Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE RAPOSO | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM OBJETO DO RECURSO COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO INCOMPETÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 02/05/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA | ||
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Sumário : | I. Da factualidade não provada consta que “o arguido … quis actuar dessa forma na sequência de um desentendimento de pequena importância com o ofendido, estando ciente de que agia por mero motivo fútil e ao abrigo de impulso totalmente desproporcionado à situação vivenciada”. Consta numa das conclusões do Ministério Publico recorrente pretende: “Consideramos que se mostra preenchida a qualificativa do “motivo fútil”, prevista no art. 132º-2-e) do CP, devendo ser dado como provado que o arguido agiu de modo desproporcionado e violento, com sentimentos de raiva e nojo, decidindo retirar a vida à vítima … na sequência de discussão antes mantida com este, recusando o arguido namorar com aquele, dizendo-lhe não ser homossexual”. II. É, por isso, claro que o recorrente pretende alterar a matéria de facto provada e não provada no acórdão da 1ª instância, pelo que não está em causa o exclusivo reexame da matéria de direito e/ou a violação do disposto nos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal. III. Nestas circunstâncias, independentemente de o recurso de impugnação ampla da matéria de facto estar correctamente formulado, não se verificam as condições para o conhecimento do recurso directamente pelo Supremo Tribunal de Justiça porquanto a pretensão do recorrente, decorrente das suas conclusões também abrange a alteração da matéria de facto, sendo esse um limite inultrapassável à intervenção directa deste Tribunal. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO Por acórdão de 18.9.2024, o tribunal coletivo absolveu e condenou o arguido AA, solteiro, nascido a ........1986, filho de BB e de CC, natural do ..., de nacionalidade brasileira, ..., titular do passaporte brasileiro n.º GD....05, com última residência na Alameda ... e actualmente preso preventivamente à ordem destes autos, no Estabelecimento Prisional de ..., nos seguintes termos: Absolveu o arguido da prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º nº 1 e nº 2 al. e) do Código Penal. Condenou o arguido: • pela prática, em autoria material, concurso efectivo e na forma consumada, de: • um crime de homicídio, previsto e punido pelo art. 131º do Código Penal, na pena de 14 anos de prisão. • um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo art. 254º nº 1 al. a) do Código Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão; • em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º nºs 1 e 2 do Código Penal, na pena única de 15 anos de prisão efectiva; • na sanção acessória de expulsão do território nacional, ficando vedada a sua entrada e permanência no território acional pelo prazo de cinco anos (art. 144º e 151º da Lei 23/2007, de 4.7). Julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD e EE, condenando o demandado AA no pagamento de: • €80.000,00 a título de indemnização pelo dano morte de FF, sendo fixada a importância de € 40.000 para cada um dos demandantes. • €30,000 à demandante DD e de € 20,000,00 ao demandante EE a título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes. • aos demandantes do valor de €5.000,00, a título de indemnização por danos morais sofridos pelo falecido FF no momento da sua morte; • à demandante DD do valor de €3371,59, a título de danos patrimoniais pelas despesas assumidas com o funeral e com a escritura de habilitação de herdeiros. • juros de mora, calculados à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, sendo que em relação aos danos patrimoniais se vencem desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e em relação aos danos não patrimoniais desde a data da prolação do presente acórdão. Inconformado, o Ministério Público recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo (sublinhado do relator): 1ª Nos presentes autos, o Tribunal a quo condenou o arguido AA na pena única de quinze anos de prisão, sendo que, no presente recurso, pretendemos somente sindicar a condenação parcelar referente à prática de um crime de homicídio simples, p. e p. no art. 131º do Código Penal. 2ª Não concordamos com o Colectivo quando altera a qualificação jurídica destes factos, sendo que a este arguido era imputada, no despacho de acusação pública, a prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos arts. 131º e 132º-1-2-e), ambos do CP. 3ª Entendemos que se mostra plenamente verificada a circunstância qualificativa prevista no art. 132º-2-e) do CP, o agir “por motivo fútil”, sendo que tal resulta, à evidência, do elenco de factos dados como provados, especialmente os descritos sob os nº 25 a 30. 4ª Perante a leitura dos factos provados, logo é possível concluir sobre a concreta motivação do arguido para a sua prática. 5ª Em resumo apertado, no dia dos factos, o arguido e a vítima FF desentenderam-se: a vítima queria namorar e passar férias com o arguido e este não se quis comprometer, anunciando que não era homossexual e que apenas mantinha relações sexuais com a vítima porque precisava de dinheiro. 6ª Assim, no decurso desta discussão e após um contacto da vítima nas costas do arguido, este, sentindo raiva e nojo de FF, lançou-se de imediato sobre o mesmo, num movimento repentino, e subjugou-o totalmente apertando-lhe o pescoço com o seu braço, num golpe de “mata-leão”, apenas o soltando quando se apercebeu da perda dos sentidos da vítima. 7ª De seguida, estando a vítima deitada no chão e prostrada, o arguido, para garantir que a mesma não sobreviveria, ainda puxou e apertou a fita de tecido que aquela tinha no pescoço, até se assegurar que já não respirava. 8ª O próprio arguido assumiu, em audiência, que agiu de modo desproporcionado perante a situação. 9ª O Colectivo entrou claramente em contradição quando, depois de dar os factos nº 25 a 30 como provados, afasta a expressão constante da acusação pública onde se refere que o arguido “agiu na sequência de um desentendimento de pequena importância”, ao mesmo tempo que afirma que o “único desentendimento” ocorrido entre o arguido e a vítima se prendeu com a “divergência de opinião em relação aos moldes em que deveria evoluir a convivência que os mesmos vinham mantendo (…)”; 10ª e, logo depois, ignorando o que deu como provado e de modo surpreendente, ressalta que o arguido não admitiu que essa divergência de opinião tenha estado subjacente à sua acção, destacando que este meramente perdeu o controlo e não conseguiu explicar a razão para o seu comportamento. 11ª Por último, o Colectivo ainda concluiu com a seguinte expressão: “ou seja, não resultou provado outro circunstancialismo subjacente à actuação do arguido.” 12ª Resulta evidente que o desentendimento prévio havido entre o arguido e a vítima é insignificante e até patético, tornando assim a conduta posterior do arguido, ao decidir “ceifar” a vida da vítima, como manifestamente desproporcional, inusitada e gratuita. 13ª Não se compreende como o Colectivo, tendo-se apurado, e dado como provado, o circunstancialismo concreto da actuação do arguido, saliente depois que não se apurou qualquer outro circunstancialismo relevante, parecendo ignorar o que antes deu como provado. 14ª O Colectivo descurou ainda a manifesta desproporção física entre o arguido e a vítima, face à aparente facilidade com que esta foi manietada e subjugada, sem qualquer esboço de reacção defensiva. 15ª O comportamento posterior do arguido, após provocar a morte de FF, bem descrito na demais factualidade dada como provada, também merecia outro cuidado de análise por parte do Colectivo, pois é bem elucidativo da sua frieza, calculismo, mesquinhez e oportunismo, bem como da sua indiferença pelo valor da vida humana. 16ª Consideramos que se mostra preenchida a qualificativa do “motivo fútil”, prevista no art. 132º-2-e) do CP, devendo ser dado como provado que o arguido agiu de modo desproporcionado e violento, com sentimentos de raiva e nojo, decidindo retirar a vida à vítima FF na sequência de discussão antes mantida com este, recusando o arguido namorar com aquele, dizendo-lhe não ser homossexual. 17ª Verifica-se, a nosso ver, uma evidente e flagrante contradição entre a fundamentação de facto constante do acórdão e a decisão final que é tomada, ao integrar a factualidade em causa na prática de um crime de homicídio simples, p. e p. no art. 131º do CP, ignorando a qualificativa que se mostra preenchida, tendo ocorrido, a nosso ver e com o devido respeito, erro crasso na qualificação jurídica deste segmento factual. 18ª O Colectivo devia ter sempre condenado o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos arts. 131º e 132º-1-2-e), ambos do CP, em concurso efectivo com o crime de profanação de cadáver pelo qual foi também condenado. 19ª Atendendo, de modo especial, ao elevado grau de culpa e às elevadas exigências de prevenção geral e especial aqui presentes, consideramos que é adequada a aplicação ao arguido da pena parcelar de 20 (vinte) anos de prisão, pela prática deste crime de homicídio qualificado. 20ª E, em face desta nova pena parcelar, que se apresenta como a mais elevada e implicará a redefinição da moldura do concurso das penas parcelares concretamente aplicadas ao arguido, impõe-se, a nosso ver, a fixação da pena única de 21 (vinte e um) anos de prisão. 21ª O acórdão recorrido violou, entre outros, os arts. 131º e 132º, ambos do Código Penal. Termos em que, dando-se provimento ao recurso e, em consequência, revogando-se o acórdão recorrido apenas na parte em que condenou o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131º do CP, e substituindo-o por outro onde se condene este arguido pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos arts. 131º e 132º-1-2-e), ambos do CP, fixando-se as penas, parcelar e única, acima referidas, nos termos sobreditos, farão V. Ex.ªs a costumada JUSTIÇA! O recurso foi admitido. Respondeu o arguido, concluindo pela improcedência do recurso: A) De acordo com as conclusões do, aliás, douto recurso apresentado pelo Ministério Público a questão a problematizar reside no alegado erro na qualificação jurídica dos factos pelo tribunal a quo como alegadamente integrados do crime de homicídio qualificado nos termos previstas na al. e) do n.º 2 do art. 132.º do Cód. Penal, e na sua procedência, na redefinição das penas parcelas concretamente aplicadas no que respeita ao crime de homicídio e, face ao concurso, da pena única. B) Como o tribunal a quo teve a virtude de concluir, o único desentendimento ocorrido entre o arguido e o ofendido FF ofendido foi a divergência de opinião em relação aos moldes em que deveria evoluir a convivência que os mesmos vinham mantendo, pretendendo a vítima uma relação próxima a um namoro ou a uma relação de natureza sentimental enquanto o arguido apenas pretendia manter contactos esporádicos a troco de dinheiro, tanto mais que este referiu não ser homossexual, não tendo, no entanto o arguido nas suas declarações não admitiu que essa circunstância esteve subjacente à sua actuação. C) Refere o art.º 132.º, n.º 2, al. e), do Código Penal, o que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, a circunstância de o agente “ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil”. D) A jurisprudência tem vindo a considerar que “motivo fútil é o móbil da actuação despropositada do agente sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente” [Ac. STJ de 10.12.2008, Proc.º 08P3703, relator Pires da Graça, sumariado em www.dgsi.pt]; é “o motivo frívolo, leviano, ou mesmo o motivo que não tem qualquer relevo” [Ac. STJ de 18.09.2013, Proc.º 110/11.9JAGRD.C1.S1, relator Arménio Sottomayor, em www.dgsi.pt]; “é aquele que não pode razoavelmente explicar e, muito menos, justificar a conduta do agente. (...) É “aquele que não tem importância, é insignificante, irrelevante” [Ac. STJ de 18.10.2007, Proc.0 n.° 07P2586, relator Santos Carvalho, em www.dgsi.pt]. E) Qualquer homicídio, para preencher os requisitos do tipo do art.º 131, comporta um juízo de futilidade e censurabilidade, no que respeita à atuação do homicida, todavia este juízo de futilidade nas razões que levaram à morte de outrem, mostra-se já em si integrado no âmbito do crime de homicídio na sua forma simples, pois a moldura penal prevista decorre do juízo de enorme gravidade e censura que a comunidade dirige - e correctamente - a tal tipo de actos. F) A lei exige, assim, para se considerar um homicídio como qualificado, uma especial censurabilidade e perversidade que exceda a censurabilidade que o art. 131.º do CP já prevê. G) Neste quadro, não parece ser possível afirmar que o motivo subjacente à agressão mortal do ofendido FF seja fútil, no sentido pressuposto pela lei. H) Pois, para a qualificação nos termos do artigo 132.º do Código Penal, exige-se que o agente tenha agido com culpa agravada, ou seja, que as concretas circunstâncias da sua conduta permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo susceptível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio. I) A conduta homicida do arguido relativamente à vítima FF, de acordo com a prova produzida, ocorreu sem preparação prévia, sem estabelecimento de plano, sem propósito sedimentado, e sem que se tenha esclarecido, cabalmente, o motivo subjacente a toda esta atuação. J) Parece-nos, salvo o devido respeito, que o que o Ministério Público intenta é qualificar o crime que o arguido cometeu por conta do seu comportamento posterior que, na ótica do Ministério Público, “é bem elucidativo da sua frieza, calculismo, mesquinhez e oportunismo, bem como a sua indiferença pelo valor da vida humana.” K) O comportamento do recorrido após a prática do crime de homicídio, não integra este tipo legal de crime, mas sim o crime, pelo qual o arguido foi, também, condenado de profanação de cadáver. L) A inexistência de motivo, “…não equivale a motivo fútil, uma vez que só há motivo (ainda que fútil) se existir. De outra forma, todo o homicídio envolveria sempre motivo fútil, desde que inexistisse motivo.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de dezembro de 2008, proc. 08P3703, disponível em dgsi.pt – o que, como já dissemos, banalizaria o crime de homicídio qualificado. M) Os concretos factos dados como provados e não provados não permitem a condenação do arguido pelo crime de homicídio qualificado como defende o Ministério Público nos termos do disposto na al. e) do n.º 2 do art. 132.º do Cód. Penal, pelo que nenhuma censura merece o aresto colocado em crise na medida em que apreciou e julgou criticamente os factos de que o arguido vinha acusado, tendo-o condenado no crime que, efetivamente, cometeu. N) Não deverá, assim, ser conferido provimento ao recurso apresentado pelo Ministério Público, confirmando-se, integralmente, o douto acórdão proferido pelo tribunal a quo. O) Por mera hipótese de trabalho e cautela de patrocínio, na procedência da pretensão do Ministério Público, sempre se dirá que a pena proposta não satisfaz adequadamente – por pecar por excesso – as exigências de prevenção geral e especial reclamadas, sendo violadora dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, mostrando-se desadequada por não espelhar a culpa do arguido. P) Tendo em consideração que, sem prejuízo das elevadas necessidades de prevenção que se fazem sentir, não deixando de militar a favor do arguido a circunstância do mesmo não ter condenações anteriores, ter confessado os factos, e revelar arrependimento, mesmo no caso de eventual condenação pelo crime de homicídio qualificado, diante de uma moldura penal entre 12 e 25 anos, face ao que fica estribado, a pena parcelar a aplicar não deverá exceder os 15 anos e a pena única, no concurso, nunca deverá ser superior a 16 anos. Termos em que, deverão V. Ex.as negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando, integralmente a decisão recorrida, ou assim não se entendendo, o que por mera cautela de patrocínio se equaciona, pela eventual condenação pelo crime de homicídio qualificado nos termos do disposto na al. e) do n.º 2 do art. 132.º do Cód. Penal, a pena parcelar a aplicar não deverá ser superior a 15 anos e apena única, no concurso, não deverá exceder os 16 anos. Assim, farão V. Ex.as JUSTIÇA! No Tribunal da Relação de Coimbra foi proferido despacho liminar a remeter os autos ao Supremo Tribunal, com a seguinte fundamentação: Proferido o acórdão de 18-09-2024, veio o MP dele interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo requerimento de 15/10/2024. O tribunal recorrido admitiu o recurso em 21-10-2024. Após a resposta do Arg., foi, em 13-12-2024, proferido despacho a ordenar a subida dos autos a este tribunal. Sendo as conclusões da motivação do recurso que fixam o seu objecto, no presente caso, das mesmas resulta que o MP impugna, tão-só, a tipificação do crime de homicídio e a medida da respectiva pena. Ambas estas questões são de direito, pelo que o recurso foi correctamente interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, assim sendo a competência para dele conhecer desse tribunal (art.º 432º/1-c) do CPP). O despacho que mandou subir o recurso não vincula este tribunal (art.º 414º/3 do CPP). Assim, remeta os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, por ser o competente. O despacho foi notificado e transitou em julgado. * Nesta instância, foi cumprido o disposto no art. 417º nº 1 do Código de Processo Penal. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer que termina com a seguinte síntese e conclusão: Comete o crime de “homicídio qualificado”, p. e p. nas disposições dos arts. 131° e 132°/2-e) do Código Penal, quem, durante o trato homossexual entre os dois, porque o ofendido lhe manifesta o desejo de manter no futuro com ele uma relação homossexual – em vez da pura compra de sexo – e lhe desferiu um soco nas costas quando aquele lhas virou, mostrando desagrado, dizendo que não era homossexual e que era casado; Com raiva, lhe tira, ali mesmo, sem hesitação e de imediato, a vida, aplicando-lhe um “mata-leão” até à morte. Mostra-se, em face das restantes circunstâncias relevantes apuradas, justa, criteriosa e proporcionada a pena parcelar de 20 anos de prisão e a única de 21 anos. IV Em conclusão: Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que: Deverá o presente recurso ser julgado procedente, com revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que condene o arguido, ora recorrido, em conformidade com o peticionado. Não foi apresentada resposta ao parecer. * Suscita-se a questão prévia da competência deste Supremo Tribunal para apreciar o recurso, ao abrigo do artigo 32º nº 1 do Código de Processo Penal. II – FUNDAMENTAÇÃO Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada (sublinhado do relator nos factos não provados da acusação pública) na parte relevante: II – Os Factos: A) Discutida a causa, ficaram provados da acusação e com relevo para a decisão da causa os seguintes factos: 1. O arguido AA, cidadão natural do ..., de nacionalidade brasileira, reside em ... desde ... de 2021. 2. Em ... de 2023, o arguido passou a residir no distrito de ..., numa habitação conhecida por ..., sita na localidade de ...), iniciando simultaneamente actividade profissional na cidade de ..., mais concretamente como trabalhador da construção civil na obra de edificação do espaço ..., no Pólo da Universidade .... 3. Desde data não apurada, mas anterior a ... de 2023, o arguido foi utilizador da plataforma de encontros sexuais “...”, site no qual publicou pelo menos um anúncio onde indicava a sua idade e a sua disposição para manter relações sexuais com quem estivesse interessado, e designadamente com indivíduos do sexo masculino. 4. Assim, nas horas livres, o arguido mantinha encontros de cariz sexual, a troco de dinheiro, com pessoas que tinham visto o seu anúncio e se mostravam interessadas em ter relações sexuais consigo, ou que o próprio arguido contactava, depois de ver os respectivos anúncios no site “...”. Esses contactos eram efectuados, designadamente, através do email ..., utilizado pelo arguido para esse efeito. 5. O ofendido FF também era utilizador do site “...”, e nesse âmbito conheceu o arguido, em ... de 2023, marcando encontros de natureza sexual com o mesmo. 6. A primeira comunicação entre o ofendido e o arguido ocorreu no dia ... de ... de 2023, data em que o ofendido remeteu um email (a partir do endereço de correio electrónico ...) ao arguido (utilizador do endereço de correio electrónico ...), no qual escreveu “Boas. Vi o seu anuncio e tenho interesse Ab”, tendo o arguido respondido no mesmo dia “Oi tudo bem, estou disponível” e “Tenho lugar super discreto”. 7. No período compreendido entre ... de ... de 2023 e ... de ... de 2023, o arguido e o ofendido encontraram-se na residência do arguido em ..., para a concretização de relações sexuais, o que ocorreu em número não concretamente apurado de ocasiões, mas com uma regularidade de cerca de 3 vezes por semana, e designadamente no dia ... de ... de 2023. 8. Entre os dias ... de ... de 2023 e ... de ... de 2023, o arguido e o ofendido trocaram 75 SMS entre si, designadamente através de Whatsapp, nas quais o ofendido utilizou o seu telemóvel .......10 e o arguido três cartões SIM diferentes (.......50; .......48 e .......22). 9. O ofendido FF era casado e exercia a actividade profissional de sócio gerente do café ..., sito na ..., em .... O ofendido mantinha em segredo os seus encontros de natureza homossexual, sendo que os seus familiares e amigos desconheciam essa faceta da sua vida. 10. No dia ... de ... de 2023, o ofendido e o arguido trocaram mensagens via Whatsapp a combinar um encontro sexual para o dia seguinte, pelas 10h00, na residência do arguido em ..., tendo o arguido dito ao ofendido, em mensagem enviada pelas 18h19, “quero gozar muito em cima de você”. 11. No dia ... de ... de 2023 (sábado), FF saiu de sua casa em ..., pelas 09h00, a fim de se deslocar à grossista Makro para aí proceder à aquisição de produtos necessários para o funcionamento do café ..., tendo efectuado esta deslocação na sua viatura Mercedes C220, de cor cinzenta, com a matrícula ..-..-RD. 12. Nesse dia, o ofendido FF envergava uma camisa de xadrez azul da marca Giovani Galli, um par de calças de ganga azul e um par de sapatos azuis da marca Quechua, bem como utilizava no pulso um relógio da marca “Festina”, com mostrador analógico de cor branca e bracelete com aplicação metálica dourada; trazia ainda consigo a sua carteira de pele castanha da marca “Camel”, com um símbolo em metal, onde transportava pelo menos €340,00 em notas do BCE, documentos pessoais e cartões bancários. 13. Entre as 09h45 e as 10h00 do dia ... de ... de 2023, o ofendido esteve no café ..., sito na ..., em ..., descarregando aqui os produtos entretanto adquiridos na Makro. Pelas 9h57, FF disse ao seu funcionário GG que ia sair do café ..., mas que contava demorar cerca de meia hora a retornar ali, tendo afirmado que iria tratar de um assunto relacionado com a sua mãe. 14. De seguida, FF conduziu o veículo de matrícula ..-..-RD desde as proximidades do café ... até à zona de ..., local onde residia o arguido, para concretização de mais um encontro sexual previamente combinado. 15. À data, o arguido utilizava o cartão n.º ... ... .22, inserido no telemóvel com o IMEI ............38. 16. Nessa manhã, o arguido remeteu diversas mensagens, via Whatsapp, para o n.º de telemóvel do ofendido, tendo dito ao ofendido, pelas 10h02, “ok te espero na porta” e, pelas 10h11, “quando estacionar me avisa ok”, sendo que pelas 10h24m06s, FF enviou uma mensagem ao arguido, já em ..., a dizer “estacionei”; às 10h24m20s, o arguido enviou mensagem a FF a dizer “pode vim”. 17. A localização da última célula activa no número de telefone de FF (... ... .10) registou-se pelas 10h24 do dia ... de ... de 2023, em Vale de .... Nesse momento, o telemóvel do ofendido foi desligado, não tendo registado mais comunicações. 18. Por volta dessa data e hora, o ofendido estacionou a sua viatura junto de uma paragem de autocarro localizada a cerca de 70 metros da residência do arguido. 19. Após, o ofendido deslocou-se apeado até ao interior da residência do arguido, sita na ..., em ...), com o propósito de ter relações sexuais com o mesmo. 20. O arguido partilhava habitualmente a aludida residência com os seus colegas de trabalho HH, II e JJ. Porém, nessa data, os dois primeiros encontravam-se em ..., local onde habitualmente passavam o fim-de-semana com as respectivas famílias, e JJ estava temporariamente ausente da residência, porque o arguido lhe tinha dito que iria receber uma mulher em casa para um encontro sexual. 21. Quando o ofendido chegou à residência, o arguido foi antes de mais confirmar se JJ estava ou não no seu quarto, tendo verificado que não, pelo que fechou a porta de acesso aos quartos do piso superior, descendo as escadas para a cave, juntamente com o ofendido. 22. O ofendido colocou a sua carteira, telemóvel e chaves do carro em cima de um aparador localizado na sala de estar da cave, bem como colocou um conjunto de notas no valor de cerca de €340,00 em cima de uma escrivaninha situada na mesma sala, sendo que pelo menos parte desse valor se destinava a pagar os serviços sexuais do arguido. 23. Em hora não precisamente determinada, mas após as 10h24, o arguido e o ofendido mantiveram relações sexuais no sofá da aludida sala de estar. 24. Depois de ejacular, o arguido foi à casa de banho e voltou para a sala de estar, sentando-se no sofá, estando o ofendido ajoelhado no chão, à sua frente, tendo-lhe perguntado pelas fitas, pois gostava de ser amarrado quer nos pulsos quer no pescoço, ao que o arguido pegou em duas fitas que estavam por baixo do sofá e enrolou-as ao redor do pescoço do ofendido, tendo dado um nó, e de seguida o arguido e o ofendido iniciaram novo acto sexual. 25. No decurso do acto sexual, o ofendido manifestou interesse em aprofundar o seu relacionamento com o arguido, convidando o arguido a fugir consigo para o ..., facto que não agradou ao arguido, ao que este último interrompeu o acto sexual, dizendo que não era homossexual, que era casado e que não estava a gostar da conversa, virando costas ao ofendido e dirigindo-se para a casa de banho. 26. Nesse momento, o ofendido desferiu um murro nas costas do arguido, o que enraiveceu o arguido. 27. Acto contínuo, o arguido AA virou-se e agarrou o ofendido FF pela retaguarda, colocando para o efeito o braço direito em volta do pescoço do ofendido, apertando-o, e simultaneamente sentou-se no sofá sem largar o ofendido, fazendo com que o ofendido ficasse ajoelhado à sua frente, aplicando-lhe um golpe vulgarmente denominado por “mata-leão”, para o subjugar. 28. Determinado a matar o ofendido FF, o arguido AA permaneceu nessa posição durante vários minutos, mantendo o seu braço direito em redor do pescoço do ofendido, fazendo pressão intensa que comprimia o pescoço do ofendido e o impedia de respirar, vindo assim a causar-lhe a morte, por asfixia. 29. O arguido só cessou essa conduta quando o ofendido já não apresentava sinais de vida, tendo então largado o corpo do ofendido, caindo o mesmo ao chão, com a cabeça virada para o solo. 30. Porém, temendo que FF ainda pudesse estar vivo, o arguido pegou numa das fitas que estava enrolada à volta do pescoço do ofendido, deu mais uma volta com a fita ao pescoço do mesmo e começou a puxar com força, parando apenas quando se certificou que o ofendido já não estava a respirar. 31. Instantes mais tarde, o arguido arrastou o cadáver do ofendido para a casa de banho da cave, onde colocou também as suas roupas e calçado, trancando a porta de seguida e ficando com a chave. 32. Nesse seguimento, o arguido acabou de se vestir, guardou os preservativos usados numa gaveta da escrivaninha, e agarrou nos €340,00 que o ofendido havia deixado na residência, colocando essa quantia no bolso. 33. Perto das 13h00, o arguido agarrou nos pertences do ofendido que ainda se encontravam em cima do aparador da sala, e saiu em direcção ao carro do ofendido (de matrícula ..-..-RD), tendo colocado a carteira e o telemóvel do ofendido na parte interior lateral da porta do condutor e agarrado nos documentos da viatura, que guardou na sua posse; de seguida, deslocou-se à localidade de ..., tendo estado no café restaurante "..." a beber cerveja. 34. Alguns momentos mais tarde, o arguido voltou para casa, trazendo os documentos da viatura do ofendido, tendo fotografado os mesmos, encetando comunicações destinadas a vender a viatura do ofendido. 35. Para o efeito, pelas 16h00, contactou KK, propondo-lhe a venda do veículo Mercedes de matrícula ..-..-RD, pelo valor de €500,00, afirmando que o negócio teria de ser concretizado rapidamente. KK não arranjou comprador para o carro, nem mostrou interesse na compra do mesmo. 36. Instantes depois, e concluindo que teria de se desfazer do cadáver de FF, que continuava fechado na casa de banho da cave, o arguido explorou a possibilidade de o enterrar debaixo de um alpendre de uma residência devoluta, contígua à sua, para onde ainda tentou levar o corpo. 37. No entanto, por não conseguir transpor a vedação em rede do logradouro, o arguido optou por remover a tampa de uma fossa séptica existente num canteiro junto a um pequeno muro localizado no terraço das traseiras da sua residência, e colocar o cadáver de FF no seu interior. 38. Para o efeito, em hora não apurada, mas anterior às 21h00 do dia ... de ... de 2023, o arguido abriu a aludida tampa de esgoto, pegou nos pés do ofendido e colocou o cadáver do mesmo no interior da fossa séptica (que apresentava uma entrada em formato quadrado, tendo cada face 50 cm). Porém, o corpo ficou com a cabeça e braços de fora, pelo que o arguido subiu o pequeno muro e calcou o corpo com os pés, até este ficar por inteiro no interior do esgoto, conseguindo dessa forma fechar a tampa. 39. Em momento não apurado, o arguido colocou ainda numa sanita da residência os três preservativos usados durante as relações sexuais que manteve com o ofendido nessa data, vindo os mesmos a ficar depositados, após descarga do autoclismo, na aludida fossa séptica, junto ao cadáver do ofendido. 40. O companheiro de casa do arguido, JJ, esteve no interior da residência aproximadamente entre as 13h00 e as 15h00, e após as 20h00, mas não presenciou as situações supra descritas, uma vez que o arguido adoptou cautelas para transportar o corpo apenas em momentos em que o mesmo se encontrava ocupado em actividades domésticas. 41. Pelas 21h00, o arguido conduziu o veículo do ofendido até um caminho florestal na localidade de ..., ..., abandonando-o naquele local, juntamente com o telemóvel e a carteira do ofendido, que ali havia deixado em momento anterior. 42. Após, o arguido trancou a viatura do ofendido e arremessou a chave para a floresta envolvente, e, de seguida, deslocou-se apeado para um café que frequentava na localidade de ..., onde bebeu algumas cervejas. 43. Instantes mais tarde, em hora não apurada, mas seguramente compreendida entre as 21h30 e as 23h59 do dia ... de ... de 2023, o arguido começou a colocar a hipótese de o telemóvel e a carteira do ofendido o poderem incriminar, pelo que resolveu voltar ao local onde havia deixado o carro. 44. Aí chegado, o arguido quebrou o vidro da porta do condutor com uma pedra, e retirou do interior do veículo a carteira e o telemóvel do ofendido, passando para o efeito o seu braço pelo vidro partido, sem abrir a porta. 45. De seguida, o arguido deslocou-se novamente até ao café da localidade de ..., e, ao longo do percurso, desfez-se do telemóvel e da carteira do ofendido, atirando-os para a vegetação envolvente, em dois locais distintos (arremessou primeiro o telemóvel, e uns metros mais à frente, a carteira). 46. No dia seguinte, com a finalidade de neutralizar o odor emanado pelo cadáver em putrefacção, o arguido voltou a abrir a tampa da fossa, e despejou cal, carvão, tinta e lixo em cima do cadáver de FF. 47. Nos dias subsequentes, os companheiros de casa do arguido aperceberam-se do odor proveniente da fossa séptica localizada nas traseiras da residência, emanado pelo cadáver em putrefacção no interior da fossa, queixando-se da situação, embora desconhecessem a origem do cheiro. 48. De forma a não levantar suspeitas, o arguido alegou, perante os seus companheiros de casa, que tinha morto um gato e que havia colocado o cadáver do animal na fossa séptica, prontificando-se de seguida a sanar o problema, tendo vedado a tampa com bucha química. 49. Após o dia ... de ... de 2023, o arguido deixou de utilizar o cartão com o número .......22, que havia utilizado para contactar o ofendido, de forma a tentar impedir que as autoridades policiais o localizassem e identificassem por essa via. 50. No dia ... de ... de 2023, o cadáver de FF veio a ser localizado pela PJ, tendo sido retirado do interior da fossa das traseiras da ..., onde havia sido depositado pelo arguido. Na mesma data, foi recuperada a carteira do ofendido, tendo o arguido indicado o local onde a havia descartado. 51. O cadáver foi encontrado após abertura da tampa metálica superior da fossa (sendo que tal fossa tinha uma profundidade de cerca de 146 cm e largura de 96 cm), nas seguintes circunstâncias: • os restos mortais da vítima estavam assentes na base da fossa, num posicionamento “sentado”, com o membro inferior direito maioritariamente submerso e flectido na sua totalidade, de tal modo que o respectivo pé estava encostado à região glútea, enquanto o membro inferior esquerdo se apresentava semi-flectido, prolongando-se pela extensão da fossa, com a perna igualmente submersa; • o crânio apresentava posicionamento anatómico atípico, muito próximo do joelho esquerdo, cerca de 15 cm, com acentuada curvatura das vértebras cervicais; • todas as estruturas superiores, não submersas, apresentavam-se esqueletizadas, enquanto as submersas, as assentes na base e as encostadas à parede da fossa apresentavam características de saponificação; • ao nível superior do cadáver encontrava-se uma camisa com motivos quadriculados de diversas tonalidades (azul, bordeaux, cinzento e branco), da marca “Giovanni Galli”, tamanho “M”; • na região cervical do cadáver, encontravam-se duas fitas, uma das quais com 151 cms de comprimento, localizada na zona supra-laríngea, ao redor do pescoço, de nó posterior fixo simples, e uma segunda fita com 132 cms de comprimento localizada na zona laríngea, de nó simples corredio, com duas voltas ao redor do pescoço; • no espaço que mediava entre os dois membros inferiores estava, parcialmente submerso, o relógio da marca “Festina” utilizado pela vítima, com mostrador analógico de cor branca, três círculos amarelos e ponteiros verdes, bem como a respectiva bracelete, na qual sobressaía uma aplicação metálica dourada; • na base da fossa encontravam-se uns boxers de tonalidade escura e uma meia de algodão de desporto, assim como os três preservativos usados (que haviam sido descartados pelo arguido na sanita) e um invólucro de preservativo da marca “Control”; • foi detectada a presença de significativa quantidade de cal branca, produto que havia sido lançado para o interior da fossa pelo arguido para maximizar a decomposição do cadáver; • foram ainda detectados fragmentos de carvão sobre o cadáver, bem como resíduos de fuligem e marcas de alguma carbonização no crânio. 52. Foram verificadas lesões traumáticas cervico-torácicas no cadáver (designadamente, fractura do esterno a nível do 3.º espaço intercostal, e ainda desarticulação esternocostal das 2.ª à 4.ª costelas direitas e das 2.ª à 5.ª costelas esquerdas), que foram infligidas pelo arguido após a morte da vítima, aquando da hiperflexão forçada do tronco decorrente da introdução do corpo na fossa. 53. O arguido AA actuou com o propósito, concretizado, de tirar a vida ao ofendido FF, molestando-o fisicamente e apertando o seu pescoço nos termos supra descritos, de forma idónea a causar-lhe a sua morte por asfixia, o que previu e logrou conseguir. 54. O arguido actuou ainda com o intuito, conseguido, de ocultar o cadáver de FF, escondendo-o no interior de uma fossa séptica e causando as lesões post mortem supra descritas, no contexto do depósito do cadáver nessa fossa, de modo a dissimular a sua conduta criminosa e a impedir a localização do cadáver pelas autoridades policiais. 55. O arguido agiu sempre de modo deliberado, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei. ** Mais se provou que: 56 - Do certificado de registo criminal do arguido junto aos autos nada consta. 57 - Do relatório Social (…) ** B) Factos não provados da acusação pública, com relevo para a decisão da causa: - Que o carvão usado pelo arguido fosse carvão incandescente. - Que o arguido AA quis actuar dessa forma na sequência de um desentendimento de pequena importância com o ofendido, estando ciente de que agia por mero motivo fútil e ao abrigo de impulso totalmente desproporcionado à situação vivenciada. ** C) Factos provados do pedido de indemnização civil: (…) Quando conhece de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos dos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal (art. 432º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal), estando fixada jurisprudência no sentido de que: «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.» Porém, in casu, como resulta da leitura da conclusão 16ª do recurso e do seu cotejo com o 2º facto não provado da acusação pública, o Recorrente pretende alterar a matéria de facto provada e não provada no acórdão da 1ª instância, como decorre claramente da expressão “devendo ser dado como provado que…” constante da referida conclusão, em oposição ao que foi considerado não provado. Não está em causa, claramente, o exclusivo reexame da matéria de direito e/ou da violação do disposto nos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal. Tal circunstância, independentemente de o recurso de impugnação ampla da matéria de facto estar correctamente formulado1, significa que a competência para o conhecimento do recurso cabe ao Tribunal da Relação. Não se verificam as condições para o conhecimento do recurso directamente pelo Supremo Tribunal de Justiça porquanto a pretensão do Recorrente, decorrente das suas conclusões também abrange a alteração da matéria de facto, sendo esse um limite inultrapassável à intervenção directa deste Tribunal. Sempre que no recurso esteja em causa o conhecimento de matéria de facto, não incumbe ao Supremo, mas sim ao Tribunal da Relação o julgamento, por força do disposto nos art.s 428º, 432º nº 1 al. c) e 434º do Código de Processo Penal. Assim, é este Supremo Tribunal de Justiça incompetente hierárquica e funcionalmente para apreciar o presente recurso. Como é consabido, “o facto de a Relação remeter um processo para o Supremo Tribunal de Justiça por entender que cabe a este a competência para julgar certo recurso em razão da matéria, não vincula o STJ, como não vincularia qualquer outro tribunal, mas também não tem qualquer virtualidade de fazer surgir um conflito de competência”2 (cfr. art. 414º nº 3 do Código de Processo Penal). III – DECISÃO Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em declarar a incompetência hierárquica e funcional deste Tribunal, para conhecimento do recurso do Ministério Público, determinando-se a remessa dos autos, por ser o competente, ao Tribunal da Relação de Coimbra. Sem custas. Lisboa, 05-02-2025 Jorge Raposo (relator) António Augusto Manso Carlos Campos Lobo ________
1. A este propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.11.2024, no proc. 823/22.0PDAMD.L1.S1. 2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.5.2003, no proc. 03P867. |