Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5043/16.0TSTB.E1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: POSSE
DETENÇÃO
CORPUS
ANIMUS POSSIDENDI
USUCAPIÃO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
MUNICÍPIO
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 04/11/2019
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / EFEITOS DA POSSE / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE / AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE.
Doutrina:
- Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1966, p. 66 e 67;
- Mota Pinto, Direitos Reais, 1970, p. 181 a 185;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 3.º, 1972, p. 5.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 635.º, N.º 4, 639.º, N.ºS 1 E 2 E 663.º, N.º 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1251.º, 1252.º, N.º 1, 1253.º, ALÍNEAS A) E B), 1268.º, N.º 1, 1287.º, 1290.º, 1316.º E 1317.º, ALÍNEA C).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 201.º, N.º 1, ALÍNEA A).
DECRETO DO REI D. PEDRO IV, DATADO DE 28-05-1834.
CARTA RÉGIA DE 20-12-1888.
DIRECTOR DA DIRECÇÃO GERAL DOS PRÓPRIOS NACIONAIS, DE 23-07-1889.
DECRETO DAS CORTES GERAIS, DE 29-12-1891.
CARTA DO REI DE 28-01-1892.
DECRETO DAS CORTES DE 22-12-1892.
DL N.º 149/84, DE 10-05.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA DE 14-05-1996, IN DR II SÉRIE DE 24-06-1996.
Sumário :
- No caso dos autos não se preenche o “corpus” (exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa) nem o “animus” (intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados).

- Deste modo, a ré não adquiriu a propriedade do imóvel por usucapião.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - RELATÓRIO  


O autor, Município de … intentou acção declarativa de mera apreciação negativa com processo comum contra a ré Santa Casa da Misericórdia de …, pedindo que seja reconhecido não ter a ré adquirido, por usucapião, a propriedade do prédio urbano, com a área coberta de 396,10 m2, a área descoberta de 310,50 m2 e logradouro com a área de 85,6 m2, composto por edifício de alvenaria, coberto com telha, destinado a balneário público com dois anexos, situado na Rua …, na freguesia de …, do concelho de …, que confronta do Norte e do Poente com cerca do Convento de …, do Sul com Convento de … e, do Nascente com Rua do …, inscrito na matriz predial urbana o artigo 1.833, da freguesia de … .


Alegou que a ré nunca exerceu uma posse jurídica com virtualidades usucapientes sobre tal prédio, devendo, como tal, ser ordenado o cancelamento da abertura de descrição e inscrição do direito a favor da ré, que promoveu na Conservatória do Registo Predial de …, com base na justificação notarial lavrada a 5 de Fevereiro de 2013 que, assim, impugna.


A ré contestou, excepcionando a ilegitimidade material do autor uma vez que reconhece não ser o proprietário (ou titular de qualquer outro direito real) do imóvel nem pretender reivindicar tal direito, pelo que não é interessado nos termos preconizados pelo artº 100º do Código do Notariado, carecendo, por isso, de legitimidade substancial ou material para estar em juízo, pelo que a ré deve ser absolvida do pedido.

Por impugnação, alegou, em suma, que desde 1919 foi construído um balneário no imóvel, edifício que foi depois doado à ré em 1922, que vem exercendo todos os actos materiais inerentes ao exercício do direito de propriedade sobre o edifício e o terreno onde se encontra implantado. O próprio Estado nunca manifestou qualquer oposição à conduta da ré, tendo mesmo reconhecido a sua propriedade do imóvel e nunca reclamando desta a entrega do imóvel. O Município autor solicitou à ré autorização para ocupar o edifício para os fins referidos no artigo 38º da petição inicial, ou seja, para ser ocupado e utilizado pelos serviços administrativos do Museu e como depósito de alguns bens do seu espólio. A ré nunca manifestou uma conduta compatível com a de mero detentor

Termina pedido a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.


Replicou o autor alegando, em suma, que não contesta ser a ré proprietária do edifício do balneário …, enquanto benfeitoria construída em terreno alheio, mas tal não significa que detenha a posse jurídica do terreno onde o edifício está implantado o balneário e várias outras construções situadas na chamada cerca pequena do Convento de …, que a ré não alega serem de sua propriedade; a questão da legitimidade substancial ou processual já foi dirimida há muito, sendo pacífico o entendimento de que a legitimidade é sempre atinente à causa, o que implica a absolvição da instância e não do pedido.

O autor tem a concessão do conjunto do Convento de … por 20 anos, prorrogável, pelo que tem um interesse directo em impugnar a aquisição da propriedade por usucapião, terminando como na petição inicial.


No despacho saneador foi o autor julgado parte ilegítima e a ré absolvida da instância.

O autor interpôs recurso de revista per saltum e o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 28.06.2017, concedeu provimento ao recurso e declarou o autor parte legítima, ordenando o prosseguimento dos autos (fls 125 a 141).


Foi proferida sentença que julgando a acção procedente:

- Declarou a inexistência, pela Ré Santa Casa de Misericórdia de …, IPSS, do direito de propriedade, por usucapião, sobre o prédio urbano, com a área coberta de trezentos e noventa e seis vírgula dez metros quadrados, a área descoberta de trezentos e dez vírgula cinquenta metros quadrados, e logradouro com a área de oitenta e cinco vírgula seis metros quadrados, composto por edifício de alvenaria, coberto com telha, destinado a balneário público com dois anexos, situado na Rua …, na freguesia de …, do concelho de …, que confronta do Norte e do Poente com cerca do Convento de …, do Sul com Convento de … e, do Nascente com Rua …, inscrito na matriz predial urbana o artigo 1.833, da freguesia de … .

- Ordenou o cancelamento da abertura da descrição e inscrição do direito de propriedade a favor da Ré Santa de Misericórdia de …, IPSS, efectuado na Conservatória de Registo Predial de …, com base na escritura pública de justificação notarial de 9/09/2013.


A ré recorreu da sentença e a Relação de Évora, no seu acórdão de 02.10.2018, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.


Não se conformando com aquele acórdão, dele recorreu a ré, nos termos do disposto nos artigos 629º nº 2 alª c) e 672 alª b) do CPC, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

A) O acórdão recorrido integrando o conceito de dupla conforme previsto no nº 3 do artº 671º do CPC, princípio seria insusceptível de recurso

B) Porém, tal preceito exclui os casos em que o recurso é sempre admissível, sendo um desses casos, nos termos da al. c) do nº2 do artº 629º do CPC, prolacção contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

C) O acórdão recorrido contraria a doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/1996 publicado no Diário da Republica II série de 24/6/1996, que considera que “O corpus faz presumir a existência do animus“, entendimento que o acórdão sob impugnação não acolheu, sendo, pois admissível a revista nos termos da alª c) do nº 2 do artº 629º do Código do Processo Civil.

D) Do acórdão recorrido sempre caberia revista excepcional, nos termos da alª b) do nº 2 do artº 672º do CPC, tendo em atenção o objecto do pleito, um imóvel que foi destinado a balneário público de 1926 a 1952, e que integra o património cultural da cidade de … e as partes na causa.

E) Sempre foi pacificamente aceite na cidade a sua propriedade por parte da Santa Casa da Misericórdia e o não reconhecimento de tal propriedade por oposição do Município de …, revela-se com impacto social na cidade pois a conflitualidade decorrente da decisão judicial sob impugnação, fazendo prevalecer a posição menos aceite na sociedade pode determinar reacção social ou desconforto da população em relação a ambas as instituições.

F) Afigura-se assim estar preenchido o requisito da alª b) do artº 672º nº 2 do CPC para, caso não se entendesse ser admissível revista, ser admissível revista excepcional, não obstante a “ dupla conforme”.

G) O acórdão recorrido confirmou a sentença de 1ª instância que declarou a inexistência pela ré Santa Casa da Misericórdia de … do direito de propriedade por usucapião, sobre o prédio dos autos e que corresponde ao prédio onde se encontrava instalado o Balneário … na sequência de acção intentada pelo Município de … a impugnar e escritura de justificação notarial em que a ora recorrente se arroga proprietária por usucapião, decorrente da posse pública pacífica e de boa-fé de tal prédio.

H) Resulta dos autos, e sempre foi aceite pelo autor Município de … que o edifício do Balneário foi doado à Santa Casa da Misericórdia inacabado, que terminou a sua construção, o equipou e o manteve em funcionamento até ao momento em que foi encerrado.

I) Impugna o autor que o terreno em que foi implantado o edifício do balneário era terreno do Estado e que a posse exercida pela Santa Casa da Misericórdia seria uma posse precária, uma mera detenção.

J) A escritura de justificação impugnada na acção, versando embora sobre todo o imóvel, teve por objectivo possibilitar o registo da propriedade a favor da justificante do edifício já anteriormente de sua propriedade e o registo da propriedade do terreno em que o mesmo se encontrava implantado, por em seu entender o ter adquirido por usucapião.

L) Reconhecendo o autor Município que a Santa Casa da Misericórdia é o seu adquirente originário e que teve a posse jurídica do mesmo “ enquanto benfeitoria construída em terreno alheio”.

M) Ora, o acórdão recorrido, mesmo em relação ao edifício (balneário), veio a considerar que tendo a ré actuado durante todo o tempo como uma detentora, sem intenção (animus possidendi) de agir como titular do direito de propriedade, não exerceu posse com animus de proprietário.

N) Conclusão que se afigura incompatível com a doação dada como provada nos autos e bem assim com o efeito jurídico de tal negócio jurídico transmissão da propriedade da coisa e também com a própria aceitação da propriedade do edifício por parte do autor Município de … .

O) Não se afigura existir qualquer dúvida quanto à propriedade plena do edifício do Balneário, sendo certo que o mesmo não acontece com o terreno em que o mesmo se encontra implantado e objecto da impugnação da justificação para aquisição da sua propriedade por usucapião.

P) O acórdão sob recurso manteve a decisão da 1ª instância considerando “a R. nunca inverteu o título da posse sobre o balneário tendo actuado sobre o imóvel como mero detentor e nunca actuou sobre o mesmo como se de proprietário se tratasse, ou seja, nunca exerceu uma posse qualificada com o animus de proprietário, ou de outro direito real”.

Q) Tal decisão contraria a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em que se entende que “o corpus faz presumir a existência do animus”.

R) Da matéria de facto provada nos autos resulta, que nomeadamente em relação ao terreno, mas ainda que desnecessariamente em relação ao edifício implantado no terreno, a recorrente exerceu poderes de facto sobre ambos, com ocupação material do terreno por efeito da doação e posterior ocupação do edifício em funcionamento como balneário.

S) Assim, provado o corpus, opera a presunção de existência de animus, reconhecida no Acórdão Uniformizador citado.

T) Funcionando a presunção impunha-se ao autor nos termos do nº 2 do artº 350º do Código Civil ilidir tal presunção, provando que a Santa Casa da Misericórdia de … não era possuidora do terreno onde o balneário se encontra implantado.

U) O que não ocorreu nos autos pois a elisão da presunção impõe a prova positiva do facto contrário provado pela presunção, e tal não se verificou nos autos.

V) Resultam assim provados os requisitos “ corpus “ e “animus” da posse que justificam a aquisição por usucapião do terreno e confirmação da propriedade do edifício nele implantado.

X) Ao decidir como decidiu o acórdão recorrido julgou contra jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça e violou por errada interpretação o disposto nos artigos 954º alª a), artº 1252º nº 2 e artº 1256º nº 1 do Código Civil.

Z) Pelo que deve ser dado provimento ao recurso declarando-se eficaz a justificação notarial consubstanciada na escritura junta aos autos, revogando-se o acórdão recorrido e julgando-se a acção improcedente.


A parte contrária contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.


Por acórdão de 07.03.2019, a Formação ordenou a distribuição como revista nos termos gerais. (fls 354).


Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II -FUNDAMENTAÇÃO


A) Fundamentação de facto


Mostram-se provados os seguintes factos

1 - No dia 9 de Setembro de 2013, no Cartório Notarial de …, do notário licenciado AA, sito na Rua …, nº …, em …, foi outorgada pela Santa Casa da Misericórdia de …, IPSS, representada pelo provedor Dr. BB, a escritura pública de justificação constante de fls. 29 vº a 32, na qual declarou, além do mais, que “ (…) a Santa Casa da Misericórdia de …, é dona e legitima possuidora, com exclusão de outrem, do prédio urbano, com a área coberta de trezentos e noventa e seis vírgula dez metros quadrados, a área descoberta de trezentos e dez vírgula cinquenta metros quadrados, e logradouro com a área de oitenta e cinco vírgula seis metros quadrados, composto por edifício de alvenaria, coberto com telha, destinado a balneário público com dois anexos, situado na Rua …, na freguesia de …, do concelho de …, que confronta do Norte e do Poente com cerca do Convento de …, do Sul com Convento de … e, do Nascente com Rua …, inscrito na matriz predial urbana o artigo 1.833, da freguesia de …, sendo o seu titular inscrito a Santa Casa da Misericórdia de …, IPSS, com o valor patrimonial de 310.090,00€ igual ao atribuído.

No tocante ao registo predial o indicado prédio não se encontra, ainda, descrito na Conservatória de Registo Predial competente.

Que em mil novecentos e dezanove, sentida a necessidade de existir um balneário que servisse por um lado o Hospital contíguo e por outro a cidade de … e, sendo a mesma impulsionada pelo médico terceirense, Doutor CC, antigo provedor da Santa Casa da Misericórdia de …, constitui-se, para esse fim, a comissão promotora da construção dessa obra.

Que adquirido o terreno e iniciada a construção, nesse ano de mil novecentos e dezanove. Concluiu a referida comissão que, apesar dos donativos recebidos, não conseguia concluir a obra iniciada.

Que, assim, decidiram em vinte de Julho de mil novecentos e um, doar o prédio em construção à Santa Casa da Misericórdia, com uma única condição, que o balneário mantivesse a denominação por ela escolhida.

Que, a aceitação da transmissão do edifício em construção foi autorizada pelo Ministério do Trabalho, a qual consta da portaria número três mil cento e oitenta e seis de dezasseis de Maio de mil novecentos e vinte e dois.

Que a sua representada entrou então na posse do prédio urbano, no início identificado, tendo concluído a sua construção, tendo equipado, ficando o mesmo só ao serviço dos doentes do hospital contíguo, também da Santa Casa da Misericórdia e dos habitantes de …, gozando de todas as utilidades, com ânimo de quem exerce um direito próprio, sendo reconhecida como dona por toda a população local, fazendo-o de boa-fé, por ignorar lesar alheio, de uma forma pacífica, ininterrupta e sem violência, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém. Que, assim a sua representada, a partir da data da conclusão, no dia 30 de Maio de mil novecentos e vinte e seis, o usou para “banhos de limpeza e banhos medicinais a internados na Misericórdia”. Que, de facto, a sua representada, exerceu sobre o indicado prédio uma posse pacífica porque iniciada sem violência nem coacção e sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente os vizinhos e habitantes da freguesia de …, e ainda pública e de boa-fé porque exercida à vista e com conhecimento de toda a gente, e por saber que não lesava qualquer direito alheio. Que não possui, porém, o título necessário à plena prova do seu direito pelas vias extrajudiciais normais e por isso vem justificá-lo. Que, assim, (…) a representada do primeiro outorgante adquiriu por usucapião, com efeitos retrotraídos a mil novecentos e vinte e dois, o direito de propriedade sobre o prédio que é objecto da presente escritura (…) ”

2 - Pela Ap.639 de 2013/11/12, foi registada a favor da Santa Casa da Misericórdia de …, IPSS, a aquisição, por usucapião, do prédio identificado em 1) descrito em ficha nº 2007/20131112, da então freguesia de … .

3 – O edifício do balneário foi construído no terreno da Cerca Pequena do Convento de …, correspondendo ao edifício identificado pelo nº 3 na planta junta a fls. 43 dos autos.

4 - O Convento de …, nas diversas descrições, inventários e assentos que se lhe referem (nomeadamente a descrição efectuada em 20 de Setembro de 1858 ordenada pela Portaria do Ministério da Fazenda, de 1 e 9 de Junho de 1852, a descrição e avaliação efectuadas em 20 de Junho de 1861, ao abrigo ainda daquela Portaria, o Mapa dos Bens e Rendimento do Convento de … de …, lavrado em 20 de Junho de 1861, o auto de posse pela Fazenda Pública dos bens do Convento de …, de 7 de Janeiro de 1889, a descrição e avaliação dos bens de 19 de Junho de 1891) comporta três partes distintas, a saber:

- Igreja composta de três naves, sacristia, altar-mor, dois altares laterais, com saída e entrada lateral.

- Convento que consta de 1º andar, casas térreas, coro, refeitório, dormitórios, casas para arrecadações e uma pequena casa por baixo do coro que servia de casa de despacho e casa anexa que servia de habitação ao capelão.

- “Cerca Pequena” anexa ao Convento, destinada a recreio das religiosas.

- “Cerca Grande ou Horta”, também anexa ao Convento, composta de árvores de fruto e caroço, latadas, terras de semeadura, poço e tanque, destinada à produção de géneros para sustento da comunidade.

5 - Por Decreto do Rei D. Pedro IV, datado de 28 de Maio de 1834 e promulgado a 30 de Maio do mesmo ano, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares, sendo os seus bens secularizados e incorporados na Fazenda Nacional, à excepção dos vasos sagrados e paramentos que seriam entregues aos ordinários das respectivas dioceses.

6 - Os conventos das ordens religiosas femininas não se extinguiram imediatamente, continuando a existir, não podendo, contudo, admitir noviças, ficando a sua extinção dependente do óbito da última religiosa, só então sendo os seus bens incorporados na Fazenda Nacional.

7 - O Convento de … estava afecto a uma ordem religiosa feminina – das DD – pelo que não foi incorporada no domínio estatal logo no início da vigência do referido Decreto de D. Pedro IV, tendo tal incorporação, como se disse, ficado dependente do óbito da última religiosa em clausura, que ocorreu em 19 de Novembro de 1888.

8 - Com a morte dessa religiosa, a Misericórdia de … (a quem, dias antes, já havia sido concedida a posse de “parte do Convento das Religiosas de …, para aí estabelecer uma enfermaria de mulheres e a Igreja do mesmo Convento para serviço espiritual dos doentes do hospital”, limitada, contudo, a apertadas condições para garantia da protecção da clausura da religiosa então ainda viva), por suplicação 21 de Novembro de 1888, requereu que lhe fosse concedida a posse de todo o Convento de ….

9 – No seguimento dessa petição, por Carta Régia de 20 de Dezembro de 1888, foi concedido, provisoriamente, à Mesa de Santa Casa da Misericórdia de …, todo o edifício do Convento das Religiosas de …. de … e suas pertenças, para ser aplicado a hospital, com as cláusulas de serem feitas as expensas da mesma corporação todas as obras necessárias à instalação do projectado hospital, e de reversão para a Fazenda, sem indemnização alguma e no estado em que se achar, quando se não lhe dê, dentro do prazo de dois anos, o destino para que exclusivamente é concedido, ou quando o Estado o julgar conveniente, ficando a concessão definitiva dependente do poder legislativo.

10 - E, por Carta do Rei de 28 de Janeiro de 1892, sancionando o Decreto das Cortes Gerais, de 29 de Dezembro de 1891, é concedido definitivamente, à Santa Casa da Misericórdia de …, o “edifício e todos os seus pertences do extinto Convento das Religiosas de … para nele instalar o seu hospital”, nos termos das disposições do referido Decreto de 20 de Dezembro de 1888.

11 - Tendo ficado expresso, no parágrafo 2 do artº 1º de tal diploma, que o edifício e seus pertences “voltarão à posse da Fazenda Nacional, no todo ou em parte, quando deixarem de ter a aplicação fixada nesta lei”.

12 - Tendo-se levantado dúvidas de quais os bens que estavam abrangidos pelo referido Decreto de 20 de Dezembro de 1888, foi esclarecido, por despacho do Director da Direcção Geral dos Próprios Nacionais, de 23 de Julho de 1889, que a concessão abrangia “somente o edifício do convento com a igreja e toda a sua ornamentação e imagens e objectos de culto, bem como a casa do capelão e a Cerca Pequena”, ficando (…) excluída a Cerca Maior (…), também designada como Horta”, que deveria ser posta em praça.

13 – Tendo sido anunciada a arrematação da referida “Horta ou Cerca Grande”, foi a mesma retirada da praça a solicitação da Santa Casa da Misericórdia, que, posteriormente, requereu que tal retirada fosse definitiva.

13 a) - A Santa Casa da Misericórdia instalou no Convento de … um hospital, tendo, para esse efeito, construído, na Cerca Pequena do Convento um edifício para servir de enfermaria, correspondente ao identificado com o nº 2 na planta, que constitui o documento 3 anexo, e outras construções de apoio ao hospital, identificadas nessa planta com os nºs 5, 6 e 7, junta a fls. 33 v dos autos.

14 - O hospital, instituído pela Santa Casa da Misericórdia, ao abrigo da referida concessão, esteve em funcionamento até à abertura do Hospital Regional de …, inaugurado oficialmente no dia 9 de Maio de 1959.

15 – Com a transferência de todos os serviços e equipamento, pertença da Santa Casa, para o então inaugurado Hospital de …, foi desactivado a unidade hospitalar, embora tivessem sido aí instalados, até ao fim da década de 60 do século passado, serviços de assistência aos tuberculosos e consultas de psiquiatria do Centro Psiquiátrico da Zona Sul.

16 – Tendo deixado de ter, na totalidade, essa afectação ao funcionamento de um hospital, nos termos que estavam previstos no referido § 1º do artº 2º do Decreto das Cortes de 22 de Dezembro de 1892, foi, então, pelo Decreto-lei nº 149/84, de 10 de Maio, decretada a reversão para o Estado do conjunto do Convento de … de … .

17 – Na sequência da reversão, a ora Ré Santa Casa da Misericórdia de … remeteu ao Director-Geral do Património do Estado a missiva de 25/05/1984, junta a fls. 202 a 204 dos autos, que aqui se dá por reproduzida, da qual consta, além do mais, o seguinte “ (…) Assunto: terrenos anexos ao antigo Convento de …, em … (…) Com a publicação do Decreto-lei 149/84, de 10 do corrente ficou consumada a referida reversão (…). Com efeito, não só é impossível obterem-se os financiamentos necessários às obras programadas e indispensáveis à vida da Santa Casa da Misericórdia sem a titularidade dos terrenos respectivos como também não pode a Instituição funcionar sem os Serviços Comuns implantados na área-Administração, forno, padaria, lavandaria mecânica, oficinas, garagem e armazéns. Estes serviços distribuem-se ao longo da chamada “Cerca Pequena” anexa à “Cerca Grande” em edifícios construídos pela Misericórdia.

Ainda na “Cerca Pequena” existe um outro edifício, que até 1982, funcionou como balneário, encontrando-se agora em fase de reconversão para nele se instalar um Centro Infantil, de que … muito carece e que alargará o campo de acção social desenvolvido pela Santa Casa.

(…) Pelas razões expostas, que considero ponderosas, tenho a honra de solicitar a Vº. Exa. Se digne promover a concessão definitiva, a favor desta Instituição, das seguintes parcelas do conjunto do extinto Convento de Jesus:

1- Cerca Grande, com as construções nela existentes;

2- Cerca Pequena, com as construções nela existentes;

3- Edifício de alvenaria, de rés-do-chão e 1º. Andar, com frente para a Rua …, onde se encontra instalada a Administração da Santa Casa.(…).

18 - A Igreja de … foi classificada como Monumento Nacional pelo Dec. de 16 de Junho de 1910 e o Claustro e Primitiva Casa do Capítulo como Monumentos Nacionais, pelo Dec. 23008, de 30 de Agosto de 1933, já integravam o domínio público estatal.

19 – Após o encerramento do hospital foi instalado nos Claustros do Convento de …, o Museu de …, inaugurado em 5 de Fevereiro de 1961, que, por degradação das suas condições para guarda e exposição das obras de arte que integravam o seu espólio, foi fechado ao público no início da década de 90 do século passado.

20 - Por protocolo celebrado entre a Direcção Regional da Cultura de Lisboa e Vale do Tejo e o Município de …, junta a fls. 36 v a 40 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, foi cedido ao Município, com o fim de nele instalar o Museu da cidade, o Convento de …, incluindo o Claustro, Sala de Capítulo Coro Alto, Igreja, e terrenos adjacentes, designados por Cerca Pequena e Cerca Grande, pelo prazo de 20 anos, com a condição de efectivação de um investimento de 3.560.000,00 €, com as obras de recuperação e reabilitação daquele conjunto histórico.

21 - Sendo tal prazo prorrogável por um período suplementar de dez anos, na condição de entretanto o Município realizar um investimento de 2.840.000,00 €, tudo conforme consta do doc. 5 anexo, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

22 - O Município de … já realizou o primeiro daqueles investimentos, o que permitiu a reabertura ao público do Museu nos claustros do Convento.

23 – Está anexo ao referido protocolo um levantamento topográfico junto a fls. 48 dos autos, no qual se encontram delimitadas a Cerca Grande e a Cerca Pequena e onde estão reflectidas as construções actualmente existentes praticamente coincidentes com as que estão representadas na planta que constitui o documento nº. 3, junto a fls. 33 v a 34 dos autos.

24 - O edifício de balneário foi utilizado pela Santa Casa da Misericórdia que o afectou à referida funcionalidade de balneário, suportando todos os encargos com o seu funcionamento, nomeadamente com água, energia e trabalhadores que asseguravam a sua limpeza, funcionamento, disciplina de utilização, abertura e encerramento.

25 - Destinando-se tal balneário quer aos cuidados de higiene aos doentes internados no Hospital quer ao uso do público em geral.

26 - A utilização desse Balneário pelo público manteve mesmo após o encerramento do Hospital

27 - Tendo deixado de ser utilizado como Balneário Público por volta dos finais da década de 70 do século passado, encerrando então suas portas.

28 - Após tal encerramento, com o encerramento do Museu de ..., o edifício do Balneário passou, a partir do início da década de 90 do século XX, a ser ocupado e utilizado pelos serviços administrativos do Museu e como depósito de alguns bens do seu espólio.

29 – No ano de 1917 iniciou-se uma subscrição pública entre a população de … como o objectivo de fazer um monumento ao Dr. CC, médico e provedor da Santa Casa, que não aceitou a homenagem e sugeriu que essas verbas fossem aplicadas num balneário a instalar no Hospital da Misericórdia com vista a ser utilizado quer por esta unidade quer pela população da cidade.

30 - No ano de 1919, foi constituída uma comissão benemérita e iniciou a obra mas a insuficiência das verbas levou a que o empreendimento do Balneário, com a sua construção ainda inacabada, foi doado à Santa Casa da Misericórdia de …, que terminou a sua edificação e o equipou, colocando-o ao serviço de doentes do Hospital e abrindo-o à população da cidade de … .

31 - Não existiu qualquer transacção pela qual a comissão benemérita tivesse adquirido o terreno onde está implantado o balneário … .

32- A ré procedeu a obras de reparação e alterações na estrutura do edifício do balneário, nomeadamente para ATL.

33 - Tais obras foram levadas a cabo sem qualquer autorização ou prévio conhecimento a quem quer que fosse.

34 - No ano de 1987, a ré deu de arrendamento o edifício do balneário.

35 - Até à ocupação do edifício do Balneário pelos serviços do Município de ... a ré tinha as chaves desse edifício.

36 - No ano de 1987 a ré procedeu à inscrição do edifício do balneário em seu nome na Repartição de Finanças sendo emitida a correspondente caderneta predial.

37 - A ré actuou da forma descrita à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.


Factos não provados:

A) A ré sempre ocupou o edifício do Balneário com a convicção de exercer sobre o prédio em questão um direito seu e em nome próprio correspondente ao direito de propriedade.

B) A ocupação do prédio em questão, nos termos referidos na anterior alínea, iniciou-se no ano de 1922.

C) Os factos ocorridos nas alíneas anteriores ocorreram mesmo em relação ao Estado Português.

D) O Estado Português nunca manifestou qualquer oposição ao direito de propriedade do imóvel por parte da ré.

E) A ré era considerada proprietária do terreno e do edifício do balneário por todos.


B) Fundamentação de direito

A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, consiste em saber se a ré adquiriu, por usucapião, o prédio urbano mencionados no nº 1 da Fundamentação de facto.


A autora pede que tal não seja reconhecido; A ré pugna pelo reconhecimento, conforme consta da escritura de justificação de 09 de Setembro de 2013.


Alega a ré, ora recorrente que o acórdão recorrido, que confirmou a sentença da primeira instância, contraria a doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/1996 publicado no Diário da Republica II série de 24/6/1996, que considera que “O corpus faz presumir a existência do animus“, entendimento que o acórdão sob impugnação não acolheu.


Nesse AUJ foi fixada a seguinte jurisprudência:

“ Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.


Não andaremos muito longe da aplicação do direito que foi feita, quer pela sentença, quer no acórdão da Relação, que decidiram com ponderação e acerto.


O artigo 1316º do Código Civil, sobre os modos de aquisição da propriedade, preceitua:

“O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei”.

Por outro lado, o artigo 1287º do mesmo código, sobre a noção de usucapião, estabelece que “A posse do direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.

O momento de aquisição do direito de propriedade é, no caso de usucapião, o do início da posse (artº 1317º alª c) do Código Civil).

Dispõe o artigo 1251º do Código Civil que “ posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.

Finalmente, estabelece o artigo 1268º nº 1 do Código Civil, que “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.


A posse, conforme definição do artº 1251º do CC, é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, acolhendo, assim, o legislador uma concepção subjectivista da posse. A partir dessa noção, na doutrina e jurisprudência vem sendo defendido, maioritariamente, que a posse é integrada por dois elementos: o corpus e o animus sibi habendi.

O corpus consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzindo-se no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela (guardar, ocupar, conservar, transportar) ou na simples possibilidade física desse exercício, desde que, neste último caso, a coisa esteja virtualmente dentro do âmbito do poder de facto do possuidor.

Ao corpus bastam actos de mera fruição da coisa, sem necessidade da sua detenção, ou seja, o contacto físico ou virtual, embora normalmente se conjuguem, uma vez que a posse pode ser exercida por intermédio de outrem (nº 1 do artº 1252º).

Já o elemento animus sibi habendi da posse consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto[1].


No caso dos autos, consta um memorando do IPPC cujo assunto é o seguinte: “Convento de …: Memorando sobre a situação actual/Problemas pendentes”, datado de 5-06-1990 (fls 82 a 84) onde se refere que “O Convento de … é um edifício do séc. XV classificado como monumento nacional, afecto ao IPPC, encontrando-se actualmente a ser utilizado por diversas entidades, públicas e privadas”;

Como “Problemas pendentes” a resolver, se inclui a “desocupação de espaços por entidades exteriores ao museu – desocupação do T.A.S e do Balneário da Misericórdia …”


Assim, o Estado entende, desde os anos 90, que todo o edificado no Convento de … é de sua propriedade, não havendo, por isso, que pedir autorização para utilizar o que é seu.


O que era do conhecimento da ré como o confirma o teor do documento de fl. 202 a 204, datado de 25-05-1984, onde a aquela solicita ao Estado “a concessão definitiva, a favor da instituição, das seguintes parcelas do conjunto do extinto Convento de … :

1.- Cerca Grande, com as construções nela existentes;

2.- Cerca Pequena, com as construções nela existentes;”


Ora, o balneário é uma das construções que se situa na Cerca Pequena.

Por conseguinte, esta construção não era não era tida, pela ré, como sendo de sua propriedade, porque não se pede a concessão definitiva de algo que já lhe pertence.


Por outro lado, foi publicado o Decreto-Lei nº 149/84, de 10 de Maio, que reverteu à posse e propriedade do Estado o conjunto do extinto Convento de ..., em ... .

O seu teor é o seguinte:

“Considerando que o conjunto do extinto Convento de …, em …, foi cedido à Santa Casa da Misericórdia daquela cidade, nos termos da Carta de Lei de 29 de Janeiro de 1982, com o objectivo de nele ser instalado um hospital, prevendo-se a sua reversão para o Estado quando se verificasse a sua utilização para fins diversos dos que motivaram a cessão;

Considerando que a Santa Casa da Misericórdia de … deixou de ter instalado qualquer hospital no referido Convento;

Assim:

O Governo decreta, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, o seguinte:

Artigo 1.º Por já não ter a utilização para que foi cedido à Santa Casa da Misericórdia de …, reverte para a posse e propriedade do Estado o conjunto do extinto Convento de …, em …, ao abrigo do § 2.º do artigo 1.º da Carta de Lei de 29 de Janeiro de 1892.

Art. 2.º O presente diploma constitui título bastante para o registo de propriedade, a favor do Estado, do imóvel a que se refere o artigo anterior”. 


Ora, a ré sabia que era apenas detentora de uma concessão que lhe tinha sido atribuída, ainda no tempo da monarquia, pelo poder central, do conjunto predial denominado Convento de … para utilização como unidade hospital e, para além disso, sabia também que, finda a concessão, a propriedade do prédio denominado Convento de …, no estado em que se achar, revertia para o Estado, como na realidade se verificou.


Aliás, o teor da comunicação supre mencionada, datada de 25-05-1984, junto a fls. 202 a 203, enviada pela própria ré ao Director- Geral do Património do Estado, evidencia claramente que a ré não ignorava a real situação do edifício do balneário, a de que o direito de propriedade sobre tal prédio pertencia ao Estado Português, por força da reversão, e nunca à própria ré.


Como bem refere a douta sentença da primeira instância, “Do confronto deste documento com a escritura de justificação notarial resulta evidente a desconformidade entre as declarações vertidas pela própria ré nessa missiva de 25-05-1984 e os fundamentos da justificação notarial atinente às circunstâncias de facto que determinam o início da posse, consubstanciam e caracterizam essa posse relevante e atendível para efeitos de usucapião. (como não estava) – com a convicção que exercia os poderes de factos por direito próprio – (como se fosse proprietária), pelos que tais actos não traduziram nem significam a afirmação de um direito desse tipo.

Neste contexto, temos ilidida a presunção, concluindo que o corpus da posse em que este se consubstancia está destituído do animus caracterizador da posse boa - (tal como o configura a nossa lei) - para a aquisição por usucapião.

A falta de tal animus possidendi acarreta que a ré seja simples possuidora precária, nos termos do artº 1253º, alíneas a) e b) do Cód. Civil.

É de salientar que o facto de a ré ter demonstrado que, após a reversão, continuou a ocupar, cuidar, manter o edifício, à vista de toda a gente, com conhecimento do proprietário e sem oposição de ninguém, tendo-o feito por mera tolerância do proprietário, sem que, contudo, este lhe tenha pretendido atribuir um direito, se tem de concluir que, nesse período, aquela teve apenas uma posse precária e não mais do que isso. E, a ser assim, os actos de mera tolerância só conduzem à posse se tiver havido inversão do título da posse, traduzida não só num comportamento exteriorizador do novo animus do detentor, mas numa oposição directa e formal - (no sentido de uma declaração inequívoca objectivada em actos materiais ou jurídicos), levada directamente ao conhecimento do titular do direito sobre a coisa - inversio possessionis - o que não se mostra provado”.  


Recai sobre a ré, que interveio na justificação notarial de 09-09-2013 (fls 30 a 32), a prova dos factos constitutivos do direito que justificou, ou seja, que exerceu sobre o imóvel uma posse relevante para efeitos aquisitivos por usucapião, com “corpus” e “animus”.


Ora, não se provou que:

- A ré sempre ocupou o edifício do Balneário com a convicção de exercer sobre o prédio em questão um direito seu e em nome próprio correspondente ao direito de propriedade – (A).

- A ocupação do prédio em questão, nos termos referidos na anterior alínea, iniciou-se no ano de 1922 – (B).

- Os factos ocorridos nas alíneas anteriores ocorreram mesmo em relação ao Estado Português – (C).

- O Estado Português nunca manifestou qualquer oposição ao direito de propriedade do imóvel por parte da ré – (D).

- A ré era considerada proprietária do terreno e do edifício do balneário por todos – (E).


Donde se pode concluir que a ré manteve a posse, mas sem intenção de adquirir o direito de propriedade pela usucapião, nos termos do disposto no artigo 1287º do Código Civil.

Fê-lo apenas como mera detentora ou possuidora precária, sem que se achasse invertido o título de posse sobre o supra mencionado Balneário (artigo 1290º).


Efectivamente, a posse como caminho para a dominialidade é a posse stricto sensu, não, a posse precária ou detenção.

No caso dos autos não se preenche o “corpus” (exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa) nem o “animus” (intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados).


Deste modo, a ré não adquiriu a propriedade do imóvel por usucapião, e muito menos se verifica a apontada contradição entre o acórdão recorrido e o AUJ de 14 de Maio de 1996.



III - DECISÃO


Atento o exposto, nega-se provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 11 de Abril de 2019


Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Paula Sá Fernandes

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[1] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 3º, 1972, p. 5; Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1966, p. 66 e 67 e Mota Pinto, Direitos Reais, 1970, p. 181 a 185.