Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA PAULA LOBO | ||
Descritores: | FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL ACIDENTE DE VIAÇÃO CONCORRÊNCIA DE CULPAS CONDUTOR LESADO NEGLIGÊNCIA INDEMNIZAÇÃO DANOS NÃO PATRIMONIAIS DANOS PATRIMONIAIS DANO MORTE ADMISSIBILIDADE DE RECURSO DUPLA CONFORME OBJECTO DO RECURSO | ||
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Data do Acordão: | 01/30/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | Só a convergência da negligência do condutor, eventualmente “perdido nos seus pensamentos, preocupações ou investigações mecânicas” com a negligência da sinistrada tornaram possível o acidente, mostrando-se proporcional a repartição de culpas em 80% para o condutor do veículo e em 20% para a vítima mortal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Recorridos: AA, BB, CC, DD, autores Fidelidade – Companhia de Seguros, SA, réus EE, interveniente I.1 – FGA – Fundo de Garantia Automóvel interpôs recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 10 de Setembro de 2024, que: «I. Condenou os Réus EE e FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL a pagar: A- aos Autores as quantias de € 4.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais da vítima; de € 72.000,00 a título de indemnização pelo dano de morte; - E a quantia de € 25.264,00 (correspondente à soma de 80% de 1.580 + 80% de 30.000) a título de danos patrimoniais; B- ao Autor AA a quantia de € 16.000,00 (dezasseis mil euros), a título de danos não patrimoniais; C- ao Autor BB a quantia de € 12.000,00 (doze mil euros), a título de danos não patrimoniais; D- à Autora CC a quantia de € 12.000,00 (doze mil euros), a título de danos não patrimoniais; E- ao Autor DD a quantia de € 12.000,00 (doze mil euros), a título de danos não patrimoniais; II. F. Às quantias acima referidas acrescem os juros moratórios vencido e vincendos à taxa legal para as operações civis contados desde a citação quanto aos danos patrimoniais e vincendos até integral pagamento quanto às restantes quantias. III. Absolveu os Réus (EE e FGA) dos restantes pedidos contra si formulados, sendo a Ré Fidelidade - Companhia de Seguros, SA totalmente absolvida.» O recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões: 1. Atribui-se ao recurso de Revista o valor de 153.264,00€, correspondente ao valor de decaimento que é posto em causa, pelo que foi liquidada taxa de justiça no valor de 612,00€. 2. O douto acórdão de fls. violou a lei substantiva, por erro de interpretação e aplicação da Lei, aplicou erradamente a lei de processo e valorou erradamente a culpa de cada um dos intervenientes na produção do acidente. 3. Da prova produzida resultou provado que foi a malograda vítima quem invadiu a hemifaixa pela qual circulava o veículo automóvel, cortando-lhe a trajetória. 4. O veículo ...-...-AO embateu com a frente lateral esquerda no corpo da vítima, o que atesta que o peão invadiu a via quando o veículo estava já muito próximo do local exato do acidente, em violação do n.º 1 do art.º 101.º do código da Estrada. 5. Se a vítima estivesse já em atravessamento quando o veículo se aproximou, o embate teria ocorrido no meio do veículo, ou mesmo já sobre o lado direito… 6. Da natureza da via – um IC – resulta claro que não se trata de uma zona de utilização partilhada de peões e veículos. 7. Não é normal nem previsível que num IC… um veículo tenha de parar para um peão passar, mas sim que o peão só atravesse depois de se ter certificado de que não há perigo. 8. Há que repor a atribuição de responsabilidade fixada pelo M.º Julgador de 1.ª instância, de 70% para a infeliz vítima e 30% para o condutor do veículo. 9. A jurisprudência citada no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra versa sobre situação diferente, não confundível nem extensível, à que se analisa nos presentes autos. 10. Sendo certo que o proprietário do veículo sem seguro não responder perante o FGA, por não deter a sua direção efetiva, havendo efetivamente diversa jurisprudência nesse sentido, outra coisa bem diferente é/seria a seguradora do proprietário eximir-se às suas responsabilidades! 11. Valendo o mais, tem de valor o menos, i. é, se a seguradora do proprietário tem de assumir o sinistro, nos termos legais, quando ocorreu o furto do veículo, por maioria de razão tem de o assumir também quando o proprietário confiou o veículo a outrem. 12. O Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo 2031/17.2T8PNF.P1.S1 da 1.ª Secção, sumaria doutamente o seu douto acórdão de 07-10-2021: «De acordo com o DL 291/07, não tendo sido realizado o obrigatório seguro de garagista, mas existindo seguro obrigatório do proprietário do veículo, deve a seguradora deste segundo assumir a responsabilidade civil perante o lesado, ficando com direito de regresso sobre o garagista (artigo 27.º, n.º 1, f), sem que possa ser responsabilizado o Fundo de Garantia Automóvel.» 13. Só se não existisse seguro celebrado pelo proprietário do veículo, é que deveria ser demandado, e poderia ser condenado, o Fundo de Garantia Automóvel. 14. O douto acórdão de fls. violou os art.º 23.º, 6.º e 48.º do DL 291/2007. 15. O escalonamento dos seguros existentes, com base no art.º 23.º e 6.º do DL 291/2007 impõe que o seguro contratado pelo proprietário do veículo seja chamado a indemnizar. 16. Tendo resultado provada a existência, vigência, validade e eficácia do contrato de seguro contratado pelo proprietário do veículo ...-...-AO junto da Ré Fidelidade - Companhia de Seguros S.A., titulado pela apólice ...29, deve ser esta condenada em detrimento do Fundo de Garantia Automóvel. Termos em que deverá ser dado provimento ao recurso.
Os recorridos, autores AA, BB, CC, e DD apresentaram contra-alegações que terminam com as seguintes conclusões: A recorrida, Fidelidade - Companhia de Seguros, SA, ré, apresentou contra-alegações considerando que: Reembolsos 1 - Satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso.Sub-rogação do Fundo 2 - No caso de insolvência, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado apenas contra a empresa de seguros insolvente. 3 - São solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro. O nº 3 não restringe o direito de acção do FGA, enquanto credor sub-rogado nos direitos do lesado, aos sujeitos da obrigação de segurar enunciados no artigo 6º do mesmo DL, antes facultando ao FGA demandar qualquer dos responsáveis civis, sobre o qual recaia a obrigação de indemnizar garantida e satisfeita pelo Fundo, por ter posto a circular veículo sem que a responsabilidade esteja coberta por contrato de seguro, quando obrigatório. Não se pode pretender que o proprietário do veículo, que não tinha a direcção efectiva do mesmo no momento do acidente, mas que tinha o veículo segurado, seja considerado com base neste dispositivo solidariamente responsável pelo pagamento ao Fundo. Para que tal pudesse acontecer era necessário que o FGA tivesse satisfeito já, perante os Autores, créditos em sub-rogação do devedor. Era necessário dar o proprietário do veículo acidentado – e por via do contrato de seguro – a seguradora do mesmo, como obrigada a indemnizar. O que neste nosso processo não se verifica, manifestamente.» . O confronto da fundamentação apresentada pelas instâncias é manifestamente coincidente, entendendo ambas que o proprietário do veículo interveniente no acidente não tinha naquele momento a direcção efectiva do veículo, por a mesma estar a cargo do garagista EE, que exercia a sua actividade sem dispor do seguro obrigatório para tal e que o conduzia no momento em que ocorreu o acidente. Destes factos concluem as instâncias ser EE o responsável pelo pagamento das indemnizações arbitradas nestes autos, tendo o Fundo de Garantia Automóvel a posição de garantir esse pagamento aos lesados, por o responsável não dispor de seguro obrigatório de garagista, com direito de sub-rogação sobre aquele EE, de que resultou a absolvição da Ré Fidelidade de todos pedidos. Assim, esta questão mostra-se definitivamente decidida pelas instâncias na medida em que, nesta parte, não é admissível recurso de revista, por força do disposto no art.º 671.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Civil. O recurso de revista é admissível quanto à questão suscitada da repartição da culpa entre condutor do automóvel e vítima na produção do acidente. I.3 – O objecto do recurso Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão: 1. Graduação da concorrência de culpa do condutor do veículo e do peão para a produção dos danos. I.4 - Os factos O acórdão recorrido considerou provados e relevantes para a decisão do recurso os seguintes factos: 1. Os AA. são os únicos e, universais herdeiros da falecida GG, cidadã Portuguesa, nascida em …/…/1937, falecida no dia … de Fevereiro de 2020, no estado de casada, em primeiras e, únicas núpcias de ambos, com o A. AA. 2. Na constância do matrimónio, a falecida GG e o A. AA, tiveram três filhos, aqui, co-AA., respectivamente: a) - BB, nascido em …/…/1961; b) - CC, nascida em …/…/1966; c) - DD, nascido em …/…/1973. 3. No dia … de Fevereiro de 2020, pelas 15horas e, 50 minutos, no IC…, ao km 143,450, na localidade de …, freguesia e, concelho de … ocorreu atropelamento, do qual, veio a resultar a morte da infeliz GG que, não resistiu os ferimentos e traumatismos sofridos, no seu corpo e, na sua saúde. 4. Na data, hora e, local encontrava-se a concluir a travessia em recta, do IC…, provindo da Rua da …, tinha como destino a Rua do …, situada do lado oposto, onde ia realizar trabalhos agrícolas, nas suas propriedades rústicas, sitas daquele lado da localidade, ou seja, na zona limítrofe ao IC2, do lado direito da via, atento o sentido P…-L… . 5. Estava sol, havia boa visibilidade, a via apresentava-se, em recta extensa, plana que permite visibilidade numa extensão de mais de 100 metros, com o piso betuminoso limpo, seco, com pouco trânsito com largura de 7,40m, subdividida por duas faixas, em dois sentidos de trânsito, com 3,70 m cada, ladeada de bermas de 2,70m de cada lado, com limitação de velocidade máxima horária de 60 km/h, no sentido Norte – Sul (P… / L…) e local, com entroncamento de ambos os lados da via e, com casas de habitação e, estabelecimentos comerciais. 6. No local do sinistro não existe qualquer passadeira para peões. 7. A falecida GG, conhecedora do local onde, diariamente, tinha de atravessar, iniciou a travessia do IC…, pela hemi-faixa do sentido Sul – Norte (L…– P…), munida com um pequeno carrinho de mão e, quando se encontrava já na via de trânsito destinada ao sentido P… – L…, foi violentamente colhida pelo veículo ligeiro de passageiros, de marca Volkswagen, modelo Golf, com a matrícula ...-...OA, propriedade de FF, então, conduzido por EE, mecânico de automóveis e proprietário da oficina denominada Auto …, onde, o veículo se encontrava em reparação a mando daquele e, conduzido pelo dito EE, em experimentação. 8. O veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-...OA embateu com a frente lateral esquerda no corpo da vítima GG, projectando-a pelo ar para uma distância de 24 (vinte e quatro) metros do ponto de impacto. 9. Após embater no corpo da vítima, o veículo de matrícula ...-...OA foi esbarrar num poste da EDP e posteriormente colidir com um aqueduto de águas pluviais, vindo a imobilizar-se, somente depois de sofrer capotamento, a uma distância de 59 (cinquenta e nove metros) do ponto de impacto. 10. Não existiam marcas de travagem no pavimento. 11. A malograda GG ficou caída no asfalto prostrada, em decúbito, a padecer com fortes e, intensas dores devidas as lesões traumáticas e hemorragias sofridas. 12. Os Bombeiros Voluntários de …, através de uma ambulância, procederam, no local, à tentativa de manobras de reanimação que, o INEM procurou continuar os procedimentos adequados de salvamento da vítima, transportado, de urgência para o Hospital Distrital de …, veio a falecer e, aí declarado o seu óbito. 13. A morte foi certificada no Hospital Distrital de …, no dia …/02/2020. 14. A falecida tinha 82 anos de idade, tendo nascido em … de … de 1937, gozava, de boa saúde, sem antecedentes médicos ou cirúrgicos, sem limitações físicas ou intelectuais, dedicava-se ao amanho das suas terras, com cavas, sementeira, plantação hortícolas, tubérculos, leguminosas, cereais, numa agricultura de subsistência saudável e, de onde, retirava os géneros para a sua alimentação, do marido e filhos. Como também, diária e, continuadamente confecionava as refeições, fazia a limpeza e, o tratamento de roupa, prestava assistência pessoal ao marido e, as demais lidas domésticas, bem como, à criação de animais de capoeira, como de coelhos, de ovelhas e, de suínos. 15. Vivia com o seu marido e, aqui A. AA, na casa de ambos, desde o casamento, estando este em estado debilitado avançado, com perda de autonomia, apoiado sempre em andarilho, dependente do acompanhamento, apoio e assistência da esposa, que dele cuidava, incluindo, na administração de medicação, na higiene pessoal e, no tratamento. 16. Tinha alegria pela vida, contagiante, sendo sempre muito comunicativa, activa, empenhada e determinada, não só próxima da sua família directa, nomeadamente, do marido, dos filhos e, dos netos como na família alargada. De tracto fácil com os familiares, amigos e, vizinhos. Conhecida de todas as pessoas do Lugar e, aldeias circunvizinhas, onde, residia. Tida, por pessoa trabalhadora, disponível, alegre, solidária e, de bom coração. 17. Com as lesões referidas sofreu dores intensas angústia, pânico, temor da supressão do direito à vida e, incapaz de alterar o rumo dos acontecimentos. 18. O A. AA em consequência do descrito atropelamento mortal, perdeu a sua ente-querida esposa quando dela mais carecia e, necessitava não só da companhia, como da ajuda e assistência, pelo que, vive mergulhado na sua tristeza, sozinho, mais fragilizado e vulnerável, continuamente com o pensamento numa vida de sacrifício, trabalho e, união. Numa fase da vida que, mais precisavam da companhia e do apoio um do outro, com a qual, tinha constituído uma longa e, harmoniosa vida familiar com três filhos – ora AA. - próximos e, a eles dedicados. Viveram felizes e, dedicados um ao outro, aos filhos, aos netos, a gozar a sua reforma. Na entreajuda, no carinho, no afecto, no auxílio e, socorro mútuo. 19. Nada fazia prever a morte súbita e trágica da sua ente-querida de uma vida. Sofreu e, sofre intensamente como se referiu e repete por ser uma realidade vivenciada e sentida. 20. Agora, dependente de terceiros, visto encontrar-se limitado na sua pessoa e, por si incapaz para a realização das suas tarefas básicas e necessidades de cariz pessoal do dia-a-dia, encontra-se no “Lar …” contra o pagamento da quantia mensal de € 1.100,00 (mil e cem euros), acrescida de outras despesas, como medicação e acessórios. 21. Suportou despesas de funeral no montante de €1.580,00. 22. Também, os filhos ficaram sem a sua matriarca da qual sempre tiveram grande proximidade. Os AA. BB e, DD, pese embora, estarem emigrados diariamente, telefonavam aos seus pais e, em particular à sua mãe, nutriam e recebiam dela carrinho numa palavra amiga. A A. CC residente no lugar … e, limítrofe do lugar …, diariamente, estava com a mãe a qual lhe, dava alegremente, os vegetais e, tubérculos por si, cultivados para seu consumo. Sofreram, também, intensamente, a perda da ente-querida mãe, até pelo choque e, forte abalo psicológico que foi a trágica morte, violente e, desgosto nunca antes vivenciado. 23. O veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo Golf, com a matrícula ...-...OA é propriedade de FF o qual, havia cedido a sua utilização ao condutor EE que o fazia em experimentação do mesmo, no âmbito de reparação que levava a efeito. 24. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-...OA encontrava-se em … de Fevereiro de 2020, transferida para a Fidelidade - Companhia de Seguros SA, através da Apólice de Seguro Automóvel ...29. 25. O EE não havia contratado qualquer seguro de garagista. 26. Mais se provou que: Por sentença proferida em e transitada em julgado em 29/04/2022, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) 11/20.0...., EE foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal, por referência aos artigos 11.º n.º 2 e 3, 24.º n.º 1 e 25.º n.º 1 al. h), todos do código da estrada, além do mais, na pena 1 (um) ano e 1 (um) mês de prisão suspensa a sua execução por igual período de tempo sujeita a determinadas condições. Deu-se como provado em tal processo criminal que: a) “1. No dia … de Fevereiro de 2020, pelas 15h50, o arguido EE conduzia o veículo ligeiro de passageiros de marca VW, modelo Golf, com a matrícula ...-...OA, no sentido de marcha P… – L…, no IC…, na localidade de …, em … . b) O arguido é mecânico e conduzia o automóvel com o objectivo de detectar a origem de uma avaria no referido veículo, seguindo atento a eventuais falhas mecânicas provocadas por uma válvula eléctrica ou tubo de pressão rompido. c) No mesmo local e à mesma hora, GG cruzava o referido itinerário complementar, vinda da Rua da … e com destino Rua do …, atravessando o IC… no cruzamento ali existente, ao km 143,450. d) GG havia atravessado o eixo da faixa de rodagem e encontrava-se, tal como o carro de mão que naquele momento puxava, já na via de trânsito destinada ao sentido de marcha P… – L… . e) Naquele local, o trânsito faz-se em dois sentidos opostos, tendo a faixa de rodagem uma largura de 7,40 metros. f) O traçado é em recta, com intercepção de nível constituída pelo cruzamento do IC… com as Ruas da … e do Vale … . g) Nas circunstâncias acima referidas existiam boas condições de luminosidade natural, sendo a visibilidade superior a 50 metros. h) O pavimento, em betuminoso, encontrava-se em mau estado de conservação, apresentando-se no momento seco e sem obstáculos. i) A velocidade máxima permitida no local, para veículos ligeiros de passageiros, é de 60km/h. j) Naquele local, existem bermas, em betuminoso, com 2,70 metros de largura cada. k) Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, por conduzir de forma desatenta e descuidada, o arguido não olhou com a atenção necessária para a via de trânsito onde seguia, não se certificando que ali não existiam obstáculos à sua frente nem peões ou outros veículos a atravessar o IC… no cruzamento com as Ruas da … e do … . l) De igual modo, o arguido não abrandou ao aproximar-se do referido cruzamento nem ajustou a velocidade a que seguia. m) Em face dessa imprudência na condução, o arguido não viu que GG, puxando um carro de mão, atravessava o IC… no aludido cruzamento e se encontrava já na via de trânsito destinada ao sentido P… –L… . n) Em consequência da conduta do arguido, o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-...OA embateu com a frente lateral esquerda no corpo da vítima GG, projetando-a pelo ar. o) A força do embate do veículo de matrícula ...-...OA projectou o corpo da vítima para uma distância de 24 (vinte e quatro) metros do ponto de impacto. p) Após embater no corpo da vítima, o veículo de matrícula ...-...OA foi esbarrar num poste da EDP e posteriormente colidir com um aqueduto de águas pluviais, vindo a imobilizar-se, somente depois de sofrer capotamento, a uma distância de 59 (cinquenta e nove metros) do ponto de impacto. q) Não existiam marcas de travagem no pavimento. r) Como consequência do referido embate, GG sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, vertebro-raqui-medulares, tóraco-abdómino-pélvicas e dos membros superiores e inferiores, que foram causa adequada da sua morte. s) Ao conduzir da forma descrita, agiu o arguido de forma livre, conduzindo em atitude de completa distracção, para além de seguir concentrado na detecção da avaria mecânica. t) Deste modo, revelando descuido e desconsideração pelos demais utentes das estradas, desrespeito pelas regras de condução estradal, que conhecia e tinha a obrigação e era capaz de observar, agiu o arguido sem observar a prudência a que estava obrigado, sem atender aos cuidados que um condutor médio observaria naquela situação, os quais era capaz de adoptar e devia ter adoptado, de modo a evitar um resultado que podia e devia prever, mas que não previu, tendo assim provocado o embate que deu origem às lesões de GG e que foram causa adequada da morte desta.” *** Factos considerados não provados: 1. A falecida GG iniciou o atravessamento após se certificar do trânsito existente. 2. O local provável de embate do veículo no peão ocorreu, a cerca de 1,90m, para lá do eixo da via, ou seja, da linha contínua longitudinal que, divide as duas hemiataxias de trânsito. 3. O (condutor do) referido veículo ...-...OA (seguia) em aceleração progressiva, alheado aos demais utentes da via, imprimi(ndo) velocidade excessiva, para o local. 4. A vítima ao visualizar o veículo, ainda, tentou acelerar o passo na tentativa, quiçá, de sair da linha de evolução do veículo. 5. Todavia, face à velocidade imprimida pelo EE ao veículo e, à sua condução, nada mais o peão pode fazer. 6. Em data anterior ao sinistro em causa nos presentes autos, o proprietário do veículo interveniente no mesmo, FF, solicitou ao réu EE que fosse circular com o veículo para melhor compreender a anomalia de que o veículo padecia. 7. No dia e hora constantes dos autos, o veículo conduzido pelo EE circulava à velocidade máxima de 60 km/h, no estrito cumprimento de todas as regras estradais. 8. Após ter atravessado a faixa contrária, a vítima iniciou a travessia da faixa em que circulava o veículo conduzido pelo ora chamado, puxando o carrinho de mão e apressando o seu passo, tendo iniciado uma ligeira corrida/marcha acelerada, em direcção à berma direita, atendendo ao sentido Norte-Sul (P…-L…). 9. Tendo o embate ocorrido na parte lateral do veículo, nomeadamente, no pára-lamas do lado esquerdo do veículo, mais concretamente, por cima da roda do lado do condutor. 10. Ao avistar a vítima, a reacção natural do condutor foi a de desviar o veículo em direcção à berma direita, atento o seu sentido de marcha, com o intuito de evitar o acidente. 11. Tendo entrado na valeta, o que provocou o seu capotamento. *** II – Fundamentação Graduação da concorrência de culpa do condutor do veículo e do peão O acidente de viação aqui em discussão teve como consequência a morte GG, de 82 anos de idade, em circunstâncias em que se apresenta incompreensível que o condutor não tenha avistado a larga distância o peão e este, do mesmo modo, não tenha avistado o veículo a larga distância antes de iniciar a travessia dado que estava sol, havia boa visibilidade, a via apresentava-se, em recta extensa, plana que permite visibilidade numa extensão de mais de 100 metros, com o piso betuminoso limpo, seco, com pouco trânsito com largura de 7,40m, subdividida por duas faixas, em dois sentidos de trânsito, com 3,70 m cada, ladeada de bermas de 2,70m de cada lado, com limitação de velocidade máxima horária de 60 km/h, no sentido Norte – Sul (P… / L…) e local, com entroncamento de ambos os lados da via e, com casas de habitação e, estabelecimentos comerciais. A vítima tinha 82 anos de idade e conduzia um carrinho de mão o que é indiciador, mesmo que o carrinho não estivesse carregado, que o fazia em marcha lenta. Mesmo assim, antes de iniciar a travessia tinha extensa visibilidade para ambos os lados da estrada pelo que fácil seria não ter iniciado a travessia se avistava um veículo a circular nela. O condutor do veículo, que circulava a uma velocidade não apurada podia, do mesmo modo avistar a mais de 100 metros de distância qualquer peão ou obstáculo que estivesse na faixa de rodagem em que circulava, ou que para ela se dirigisse. Podia, naturalmente se fosse a olhar para a sua frente, como é pressuposto que faça em todos os milímetros que percorre ao conduzir um veículo, e. com a atenção necessária à actividade perigosa que então desenvolve. Não se apurou que a hemiataxia de rodagem contrária, atento o sentido de marcha do veículo, estivesse ocupada por veículos os outros obstáculos que impedissem uma manobra de recurso para evitar a colisão, e não há rastos de travagem, o que é indicativo de que o condutor do veículo circulava manifestamente desatento à sua condução, não tentou diminuir a velocidade a que seguia, nem efectuar qualquer desvio, pelo menos significativo do peão que estava à sua frente. Após embater no corpo da vítima, o veículo de matrícula ...-...OA foi esbarrar num poste da EDP e posteriormente colidir com um aqueduto de águas pluviais, vindo a imobilizar-se, somente depois de sofrer capotamento, a uma distância de 59 (cinquenta e nove metros) do ponto de impacto, o que é indicativo da surpresa que para si decorreu da colisão com o peão e a sua incapacidade de controlar o veículo, provavelmente devido à velocidade excessiva – dado que não parou no espaço livre e visível à sua frente - a que seguia. No local do acidente o IC… segue sobre a anterior estrada nacional nº 1 e é ladeado por diversas casas de habitação e estabelecimentos comerciais, sem travessias aéreas para os peões, impondo, por isso, necessariamente aos condutores a moderação da sua velocidade dado ser possível que haja pessoas a atravessar a via, e, não como alega a recorrente que não seja provável que tal aconteça. O IC…, no referido local só se distingue da estrada nacional porque as faixas de rodagem e bermas são mais largas que o habitual. Não tem qualquer separação da faixa de rodagem dos terrenos adjacentes e apesar da qualificação de IC…- Itinerário Complementar n.º … é uma via rodoviária que consiste numa variante, no local sobreposta na Estrada Nacional nº…, sem perfil de auto-estrada, ou via rápida. Na sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância deu-se como partilhada a culpa de ambos os intervenientes na colisão mortal, cabendo à vítima e peão a percentagem de 70%, e ao condutor do AO a percentagem de 30%. O acórdão recorrido distribuiu a culpa pela produção do acidente em 80% para o condutor e em 20% para a malograda vítima mortal. Alega o recorrente Fundo de Garantia Automóvel que da prova produzida resultou provado que foi a malograda vítima quem invadiu a hemifaixa pela qual circulava o veículo automóvel, cortando-lhe a trajectória. Desconsidera que, para o peão que iniciou a travessia da via do lado contrário da estrada, atento o sentido de marcha do veículo, a sua travessia estava prestes a concluir-se. Desde que iniciou essa travessia, em marcha lenta e com um carrinho de mão, era visível para o condutor a larga distância, porque ambos estavam a circular numa muito extensa recta. Não se trata de um peão que surgiu subitamente da rua do lado direito do condutor, atento o sentido de marcha. Ao invés, essa rua que aparecia no local do acidente do lado direito do condutor, atento o sentido de marcha em que seguia era a rua de destino do peão que era visível para o condutor do veículo desde que circulava na rua perpendicular donde vinha e antes mesmo de entrar no IC…. Dizemos que era visível porque objectivamente era, ainda que subjectivamente para o condutor, “perdido nos seus pensamentos, preocupações ou investigações mecânicas” só tivesse ficado aparente a 20 ou 30 metros como regista o acórdão recorrido suportado no depoimento do condutor. Alega ainda que «o veículo ...-...-AO embateu com a frente lateral esquerda no corpo da vítima, o que atesta que o peão invadiu a via quando o veículo estava já muito próximo do local exacto do acidente, em violação do n.º 1 do art.º 101.º do código da Estrada.». Para além do que se refere no penúltimo parágrafo sobre a trajectória percorrida pela vitima e a impossibilidade de um condutor normalmente diligente e atento a não ter avistado, mesmo antes de aquela iniciar a travessia, faz-se ainda notar que a matéria provada diz que a vitima seguia conduzindo um carrinho de mão de duas rodas que, naturalmente era por ela empurrado, nunca se diz que era puxado, e estava na frente da vitima. Se o embate ocorreu entre a frente lateral esquerda do veículo e o corpo da vítima, mais difícil é entender que a vítima não tivesse sido avistada pelo condutor, a grande distância, já que o peão atravessava a via e o carrinho de mão, objecto compacto e não invisível, seguia na sua frente. O IC.. é na grande parte da sua extensão, e no local do acidente em particular, de utilização partilhada de peões. Segundo os dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária de 2023 o IC… foi a estrada com pior índice de sinistralidade mortal nos 9 anos anteriores - http://www.ansr.pt/Estatisticas/RelatoriosDeSinistralidade -. Tendo ambos os intervenientes no acidente contribuído para a ocorrência do acidente o grau de culpa do condutor do veículo é substancialmente superior ao da vítima, não só pelos acrescidos deveres que lhe impõem as regras de condução rodoviária, a preparação técnica a que é submetido para garantir que as conhece, e, se mostra capaz de as cumprir, mas sobretudo pela responsabilidade que lhe advém de utilizar em proveito próprio um meio potencialmente causador de enorme danos para os demais utilizadores da via, quando não devidamente conduzido. Só a convergência da negligência do condutor com a negligência da sinistrada tornaram possível o acidente, mas, pelas razões acabadas de expor, acompanhamos a decisão do Tribunal recorrido de que é muito mais grave a culpa do condutor do veículo que a culpa do peão tendo em conta o que ficou provado sobre o acidente em causa, apresentando-se como equilibrada a distribuição do grau de culpa pela produção do acidente em 80% para o condutor e em 20% para a malograda vítima mortal. Impõe-se, pois, nos termos legais, a confirmação do acórdão recorrido. ***** III – Deliberação Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar a decisão recorrida. Custas pelo recorrente. * Lisboa, 30 de Janeiro de 2025 Ana Paula Lobo (relatora) Maria da Graça Trigo Emídio Francisco Santos |