas. O relatório pericial datado de .../.../2017, conclui que: “(…) a assinatura suspeita aposta na escritura de compra e venda de .../.../2015 revela um traço irregular, trémulo, inseguro, incaracterístico e sem elementos identificativos, que não permite a realização do estudo dos hábitos gráficos do seu autor. Por outro lado, a amostra referência, assinaturas de BB, constituídas por um emaranhado de traços sobrepostos, algumas com escassas e outras sem letras definidas, apresenta traçado extremamente irregular, variável e ilegível, que inviabiliza determinar o padrão da escrita do autografado e a realização de uma análise comparativa suscetível de conduzir a resultados esclarecedores quanto à autenticidade da assinatura questionada - fls. 786.

  O tribunal, por despacho de .../.../2021, determinou a realização da outra perícia. Analisados os autos verificou-se que no aludido dia .../.../2015 foram realizadas duas escrituras com a suposta intervenção do aqui assistente BB: a escritura de compra e venda aqui em causa, realizada no dia .../.../2015, no Cartório sito na ..., perante a Exma. Dra. CC

  e Silva e uma escritura de doação, realizada no mesmo dia .../.../2015, no Cartório sito na ...

  Face a tal, determinou-se uma perícia por forma a poder concluir se as assinaturas constantes de ambas as escrituras foram feitas pela mesma pessoa. Foi remetido o resultado da referida perícia, tendo o relatório concluído que a comparação das mesmas é inviável, não sendo possível por isso concluir terem sido feitas pela mesma pessoa. Uma das assinaturas apresenta um traçado irregular, retocado e com escassos elementos identificativos, apresentando algumas formas definidas e legíveis; a outra é um conjunto de movimentos enlaçados e angulosos, sem qualquer forma definida (cfr. fls. 1713).

  O Tribunal fez ainda um levantamento de todos os documentos que se mostram no processo com a assinatura do aqui assistente:

  - Auto de denúncia apresentada pelo próprio BB, de .../.../2015, constante de fls. 4 a 6, estando o original a fls. 171 a 175. Na referida denúncia, no local da assinatura do denunciante, consta uma assinatura através de impressão digital, constando ainda a seguinte menção: “O queixoso informou que tem um comprometimento motor do braço direito, que o impede de assinar, não o conseguindo fazer com a mão esquerda, pelo que vai apor a impressão digital do dedo indicador da mão direita, o que faz na presença da pessoa que o acompanhava, a testemunha indicada, JJ.” Consta ainda que a dita PP, pessoa que acompanhava o assistente, era consultora imobiliária.

  - Termo de notificação de .../.../2015, de fls. 6 verso (também a fls. 53; original a fls. 176), onde consta também uma assinatura através de impressão digital.

  - Escritura pública de compra e venda em causa de .../.../2015, de fls. 8 a 14 (com várias cópias também a fls. 56 a 62 verso; fls. 96 a 102 verso; fls. 111 a 117 verso; fls. 178 a 184 verso; fls. 201 a 214; fls. 525 a 531 verso; fls. 539 a 545 verso; fls. 819 a 825 verso).

  - Declaração efetuada pela Dra. CC no dia .../.../2015, de fls. 53 verso (também a fls. 119).

  - Print da assinatura digital do aqui assistente, de fls. 18 (também a fls. 191).

  - Procuração datada de .../.../2015, passada a favor do Dr. OO, a fls. 27 (também a fls. 133; fls. 787).

  - Requerimento de proteção jurídica, de .../.../2015, de fls. 29 e 30.

  - Procuração datada de .../.../2016, passada a favor do Dr. OO, a fls. 354.

  - Auto de inquirição do denunciante em .../.../2015, a fls. 158 a 160 (estando o aqui assistente acompanhado de Advogado, o Dr. OO). Também a fls. 788 a 790.

  - Auto de inquirição do denunciante em .../.../2015, a fls. 243 a 244 (estando o aqui assistente acompanhado de Advogado, o Dr. OO). Também a fls. 801 a 802.

  - Auto de inquirição do denunciante em .../.../2016, a fls. 253 a 254 (não tendo estado o aqui assistente acompanhado de qualquer advogado) - onde deu conta que o CC que tinha exibido quando apresentou a queixa e junto da notária onde foi realizada a escritura desapareceu e que já tem um outro válido até .../.../2020. Também a fls. 803 a 804.

  - Testamento realizado pelo aqui Assistente no dia .../.../2016, em que lega diversos bens imóveis à ..., à ..., à ..., à ..., à ... conta ..., à ..., à ... ..., à ..., à ..., ao ..., à ..., à ..., à ..., à ..., ..., tendo nomeado seu testamenteiro o Dr. OO (fls. 1455 a 1466

  - Auto de declarações do assistente em .../.../2016, a fls. 547 a 547 (estando acompanhado pelo seu Mandatário). Também a fls. 826 e 827.

  - Autógrafo do assistente de fls. 828.

  - Auto de declarações do assistente em .../.../2017, a fls. 694 a 695 (estando acompanhado pelo seu Mandatário).

  - Auto de declarações do assistente em .../.../2018, a fls. 959 a 960 (estando acompanhado pelo seu Mandatário).

  - Auto de reconhecimento datado de .../.../2018, de fls. 961 a 962

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, requerendo a extinção do presente procedimento criminal (fls. 1060; fls. 1073).

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, concordando com a suspensão provisória dos autos (fls. 1064; 1071).

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, revogando expressamente todos os poderes forenses que, nestes autos, anteriormente havia outorgado ao Dr. OO (fls. 1066; 1070).

  - Procuração datada de .../.../2018, passada a favor da Dra. LL, a fls. 1068.

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, revogando expressamente todos os poderes forenses que, nestes autos, anteriormente havia outorgado à Dra. LL. Dizendo que a referida advogada foi a sua

  casa acompanhada pela sua sobrinha, sendo o Dr. OO da sua inteira confiança (fls. 1104).

  - Contrato realizado entre o assistente e a arguida em .../.../2018 (fls. 1474 a 1477 verso).

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, dizendo ser alheio à revogação feita no dia .../.../2018. Dizendo ser sua única advogada a Dra. LL (fls. 1148).

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, revogando a procuração passada à Dra. LL, dizendo que o seu advogado é o Dr. OO. (fls. 1152).

  -Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, revogando a procuração passada à Dra. LL (fls. 1256).

  - Procuração, datada de .../.../2018, passada a favor da Dra. QQ (fls. 1257).

  - Procuração, datada de .../.../2018, passada a favor da Dra. QQ (fls. 1578).

  - Requerimento de proteção jurídica datado de .../.../2018 (fls. 1582 a 1583

  -Auto de denúncia de .../.../2010, de fls. 640 e 640 verso; também a fls. 837 e 838 (no âmbito do Proc. n.º 1290/10.6...).

  - Termo de notificação datado de .../.../2010, de fls. 641 e 641 verso; também a fls. 838 e 838 verso (no âmbito do Proc. n.º 1290/10.6...).

  -Auto de denúncia de .../.../2010, de fls. 647 e 647 verso; também a fls. 844 e 844 verso (no âmbito do Proc. n.º 1576/10.0...).

  - Termo de notificação datado de .../.../2010, de fls. 648 e 648 verso; também a fls. 845 e 845 verso (no âmbito do Proc. n.º 1576/10.0...).

  - Aditamento de .../.../2010, a fls. 649; também a fls. 846 (no âmbito do Proc. n.º 1576/10.0...).

  - Auto de denúncia de .../.../2010, de fls. 642 e 642 verso; também a fls. 839 e 839 verso (no âmbito do Proc. n.º 1595/10.6...).

  - Termo de notificação datado de .../.../2010, de fls. 643 e 643 verso; também a fls. 840 e 840 verso (no âmbito do Proc. n.º 1595/10.6...).

  - Auto de inquirição do ofendido em .../.../2011, a fls. 638 e 639; também a fls. 835 e 836 (no âmbito do Proc. n.º 10716/10.8...).

  - Auto de inquirição do ofendido em .../.../2012, a fls. 644 a 645; também a fls. 841 e 842 (no âmbito do Proc. n.º 2097/11.9...).

  - Termo de notificação datado de .../.../2012, de fls. 646 e 646 verso; também a fls. 843 (no âmbito do Proc. n.º 2097/11.9...).

  - Escritura de Habilitação / Partilhas datada de .../.../2013, de fls. 707 a 720 verso. Também a fls. 741 a 754 verso.

  - Procuração datada de .../.../2013, passada a favor de FF, a fls. 414 a 415.

  - Auto de denúncia de .../.../2013, de fls. 87 a 89.

  - Auto de denúncia de .../.../2013, de fls. 75 e 75 verso.

  - Escritura de compra e venda de .../.../2014, de fls. 134 a 137, também a fls. 566 a 569 (em que o aqui assistente vende à aqui arguida duas frações autónomas, não tendo sido posta em causa sua validade).

  - Requisição de registo de .../.../2014, de fls. 149 a 151.

  - Escritura de doação datada de .../.../2015, de fls. 138 a 137 (em que o aqui assistente doa ao “...” 26 prédios rústicos). Também a fls. 696 a 706; a fls. 734 a 739.

  - Escritura de doação datada de .../.../2016, fls. 721 a 724 (em que o aqui assistente doa ao “... da freguesia de ...” 4 prédios rústicos). Também a fls. 721 a 724; fls. 732 a 633 verso.

  +++

  Quanto às assinaturas cumpre dizer que:

  Em 1º lugar, realizadas que foram as perícias, e nos termos supra referidos, as mesmas foram inconclusivas.

  Em 2.º lugar, analisando a “olho nu”, as diversas assinaturas feitas pelo assistente e constantes dos autos, as mesmas revelam alguns movimentos enlaçados e angulosos, muitas vezes sem forma definida, sendo patente que apresentam todas elas diferenças entre si, sendo por isso inconstantes, umas mais regulares, outras mais irregulares e angulosas; umas com algumas letras legíveis; outras com meros traçados sem qualquer letra legível.

  Em 3º lugar, a assinatura constante das duas escrituras celebradas no mesmo dia .../.../2015 parecem diferentes, mas a perícia não conseguiu concluir se foram feitas ou não pela mesma pessoa.

  Em 4º lugar, a assinatura constante da escritura de compra e venda de .../.../2015 tem (e sempre a olho nu) um traçado um pouco diferente das restantes assinaturas constantes dos autos, contendo algumas formas mais definidas e legíveis, mas mantendo o traçado irregular e como referido na perícia “com escassos elementos identificativos”, sendo certo que existem outras assinaturas do assistente no processo - cuja autoria não foi posta em causa - onde é igualmente possível ver algumas formas / letras definidas e legíveis, nos moldes da constante na escritura que está aqui em causa, pelo que não se pode afirmar, sem mais, que não possa ter sido feita pelo punho do aqui assistente.

  Em 5º lugar, e não menos importante, dos registos clínicos que foram juntos aos autos resulta que o assistente, além de diversa medicação que tomava para tratamento de distúrbios psico-motores e de cariz neurológico e psiquiátrico, padecia de uma situação demencial, situação à qual não foi alheia a decisão provisória de interdição que foi proferida, o que de alguma forma pode explicar a instabilidade do assistente e a própria inconstância da sua assinatura, estando

  diagnosticado que o mesmo sofria de um problema de tremuras que o afetava e influenciava / limitava diretamente a escrita.

  Resulta dos diversos elementos que se mostram junto aos autos que o assistente, até por força da idade, padecia de diversos problemas de saúde, designadamente patologia do foro neurológico, psico-motor e psiquiátrico:

  No dia .../.../2015 o assistente foi a uma consulta no ... por queixas de tremor e álgicas no membro superior direito, referindo que, há aproximadamente dois anos, iniciou um quadro de tremor / dor

  no ombro direito com irradiação para o braço, de difícil controlo, relacionado com o pegar em objetos. O exame físico apresentava, entre o mais, ligeira dispraxia, tremor de repouso no 1º dedo da extremidade superior direita, hipocinésia moderada em amas as extremidades direitas, tremor de baixa frequência durante a escrita, com mioclonias distais que limitam a escrita /desenho; ligeira dismetria bilateral. O diagnóstico foi tremor misto com sinais de parkinsonismo mínimos; DP (?) e DCBG (?). Foi recomendado uma TAC ao crânio simples e o teste de ... no dia .../.../2015 (cfr. relatório médico de 484 a 485; também a fls. 808 e 809).

  No dia .../.../2016 o assistente foi a uma consulta no ... por queixa de tremor na extremidade superior direita. O paciente referiu queixas álgicas e tremor de predomínio à direita, com alterações da

  escrita por mioclonias. Realizou TAC que revela lesão parenquimatosa frontal esquerda adjacente ao ventrículo lateral, assim como uma lesão paramediana esquerda (SMA posterior?), que não se encontra descrita no relatório do exame.

  Não apresenta assimetrias inter-hemisféricas. O exame físico revelou tremor durante a escrita e mioclonias com resposta ineficaz ao teste de álcool / L-dopa.; discreta hipocinesia direita; tremor postural / intencional de predomínio à direita; mioclonias de ação descrita. O diagnóstico foi tremor / mioclonias vasculares à direita vs DCBG. Foi solicitada RMN craniana e iniciar tratamento com baixas doses de ... - 100 mg (cfr. relatório médico de fls. 486 e 487; também a fls. 810 a 811).

  Com data de .../.../2016 foi passado um atestado de doença, pelo médico do ..., Dr. RR Silva, declarando que BB sofre de doença de Parkinson, pelo que apresenta dificuldades no

  ato de escrita em face de apresentar trémulo das mãos involuntários (cfr. fls. 552).

  No dia .../.../2016 foi realizada uma ressonância magnética cerebral, cujo relatório se mostra junto a fls. 606, de onde resultam várias sequelas de lesões de natureza vascular com componente hemorrágico e de natureza vascular isquémica.

  Por contraponto, existe uma declaração passada por um médico da ..., data de ........2016, dizendo que “Para os devidos efeitos declaro que o Sr. BB, portador do BI n.º 30836075 se encontra em bom estado físico e psíquico.” (fls. 550).

  Com data de .../.../2016 foi realizada uma avaliação técnica, pelo Dr. SS, do ..., onde se conclui que: “Com a avaliação neuropsicológica realizada, podemos concluir que o Sr. BB apresenta performance cognitiva global com presença de défice cognitivo. Revela défices ligeiros ao nível da capacidade atencional seletiva; défices moderados a graves ao nível dos processos mnésicos imediatos e de curto prazo, bem como ao nível da memória de trabalho e memória verbal associativa. Apresenta disfunção executiva ligeira a moderada, com défices ao nível da competência de abstração, do processo de planeamento, sequenciação e

  flexibilidade mental. Os défices objetivados pela avaliação cognitiva formal constituem-se como critérios sugestivos de um quadro neuropsicológico possivelmente sugestivo de quadro Demencial de início insidioso devendo, no entanto, este ser interpretado à luz da clínica e da imagiologia. Sugere-se ainda uma reavaliação neuropsicológica no período

  sensivelmente de 6 meses, de forma a documentar o estado evolutivo do funcionamento cognitivo do paciente e à determinação efetiva do grau de afetação predominante dos défices exibidos. Como orientação terapêutica, o paciente deve tirar proveito de uma abordagem reabilitativa cognitiva específica que vise essencialmente a estimulação dos défices cognitivos objetivados pela avaliação neurocognitiva formal, devendo a terapêutica visar o retardamento do processo de deterioração cognitiva e funcional (cfr. fls. 603 e 604; também a fls. 832 a 834).

  Com data de .../.../2017, o Dr. TT, médico no ... João do ..., declarou, entre o mais, que: (…) BB sofre de doença vascular multisitémica com incidência nos 1º setor vascular periférico, arteriopatia grau 2 tendo efetuado em ... Bypass femoro-poplíteoesquerdo com dracon e cirúrgia em ...; (…) sofre doença vascular ateroesclerótica coronária (…) também sofre de ateroesclerose cerebral sem padrão de demência estabelecida mas com deficit cognitivo ligeiro com múltiplas calcificações vasculares intracerebrais (…); trémulo involuntário do tipo parkinsónico (…) poderá ser considerado como dependente de 1.º grau uma vez que não pode praticar com autonomia atos indispensáveis à satisfação de necessidades básicas da vida quotidiana e não apresenta quadro clínico de demência (…).” (cfr. declaração médica de fls.756).

  No dia .../.../2018 o assistente foi observado pela Dra. UU, que elaborou o Relatório datado de .../.../2018, onde conclui por deterioração cognitiva no contexto da doença vascular cerebral (fls. 1557)

  A .../.../2018 foi junto um Parecer Psiquiátrico do aqui assistente, datado de .../.../2018, elaborado pelo Dr. VV, de onde consta, além do mais, “O observando padecia, à data em que foi examinado, de uma PNC major (grave) - vulgo demência. Embora tenha, ainda, capacidade para nos proporcionar múltiplas respostas corretas, a deterioração cognitiva é já muito exuberante e originada por causas irreversíveis. Um doente com esta patologia necessita do apoio de uma terceira pessoa na medida em que não está capaz de gerir em plenitude, de um modo autónomo e competente, a sua pessoa e bens. Aliás, esta patologia potencia, inclusive, que o examinando seja vítima de manipulação de alguém em que confie e que ofenda os seus interesses (…)” - cfr. parecer de fls. 1224 a 1235.

  Em .../.../2018 foi proferida decisão a decretar provisoriamente a interdição do aqui Assistente BB, com início, há pelo menos dois anos (sentença proferida no âmbito do Proc. n.º 12342/18.4... do Juízo Local Cível do ... J1 fls. 1287 a 1288 verso).

  Parecer Psiquiátrico forense de BB, datado de .../.../2019, elaborado pelo Dr. WW do ..., onde consta, entre o mais, “Diagnóstico compatível com perturbação demencial

  vascular, associada a atrofia cerebral. Este quadro, conjuntamente com a doença de Parkinson contribuem para quadro de défices cognitivos muito relevantes em que se encontra, com agravamento progressivo, mas que mercê das alterações vasculares possa evoluir em socalcos em termos de deterioração de défices cognitivos.

  Necessita de apoio e supervisão de terceiros, dada a incapacidade de se autogerir de forma autónoma. No presente incapaz de se autocuidar. Perante as informações disponibilizadas, baseadas nos familiares, e por não ter qualquer outro tipo de informação, exceto a ressonância magnética cerebral, os dados apontam para que quadro de incapacidade se arraste desde .... O exame ao assistente foi realizado no dia .../.../2019, tendo o assistente chegado de maca (fls. 1481 a 1487).

  Resulta ainda dos autos que o assistente foi anteriormente vítima de “burla”, designadamente através da venda de património imobiliário e movimentação indevida das suas contas, por uma então funcionária da ... FF, ouvida nestes autos como testemunha (cfr. auto de denúncia de .../.../2013, de fls. 71 verso a 73, auto de denúncia de .../.../2013 de fls. 75, fls. 76, fls. 85 e 86, fls. 87 a 89; escritura de compra e venda de .../.../2016 outorgada por FF, alegadamente como procuradora e em representação do aqui assistente, de fls. 359 a 362; escritura de compra e venda de .../.../2013 outorgada por FF, alegadamente como procuradora e em representação do aqui assistente, de fls. 368 a 369;

  procuração alegadamente passada a favor de FF, datada de .../.../2013, a fls. 414 e 415 e certidões juntas aos autos a fls. 1708 e ss.), o que reforça a teoria da aqui arguida de que toda esta situação teve em vista a proteção do património do seu tio, com conhecimento e anuência do próprio, o que explica também os registos provisórios já anteriormente efetivados.

  É de salientar ainda o comportamento processual do aqui assistente ao longo do processo. Na verdade, revela bem o estado de saúde em que o mesmo se encontrava, podendo igualmente revelar algo mais, como seja o quão influenciável e manipulável era o aqui assistente:

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, requerendo a extinção do presente procedimento criminal (fls. 1060; fls. 1073).

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, concordando com a suspensão provisória dos autos (fls. 1064; 1071).

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, revogando expressamente todos os poderes forenses que, nestes autos, anteriormente havia outorgado ao Dr. OO (fls. 1066; 1070).

  - Procuração datada de .../.../2018, passada a favor da Dra. LL, a fls. 1068.

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, revogando expressamente todos os poderes forenses que, nestes autos, anteriormente havia outorgado à Dra. LL. Dizendo que a referida advogada foi a sua casa acompanhada pela sua sobrinha, sendo o Dr. OO da sua inteira confiança (fls. 1104).

  - Contrato realizado entre o assistente e a arguida em .../.../2018 (fls. 1474 a 1477 verso).

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, dizendo ser alheio à revogação feita no dia .../.../2018. Dizendo ser sua única advogada a Dra. LL (fls. 1148).

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, revogando a procuração passada à Dra. LL, dizendo que o seu advogado é o Dr. OO. (fls. 1152).

  - Declaração do assistente, entrada nos autos a .../.../2018, revogando a procuração passada à Dra. LL (fls. 1256).

  - Procuração, datada de .../.../2018, passada a favor da Dra. QQ (fls. 1257).

  - Procuração, datada de .../.../2018, passada a favor da Dra. QQ (fls. 1578).

  Por último, cumpre ainda dizer que, fazendo uma análise do processo, é facilmente percetível a existência de manipulação em relação ao falecido BB, não se distinguindo claramente a ação de qualquer destes intervenientes, sendo que, todos eles e no entender do Tribunal, se aproveitaram da idade e da debilidade física, psíquica e emocional do aqui assistente, não conseguindo o Tribunal, face à amálgama de vicissitudes ocorridas, compreender de onde surgiu este foco de manipulação / de distorção deliberada / de instrumentalização, se do lado da aqui arguida, se do lado de terceiros (pessoas e instituições). O que é certo é que a mesma existiu, sendo mais do que evidente até pela simples análise do conteúdo do processo.

  Deste modo, face a tudo o expendido não é possível ao Tribunal concluir, com a certeza e a segurança que uma condenação impõe, que não tenha sido o assistente a estar presente na referida escritura e que tenha sido a sua sobrinha,

  aqui arguida, a montar todo este esquema ardiloso com vista a ficar com o seu património, pelo que não ficou assim demonstrado que a arguida tenha montado um esquema fraudulento e enganador, que apresentou à notária, ludibriando-a, com a única intenção de se apropriar dos bens imóveis de seu tio, bem sabendo que agia contra a vontade deste.

  Se é certo que o Tribunal não pode atestar - perante a prova que se produziu que a arguida nada tenha feito, também o contrário não resultou com segurança e certeza da prova produzida.

  Deste modo, face à prova que se produziu não se consegue relacionar, com certeza e segurança, a arguida com os factos que lhe são imputados na acusação, não sendo, por isso, possível associar com segurança a arguida a qualquer

  comportamento ilícito

  Pelo que, a convicção do Tribunal relativamente aos factos não provados alicerçou-se na falta de consistência da prova produzida.

  Perante um julgamento, ouvida toda a prova, interiorizada e ponderada a mesma, cabe ao Juiz decidir, e nessa matéria tão complexa que é a convicção do julgador, este tem a possibilidade de, em relação aos factos objeto dos autos, considerá-los, provados, provados apenas que, in dubio pro reu, não provado ou provado o contrário.

  Em sede de julgamento, a prova é exigente, desde logo por princípio de proteção de todo o cidadão, mas essencialmente em atenção à razão de ser de última ratio do Direito Penal, o qual direta e primordialmente contende com o mais elementar do ser humano a sua dignidade e a sua liberdade. Assim exige-se prova e não meramente indícios suficientes, ainda que esses, que se exigem em sede de acusação e de pronúncia, se aproximem da situação de prova.

  Por força do princípio “in dubio pro reo”, todos os factos relevantes para a decisão da causa que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável, também não podem considerar-se como provados, não podendo a falta de provas, de modo algum, desfavorecer o arguido. Neste sentido, este non liquet na questão da prova (não permitindo, contudo, ao Juiz que omita a decisão) tem, sempre, de ser valorado a favor do arguido (Direito Processual Penal, Lições do Prof. Figueiredo Dias coligidas por Maria João Antunes, Coimbra, 1988-9, pág. 145).

  Sempre que no espírito do julgador, ao fixar a matéria de facto, se instale uma dúvida séria e insanável acerca da veracidade ou não de um determinado facto desfavorável ao arguido, deve lançar mão do princípio in dubio pro reo.

  O princípio “in dubio pro reo” surge articulado com o princípio da presunção da inocência do arguido, expressamente consagrado no art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, sendo aquele, para além de uma garantia subjetiva, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa (GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 203-49).

  A função da prova é a de demonstrar que um facto existiu e de que forma existiu. Mas nem sempre é possível efetuar essa demonstração, “a certeza não está sempre ao alcance da inteligência humana, nem os meios de que se serve a

  justiça, os meios de prova, facultam, em todos os casos a possibilidade de a obter (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, pág. 303).

  No contexto descrito, não podia o Tribunal senão ficar na dúvida quanto à veracidade da ocorrência dos factos como vêm descritos na acusação / pronúncia, sendo que os elementos disponíveis não lograram convencer o Tribunal, quanto aos factos imputados à arguida.

  Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias “A persistência da dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido” (Direito Processual Penal, I, pág. 215).

  Para a prova dos factos atinentes à sua condição pessoal, familiar, profissional e económico-social também se baseou o Tribunal nas suas declarações.

  A ausência de antecedentes criminais provou-se com base no Certificado de Registo Criminal junto aos autos.»

2. Cf., entre outros, Ac. do STJ de 19/12/1990, BMJ nº 402/232ss.

3. Assim, entre outros, Ac. do STJ de 13/7/2005, proferido no processo 05P2122, relatado por Henriques Gaspar (consultado no site do ITIJ).

4. Ibidem.

5. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra, Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-89, p. 139, refere que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo» (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos)».

6. Regra de experiência que, como diz PAOLO TONINI, A prova no processo penal italiano (trad. de Alexandra Martins e Daniela Mróz, de La prova penale, 4ª ed., publicado em Pádua, pela Cedam – Casa Editrice Dott. António Milani, em 2000 e posterior actualização de Setembro de 2001), São Paulo, Brasil, Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2002, pp. 55 e 56, “expressa aquilo que acontece na maioria dos casos”, sendo “extraída de casos similares”, gerando “um juízo de probabilidade”, de um “idêntico comportamento humano”, devendo o juiz formular “um raciocínio de tipo indutivo” e sucessivamente “um raciocínio dedutivo”.

7. Entre outros, Acórdãos do TC nº 1165/96, de 19/11/1996, BMJ nº 461/93ss., nº 102/99 de 10/2/1999, BMJ nº 484/119 ss., e do STJ de 25/2/1999, BMJ nº 484/288ss., de 6/4/2000, BMJ nº 496/169ss, de 15/6/2000, BMJ nº 498/148 ss., de 17/2/2005 (relator Rodrigues da Costa), proferido no processo nº 4300/2004, de 17/2/2005 (relator Simas Santos), proferido no processo nº 58/2005, de 17/2/2005 (relator Pereira Madeira), proferido no processo nº 222/2005 e de 12/7/2005 (relator Simas Santos), proferido no processo nº 169/99.5..., 1º Juízo do Tribunal de Mirandela.

8. GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, p. 111.

9. PAULO SARAGOÇA DA MATTA, «A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença», in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. de Fernanda Palma, Coimbra, Almedina, Junho 2004, p. 251.

10. Obviamente que não se pode atender a eventual depoimento ou parte dele que tivesse sido prestada pela testemunha EE, que a recorrente transcreve na motivação de recurso, nem se pode aceitar ilações que pretende retirar, de forma contraditória, mas que lhe seriam favoráveis, quanto ao reconhecimento da mesma testemunha, porque como se referiu (e, a mesma também defende), não vale como meio de prova. Daí que seja gratuita a conclusão a que chega de que “A testemunha EE reconheceu o Sr. BB como tendo sido a pessoa que esteve presente no dia da escritura”.

11. Veja-se, a propósito, também o testamento feito pelo assistente em ........2016 em que lega diversos imóveis a variadas instituições de beneficência, testamento que depois foi objeto de ação de anulação (n.º 1662/19.0..., no juízo local cível de ..., ...) pelo irmão do assistente.

12. Assim, entre outros, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Lisboa: Verbo, 2005, pp. 289 e 290, Günther Jakobs, Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y Teoria de la Imputación (trad. cast., por Joaquin Cuello Contreras e José Luis S. González de Murillo, da 2ª ed.-1991 de Strafrecht. Allgemeiner Teil. Die Grundlagen und die Zurechnungslehre), 2ª ed. corrigida, Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 745, Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal. Parte General (trad. cast., por José Luis Manzanares Samaniego, da 4ª ed. – 1988 de Lehrbuch des Strafrechts. Allgemeiner Teil), 4ª ed. corrigida e ampliada, Granada: editorial Comares, 1993, p. 614 e Claus Roxin, Autoria y Dominio del Hecho en Derecho Penal (trad. cast., por Joaquin Cuello Contreras e José Luis S. González de Murillo, da 6ª ed.-1994, de Täterschaft und Tatherrschaft), Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 307.

13. Neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 6/10/2004, proferido no processo nº 1875/04 (relatado por Henriques Gaspar), consultado no mesmo site do ITIJ.

14. Assim, anotação de Jorge de Figueiredo Dias e Susana Aires de Sousa, “T.R.P., Acórdão de 24/11/2004 (Autoria mediata do crime de condução ilegal de veículo automóvel)”, in RLJ ano 135º (Março-Abril de 2006), nº 3937, p. 255.

15. Neste sentido, Ac. citado do STJ de 6/10/2004 e Hans-Heinrich Jescheck, ob. cit., pp. 618 e 619.