Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00012021 | ||
Relator: | JOSE SARAIVA | ||
Descritores: | FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO DESCAMINHO DE OBJECTOS COLOCADOS SOB O PODER PÚBLICO FUNCIONÁRIO PÚBLICO TIPICIDADE | ||
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Nº do Documento: | SJ199110020420653 | ||
Data do Acordão: | 10/02/1991 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N410 ANO1991 PAG261 | ||
Tribunal Recurso: | T CIRC ABRANTES | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 94/90 | ||
Data: | 03/22/1991 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIAL. | ||
Área Temática: | DIR CRIM. | ||
Legislação Nacional: | CP82 ARTIGO 228 N3 ARTIGO 396 N1 ARTIGO 437. | ||
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Sumário : | I - Não cometem o crime do artigo 396, n. 1 do Codigo Penal, os arguidos que alteram , mas não destroem, não danificam, não utilizam nem subtraem ao poder publico um determinado documento. II - O advogado não e funcionario nos termos do artigo 437 do Codigo Penal, pelo que não lhe e aplicavel o n. 3 do artigo 228 do Codigo Penal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Na comarca de Abrantes foram julgados os arguidos - A, industrial, e - B, advogado, com os mais elementos de identificação constantes dos autos, sendo condenados: - O A, como co-autor do crime do artigo 228 - 1, a) do Codigo Penal, na pena de 9 meses de prisão e 35 dias de multa a 400 escudos/dia, esta na alternativa de 23 dias de prisão, pena cuja execução foi suspensa pelo periodo de 3 anos; - O B, como co-autor do crime do citado artigo 228-1, a) e 3, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão e 80 dias de multa a 1000 escudos/dia, esta na alternativa de 53 dias de prisão. Do respectivo acordão recorre o arguido B, motivando: - E aplicavel a norma do artigo 23-3 do Código Penal, tendo sido violado o artigo 228-1, a) e 3 do mesmo diploma; - A sentença recorrida interpretou a aplicou as normas referidas no sentido de que na respectiva previsão se deveria subsumir o caso vertente, quando a correcta interpretação e aplicação imporiam que se considerasse como sentido prevalecente aquele segundo o qual na sua previsão não e possivel enquadra-lo. - Deve, por isso, ser absolvido o recorrente. Entretanto, o recorrente veio juntar aos autos o Parecer de folhas 161. Respondeu o Ministerio Publico, pronunciando-se pela negação de provimento ao recurso. Correram os vistos legais e teve lugar a audiencia de julgamento, cumprindo agora decidir. E a seguinte a materia de facto dada como provada na decisão recorrida: No dia 15 de Junho de 1987 deu entrada na Secretaria do Tribunal Judicial da Comarca de Abrantes uma acção declarativa de condenação, com forma de processo ordinario, proposta pelo arguido A e mulher C contra a sociedade "Lopes & Martins, Lda", cuja petição inicial foi subscrita pelo arguido B, na qualidade de advogado e mandatario constituido dos autores. A demonstração então entregue na Secretaria Judicial era constituida pela petição inicial e duplicados, um documento de contrato-promessa de compra e venda e duplicados e a respectiva procuração forense. O documento de contrato-promessa apenas estava assinado pelo primeiro dos outorgantes (promitente vendedor), a sociedade "Lopes & Martins Lda", representada pelo gerente Jose de Sousa Lopes, não se encontrando o contrato assinado pelo segundo outorgante (promitente comprador), o arguido A. A acção foi distribuida em 19 de Junho de 1987 ao 2. Juizo, 2 Secção, do Tribunal da Comarca de Abrantes, cabendo-lhe o n. 74/87. Em 27 de Junho de 1988 foi proferida sentença pelo Juiz do processo, que julgou a acção parcialmente procedente e declarou nulo o contrato-promessa com base na falta de assinatura do promitente comprador. Em 4 de Julho de 1988 os autores A e mulher C interpuseram recurso de apelação da sentença para o Tribunal da Relação de Evora em requerimento assinado pelo seu mandatario, o arguido B. No periodo compreendido entre 27 de Junho de 1988 e 4 de Novembro de 1988, em data não precisada, o arguido B, ao ter conhecimento que a sentença não fora totalmente procedente de acordo com a pretensão dos seus clientes, por haver sido declarada a nulidade do contrato-promessa por falta de assinatura do segundo outorgante, tomou a iniciativa de propor no seu escritorio ao arguido Pereira que apusesse a sua assinatura no referido contrato, ao que este assim, apesar de saber que ja tinha sido proferida sentença que lhe era desfavoravel por falta da sua assinatura. Em conformidade com este proposito em data não apurada, mas compreendida entre 27 de Junho de 1988 e 4 de Novembro de 1988, dirigiram-se ambos os arguidos ao Tribunal. Ali, o arguido B, sabendo-se da sua qualidade de advogado e mandatario dos autores, solicitou na 2 Secção do 2 Juizo o respectivo processo, para consulta, o qual lhe foi facultado. Na posse do processo, o arguido B dirigiu-se ao exterior do balcão de atendimento ao publico, com divisoria de vidro, e em momento em que não se encontravam outras pessoas, onde havia ficado a espera o Pereira, e apos abrir o processo na folha do documento, o arguido A, pelo seu proprio punho e de livre vontade apos a sua assinatura no respectivo documento, exactamente no local destinado a assinatura do segundo outorgante, o que foi feito com o acordo de ambos. De seguida, o arguido B entregou o processo na secção. Ao agirem desta forma, os arguidos pretendiam fazer crer que o documento se encontrava assinado "ab initio" pelo arguido Pereira, a fim de infirmarem em recurso os fundamentos da sentença. Os arguidos, conscientes de que o processo se encontrava pendente em tribunal, agiram voluntariamente, com intenção de prejudicar o Estado, a segurança do direito e o bom funcionamento dos tribunais, como órgão de soberania com competencia para administrar a justiça e, bem assim, a demandada sociedade "Lopes & Martins Lda". Por acordão de 4 de Maio de 1989, transitado em julgado, o Tribunal da Relação de Evora, não obstante afirmar ter havido ilicitude na forma como a assinatura foi colhida depois da sentença, revogou esta e condenou a re na totalidade do pedido. O arguido A confessou os factos, tem bom comportamento social, sendo delinquente primario. O arguido B, em audiencia de julgamento, confessou parcialmente os factos, sem relevo para a descoberta da verdade, tem bom comportamento social, sendo delinquente primario e exerce advocacia ha varios anos, com escritorio em Abrantes. Estes os factos. O recurso e restrito a materia de direito (artigo 433 do Codigo de Processo Penal) e ao arguido B, o que não impede conhecer tambem quanto ao arguido A face ao disposto no artigo 402 - 2 a) do Codigo de Processo Penal, havendo que aceitar e acatar a materia de facto dada como provada no acordão recorrido e atras transcrita. Pretende o recorrente que se trata de uma tentativa impossivel não punivel, nos termos do artigo 23 - 3 do Codigo Penal, por manifesta inexistencia do objecto essencial a consumação do crime, ja que era impossivel a falsificação da propria assinatura pelo arguido A. Mas, sucede que o arguido A não falssificou a sua assinatura nem disso foi acusado. O que ele fez foi apor a sua assinatura no contrato-promessa em causa, que a não continha, dessa forma o alterando. Efectivamente, dele passou a constar o que dele não constava, a sua assinatura - dai a sua alteração indubitavel. Por isso, existia o objecto - documento - essencial a consumação do crime de falsificação do mesmo. Poderia ele ter assinado o contrato antes de o usar para a propositura da acção; mas, desde que dele fez esse uso, o documento não podia ser alterado, mesmo com a sua assinatura, pois o documento fora apresentado e usado sem ela - nesses precisos termos valendo como documento. Era assim que fazia parte do processo, que, no seu conjunto, tambem e documento, pelo que, alterando uma peça do processo, altera tambem este. Assinando o documento, criava-se possibilidade de prejuizo (que pode ser real ou potencial - Dr. Maia Gonçalves, em anotação ao artigo 228 do Codigo de Processo Penal) para o Estado (boa fe que devem merecer os documentos e boa administração da justiça) e tambem para a parte contraria - Lopes & Martins, Lda. A assinatura, mesmo verdadeira, podia alterar a decisão da acção, como alias bem o sentiram os arguidos, pois de outra forma não procederiam como procederam. E podia altera-la a favor do arguido A e, indirectamente, e certo, como advogado, do arguido B, causando prejuizo a re Lopes & Martins, Lda. E foi assim que agiram os arguidos, como ficou provado expressamente: com intenção de prejudicar o Estado, a segurança do direito e o bom funcionamento dos tribunais e bem assim a demandada Lopes & Martins, Lda. A possibilidade de prejuizo vinha de que a jurisprudencia estava decidida alem da interpretação do artigo 410 - 2 do Codigo Civil sobre contratos bilaterais de promessa de compra e venda de imóveis assinados so por um dos promitentes. Dai que o Juiz da 1. instancia tenha julgado o contrato nulo e a Relação valido. Veio aclarar as coisas posteriormente o recente Assento de 29 de Novembro de 1989. E não se argumenta com a decisão da Relação, pois que esta, a data dos factos, ainda não existia e conforme a decisão foi uma nem poderia ter merecido ser a contraria. A assinatura, mesmo verdadeira, do arguido A podia ter efeitos proprios e especificos para a parte contraria. O que os arguidos poderiam ter feito - como desistir da instancia na acção civel - não interessa; o que interessa e o que efectivamente fizeram. Do exposto se deduz ja que não era inapto o meio empregado pelos arguidos, visto que a assinatura do contrato pelo arguido A lhe dava a garantia da procedencia da acção, garantia que não tinha sem a sua assinatura, dada a referida decisão na jurisprudencia. E que a decisão so lhe fora parcialmente favoravel, por o contrato ter sido declarado nulo com base na falta de assinatura do promitente comprador (ele mesmo). E os arguidos pretenderam fazer crer que o contrato se encontrava assinado pelo arguido A "ab initio", a fim de infirmarem em recurso os fundamentos da sentença, comprometendo mesmo, sem escrupulos, o autor desta. Os factos passados não integram o crime do artigo 396 - 1 do Codigo Penal, pois se afigura indubitavel que os arguidos não destruiram, não danificaram, não inutilizaram nem subtrairam ao poder juridico o documento em referencia, como o recorrente reconhece. E alterar o documento colocado sob o poder publico não cabe na letra desse preceito; nem no seu espirito, ja que o que ali se visa e proteger o interesse do Estado na guarda de documentos ou objectos moveis, enquanto sob o poder publico. E alterar o documento colocado sob o poder publico não e atentar contra aquele interesse de guarda de documento ou objecto, que não e violado e se mantem, como sucedeu alias no caso em apreço. Assim, nem absolvidas foram os arguidos de tal crime. Não se tratando de tentativa impossivel (punivel ou não punivel) prevista no artigo 23 - 3 do Codigo Penal, os factos integram a previsão do artigo 228 - 1 a) do Codigo Penal, pois os arguidos (o primeiro assinando e o segundo solicitando e concordando nisso com aquele) alteraram um documento, com intenção de causar prejuizo a outrem e ao Estado. Ja o mesmo não pode dizer-se quanto ao n. 3 do citado artigo 228 e relativamente ao arguido B. Este era advogado do primeiro na referida acção civel, nessa qualidade tendo actuado. E põe-se o problema de saber se pode ser considerado funcionario. A noção de funcionario, para o efeito, vem dada no artigo 437 do Codigo Penal. Excluidas as alineas a) e b) desse artigo, por manifestamente fora de questão (funcionario civil e agente administrativo, que o arguido B não e), resta a alinea c): "Quem ... tenha sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função publica, administrativa ou jurisdicional ..." Trata-se da função jurisdicional no caso concreto, que cabe aos tribunais e normalmente aos juizes (artigos 205 e 206 da CR e 3 da Lei 21/85 de 30 de Julho. Ao advogado cabe, no exercicio da sua actividade, ser servidor da justiça e do direito, sendo o exercicio da advocacia incompativel com qualquer actividade que diminua a sua independencia, designadamente com ser funcionario de grande parte das funções publicas (artigos 76 - 1, 68 e 69 do Decreto 84/84, de 16 de Março - Estatuto da Ordem dos Advogados). E cabe-lhe pugnar pela rapida administração da justiça (artigo 78 - a) do mesmo Decreto), colaborando nela (artigo 92 da Lei Organica dos Tribunais). Desde ja se nota, em geral, uma quasi total incompatibilidade entre a advocacia e o funcionalismo publico, como e natural, dada a independencia de que deve revestir-se. E ser servidor e colaborador da justiça e do direito não e o mesmo que executar ou administrar a justiça e o direito. Como pugnar pela administração da justiça e diferente de administra-la. Voltando ao artigo 437 - c) do Codigo Penal. Desempenhar e cumprir uma missão, um encargo; participar e tomar parte (Dicionario Lello Popular). Ora, como ja vimos, a função jurisdicional não e atribuida aos advogados, que nela apenas colaboram, mas aos tribunais. E por outro lado o arguido B não foi chamado, como exige o artigo 437 - c) citado, a desempenhar qualquer actividade. Chamados a desempenhar actividade jurisdicional serão os jurados, os juizes sociais, os acessores tecnicos, a que se refere o artigo 210 da CR, que possam, esses vir, a administrar justiça. Esses tem intervenção, participação no julgamento (artigo 210 citado), na administração da justiça; e essa e a exigencia tambem do artigo 437 - c) do Codigo Penal - participar ou desempenhar. Conclui-se assim que o advogado não e funcionario, nos termos do artigo 437 referido, pelo que não lhe e aplicavel o n. 3 do artigo 228 do Codigo Penal. Consequentemente, o arguido B constituiu-se apenas autor do crime do artigo 228 - 1 a) do Codigo Penal, como tambem o arguido A, a respeito do qual não ha reparos a fazer ao acordão recorrido. Sucede, porem, que tal crime foi amnistiado pelo artigo 1 k) da Lei 23/91, de 4 de Julho, assim devendo, portanto, ser declarado. Nestes termos, concedendo provimento parcial ao recurso, julga-se o arguido B incurso no artigo 228 1 a) citado; mas, por força do disposto no artigo 1 - k) da Lei 23/91, de 4 de Julho, julga-se tal crime amnistiado, quanto a ambos os arguidos, e extinto o respectivo procedimento criminal. Vai o recorrente - arguido B condenado a pagar 8 Ucs e 1/3 dessa taxa de procuradoria, fixando-se em 5000 escudos os honorarios ao defensor nomeado ao arguido A. Lisboa, 2 de Outubro de 1991 Jose Saraiva, Ferreira Vidigal, Ferreira Dias, Pinto Bastos. Decisão impugnada: - Acordão do Tribunal do Circulo Judicial de Abrantes de 91.03.22. |