Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14051/21.8T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: AÇÃO POPULAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
PETIÇÃO INICIAL
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
GARANTIA
REPARAÇÃO
COISA DEFEITUOSA
DEFESA DO CONSUMIDOR
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/21/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O artigo 13.º da Lei 83/95 prevê um caso especial de indeferimento liminar da petição inicial, dispondo que a petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o  Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram.

II. Tendo os autores alegado que um certo contrato de adesão, designado como “condições gerais de reparações e serviço pós venda” onera os consumidores que queiram exercer o seu direito de garantia, quando estejam perante uma falta de conformidade, coagindo-os a aderirem a um contrato desproporcional, quando deveria ser bastante a apresentação do bem desconforme para exercerem o seu direito, mas verificando-se que o suposto contrato tem a redação que se indica, não resulta daí qualquer  limitação do prazo de garantia, não há imposição de condições para que seja actuada a garantia, apenas se destinando o clausulado questionado a condicionar os direitos do cliente nos casos em que sejam detectados sinais de mau uso e/ou problemas que possam ter causado o mau funcionamento do equipamento cuja reparação ou substituição é pretendida (pr ex. queda ou humidade, etc.), caso em que, sem imposição, o cliente é contactado para indicar se pretende que se proceda à reparação do equipamento, com apresentação do orçamento de reparação que, caso não seja aceite, está sujeita ao pagamento de uma taxa de orçamento de 20 €, a liquidar aquando do levantamento do equipamento, implicando (nestes casos, em que não está a reparação abarcada pela garantia) que o processo de reparação seja iniciado apenas após pagamento de 50% do valor orçamentado.



Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA instaurou acção declarativa popular de condenação, sob a forma única de processo, contra FNAC PORTUGAL -ACTIVIDADES CULTURAIS E DISTRIBUIÇÃO DE LIVROS, DISCOS MULTIMÉDIA E PRODUTOS TÉCNICOS, LDA.

Pediu a condenação da ré a:

A - Reconhecer que os consumidores, autores populares, incluindo o autor, têm direito a que lhe seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda;

B - Reconhecer que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, os consumidores, autores populares, incluindo o autor, têm direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição;

C - Reconhecer que impõe aos consumidores, autores populares, incluindo o autor, a celebração de um contrato (acessório ao contrato de compra e venda) com cláusulas gerais para que estes assim e só assim possam exercer o seu direito à garantia;

D - Reconhecer que impõe aos consumidores, autores populares, incluindo o autor, um entrave extracontratual oneroso e desproporcionado quando os autores populares, incluindo o autor, pretendem exercer os seus direitos contratuais, incluindo o exercício do direito a garantia, está a praticar um comportamento comercial agressivo que é qualificado como assédio, a coacção ou a influência indevida;

E - Reconhecer que o comportamento supra descrito nos pontos C e D, tido com o autor e demais autores populares, é ilícito;

F - Abster-se de realizar as práticas comerciais agressivas e ilegais mencionadas nos pontos C e D supra;

G - Permitir que os autores populares, incluindo o autor, possam exercer o direito à garantia consagrado na Lei sem necessidade de celebrar um novo contrato ou contrato acessório, como aquele que a ré tenta impor quando algum autor popular tenta exercer tal direito;

H - Reconhecer que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, seja quanto ao autor, como quanto aos autores populares;

I - Reconhecer que com esse comportamento lesaram gravemente os interesses do autor e dos demais autores populares, nomeadamente sonegando-lhes o direito à garantia.

Em consequência, pediu ainda a condenação da ré a:

J - Em relação ao autor e aos demais autores populares:

a. Repor a falta de conformidade do bem com o contrato sem qualquer encargo, ónus ou necessidade de novo contrato ou contratos acessórios, por meio de reparação ou de substituição nos termos dos artigos 4(1)(5) e 5(1) do Decreto-Lei 67/2003;

b. Uma indeminização por todos os danos que causaram na esfera jurídica e patrimonial do autor e dos autores populares devido ao comportamento ilícito supra descrito, nomeadamente, mas não exclusivamente, da privação de uso e de todos os custos que os autores populares tenham incorrido para poderem exercer a frustrada tentativa de exercer o legitimo direito à garantia.

Considerando ser no caso do autor possível de concretizar, já neste momento, o pedido, fê-lo do seguinte modo:

c. Repor a falta de conformidade dos auriculares adquiridos em 29.04.2021 (a que corresponde a factura ...28) por meio de reparação ou substituição;

d. Pagar a quantia de 5 euros por dia a contar desde 07.09.2021 até à reposição do bem desconforme;

e. 10 euros a titulo de danos morais e que resultaram da lesão da tranquilidade, do bem-estar físico e psíquico, tudo devido ao comportamento ilícito da ré, o que levou obviamente a algum sofrimento físico e moral, perda de confiança nas normas e nas relações comerciais, ainda que o autor atribua culpa deste comportamento despregado, ostensivo e arrogante da ré à falta de inacção da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica que deveria sancionar e impedir tais comportamentos, mas que inexplicavelmente não o faz;

f. Assim como uma indeminização dos custos suportados pelo autor a propositura desta acção, não obstante o carácter popular da mesma e a “teoria das custas de parte”;

g. Os juros que se vencerem à taxa legal aplicável a cada momento contados desde a data do vencimento da obrigação de indemnizar até integral pagamento.

No caso de qualquer um dos pedidos supra procederem, pediu ainda a condenação da ré a:

L - Enviar a sentença que vier a ser proferida a todos os seus clientes e/ou ex-clientes, potenciais autores populares e nessa qualidade titulares dos interesses identificados, para que estes, querendo, façam valer os seus direitos nos termos da Lei 84/95 artigo 22(3).

Como fundamento, alegou, em síntese:

- O autor é uma pessoa singular que, em 29.04.21, adquiriu um produto à ré destinado a uso não profissional, pelo que tem a qualidade de consumidor, como a maioria dos clientes da ré;

- Adquiriu um auricular Swingson True II, que não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o autor podia razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem, designadamente, o auricular direito emitia a um volume sonoro máximo quase inaudível e muitíssimo inferior ao emitido pelo auricular direito;

- Perante a falta de conformidade do auricular, que foi notória logo no momento em que o mesmo foi adquirido, o autor dirigiu-se, assim que teve oportunidade, à ré a fim de que esta repusesse o auricular sem encargos por meio de reparação ou de substituição;

- A ré só admitiu aceitar o auricular para efeito de reparação ao abrigo da garantia caso o autor celebrasse o contrato designado como “CONDIÇÕES GERAIS REPARAÇÕES E SERVIÇOS PÓS VENDA”, que o autor anexa como documento n.º 2;

- Tal contrato onera sobremaneira os consumidores no exercício do seu direito de garantia, já que exige uma taxa de orçamento de € 20,00, impõe uma taxa de armazenamento caso os equipamentos não sejam levantados após a sua reparação, reduz o prazo de garantia de 2 anos para 6 meses em caso de baterias, carregadores e outros bens equiparados;

- A ré coage os consumidores em geral, seus clientes, autores populares, a aderirem a um contrato desproporcional, o qual não podem modificar, para assim e só assim poderem exercer o direito à garantia, quando deveria ser bastante a apresentação do bem ou serviço desconforme e a prova da sua aquisição para exercer um direito consagrado na Lei; o autor e restantes autores Populares, ou aceitam aderir ao dito contrato, ao não veem o seu bem ou serviço reparado ou substituído, ficando neste último caso privado do seu uso;

- O quadro descrito verificou-se com o autor, que desde 07.09.21 (artigo adquirido em 29.04.21, segundo documento que anexa), data em que apresentou o bem para reparação e a mesma lhe foi recusada pela ré, deixou de poder utilizar o bem em conformidade com o uso que lhe seria expectável, incorrendo em danos patrimoniais e não patrimoniais;

No enquadramento jurídico dos direitos dos consumidores que entende serem violados pela actuação da ré, invoca o autor que é violado o direito a reposição, sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, sendo esta conformidade esperada do contrato de compra e venda, não podendo ser imposta aos consumidores a celebração de um novo contrato ou de um contrato acessório que condiciona a obrigação da ré de repor o bem ou prestar o serviço, o que traduz um condicionamento ao exercício do direito de garantia e utilização de assédio e coacção sobre os consumidores.

Justifica o recurso à acção popular e delimita o universo de autores como – que têm uma especial ligação com a presente demanda – como sendo todos clientes da ré, consumidores que, tendo-lhe comprado bens ou serviços e que foram ou podem vir a ser prejudicados com o comportamento ilícito da ré supra descrito, com a subsequente perda dos montantes despendidos na compra de tais bens e serviços e na privação de uso e, mais relevante, com a sonegação do elementar direito de garantia perfeitamente previsto na Lei e com força imperativa, tendo sido colocados numa situação de sujeição relativamente às vontades e coacção da ré.

No mais, invoca o dano por si sofrido e quantifica a sua pretensão indemnizatória, invocando elementos factuais que delimitam o seu interesse individual.

Mais refere, justificando o recurso à acção popular que “tal como o Autor, vários são os Autores Populares que ou aceitaram esse contrato desproporcional ficando sujeito às suas consequências e, portanto, foram onerados quando não deviam, ou simplesmente abriram mão do direito à garantia ficando privados do uso dos bens e serviços adquiridos e em desconformidade”.

Em justificação da necessidade de reenvio prejudicial, alega ainda que, ao impor um entrave extracontratual oneroso ou desproporcionado quando o autor e demais autores populares, consumidores em geral, pretendem exercer os seus direitos contratuais, incluindo o exercício de o direito a garantia, a ré está a praticar um comportamento comercial agressivo que é qualificado como assédio, a coacção ou a influência indevida.

2. De seguida, foi proferido despacho que, ao abrigo do disposto no artigo 13.º da Lei 83/95, de 31.08, por ser manifestamente improvável a procedência do pedido, indeferiu a petição de acção popular.

3. O autor recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que conheceu do recurso e decidiu:

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, e, em consequência:

 - Confirma-se a decisão recorrida.

Sem custas (artigo 4.º, n.º 1, al. b) do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo DL 34/08, de 26.02).”

4. Na fundamentação do acórdão o Tribunal explicou que concordava com a decisão recorrida, e com os respectivos fundamentos, que também constituíram razão para a sua decisão.

5. Não se conformando com a decisão veio apresentado recurso de revista excepcional pelo A., por existir dupla-conformidade decisória, impeditiva da revista normal, impedimento assumido como correcto pelo recorrente.

No recurso foram formuladas as seguintes conclusões:

1. Os recorrentes, notificados do douto acórdão ora recorrido e não se conformando com o mesmo, vêm interpor RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL, sobre a matéria de direito, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 672 (1, a, b, c) do CPC.

2. Pelas razões expostas em 3.1. supra (dupla conforme), entendem os recorrentes que não existir uma efetiva dissonância das duas instâncias sobre a decisão ora recorrida, essencial ao interesse da recorrente, pelo que, salvo sempre melhor opinião, julga-se verificado o pressuposto do artigo 671 (3) do CPC.

3. Destarte, considera-se que há lugar à limitação dos graus de jurisdição decorrente da aplicação do disposto do artigo 671 (3) do CPC, sendo a revista ordinária inadmissível.

4. Sem prejuízo, caso Vossas Excelências, Colendos Juízes(as) Conselheiros(as), tenham entendimento diferente, deve o presente recurso seguir a revista ordinária.

5. Pois, se Vossas Excelências, Colendos Juízes(as) Conselheiros(as), considerarem existir algum erro na qualificação do meio processual utilizado pelos recorrentes, o mesmo deverá ser corrigido oficiosamente, determinando que se sigam os termos processuais adequados [cf. artigo 193 (3), do CPC].

6. Caso Vossas Excelências, Colendos Juízes(as) Conselheiros(as), entendam que a revista ordinária não é admissível (como se pensa não ser), deverá ser admitida a revista excecional [cf. artigo 672 (1, a, b, c) do CPC], atentos à relevância jurídica da questão (a), por estarem em causa interesses de particular relevância social e questões de direito da União Europeia (b) – já suscitadas em sede de recurso para o Tribunal da Relação do Porto – e por se verificar uma oposição de acórdãos (c).

7. A relevância jurídica da questão está justificada em 3.2.1. supra, para onde se remente por questões de proficiência e evitando tornar as conclusões uma repetição fastidiosa e insuportável do corpo do recurso.

8. Mas, sem prejuízo dessa proficiência e de forma muito resumida, entende-se existir relevância jurídica, tal como tem vindo a ser entendimento desse Venerando Supremo Tribunal de Justiça, quando estejam em causa questões de direito da União Europeia como aqui se verifica, a revista excecional deve ser sempre admitida.

9. Os interesses de particular relevância social, encontram justificação no exposto em 3.2.2. supra, para onde se remente, mas que em resumo, se sustenta no facto de estarmos perante uma ação popular na defesa dos direitos de uma massa de consumidores, geograficamente dispersos, e relacionada com o decreto-lei 67/2003 e da diretiva (EU) 2019/771, com respeito às vendas de bens de consumo e das garantias a ela relativas, que aporta repercussões fora dos limites da causa quando olhada por um prisma individualista, pois está relacionada com valores socioeconómicos de elevada importância e, com a decisão ora recorrida, existe o risco de fazer perigar a eficácia do direito e até mesmo duvidar da capacidade das instâncias jurisdicionais para garantir a sua afirmação.

10. Ou seja, estão em causa interesses que assumem uma enorme importância na estrutura e relacionamento social, tanto em Portugal, como em toda a União Europeia. Portanto, estamos perante uma questão de interesse geral para a sociedade ou, quanto muito, para um grupo relevante desta.

11. Quanto à oposição de acórdãos, verifica-se uma vez que o acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 2466/07.9TBOER.L1-6, já transitado em julgado, está em manifesta oposição ao acórdão ora recorrido, pelas razões apontadas em 3.2.3, supra, para onde se remente.

12. Trata-se, como se vê em 3.2.3 supra, de uma oposição frontal de acórdãos, no núcleo central da situação de facto e das normas jurídicas interpretadas.

13. Quanto à questão de fundo, a resolver: a primeira instância, ponderada toda a matéria de facto e de direito, decidiu julgar improcedente a ação, indeferindo a mesma, por considerar ser manifestamente improvável a procedência do pedido (cf. artigo 13 da Lei 83/95), decisão que foi sufragada, em absoluto, pelo tribunal recorrido.

14. Tal juízo liminar é sustentado no entendimento que:

a. é legal exigir aos consumidores que aderiam a um contrato, com o qual não concordam, o qual não podem modelar e no qual não tem qualquer interesse, para que assim e só assim, possam exercer o seu direito à garantia; e

b. que as baterias e os carregadores são bens perecíveis e de natureza incompatível com o prazo de dois anos de garantia, podendo por isso o período de garantia ser reduzido para seis meses.

15.E que em consequência desse entendimento, entendeu o tribunal a quo que não havia possibilidade de proceder a uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos consumidores, autores populares, aqui recorrentes, isto apesar de tal contrato e comportamento da ré, ora recorrido, se manifestar de igual modo, perante todos os consumidores, autores populares, resultando numa lesão em massa e de forma absolutamente indiferenciada.

16. Ressalvado o devido respeito, que é o maior, o tribunal recorrido decidiu mal, não avaliando convenientemente o caso sub judice quanto à de direito.

17.O objeto do litígio é o que se alude no § 4. supra, para onde se remete e aqui se dá como integralmente reproduzido, evitando sermos fastidiosos a repetir o já supra exaustivamente mencionado.

18. Mas que de forma resumida, o tanto quanto possível, se circunscreve ao direito que os autores populares poderem exigir que lhe seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda e que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, tenham direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, e sem que lhes seja imposto a celebração de um contrato (ad hoc) com cláusulas gerais abusivas para que estes assim e só assim possam exercer tal direito à garantia.

19. Dentro dessas cláusulas abusivas, impostas por um contrato de adesão, a toda a massa de consumidores, os aqui autores populares, de forma absolutamente indiferenciada, está uma cláusula que reduz o prazo de garantia de dois anos previsto no artigo 5 (1) do decreto-lei 67/2003 e na diretiva (EU) 2019/771 de dois anos para seis meses, quando se tratem de baterias ou carregadores.

20. Tudo isto, com as mais consequências legais, incluindo respetivas indeminizações.

21. As questões a resolver circunscrevem-se a todas que estão vertidas no §4.1 supra, para onde se remete dando aqui como integralmente reproduzidas, evitando uma mera repetição das mesmas.

22. Resolvendo-se essas questões, que, diga-se, são na verdade já o mérito da causa, tudo o resto se resolve por inerência, designadamente a possibilidade de proceder a uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos consumidores, aqui autores populares.

23. A primeira instância decidiu, sem conceder o direito a um julgamento com audiência de testemunhas, a ser ouvida a parte contrária e feitas alegações finais, o mérito da causa, porquanto, de facto, decidiu a substância do pedido e a questão de fundo.

24. Não foram dados provados ou não provados nenhuns factos, tendo sido apenas apreciados os factos alegados pelos aqui recorrentes.

25. O alegado pelos recorrentes, no que aqui importa, são os factos copiados no § 5 supra, para onde se remente, evitando aqui a sua mera repetição e por razões de economia processual.

26. Pelas razões de direito apresentadas no § 5 supra, os recorrentes descordam em absoluto com o entendimento do tribunal a quo, mas que em resumo entendem que:

a. o exercício da garantia prevista no artigo 5 do decreto-lei 63/2007 não pode ficar condicionada à exigência do consumidor assinar um contrato, seja lá qual for o seu teor e os seus efeitos económico-jurídicos, apresentado (muito) depois de concluída a venda e apenas no momento que o consumidor pretenda exercer o seu direito à garantia, muito menos quando esse é um contato de adesão, impossível de modelar pelos consumidores, e que lhe reduzem direitos, designadamente os previstos no artigo 5 do decreto-lei 63/2007.

b. a presunção legal ínsita no artigo 3 (2) do decreto-lei 63/2007 não pode ser confundido com o prazo de garantia que o artigo 5 (1) do mesmo decreto-lei 63/2007 prevê e como tal o prazo de garantia dos bens móveis, novos, é sempre dois anos, não podendo ser reduzida para seis meses.

27. Ainda que lateral à questão, os aqui recorrentes também discordam do tribunal a quo na consideração de que as baterias e os carregadores são bens perecíveis – pois efetivamente não o são

28. Os recorrentes requerem o reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE para interpretação dos artigos 8 e 9 (d) da diretiva 2005/29/EC, artigos 10 (1), 11, 13 (1) (2) e 14 (1) (2) da diretiva (EU) 2019/771 à luz da factualidade apresentada, dissertando e justificando melhor esse reenvio e a sua obrigação (em caso de decisão em dupla conforme) no § 8 supra, para onde se remete.

29. Assim, para a eventualidade de entenderem Vossas Excelências, Colendos Senhores(as) Juízes(as) Conselheiros(as), que é necessária a intervenção do TJUE, como se demonstrou ser supra, nos termos e para os efeitos supra requeridos, entendem os recorrentes, que a pronúncia do TJUE, no caso sub judice, será indispensável para a decisão da controvérsia jurídica que constitui objeto da presente ação. Por essa razão, requerem a suspensão da presente instância até que o TJUE se pronuncie, a título prejudicial, expressa e especificamente, sobre tais questões.”

6. No tribunal recorrido foi proferido o seguinte despacho: “Face aos fundamentos de recurso de revista excepcional invocados, subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça (artigo 672.º, n.º 3 do CPC).”

7. Distribuído o processo no STJ, impondo-se ao relator que verifique se estão reunidos os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, incluindo a dupla conforme, antes de remeter os autos à formação para análise do pedido de admissão excepcional, foi dito:

No caso, o recorrente tem legitimidade, ficou vencido, em processo com valor e sucumbência, tendo apresentado o recurso atempadamente.

A decisão recorrida confirma o despacho da 1ª instância, sem fundamentação essencialmente diversa, e sem voto de vencido, pondo termo ao processo – art.º 671.º, n.º1 do CPC, não sendo possível o recurso de revista normal por se verificar o obstáculo dupla conforme.

Vindo solicitada a revista excepcional, remetam-se os autos à formação, a que se reporta o art.º 672.º para decisão.

Sem custas.”

8. A formação a que alude o art.º 672.º veio a admitir o recurso, por acórdão datado de 25.01.2023.

9. No acórdão recorrido veio dito:

“A Lei 83/95, de 31.08 define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição (artigo 1.º, n.º 2).

Sem prejuízo do disposto naquele n.º 1, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público (n.º 2 do mesmo preceito).

Nos termos do artigo 2.º, n.º 1 daquela Lei, são titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.

O artigo 13.º da Lei 83/95 prevê um caso especial de indeferimento liminar da petição inicial, dispondo que a petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o  Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram.

O despacho recorrido é um despacho de indeferimento liminar da petição inicial, proferido ao abrigo do disposto no citado artigo 13.º.

A fundamentação do despacho recorrido é a seguinte: “(…).

Efectuada a apreciação dos factos alegados, analisado o enquadramento jurídico e conjugados estes com o teor do documento que está na origem das conclusões extraídas pelo autor em relação à existência de fundamento para instauração de uma acção popular, importa apreciar se existe probabilidade de procedência do pedido (art.º 13º da Lei nº83/95, de 31.08).

O consagrado direito de acção popular, que autoriza qualquer cidadão a exercer um direito com repercussões na esfera jurídica de um conjunto de cidadãos em situação similar, tem uma base altruística, permitindo que, com isenção inicial de preparos e custas, o cidadão que considera que uma actuação de terceiros é lesiva, não só do seu direito, como do direito de todo um universo de consumidores que contrate com a infractora, possa pôr termo a essa actuação em seu nome e em nome de todos os demais que se encontrem na mesma situação.

Porém, sendo uma acção que acarreta elevados custos para o Estado – pelo universo de citações e pela dimensão e complexidade de julgamento que abstractamente pode ter –, reclama um crivo criterioso que evite que, sob a capa da defesa de todo um universo de lesados ou potenciais lesados, se persigam interesses pessoais concretos, efeito para o qual a lei dispõe de meios processuais próprios.

Em matéria de consumo e, muito concretamente, quando em causa esteja o exercício do direito de garantia, que o autor proclama ser violado pela ré ao impor aos consumidores a assinatura de um contrato para poderem exercer a sua garantia, os consumidores beneficiam, por aplicação do disposto no art.º 3º, nº2 do Decreto-Lei 67/2003, de 08.04, de um alívio do ónus de prova, que consiste na presunção de que qualquer falta de conformidade que se manifeste num prazo de dois anos (coisa móvel) a contar da data de entrega do bem, se presume existente já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.

Resulta ainda do art.º 4º, nº1 do citado diploma que, em caso de falta de  conformidade, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato, esclarecendo o nº3 que a expressão “sem encargos” se reporta às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, despesas de transporte, de mão-de-obra e material.

Em suma, o vendedor do bem não pode reclamar do consumidor quaisquer encargos quando exista falta de conformidade, sendo que esta se presume existir quando se manifeste num bem móvel adquirido há menos de dois anos.

A base do exercício do direito de acção, na perspectiva do aqui autor, assenta no documento que o mesmo anexa à petição inicial (junto, em versão legível, em 21.09.2021) e que, segundo refere, corresponde a um contrato cuja assinatura a ré impõe aos consumidores que pretendam exercer o seu direito de garantia.

Tal como resulta do referido documento - anexo ao requerimento com a referência nº...16, de 21.09.2021 -, na parte referente aos “artigos sob garantia” refere o documento em questão o seguinte:

Ou seja, não há limitação do prazo de garantia, não há imposição de condições para que seja actuada a garantia, apenas se destinando o clausulado questionado a condicionar os direitos do cliente nos casos em que sejam detectados sinais de mau uso e/ou problemas que possam ter causado o mau funcionamento do equipamento cuja reparação ou substituição é pretendida (pr ex. queda ou humidade, etc.), caso em que, sem imposição, o cliente é contactado para indicar se pretende que se proceda à reparação do equipamento, com apresentação do orçamento de reparação que, caso não seja aceite, está sujeita ao pagamento de uma taxa de orçamento de 20 €, a liquidar aquando do levantamento do equipamento, implicando (nestes casos, em que não está a reparação abarcada pela garantia) que o processo de reparação seja iniciado apenas após pagamento de 50% do valor orçamentado.

O autor alega que o dito contrato de adesão, designado como “condições gerais de reparações e serviço pós venda” onera os consumidores que queiram exercer o seu direito de garantia, quando estejam perante uma falta de conformidade, coagindo-os a aderirem a um contrato desproporcional, quando deveria ser bastante a apresentação do bem desconforme para exercerem o seu direito. Ou seja, ou aceitam aderir ao contrato, ou não veem o seu bem reparado, ficando privados do seu uso.

O autor reclamou e, segundo alega, ficou privado do uso do bem, peticionando uma indemnização pelo período de privação, alegando que a reparação ou substituição dos auriculares por si adquiridos “não foi possível devido ao comportamento da ré”.

Analisado o documento, sem prejuízo de quaisquer questões que, em concreto, se possam verificar em relação a cada específica situação do consumidor colocado na posição de cidadão que exerce o seu direito de garantia, não podemos ter por verificada a invocada lesão geral e abstracta aos consumidores, no sentido de “a ré não aceitar colmatar a falta de conformidade dos bens por meio de reparação ou substituição” ou que, em caso de verificação dos pressupostos de activação da garantia, se negue a efectuar a reparação ou substituição a título gratuito.

O que resulta do documento junto é que a ré se reserva o direito de cobrar um valor associado aos custos que tem com a verificação técnica, quando conclua que existem sinais de mau uso ou factores externos ao normal funcionamento do bem que possam ter dado causa ao mau funcionamento do equipamento e sejam imputáveis ao consumidor.

Independentemente de poderem ocorrer situações de abuso concreto, a ressalva contratual de imputação ao consumidor dos custos a que dê causa a verificação técnica da origem da falta de conformidade do bem no prazo legal da garantia não corresponde, a nosso ver, a uma inversão das regras legais que possa, a título geral e com possibilidade de inclusão no campo amplo da acção popular, dar causa a uma sentença que produza os efeitos gerais que o autor pretende ver declarados.

Note-se que é pretensão do autor que o tribunal condene a ré a repor a falta de conformidade do bem com o contrato sem qualquer encargo, ónus ou necessidade de novo contrato ou contratos acessórios, por meio de reparação ou de substituição, quando do documento anexo como fonte da indicada pretensão de declaração geral não resulta que a ré se negue a repor gratuitamente a falta de conformidade, negando aos consumidores o exercício do seu direito de garantia, antes sendo os custos ali previstos acautelados para os casos em que, após verificação técnica, a ré conclua que não se verifica a referida falta de conformidade.

Haverá, seguramente, uma margem concreta de casos em que, apesar de a ré concluir que não se verifica a falta de conformidade ou que o mau funcionamento é imputável ao consumidor, tal não corresponda à realidade. Mas essas situações terão tratamento jurídico autónomo no contexto da situação individual em que se verifiquem.

O autor negou-se a assinar o documento e, consequentemente, desconhece o resultado da apreciação técnica da sua concreta situação. Porém, caso houvesse autorizado a remessa do bem para verificação técnica e a conclusão fosse produzida no sentido de que inexistia qualquer mau uso ou causa imputável ao autor na falta de conformidade do produto, nenhum valor lhe seria reclamado, nos termos do documento junto.

Ao vendedor, responsável pela reparação/substituição, tem que ser disponibilizado o bem para viabilizar a possibilidade de ilidir a presunção de que a desconformidade já ocorria na data de entrega do bem, podendo efectuar uma averiguação técnica para apurar se o defeito é originário. Se esta averiguação tem custos, não choca o comum sentimento jurídico que, em caso de abuso do direito de garantia por evidente mau uso do bem, tais custos sejam imputados ao consumidor que, quando não se conforme com o resultado da apreciação técnica, tem o direito de ver a questão ser solucionada por um tribunal.

Mas esta questão, salvo melhor opinião, com a incidência concreta que tem, não pode ser genericamente declarada em relação a todos os consumidores e, nessa medida, escapa ao âmbito de aplicação da acção popular.

A lei estabelece a gratuitidade para o consumidor do exercício dos seus direitos. O já citado n.º 1 do artigo 4.º do diploma determina que, “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”. O n.º 3 do artigo 4.º clarifica o alcance desta expressão, estabelecendo que ela se reporta “às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de mão-de-obra e material”. Assim, o consumidor não tem de pagar qualquer valor pelas operações de reposição da conformidade, incluindo as relativas a perícias ou ao transporte do bem.

Em todos os casos previstos nos dispositivos citados, estamos perante situações em que existe falta de conformidade do bem, sendo que os valores que a ré, por documento escrito, comunica/informa que serão suportados pelo consumidor, são aqueles que (ainda que na perspectiva das conclusões dos serviços técnicos da ré, naturalmente questionáveis e sindicáveis judicialmente) se encontram excluídos da garantia legal de conformidade, o que não constitui violação da lei.

O documento cuja assinatura a ré impõe ao cliente que apresenta o bem para reparação -com âmbito de aplicação genérica a artigos sob garantia e a artigos fora de garantia -, corresponde a uma espécie de panfleto informativo, por efeito da assinatura do qual o consumidor toma conhecimento e aceita as condições gerais de reparação do serviço pós-venda.

A aceitação das condições não significa ou impõe a renúncia ao direito de garantia, nem impõe custos ao consumidor que legitimamente exerce o direito de garantia, antes informa o consumidor que, caso exista conclusão técnica de que a falta de conformidade do bem é imputável ao consumidor (designadamente mau uso ou acondicionamento com exposição indevida a elementos reconhecidamente causadores de danos em determinados equipamentos), o custo da reparação e da orçamentação será imputado ao cliente. O objectivo será o de retrair o consumidor de praticar algum abuso do direito de garantia, designadamente quando sabe que a avaria foi causada por qualquer comportamento por si conhecido, caso em que pode ponderar, ao conhecer as condições de reparação, o risco que envolve a análise técnica do defeito.

A averiguação das causas de não conformidade e a sua orçamentação envolve custos para a vendedora que, em casos pontuais de eventual abuso por parte do consumidor, não será excessivo ou abusivo imputar a este último, sendo que, conforme referido, não resulta do indicado documento que os direitos do consumidor sejam coarctados, já que, caso discorde das conclusões da ré, em nenhum momento deixa de ter o direito de accionar a vendedora, que terá que ilidir a presunção de que a falta de conformidade existia no momento da entrega/venda.

A partir deste conjunto de factos e ponderados os factores em conflito, teremos que concluir que existe uma elevada improbabilidade de procedência do pedido, já que a pretensão de, com efeitos em relação a todo um conjunto indiferenciado de consumidores, obter a condenação da ré a reconhecer que os consumidores, Autores Populares, incluindo o autor, têm direito a que lhe seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda, ou a reconhecer que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, os consumidores, autores populares, incluindo o autor, têm direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou substituição, implicaria que em algum momento, o tribunal pudesse fundadamente concluir que, pela via da imposição da assinatura do documento, através da qual o consumidor declara o conhecimento e aceitação das condições gerais de reparações e serviços pós venda (aplicáveis a todas as reparações, que incluem artigos sob garantia e fora de garantia), a ré nega tais direitos aos consumidores.

Sem prejuízo de, como sucede com qualquer contrato de adesão, o consumidor poder posteriormente questionar a informação que lhe foi prestada ou de, em qualquer caso, poder o consumidor discordar das conclusões dos serviços técnicos da ré, negando-se a pagar o valor reclamado a título de taxa de orçamento e accionando a ré em cada situação concreta em que se tenha por justificado o exercício do direito, cremos que não existe base suficiente para que se possa concluir pela probabilidade mínima de procedência da acção, já que, por um lado, os pedidos deduzidos não têm base factual/documental que suporte a concreta pretensão jurídica deduzida e, por outro lado, não existe um desequilíbrio de prestações ou uma especial oneração do consumidor que se antecipe resultar da subscrição de um documento que mais não traduz do que a declaração de que conhece e aceita as condições de reparação (em cujo texto expressamente se reconhecem os direitos do consumidor que se encontre a reclamar a falta de conformidade de um bem abrangido pela garantia de dois anos), o que não equivale a declarar que aceita as conclusões que vierem a ser alcançadas pelos serviços técnicos da ré - única aceitação que corresponderia a uma ilegítima imposição de renúncia a direitos.

Não cremos, deste modo, que as pretensões deduzidas nas alíneas A a F, de que dependem os demais pedidos deduzidos, tenham uma probabilidade mínima de procedência que viabilize o prosseguimento da acção.

O autor alude ainda à genérica ilegalidade da restrição contida no referido documento em relação a bens de consumo perecíveis (baterias, carregadores) a seis meses de garantia. Tal questão, porém, contende com a tipologia dos bens que, quando separados do bem móvel e autonomizáveis dele, podem, pela sua própria natureza, esgotar-se ou consumir-se em prazo incompatível com a garantia de 2 anos, o que requer apreciações individuais ou concretas em relação às específicas relações contratuais em que se desenvolvam e aos bens sobre os quais incidem, como resulta da previsão do art.º 3º, nº2 do Decreto-Lei nº67/2003, não constituindo, salvo melhor opinião, base suficiente para uma decisão judicial que nos autorize a reconhecer a existência de uma prática comercial abusiva que suporte a procedência da acção, com a amplitude legitimadora do recurso à acção popular.

Dado que a discordância do autor em relação aos procedimentos comerciais da ré corresponde a uma questão que pode e deve ser tratada no contexto da relação contratual bilateral que o próprio estabeleceu com a ré, esta não ultrapassa os limites interpessoais e, nessa medida, não permite um juízo de prognose favorável à possibilidade de procedência futura da acção proposta.

Deste modo, pelos motivos expostos, por ser manifestamente improvável a procedência do pedido, conclui-se pelo indeferimento da petição (art.º 13º da Lei nº83/95, de 31.08).

(…).”.

A) Nas conclusões 1. a 13., diz o autor que o Tribunal recorrido não enunciou factos provados nem factos não provados, não tendo dado ao autor a oportunidade de fazer prova sobre os factos alegados.

Como dissemos, o despacho recorrido é um despacho de indeferimento liminar da petição inicial, proferido ao abrigo do disposto no artigo 13.º da Lei 83/95.

Ou seja, é um despacho proferido numa fase anterior às fases da citação e da produção de prova (artigos 15.º a 17.º da citada Lei), em que ainda não foram fixados os factos provados nem os factos não provados.

No despacho de indeferimento liminar a que se reporta o artigo 13.º da Lei 83/95, o juiz aprecia os factos alegados pelo autor, para concluir que, ainda que tais factos se viessem a provar, não poderiam os mesmos conduzir à procedência do pedido.

Foi o que sucedeu no caso, em que – como o próprio autor refere na conclusão 13., – foram apreciados os factos alegados pelo autor para se concluir pela manifesta improcedência dos pedidos deduzidos, ainda que tais factos se viessem a provar.

Soçobram, assim, as conclusões 1. a 13.

B) Nas conclusões 14. a 16., o autor manifesta a sua discordância em relação ao fundamento da manifesta improcedência dos pedidos deduzidos.

Adiantamos já que concordamos inteiramente com a decisão e com a fundamentação do despacho recorrido, acima transcrita, nada mais se nos oferecendo dizer que não seja redundante e, consequentemente, inútil.

Resulta dos factos alegados e do próprio documento junto pelo autor, que contém as Condições Gerais de Garantia e Serviço Pós-Venda (reproduzido no despacho recorrido), que a ré não recusa a reparação ou substituição do bem nem impõe quaisquer condições para efectuar essa reparação ou substituição, desde que a mesma seja efectuada ao abrigo da garantia.

O que a ré faz é informar o cliente, no acto da entrega do bem para reparação, que, caso, na verificação técnica, sejam detectados sinais de mau uso e/ou problemas que possam ter causado o mau funcionamento do bem (v.g., queda ou humidade, etc.), o cliente é contactado para indicar se pretende que se proceda à reparação do bem, com apresentação do respectivo orçamento.

E que, caso o cliente não aceite o orçamento proposto pela ré, terá de liquidar uma taxa de € 20,00, aquando do levantamento do bem, sendo que a reparação será iniciada apenas após o pagamento de 50% do valor orçamentado.

Como se vê, todas aquelas condições se aplicam apenas à reparação que a ré entenda estar excluída da garantia, pela verificação de algum dos factores ali indicados.

Após ter sido informado pela ré de que esta entende que a reparação ou substituição do bem está excluída da garantia, o cliente pode optar por: a) aceitar as condições contratuais propostas, caso pretenda que a ré repare o bem; b) repará-lo noutro local; c) discordar da conclusão da ré no sentido da exclusão da garantia.

Neste último caso, estamos perante uma situação pontual, que terá de ser dirimida nos meios próprios, impendendo sobre a ré o ónus de ilidir a presunção de desconformidade do bem, que decorre do artigo 3.º, n.º 2 do DL 67/03, de 08.042.

Conforme bem se explicou no despacho recorrido, a verificação das causas da falta de desconformidade do bem e a orçamentação da reparação têm custos para a

ré, pelo que a imposição do pagamento desses custos ao cliente, caso se verifique que a falta de conformidade é imputável a este, não é excessiva nem abusiva.

Ao fazê-lo, a ré não está a fazer mais do que a exercer o seu direito à recusa da reparação ou da substituição em caso de abuso de direito por parte do cliente, que está expressamente previsto no artigo 4.º, n.º 5 do DL 67/03.

E, de acordo com aquele preceito, ainda que não pedisse a adesão do cliente às condições contratuais supra referidas, a ré poderia sempre recusar reparar ou substituir gratuitamente o bem, caso verificasse estar perante uma situação de abuso de direito por parte do cliente.

Ou seja, da própria factualidade alegada na petição inicial resulta que, se o autor tivesse aceitado as condições contratuais da ré, o auricular teria sido reparado ou substituído gratuitamente pela ré, a menos que esta entendesse que as falhas de funcionamento do auricular eram imputáveis ao autor.

As condições contratuais exigidas pela ré não impedem, pois, o pleno exercício por parte do cliente dos direitos que lhe são conferidos pelas normas do DL 67/03.

Quanto à redução do prazo de garantia para seis meses, no caso de bens de consumo perecíveis (bateria, carregadores), tal como melhor se explicou no despacho recorrido, não se pode considerar tal cláusula como ilegal ou abusiva, em termos genéricos, tratando-se de uma situação a ser apreciada e dirimida casuisticamente.

Por todas as razões expostas e pelas demais que se aduziram na proficiente  fundamentação do despacho recorrido, acima transcrita, conclui-se pela manifesta improbabilidade de procedência do pedido do autor, pelo que a petição inicial teria de ser julgada manifestamente improcedente, conforme foi.

C) Finalmente, nas conclusões 17. a 19., o autor pede o reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE para interpretação dos artigos 8.º e 9.º (d), da Directiva 2005/29/EC, 10.º (1), 11.º 13.º (1 e 2) e 14.º (1 e 2) da Directiva (UE) 2019/771, 47.º da CDFUE e 2.º do TUE.

Por força do artigo 19.º-3/ b) do Tratado da União Europeia e do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação do direito da União e sobre a validade dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Assim, para recorrer ao processo de reenvio de uma ou mais questões a título prejudicial, para interpretação de uma ou mais normas jurídicas de direito comunitário, originário ou derivado, é necessário que subsistam dúvidas sobre a interpretação do texto em causa. Pelo contrário, se o texto é perfeitamente claro, não se trata de interpretar, mas sim de o aplicar, o que é da competência do Tribunal incumbido da competência de julgar o caso concreto aplicando a lei, a nacional e/ou a comunitária se for esse o caso.

Este entendimento é amplamente conhecido e defendido pela doutrina e pela jurisprudência como a “teoria do acto claro”.

A Directiva 2005/29/EC é relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno.

O seu artigo 8.º contém a definição de práticas comerciais agressivas e o seu artigo 9.º discrimina os elementos que devem ser tomados em consideração para determinar se uma prática comercial utiliza o assédio, a coacção e a influência indevida.

A Directiva (UU) 2009/771 é relativa a certos aspectos dos contratos de compra e venda de bens e já foi transposta para o DL 84/21, de 18.10, que, como já dissemos, veio revogar o DL 67/03, mas só entrou em vigor em 01.01.22, aplicando-se apenas aos contratos celebrados após essa data (artigos 53.º, n.º 1 e 55.º).

No essencial, as normas daquela Directiva que são invocadas pelo autor não contrariam as normas do DL 67/03, que foram aplicadas na decisão do caso concreto.

O artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) consagra o direito à acção e a um tribunal imparcial.

Finalmente, o artigo 2.º do Tratado da União europeia (TUE) consagra os valores em que se funda a União Europeia.

Pelas razões que foram expostas no despacho recorrido e nas alíneas A) e B) da fundamentação do presente acórdão, este Tribunal não tem qualquer dúvida acerca da interpretação das normas aplicadas da Lei 83/95 e do DL 67/03, assim como não tem qualquer dúvida de que ao autor não foi negado o direito à acção e a um tribunal imparcial, nem que não houve qualquer violação dos valores em que se funda a União Europeia.

Assim, entende-se que não há fundamento para pedir o reenvio prejudicial ao TJUE.”

(fim de citação)

10. O MP foi chamado a emitir a sua posição, quer quanto à admissão da revista, quer quanto ao sentido decisório, tendo defendido que a revista devia ser admitida, pelos interesses em causa, mas já não com base na invocada oposição de julgados (que não existiria) e que devia ser provida, porquanto:

““B) Nas conclusões 14. a 16., o autor manifesta a sua discordância em relação ao fundamento da manifesta improcedência dos pedidos deduzidos.

Adiantamos já que concordamos inteiramente com a decisão e com a fundamentação do despacho recorrido, acima transcrita, nada mais se nos oferecendo dizer que não seja redundante e, consequentemente, inútil.

Por isso, em apoio do despacho recorrido, diremos apenas o seguinte:

Resulta dos factos alegados e do próprio documento junto pelo autor, que contém as Condições Gerais de Garantia e Serviço Pós-Venda (reproduzido no despacho recorrido), que a ré não recusa a reparação ou substituição do bem nem impõe quaisquer condições para efectuar essa reparação ou substituição, desde que a mesma seja efectuada ao abrigo da garantia.

O que a ré faz é informar o cliente, no acto da entrega do bem para reparação, que, caso, na verificação técnica, sejam detectados sinais de mau uso e/ou problemas que possam ter causado o mau funcionamento do bem (v.g., queda ou humidade, etc.), o cliente é contactado para indicar se pretende que se proceda à reparação do bem, com apresentação do respectivo orçamento.

E que, caso o cliente não aceite o orçamento proposto pela ré, terá de liquidar uma taxa de € 20,00, aquando do levantamento do bem, sendo que a reparação será iniciada apenas após o pagamento de 50% do valor orçamentado.

Como se vê, todas aquelas condições se aplicam apenas à reparação que a ré entenda estar excluída da garantia, pela verificação de algum dos factores ali indicados.

Após ter sido informado pela ré de que esta entende que a reparação ou substituição do bem está excluída da garantia, o cliente pode optar por: a) aceitar as condições contratuais propostas, caso pretenda que a ré repare o bem; b) repará-lo noutro local; c) discordar da conclusão da ré no sentido da exclusão da garantia.

Neste último caso, estamos perante uma situação pontual, que terá de ser dirimida nos meios próprios, impendendo sobre a ré o ónus de ilidir a presunção de desconformidade do bem, que decorre do artigo 3.º, n.º 2 do DL 67/03, de 08.042.

Conforme bem se explicou no despacho recorrido, a verificação das causas da falta de desconformidade do bem e a orçamentação da reparação têm custos para a ré, pelo que a imposição do pagamento desses custos ao cliente, caso se verifique que a falta de conformidade é imputável a este, não é excessiva nem abusiva.

Ao fazê-lo, a ré não está a fazer mais do que a exercer o seu direito à recusa da reparação ou da substituição em caso de abuso de direito por parte do cliente, que está expressamente previsto no artigo 4.º, n.º 5 do DL 67/03.

E, de acordo com aquele preceito, ainda que não pedisse a adesão do cliente às condições contratuais supra referidas, a ré poderia sempre recusar reparar ou substituir gratuitamente o bem, caso verificasse estar perante uma situação de abuso de direito por parte do cliente.

Ou seja, da própria factualidade alegada na petição inicial resulta que, se o autor tivesse aceitado as condições contratuais da ré, o auricular teria sido reparado ou substituído gratuitamente pela ré, a menos que esta entendesse que as falhas de funcionamento do auricular eram imputáveis ao autor.

As condições contratuais exigidas pela ré não impedem, pois, o pleno exercício por parte do cliente dos direitos que lhe são conferidos pelas normas do DL 67/03.

Quanto à redução do prazo de garantia para seis meses, no caso de bens de consumo perecíveis (bateria, carregadores), tal como melhor se explicou no despacho recorrido, não se pode considerar tal cláusula como ilegal ou abusiva, em termos genéricos, tratando-se de uma situação a ser apreciada e dirimida casuisticamente.

Por todas as razões expostas e pelas demais que se aduziram na proficiente fundamentação do despacho recorrido, acima transcrita, conclui-se pela manifesta improbabilidade de procedência do pedido do autor, pelo que a petição inicial teria de ser julgada manifestamente improcedente, conforme foi.”

***

5. Discordam os recorrentes deste enquadramento dos factos, e conclusões do Tribunal “a quo”, e cremos que lhes assiste razão, pois as instâncias fizeram uma interpretação redutora dos factos alegados na petição inicial, e circunscreveram-no à situação concreta da reparação – ou recusa dela - do auricular Swingson True II que havia sido adquirido pelo autor/consumidor em estabelecimento da Ré.

De facto, importa não esquecer que - como acima se referiu - a falta de conformidade do auricular foi notória logo no momento em que o mesmo foi adquirido, e o autor dirigiu-se, assim que teve oportunidade, à ré a fim de que esta repusesse o auricular sem encargos por meio de reparação ou de substituição;

- A ré só admitiu aceitar o auricular para efeito de reparação ao abrigo da garantia caso o autor celebrasse o contrato designado como “CONDIÇÕES GERAIS REPARAÇÕES E SERVIÇOS PÓS VENDA”, que o autor anexa como documento n.º2;

- Tal contrato onera sobremaneira os consumidores no exercício do seu direito de garantia, já que exige uma taxa de orçamento de € 20,00, impõe uma taxa de armazenamento caso os equipamentos não sejam levantados após a sua reparação, reduz o prazo de garantia de 2 anos para 6 meses em caso de baterias, carregadores e outros bens equiparados;

- A ré coage os consumidores em geral, seus clientes, autores populares, a aderirem a um contrato desproporcional, o qual não podem modificar, para assim e só assim poderem exercer o direito à garantia, quando deveria ser bastante a apresentação do bem ou serviço desconforme e a prova da sua aquisição para exercer um direito consagrado na Lei; o autor e restantes autores Populares, ou aceitam aderir ao dito contrato, ao não vêem o seu bem ou serviço reparado ou substituído, ficando neste último caso privado do seu uso;

- O quadro descrito verificou-se com o autor, que desde 07.09.21 (artigo adquirido em 29.04.21, segundo documento que anexa), data em que apresentou o bem para reparação e a mesma lhe foi recusada pela ré, deixou de poder utilizar o bem em conformidade com o uso que lhe seria expectável, incorrendo em danos patrimoniais e não patrimoniais.

E esta factualidade não foi contraditada pela Ré Fnac Portugal- Actividades Culturais e Distribuição de Livros, Discos Multimédia e Produtos Técnicos, L.da – apesar de ter sido citada para a ação e termos do recurso (de apelação).

Por isso, em nosso entender, e salvo o devido respeito, deveria o Tribunal de 1.ª instância, no mínimo, proceder à inquirição das testemunhas arroladas pelo autor na petição inicial e respeitar o contraditório ( cf.r art.º 3.º do CPC), antes de avançar logo para o indeferimento liminar da petição nos termos do art.º 13.º da Lei n.º 83/95, de 31/8 – que, assim, foi violado.

E, consequentemente, o douto Acórdão ora recorrido, em vez de confirmar integralmente a decisão de indeferimento liminar proferida pela 1.ª instância, deveria tê-la revogado e ordenado a remessa dos autos ao tribunal de 1.ª instância para aí prosseguirem seus termos legais.

Como não o fez, em nosso entender, deverá agora ser revogado pelo STJ, e ordenada a remessa dos autos à 1.ª instância para aquele efeito.” (fim de citação)

11. E quanto à questão do reenvio prejudicial, disse assim:

“1. Como já haviam feito na Apelação, nas suas conclusões 28. e 29. Os recorrentes requerem o reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE, para interpretação dos artigos 8 e 9 (d) da diretiva 2005/29/EC, artigos 10 (1), 11, 13 (1) (2) e 14 (1) (2) da diretiva (EU) 2019/771 à luz da factualidade apresentada, dissertando e justificando melhor esse reenvio e a sua obrigação no § 8 das Alegações.

2. Quanto a esta matéria, e salvo melhor opinião, entendemos que não lhes assiste razão, pois não há fundamento para pedir o reenvio prejudicial ao TJUE – pelas razões que a propósito constam da parte final do Acórdão recorrido, e que seria fastidioso aqui repetir.”

(fim de citação)

Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De facto

12. Relevam os elementos constantes do relatório supra transcrito.

De Direito

13. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

As questões suscitadas são as seguintes:

1ª questão – saber se a PI devia ter sido admitida no âmbito da acção popular, à luz das alegações do A., correspondendo a ela ainda as seguintes conclusões:

“18.Mas que de forma resumida, o tanto quanto possível, se circunscreve ao direito que os autores populares poderem exigir que lhe seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda e que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, tenham direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, e sem que lhes seja imposto a celebração de um contrato (ad hoc) com cláusulas gerais abusivas para que estes assim e só assim possam exercer tal direito à garantia.

19. Dentro dessas cláusulas abusivas, impostas por um contrato de adesão, a toda a massa de consumidores, os aqui autores populares, de forma absolutamente indiferenciada, está uma cláusula que reduz o prazo de garantia de dois anos previsto no artigo 5 (1) do decreto-lei 67/2003 e na diretiva (EU) 2019/771 de dois anos para seis meses, quando se tratem de baterias ou carregadores.

26. Pelas razões de direito apresentadas no § 5 supra, os recorrentes descordam em absoluto com o entendimento do tribunal a quo, mas que em resumo entendem que:

a. o exercício da garantia prevista no artigo 5 do decreto-lei 63/2007 não pode ficar condicionada à exigência do consumidor assinar um contrato, seja lá qual for o seu teor e os seus efeitos económico-jurídicos, apresentado (muito) depois de concluída a venda e apenas no momento que o consumidor pretenda exercer o seu direito à garantia, muito menos quando esse é um contato de adesão, impossível de modelar pelos consumidores, e que lhe reduzem direitos, designadamente os previstos no artigo 5 do decreto-lei 63/2007.

b. a presunção legal ínsita no artigo 3 (2) do decreto-lei 63/2007 não pode ser confundido com o prazo de garantia que o artigo 5 (1) do mesmo decreto-lei 63/2007 prevê e como tal o prazo de garantia dos bens móveis, novos, é sempre dois anos, não podendo ser reduzida para seis meses.”

14. Entrando na análise da primeira questão.

A problemática em causa foi analisada na sentença e no acórdão recorrido em termos fundamentados e claros.

Foi feita uma explicitação da lei aplicável - relativa ao uso da acção popular – e à função que a lei pretende que a mesma assuma na ordem jurídica, tendo-se explicitado o sentido da sua admissibilidade. Tal como a lei está redigida a apreciação que é imposta ao juiz parece cingir-se aos factos apresentados pelos Autores e à eventual resposta do R., factos esses que serão analisados pelo Tribunal com vista a inferir da viabilidade do uso da acção popular, em alternativa a uma acção em que alguém pudesse fazer o mesmo pedido fundado nos mesmos factos em o efeito da acção popular.

Na situação dos autos, não houve resposta do Réu, que pudesse ser tida em consideração pelo Tribunal, mas ainda assim o mesmo não deixou de analisar a situação – de facto e de direito – e entender que o que se pretendia com a acção estaria fora do âmbito do enquadramento legal, no que toca á sua possível viabilidade.

O tribunal justificou a posição – analisou o “suposto” contrato acessório ao contrato de aquisição de bem e à reparação/direito à conformidade e nele não identificou a situação a que o A. se referia, mas tão só a de uma informação, ainda que assinada pelo consumidor. Também se explicitou qual o sentido da clausula duvidosa que os AA. questionaram e não foi aí encontrado nenhuma situação de eliminação dos direitos do consumidor, por força do direito à conformidade do bem. Por isso se explicitou que aí estava informação sobre a situação que ocorreria fora do âmbito da protecção do direito à conformidade, que seria, no caso, hipotética, pois o consumidor dos autos não aceitou deixar o bem com a Ré para efeito de exigir o que alegou ser o seu direito, fruto da aquisição de um bem que não teria as qualidades impostas e acordadas desde o momento da sua aquisição.

Vista a análise efectuada pelas instâncias, só podemos com ela concordar, pelas razões pelas mesmas apresentadas – e que aqui se dão por reproduzidas.

Os motivos de ponderação apresentados na revista foram já objecto de ponderação e análise na apelação, encontrando aí a sua resposta – a que também se adere e aqui se dá por reproduzida.

Improcede a questão, na sua vertente geral e nos respectivos argumentos.

15. Quanto à 2ª questão – saber se devia ser ordenado um reenvio prejudicial – valem também aqui as considerações já tecidas no acórdão recorrido, que são inteiramente adequadas e respondem às objecções do recorrente – igualmente suscitadas na apelação – mas com as quais não se conforma, não obstante terem ainda o parecer favorável do Ministério Público.

O reenvio prejudicial é totalmente falho de sentido, com os factos e versão dos mesmos apresentada pelos AA., não havendo justificação para se protelar o inevitável desfecho da situação trazida a juízo, como foi explicitado no acórdão recorrido, com cuja fundamentação estamos de acordo e aqui se dá por reproduzida.

Improcede igualmente a questão em causa.


III. Decisão

Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e, em consequência, confirma se a decisão recorrida.
Sem custas (artigo 4.º, n.º 1, al. b) do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo DL 34/08, de 26.02)

Lisboa, 21 de Março de 2023

Fátima Gomes (Relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira, vencido, conforme declaração que segue.


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DECLARAÇÃO DE VOTO

    Vencido. Entendo que o problema está em averiguar se a cláusula controvertida pode ser interpretada como um condicionamento dos direitos do comprador-consumidor à reparação e à substituição do bem não conforme decorrentes do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, na redacção do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, e do art. 4.º da Directiva 1999/44/CE, de 25 de Maio de 1999. Ora, encontrando-se em causa uma acção popular, cujos efeitos se pretende que sejam comparáveis aos da acção inibitória prevista nos arts. 25.º ss. da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, estou convencido de que há bons argumentos em favor da aplicação dos critérios gerais de interpretação dos arts. 236.º ss, do Código Civil — com a correlativa desaplicação do art. 11.º, n.º 2, da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais. Os termos em que está redigida a cláusula controvertida, interpretados de acordo com os arts. 236.º ss. do Código Civil, sugerem-me que há muito mais que uma (mera) informação. Em primeiro lugar, na parte em que determina que, [s]e a verificação técnica detectar sinais de mau uso, e/ou qualquer problema que possa ter causado o mau funcionamento do equipamento (p. ex., queda, humidade, etc.) o cliente será contactado para indicar se pretende que se proceda à reparação do equipamento”, equipara-se o mau uso (que exclui a garantia) e qualquer problema que possa ter causado o mau funcionamento do equipamento” (que não a exclui necessariamente). Em segundo lugar, na parte em que se diz que “o cliente será contactado para indicar se pretende que se proceda à reparação do equipamento, sendo-lhe comunicado o corrrespondente orçamento de reparação”, permite-se que o cliente seja contactado depois de feito o orçamento. O cliente pode não ser contactado para saber se quer ou não que seja feito um orçamento — pode ser contactado para saber se aceita ou não aceita um orçamento que já está feito. Ora, caso o cliente seja contactado, tão-somente, para saber se aceita ou não aceita um orçamento que já está feito, dizer-se que que “[a] não aceitação do orçamento pelo cliente está sujeita ao pagamento de uma taxa de orçamento de 20 euros” e que “[a] taxa de orçamento deve ser liquidada no acto de levantamento do equipamento” significa que o comprador -consumidor pode ser colocado perante a seguinte alternativa: Ou bem que paga a reparação ou a taxa de orçamento, e recupera o equipamento. Ou bem que o comprador-consumidor não paga nem reparação nem taxa de orçamento, e não o recupera. Em tais circunstãncias, o condiciononamento do exercício do direito de reparação à conclusão de um contrato de assistência pós-venda contendo a cláusula controvertida é de legalidade duvidosa — em termos tais que não deveria rejeitar-se a presente acção popular por manifesta improcedência.