Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96B017
Nº Convencional: JSTJ00030172
Relator: METELLO DE NAPOLES
Descritores: FIANÇA
NULIDADE
Nº do Documento: SJ199606180000172
Data do Acordão: 06/18/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N458 ANO1996 PAG281
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR OBG.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 280 N1 ARTIGO 628 N2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1991/02/19 IN ROA ANO51 TII PAG525.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/01/21 IN CJSTJ ANOI TI PAG71.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/05/11 IN CJSTJ ANOI TII PAG98.
ACÓRDÃO STJ DE 1994/12/14 IN CJSTJ ANOII TIII PAG171.
Sumário : I - É nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança prestada por alguém a terceiro, em que esse alguém se responsabiliza perante um Banco por todas as dívidas futuras que o afiançado venha a ter nesse Banco, designadamente as provenientes do desconto de letras, extractos de factura, livranças ou aceites bancários.
II - Com efeito, a fiança assim prestada adquire uma dimensão tão ampla, e simultaneamente tão vaga, que bem pode dizer-se que a obrigação correspondente não tem quaisquer limites, já que nenhum critério se estabeleceu a que deva obedecer a determinação da prestação no tocante a débitos futuros.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
No Tribunal de Círculo de Chaves foi proposta pelo
"Banco Pinto & Sotto Mayor, S.A." acção de processo ordinário contra "Vinhos Bilhão, Limitada", A e mulher B, C e D, pedindo a sua condenação no pagamento ao autor da quantia de 9405663 escudos e 60 centavos, acrescida de juros de mora vincendos e imposto de selo respectivo.
Invocou para tanto débitos da primeira ré, de várias origens, garantidos por fiança dos restantes réus.
Contestaram as rés C, D e B, aí excepcionando a ineptidão da petição por falta de causa de pedir relativamente a um dos pedidos parcelares e ainda a nulidade da fiança.
Do despacho saneador que rejeitou as arguidas excepções agravaram as constantes.
Foi oportunamente proferida sentença que condenou solidariamente os réus a pagar ao autor as quantias de
6956 escudos e 50 centavos, 4583483 escudos e 10 centavos e 3672216 escudos, todas elas acrescidas de juros.
Houve apelação das três referidas rés (contestantes).
A Relação do Porto negou provimento a ambos os recursos.
As ditas contestantes interpuseram então recurso de revista.
Nas conclusões da respectiva alegação, que pela sua prolixidade que se sintetizam, defende-se o seguinte:
- Ao assinarem como fiadoras as recorrentes só tiveram e só podiam ter em vista as obrigações bancárias existentes à data de 12 de Julho de 1990;
- As obrigações futuras constantes do termo de fiança são absolutamente indetermináveis pois dela não constam elementos capazes de fornecer indícios, leves ao menos, que nos permitam enquadrar qualquer importância;
- Tal importa a nulidade da fiança, visto que o seu conteúdo ou objecto deve estar determinado no momento em que ela é prestada, sem o que poderia ser imposto ao fiador o pagamento daquilo com que não contava e isso seria altamente injusto e imoral;
- O Banco autor, ao não dar conhecimento às recorrentes do quantitativo dos empréstimos que ia efectuar, tornou a fiança vazia, inoperante e nula, devendo declarar-se essa nulidade;
- Foi violado o artigo 280 do Código Civil.
Contra-alegou por sua vez o autor no sentido da confirmação do decidido.
A questão suscitada na revista é pois a da nulidade da fiança por alegada indeterminabilidade do seu objecto.
Para a respectiva dilucidação haverá que partir da seguinte matéria de facto que a Relação julgou assente.
- "Vinhos Bilhão, Limitada" é titular da conta D/O n. ... aberta na agência de Valpaços do Banco autor, que, objecto de diversos movimentos a débito e a crédito, apresenta saldo a favor deste no valor de 6956 escudos e 50 centavos, ainda não pago, com juros desde
2 de Março de 1993;
- Com base na proposta de desconto datada de 25 de
Novembro de 1991 de que há fotocópia a folha 13, a mesma ré solicitou ao Banco autor o desconto de letras aceites por "Boa Casta - Caves Beira Litoral, Limitada", nos valores de 1112197 escudos e 30 centavos, 1134157 escudos e 50 centavos, 1156853 escudos e 50 centavos e 1180274 escudos e 80 centavos e vencidas respectivamente em 31 de Julho de 1992, 31 de Agosto de 1992, 30 de Setembro de 1992 e 31 de Outubro de 1992;
- O Banco autor creditou essas importâncias na referida conta bancária tendo-as a dita ré utilizado no seu giro comercial;
- O Banco autor é ainda portador de uma letra no valor de 3672216 escudos, vencida em 28 de Maio de 1992, em que figura como sacadora "Xisto & Presados, Limitada" e como aceitante a aludida primeira ré;
- Essa quantia foi recebida pela sacadora e consumida em seu proveito;
- Tal letra serviu de base a execução instaurada no
Tribunal de Lisboa;
- As letras mencionadas não foram pagas nas datas dos seus vencimentos nem posteriormente;
- Em 12 de Março de 1990 os segundos réus e a terceira e a quarta rés subscreveram o termo de fiança a favor do Banco autor junto a folha 7, em que declararam constituir-se solidariamente fiadores e principais pagadores de todas as importâncias que a ré sociedade
àquele devesse ou viesse a dever, bem como por qualquer responsabilidade que a mesma tivesse ou viesse a ter nesse Banco, fosse por que origem fosse, designadamente as provenientes do desconto de letras, extractos de factura, livranças ou aceites bancários em que a dita sociedade interviesse em qualquer qualidade, fossem ou não protestados e contivessem ou não a cláusula "sem despesas", comprometendo-se a reembolsá-lo, no prazo de
8 dias depois de para tal por ele terem sido avisados por carta registada, de todas as importâncias que lhe fossem ou viessem a ser devidas de quaisquer responsabilidades e da importância de quaisquer letras, extractos de factura, livranças, ou aceites bancários, aludidos e renunciando a todo o benefício, prazo ou direito que de qualquer modo pudesse limitar, restringir ou anular as obrigações assumidas;
- O Banco autor dirigiu aos segundos réus e à terceira e à quarta rés as cartas datadas de 12 de Fevereiro de
1993, juntas a folhas 15, 16 e 17, que pelos mesmos foram recebidas, solicitando-lhes o pagamento da importância global de 8264031 escudos e 70 centavos.
Sem dúvida que não obsta à prestação da fiança o facto de ser futura a obrigação do devedor (artigo 628 n. 2 do Código Civil); mas o objecto da fiança há-de ser em todo o caso determinável, visto que o artigo 280 n. 1 do Código Civil fere de nulidade o negócio jurídico cujo objecto seja indeterminável.
Segundo o ensinamento de Vaz Serra (in R.L.J., 107, páginas 255 e 259), no momento da constituição da obrigação deve ser determinado o título donde a obrigação futura poderá ou deverá derivar, ou, ao menos, saber-se como há-de ele ser determinado - sem o que o objecto da fiança seria indeterminado e indeterminável, gerando nulidade.
Também Menezes Cordeiro escreveu que o objecto do negócio pode ser indeterminado mas não pode ser indeterminável, explicando a diferença do seguinte modo: a prestação é indeterminada mas determinável, quando não se saiba, num momento anterior, qual o seu teor, mas, não obstante, exista um critério para proceder à determinação; a prestação é indeterminada e indeterminável dando pois lugar à nulidade da obrigação
- quando não exista qualquer critério para proceder à determinação (in Parecer publicado na Col. Jur., XVII, tomo III, páginas 61 e 62, e Anotação publicada na
R.O.A., ano 51, II, páginas 562 e seguintes).
Explicitando o seu pensamento escreveu o mesmo autor que seria seguramente nulo o contrato pelo qual uma pessoa se obrigasse a pagar a outra "o que esta quiser", pois haveria aí uma obrigação incontrolável; que os critérios podem ser mais ou menos vagos - não podem é, "ad nuntum" deixar tudo ao arbítrio duma parte ou de terceiro; que, tratando-se de fiança por débitos futuros (artigo 628 - n. 2 do Código Civil), admitir que uma pessoa possa declarar-se fiadora por todos os débitos que terceiro tenha ou possa vir a ter é tão indeterminado e indeterminável como a hipótese de alguém se obrigar a pagar a outrem (sem limite) o que esta (ou terceiro) quiser, sendo por isso necessário consignar um critério objectivo e limitativo de determinação, o que corresponde a uma natural função moderadora do ordenamento.
No que toca ao sector bancário - escreveu ainda o ilustre civilista (cfr. o estudo "Concessão de crédito e responsabilidade bancária" publicado no B.M.J. n.
357, página 43) - o problema duma fiança geral de conteúdo indeterminável coloca problemas acrescidos, sendo de rejeitar uma hipótese de "relações bancárias complexas" cobertas por um "contrato bancário geral" que apresentaria, por definição, um objecto indeterminável "ab initio", de concretização imprevisível, ditado pela evolução subsequente dos negócios a celebrar.
Debrucemo-nos então agora sobre o caso concreto.
No termo de fiança em exame os réus (recorrentes) assumiram responsabilidades, a título de fiadores e principais pagadores, relativamente a todas as importâncias que a co-ré "Vinhos Bilhão, Limitada" devesse ou viesse a dever ao Banco autor, bem como por qualquer responsabilidade que esta mesma ré tivesse ou viesse a ter no dito Banco, fosse por que origem fosse.
Ora adquire uma dimensão tão ampla e simultaneamente tão vaga a obrigação assim assumida que bem pode dizer-se não ter ela quaisquer limites, já que nenhum critério se estabeleceu, a que devesse obedecer a determinação da prestação, no tocante aos débitos futuros.
É precisamente a hipótese configurada por Menezes
Cordeiro de uma pessoa declarar-se fiadora por todos os débitos que terceiro tenha ou possa vir a ter, o que não é de admitir em atenção à proibição legal da indeterminabilidade.
Se a sociedade em causa - sublinhava Menezes Cordeiro no supracitado Parecer (página 62), referindo-se à devedora principal - assumisse responsabilidades exorbitantes e inesperadas, por tudo isto responderiam os fiadores. E logo acentuava: "Não pode, naturalmente, ser assim. A fiança é indeterminável uma vez que os fiadores ficam, ilimitadamente, nas mãos do credor e de terceiros. E tudo isto sem contrapartida".
Aponta-se, no documento subscrito pelos contestantes, para obrigações a assumir cuja caracterização é deixada ao sabor de factos futuros e incertos, com tudo o que isso implica de imprevisibilidade e insegurança, redundando, ao fim e ao cabo, num mero arbítrio, sem quaisquer limites.
É certo que no documento em análise há referência a alguns tipos de títulos, tais como descontos de letras, livranças e aceites bancários; mas trata-se aí tão-somente de uma indicação de índole exemplificativa que, longe de restringir, tem o intuito de ampliar e reforçar, quanto a todas as formas de responsabilidade legalmente admissíveis, o leque de responsabilidades dos fiadores, o que de resto claramente transparece das expressões utilizadas no documento ("todas as importâncias", "qualquer responsabilidade", "seja por que origem for"...).
É assim manifesto o propósito de não se excluir nenhum título, de não se subtrair ao âmbito da fiança qualquer espécie de débito que a sociedade viesse a contrair no futuro.
Como bem se realça em anterior acórdão deste Supremo que incidiu sobre um caso algo semelhante, seria um mundo praticamente infinito de direitos de crédito que viria a estar garantido por tal fiança, verdadeiramente indeterminável na ausência de quaisquer critérios delimitadores (acórdão de 21 de Janeiro de 1993, in
Col. Jur. - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, I, tomo I, página 71).
E a determinabilidade em questão teria de ocorrer logo no momento da fiança, sem o que os fiadores não ficariam suficientemente defendidos e estariam expostos a riscos excessivos.
Daqui resulta a nulidade da fiança, que todavia não afecta as obrigações já constituídas à data em que ela foi prestada, visto que nessa vertente o respectivo objecto era já então perfeitamente determinável.
A solução assim acolhida corresponde a uma firme orientação jurisprudencial expressa em acórdãos deste
Supremo de 19 de Fevereiro de 1991 (in R.O.A., ano 51,
II, página 525), 21 de Janeiro de 1993 (cit. supra), 11 de Maio de 1993 (in Col. Jur. cit, I, tomo II, página
98) e 14 de Dezembro de 1994 (in Col. Jur. cit., II, tomo III, página 171).
Visto que nenhum dos invocados débitos da primeira ré existia ainda na data em que foi prestada a fiança, estando pois aqui em causa somente obrigações futuras (relativamente ao momento da subscrição da fiança), a nulidade atinge todas elas no que concerne aos fiadores.
Estes não podem assim ser chamados a garantir a satisfação dos créditos invocados pelo autor.
Daí que a decisão das instâncias não possa subsistir.
Nos termos expostos concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e bem assim a decisão da 1. instância na parte referente à condenação das rés contestantes, e absolvem-se estas do pedido.
Custas pelo autor, neste Supremo e na Relação; pelas da
1. instância respondem a meio o autor e a primeira ré.
Lisboa, 18 de Junho de 1996.
Metello de Nápoles,
Nascimento Costa
Pereira da Graça.
Tribunal do Círculo de Chaves;
Relação do Porto.