Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ROSA TCHING | ||
| Descritores: | POSSE CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA TRADIÇÃO DA COISA USUCAPIÃO PROVEITO COMUM DO CASAL CASAMENTO BENS COMUNS DO CASAL COMPOSSE ANIMUS POSSIDENDI CORPUS INVERSÃO DO TÍTULO POSSE PRECÁRIA SEPARAÇÃO JUDICIAL DE PESSOAS E BENS INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE REVISTA DUPLA CONFORME FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE | ||
| Data do Acordão: | 03/11/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I. A qualificação da natureza da posse do promitente comprador que, no âmbito de um contrato promessa de compra e venda de um bem obtém a tradição deste, não emerge do contrato promessa, que não tem, por regra, eficácia translativa, decorrendo, antes, do acordo negocial de entrega antecipada e da efetiva entrega do bem pelo promitente vendedor tendo em vista a antecipação dos efeitos translativos do contrato definitivo, pelo que, para tanto, impõe-se valorar, caso a caso, os termos e o conteúdo do negócio, as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração. II. Assim, se dessa ponderação casuística resultar comprovada a intenção do promitente vendedor de transferir, desde logo, para o promitente comprador, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade, designadamente por o promitente comprador já ter pago a totalidade do preço ou por as partes, por razões específicas, não terem o propósito de realizar o contrato definitivo, impõe-se considerar o promitente comprador com tradição do imóvel como sendo um verdadeiro possuidor, o que determina, a seu favor, o início da contagem do prazo necessário para a verificação da usucapião, nos termos dos artigos 1251º, 1263º, al. b) e 1287º, todos do Código Civil. III. A posse do promitente comprador sobre o bem entregue pelo promitente vendedor, iniciada como precária só é apta a conduzir à usucapião se, supervenientemente, se converter em posse em nome próprio mediante a inversão do título de posse, prevista no artigo 1265º, do Código Civil, que pressupõe que aquele torne diretamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía, através da prática de atos positivos, inequívocos e reveladores, a sua intenção de passar a atuar como titular do direito de propriedade. IV. A posse iniciada na constância do casamento no regime de comunhão geral de bens e exercida por um dos elementos do casal sobre imóveis que, no âmbito de um contrato promessa de compra e venda lhe foram entregues a título definitivo pelo promitente vendedor, considera-se exercida no interesse comum do casal, não fazendo qualquer sentido, no plano jurídico, distinguir os atos de posse levados a cabo por um e outro cônjuge ou diferenciar o animus com que cada um deles efetiva esse exercício. V. Só assim não será, no caso de separação judicial de pessoas e bens, se após ser decretada a separação de bens, for feita prova da inversão do título de posse por parte do cônjuge que exerceu os atos materiais de posse em relação ao outro cônjuge, ou seja, de que levou ao conhecimento deste a sua intenção de atuar como titular exclusivo do direito, caso em que, a partir de então, consideram-se os atos de posse por ele praticados no seu exclusivo interesse. VI. Não havendo posse exclusiva por parte do elemento do casal que praticou os atos materiais constitutivos do corpus, não pode haver usucapião em seu benefício, mas, antes, em benefício do casal, tal como resulta do artigo 1291º do Código Civil, que contendo a doutrina do artigo 511º do Código Civil de 1867, dispõe que «a usucapião por um compossuidor relativamente ao objecto da posse comum aproveita igualmente aos demais compossuidores». VII. Assim, tendo essa posse início na constância do casamento em regime de comunhão geral de bens e antes de decretada a separação de pessoas e bens, a mesma aproveita ao outro cônjuge e determina a aquisição dos bens, por usucapião, para o património comum do casal, ainda que o decurso do prazo da usucapião ocorra num momento posterior à separação de bens decretada e/ou à dissolução do casamento de ambos, de harmonia com o disposto nos artigos 1288º e 1317º, alínea c), ambos do Código Civil, que consideram como momento da aquisição da propriedade por usucapião o do início da posse | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2ª SECÇÃO CÍVEL *** I. Relatório
1. AA instaurou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB pedindo seja a ré condenada a: a) Reconhecer que a aquisição do prédio descrito no artº 24º da petição inicial foi efetuada exclusivamente com dinheiro do pai da autora, dinheiro esse que constituía património comum do casal formado por CC e DD, então casados no regime da comunhão geral de bens; b) Reconhecer que o verdadeiro proprietário desse imóvel, à data da prolação da sentença referida no artº 36 da petição inical, eram o referido CC e mulher DD e, em consequência, c) Reconhecer que constitui património comum do casal formado pelo casal defunto CC e DD; E, em consequência, deverá: d) Ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor da ré ; e) Ser a ré condenada a restituir à autora, na qualidade de cabeça de casal do património comum dos referidos CC e DD o descrito prédio; f ) Subsidiariamente, caso assim não se venha a entender, deve a ré ser condenada a pagar à autora, na mesma qualidade de cabeça de casal, o valor do prédio que a ré se locupletou à custa do património comum dos mesmos CC e DD, cujo montante de se relega para incidente de liquidação de sentença.
2. Na audiência prévia foi proferido despacho de aperfeiçoamento e, na sequência do dito despacho, veio a autora apresentar nova petição inicial “aperfeiçoada”, onde, a final, em substituição do anterior petitório, requereu fosse a ré condenada a: a) reconhecer que desde 1982 e 1983, data da outorga dos contratos promessa de compra e venda aludidos nos arts. 21.º e 22.º da pi, o pai da autora, até à data sua morte, exerceu a posse sobre os prédios objeto daqueles contratos, pelo que é o único e legítimo proprietário do prédio descrito no art. 24. º da p.i., por o ter adquirido por usucapião; b) reconhecer que os pagamentos das quantias referidas naqueles contratos promessa foram efetuados exclusivamente com dinheiro do pai da autora, dinheiro esse que constituía património comum do casal formado por CC e DD, então casados no regime da comunhão geral de bens; c) reconhecer que o prédio descrito no art. 24º da p.i constitui património comum do casal formado pelo casal defunto CC e DD; d) serem declarados nulos, por simulados, quer o contrato promessa referido no art. 51º, quer as alegações feitas pela R. na ação judicial a que se reporta o art. 57. º; e) ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição do prédio a favor da ré; f) ser a ré condenada a restituir à autora, na qualidade de cabeça de casal do património comum dos referidos CC e DD o descrito prédio; g) subsidiariamente, caso assim não se entenda, deve a ré ser condenada a pagar à autora, na mesma qualidade de cabeça de casal, o valor do prédio com que se locupletou à custa do património comum do falecido casal, a apurar em liquidação de sentença. Alegou, para tanto e em síntese, que é a única filha nascida do casamento de CC e DD, no regime da comunhão geral de bens, sendo que a sua mãe faleceu a 6 de Julho de 1995, e o pai, no estado de viúvo, no dia 28 de Março de 2013, tendo corrido termos processo para separação judicial de bens de seus pais, iniciado a 1 de Fevereiro de 1988 pela mãe, confirmada por acórdão transitado em julgado a 9 de Julho de 1990, e correndo hoje termos processo de inventário para separação judicial dos bens daquele extinto casal, onde desempenha a autora o cargo de cabeça de casal, incumbindo-lhe, assim, a administração dos bens comuns de seus pais, ainda que tenha sido deserdada pelo seu pai. Por contrato promessa de compra e venda outorgado no dia 3 de Fevereiro de 1982, o pai da autora, no estado de casado, prometeu comprar a FF, casado, pelo preço de 1.700.000$00/€ 8.479,56, que pagou integralmente, um conjunto de terrenos composto pelo campo da ..., parte da ... e 700m do ... e do .... E, por contrato promessa outorgado em Fevereiro de 1983, o FF prometeu vender ao pai da autora, casado, pelo preço de 800.000$00/€ 3.990,38, que pagou integralmente, uma parcela de terreno com a área de 1005m2 a desanexar dos ..., do ..., prédios de onde já havia sido desanexada a faixa de terreno de 700m, que foi objeto do contrato promessa referido no artigo anterior. Os prédios objeto dos contratos-promessa são contíguos, encontrando-se hoje inscritos em matriz predial e descrição registal una, mormente na matriz rústica sob o art. 330.º e na C. R. Predial de ... com o n.º …/..., e aí registado a favor da ré. O pai da autora, em Fevereiro de 1982 e Fevereiro de 1983, data da outorga dos contratos promessa e, nas datas do pagamento dos preços, entrou imediatamente na posse dos prédios. E aí fez as obras que entendeu, transformou-os e, em cumprimento dos contratos-promessa referidos, abriu um arruamento/avenida e calcetou-a em cubos de pedra, rua essa que também serve os promitentes vendedores, situação que se manteve inalterada até à data do falecimento ocorrido no ano de 2013, tudo de forma continuada, à vista de todos e sem oposição de ninguém, convencido de exercer um direito próprio e exclusivo, com ânimo de proprietário. Pouco mais de um ano após a entrada da ação de separação judicial, na prossecução do fim de retirar bens ao património comum do casal, o pai da autora, em 21 de Agosto de 1989, subscreveu um documento apelidado de “Rescisão Amigável de Contrato Promessa de Compra e Venda”, a referir que houve devolução das importâncias pagas, o que não corresponde à verdade. Nessa mesma data (21 de agosto de 1989), o mesmo promitente vendedor, prometeu vender os mesmos prédios a um terceiro indicado pelo pai da autora, um tal EE, que não foi mais que um mero “testa de ferro”, não tendo o preço sido pago pelo EE ao FF. Em Fevereiro de 1992 o já identificado promitente vendedor FF e o EE estabeleceram um acordo revogatório do contrato promessa supra referido, onde é expressamente reconhecido ser fictício o contrato promessa entre eles celebrado e, nesse mesmo documento, em que o pai da autora também foi outorgante, acordou este com o promitente vendedor (FF) manter os termos e condições dos contratos promessa entre ambos celebrados em 3 de Fevereiro de 1982 e em Fevereiro de 1983. O pai da autora sempre foi “dono” dos prédios objeto dos dois primeiros contratos promessa, sendo que o preço foi pago por ele, e nunca lhe foi restituído, nos anos de 1982 e 1983, datas em que tais montantes eram proventos comuns do casal. Prosseguindo sempre o intuito de prejudicar a mãe da autora, o CC decidiu usar um novo “testa de ferro” para aquisição dos prédios descritos, desta feita, a ré, com quem mantinha já uma relação extramatrimonial e com quem veio a ter três filhos, repetindo o esquema usado com o EE. Assim, em 26 de Julho de 1993 o mesmo promitente vendedor, FF, outorgou novo contrato promessa através do qual promete vender os mesmos prédios à aqui ré pelo preço de 1.700.000$00/€8.479,56. Por razões desconhecidas não foi outorgada a prometida escritura de compra e venda, pelo que, para obviar a falta dela a aqui ré intentou, em 8.4.1999 contra o FF e mulher, uma ação onde peticionou que os ali réus fossem condenados a reconhecer que ela há mais de quinze anos exercia a posse sobre os prédios em causa e que, em consequência, os adquiriu por usucapião. Tudo com o propósito de não integrar tal bem no património comum do casal, pais da Autora, embora o dinheiro utilizado para a compra constituísse um bem comum do casal. Mais invocou a aqui ré, ali autora, que pretendia anexar os referidos bens a outros contíguos e que pagou o preço (1.700.000$00), em julho ou agosto de 1980, que estava na sua posse, há cerca de 19 anos, mormente da parcela de terreno com a área de 12.000 m2, a desanexar da ..., sita no lugar da ..., em .... Essa ação não foi contestada pelos réus, de forma deliberada, pelo que, foi proferida sentença transitada em julgado, através da qual se declarou ser a aqui ré dona e legítima possuidora do imóvel em causa. A ré não tem, e não teve, capacidade para comprar este imóvel e outros que formalmente adquiriu no mesmo período. A ré adquiriu o prédio, todavia, fê-lo em nome do pai da autora, que foi quem negociou, pagou o preço ao promitente vendedor nas datas referidas e foi quem sempre possuiu os prédios, bem como fez as obras ali discriminadas. Em conluio, o vendedor, a ré e o pai da autora, fizeram o acordo simulatório de compra e venda do prédio objeto do contrato promessa em nome da mesma ré, com o único propósito de enganar a mãe da autora, sonegando bens ao património comum do casal. Do mesmo modo, a ação judicial foi intentada pela ré contra o promitente vendedor, em conluio com este, teve como único intuito de prejudicar a mãe da autora, sendo proferidas alegações que divergem da vontade real da aqui ré. Apesar desta ter alegado que tinha exercido atos materiais de posse no prédio, fê-lo para que a sentença a proferir nesses autos produzisse os seus efeitos para o real interessado, o pai da autora. Finalmente, a título subsidiário, alegou haver um enriquecimento injustificado do património da ré, verificado à custa do património comum dos pais da autora, porquanto aquela não despendeu qualquer quantia nem adquiriu verdadeiramente o prédio identificado no art. 24.º da p.i.
3. A ré contestou, arguindo a ilegitimidade da autora porquanto, no processo de inventário que corre termos pelo Cartório Notarial do Dr. GG, foi requerida a destituição da autora das funções de cabeça de casal s funções e já corre termos processo de inventário por morte do CC, no qual figura como cabeça de casal a filha da aqui ré. Alegou que os pais da autora já não faziam vida em comum desde 1973, que foi ela quem pagou, integralmente, o preço devido pela aquisição do prédio em causa e que, no inventário para partilha dos bens do dissolvido casal por óbito da sua mãe, a aqui autora não relacionou o prédio que agora veio reclamar. Mais defendeu que o pai da autora, na qualidade de mero promitente comprador, jamais poderia adquirir os prédios por efeito da usucapião, por falta do animus de verdadeiro proprietário dos bens. Sustentou ainda, quanto à invocada simulação relativa da ação judicial instaurada pela aqui ré, a falta de alegação, por parte da autora, do intuito de enganar terceiros, que, configurando aquela ação um ato anulável, desde há muito que teria caducado o direito à sua arguição, nos termos do art. 287.º do Cód. Civil, e que, a autora carece de legitimidade para arguir a simulação relativa por não ser herdeira legitimária do CC visto ter sido deserdada por este. Para além do mais, intervindo a autora na qualidade de cabeça de casal da herança e, por isso, em suposta representação daquele CC, sempre a arguição da simulação relativa estaria comprometida, em termos de prova, na medida em que a mesma não pode socorrer-se da prova testemunhal para comprovar o acordo simulatório e o negócio dissimulado, o que requereu fosse determinado. Em reconvenção e para além de invocar, a seu favor, a presunção decorrente do facto do prédio se mostrar definitivamente registado em seu nome, alegou ainda factos demonstrativos da aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, por usucapião, pedindo que lhe fosse reconhecido esse direito. Finalmente e sustentando que a autora veio a juízo reclamar uma pretensão a que sabe não ter direito, pediu a condenação da mesma, por litigância de má fé, em multa e numa indemnização a favor da Ré em quantia não inferior a € 1.500,00.
4. Requereu a autora, ao abrigo do disposto nos arts. 316.º e seguintes do C. P. Civil, a intervenção principal provocada de FF e de HH, que foi admitida.
5. A autora apresentou réplica, reiterando ser cabeça de casal no inventário que corre termos sob o nº … no Cartório notarial de GG em …. e sustentando que os prédios em causa não foram relacionados neste inventário nem no inventário para partilha de bens do dissolvido casal por óbito de sua mãe, porque, à época, desconhecia os negócios referidos e, atualmente, a falta de documentos, tornava inevitável a remessa para os meios comuns.
6. Foi proferida decisão a reconhecer a legitimidade da autora e, em particular, a legitimidade da mesma para arguir a simulação, decisão essa cuja reforma a ré requereu, sem sucesso.
7. Efetuado o julgamento foi proferida sentença que julgou a presente ação procedente e, em consequência, decidiu: « a) condenar a ré a reconhecer que desde 1982 e 1983, CC, até à data sua morte, ocorrida em 2013, exerceu a posse sobre os prédios objecto dos contratos referidos em 21.º e 22.º da petição, sendo o único e legítimo proprietário do prédio descrito no art. 24.º da petição, por o ter adquirido por usucapião; b) condenar a ré a reconhecer que os pagamentos das quantias referidas naqueles contratos promessa foram efectuados exclusivamente com dinheiro do pai da autora, dinheiro esse que constituía património comum do defunto casal formado por CC e DD, então casados no regime da comunhão geral de bens; c) condenar a ré a reconhecer que o prédio descrito no art. 24.º da petição constitui património comum do casal formado pelo casal defunto CC e DD; d) declarar nulos, por simulados, o contrato promessa referido no art. 51.º da petição, e as alegações feitas pela ré na acção judicial n.º ….; e) ordenar o cancelamento do registo de aquisição do mesmo prédio a favor da ré; f) condenar a ré a restituir à autora, na qualidade de cabeça de casal do património comum dos referidos CC e DD o mesmo prédio. (…) absolver a autora do correspondente pedido reconvencional».
8. Inconformada com essa decisão, dela apelou a ré para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão proferido em 29 de outubro de 2020, julgou « improcedente a apelação, confirmando, no que respeita ao efeito prático-jurídico visado pela Autora e ainda que com fundamentos em parte diversos, o julgamento de procedência da ação e de improcedência da reconvenção, reconhecendo que o prédio descrito no art. 24.º da petição constitui, por ter sido adquirido por usucapião cujos efeitos se retrotraem à vigência do respetivo casamento, património comum do casal formado pelo casal defunto CC e DD, com a consequente condenação da Ré a restituir à Autora, na qualidade de cabeça de casal do património comum dos referidos CC e DD, o dito prédio e o também consequente cancelamento do registo de aquisição do mesmo a favor da Ré, bem como absolvendo a Autora do correspondente pedido reconvencional». 9. Inconformada com esta decisão, veio a ré interpor recurso de revista, nos termos do disposto no artigo 671º, n.º 1 e n.º 3 (à contrariu sensum) do C. P.C, e, subsidiariamente, a título excecional, nos termos do artigo 672º, n.º 1, alínea c) do C.P.C, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem: « PRIMEIRA: Vem o presente recurso interposto do Acórdão da Relação de Guimarães, no qual se considerou que o pai da autora assumiu logo após a outorga dos contratos-promessa a posição de verdadeiro proprietário, passando a comportar-se como se a coisa prometida vender fosse, desde logo, sua propriedade. SEGUNDA: Sem que, no entanto, o Tribunal da Relação de Guimarães tivesse dado como demonstrada a inversão do título da posse. TERCEIRA: E em bom rigor, a verdade é que a matéria factual dada como provada nos presentes autos não permite que se conclua pela inversão do título da posse. QUARTA: Desde logo porque, em fevereiro de 1992 – volvidos cerca de dez anos dos contratos promessa celebrados pelo pai da autora – no documento denominado de “Acordo revogatório de contrato promessa de compra e venda e adenda a outros contratos promessa”, ficou consignado que o pai da autora, CC, acordou com FF manter os termos e condições dos contratos promessa entre ambos celebrado em 3 de Fevereiro de 1982 e em Fevereiro de 1983. QUINTA: Mais do que isso, resulta igualmente demonstrado, pelo teor literal desse mesmo documento – doc. n.º 14 junto com a petição inicial -, que o Tribunal da Relação de Guimarães deu como assente, que o pai da autora assumiu um conjunto de obrigações que não seriam assumidas caso o mesmo se comportasse com a intenção de atuar como titular do direito. SEXTA: Do exposto decorre, inquestionavelmente, que em 1992, o pai da autora não assumia a posição de verdadeiro proprietário, nem se comportava como se a coisa prometida vender fosse sua propriedade. SÉTIMA: De onde, seguramente, se impunha concluir que em 1992 o pai da autora se mantinha como mero detentor precário do prédio reivindicado na presente ação. OITAVA: Daí que jamais poderia o Tribunal da Relação de Guimarães concluir que o prédio pertence ao património comum do falecido casal, por via da usucapião iniciada aquando da celebração por um dos elementos desse casal de contratos-promessa de compra e venda dos terrenos que integram o prédio em causa realizados em 1982 e 1983, ou seja, antes da decretada separação judicial de pessoas e bens. NONA: Precisamente porque nesse período e, pelo menos, até 1992, o pai da autora era um mero detentor precário do prédio reivindicado e, porque, como assim reconheceu o Tribunal da Relação de Guimarães não se verificou a inversão do título de posse. DÉCIMA: Ao ter decidido de forma inversa, o Tribunal da Relação de Guimarães violou frontalmente o disposto nos artigos 1290º, 1263º, alínea d) e 1265º, todos do CC. DÉCIMA PRIMEIRA: Acresce que no caso dos autos, nem sequer se mostra alegado pela autora qualquer facto que consubstanciasse o ato de oposição direta do promitente-comprador, seu pai, face ao promitente-vendedor. – sic. artigo 1265º do CC. DÉCIMA SEGUNDA: E de facto, ao contrário do decidido no Acórdão recorrido, pode ver-se do Acórdão mencionado e proferido por este Supremo Tribunal de Justiça em 14.09.2010, que naquele caso considerou este Venerando Tribunal ter ocorrido a inversão do título de posse, tendo sido por força desta inversão que foi reconhecida a usucapião sobre a fração objeto daqueles autos. DÉCIMA TERCEIRA: Já no caso dos autos, analisada a globalidade da factualidade dada como provada, e entre esta, atentando nas obrigações que o pai da autora assumiu no Acordo Revogatório datado de 1992, não podemos concluir, como então concluiu este mesmo Venerando Tribunal naquele douto aresto, que o pai da autora se comportou, desde o início, isto é, desde que celebrou os contratos promessa, como verdadeiro possuidor do prédio reivindicado. DÉCIMA QUARTA: E, por isso, ao contrário do entendido naquele douto aresto, no caso dos presentes autos, não tendo havido inversão do título de posse, não podia o tribunal concluir que o pai da autora se tivesse comportado como verdadeiro possuidor do prédio reivindicado; concomitantemente, não podia o Tribunal concluir que o imóvel em causa pertence ao património comum do falecido casal, por adquirido, por via da usucapião iniciada aquando da celebração por um dos elementos desse casal de contratos-promessa de compra e venda dos terrenos que integram o prédio em causa, realizados em 1982 e 1983, ou seja, antes da decretada separação judicial de pessoas e bens. DÉCIMA QUINTA: Aliás, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão recorrido, considerado que não houve a inversão do título de posse, estava o mesmo impedido, sob pena de violação gritante dos artigos 1263º, alínea d), 1265º e 1290º, todos do CC, de dar como demonstrada a aquisição por usucapião por parte do pai da autora. DÉCIMA SEXTA: Sob pena de flagrante oposição de julgados, por o Acórdão recorrido estar em contradição com o douto aresto deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, datado de 14.09.2010, no processo n.º 1618/04.8TBLLE.E1.S1, já transitado em julgado, proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, porquanto neste último, e como assim é unanimemente defendido na doutrina e na jurisprudência, se exige a inversão do título da posse, por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse, para se considerar demonstrada a aquisição por usucapião. DÉCIMA SÉTIMA: Sem prescindir, da factualidade demonstrada e assim reconhecida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, todo o comportamento do pai da autora teria sido de procurar retirar os prédios do património a partilhar com a DD. – sic. artigo 25 dos Factos Provados DÉCIMA OITAVA: Ainda nos dizeres do Tribunal, o pai da Autora, interiormente, atuou com animus de proprietário exclusivo, pelo que sempre haveria, indiscutivelmente, de se concluir que a posse nunca se teria iniciado na vigência do casamento, mas antes após ter ocorrido a separação judicial de pessoas e bens. DÉCIMA NONA: E se o pai da autora passou a atuar com animus de proprietário exclusivo, só então se verificaria a inversão do título da posse, sendo que esta posse, agora invertida, passaria a ser exclusiva dele e não já da sua mulher. VIGÉSIMA: Aliás, a igual conclusão se haveria de tirar por força de tudo quanto acima se deixou dito, nomeadamente ao facto de em 1992 – data em que os pais da autora se mostravam já separados judicialmente de pessoas e bens – o pai da autora continuar a comportar-se como mero detentor ou possuidor precário, na qualidade de promitente comprador dos prédios. VIGÉSIMA PRIMEIRA: Pelo que, ainda que em teoria se pudesse concluir – o que não se concebe nem concede – que os atos praticados pelo pai do autor em momento posterior determinariam verificada a inversão do título da posse, e assim concluir-se pela aquisição, por usucapião, do prédio reivindicado pela autora, sempre se imporia, por a posse se ter iniciado após a sua separação com a mãe da autora, que se reconhecesse que o prédio seria propriedade exclusiva do pai da autora. Até porque o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título. – sic. parte final do artigo 1290º do CC. VIGÉSIMA SEGUNDA: A título subsidiário, e em sede de revista excecional, a questão essencial a decidir é a de saber da relevância jurídica da necessidade de se dar por verificada a inversão do título da posse, nos casos em que, por contrato-promessa, os promitentes compradores figuram como detentores ou possuidores precários, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 1290º do CC. VIGÉSIMA TERCEIRA: Já se viu que no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Guimarães concluiu que o pai da autora adquiriu para si, por usucapião, o direito possuído, na qualidade de promitente comprador, sem que se tivesse verificado a inversão do título da posse. VIGÉSIMA QUARTA: Porém, em sentido absolutamente contrário decidiu este Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Fundamento (cujos argumentos a recorrente subscreve e sustenta), proferido em 14.09.2010, em que foi Relator o Exmo. Juiz Conselheiro Urbano Dias, que concluiu que só nos casos em que se verifica ou em que ocorre a inversão do título da posse é que os detentores ou possuidores precários poderão adquirir para si, por usucapião, o direito possuído. VIGÉSIMA QUINTA: Pelo que se mostram preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso de Revista Excecional, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 672º do CPC e nos termos da alínea c) do n.º 2 do mesmo dispositivo».
Termos em que requer a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que julgue a ação totalmente improcedente.
10. A autora respondeu, sustentando a inadmissibilidade da revista, quer nos termos gerais, dada a dupla conformidade entre a sentença do tribunal de 1ª instância e o acórdão recorrido visto inexistir fundamentação essencialmente diversa, quer em termos excecionais por não haver contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão invocado como sendo o acórdão. Pugnou ainda pela improcedência do recurso.
11. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir. *** II. Questão prévia. Nas suas contra alegações, suscita a autora ré a inadmissibilidade do recurso de revista, quer nos termos gerais, dada a dupla conformidade entre a sentença do tribunal de 1ª instância e o acórdão recorrido visto inexistir fundamentação essencialmente diversa, quer em termos excecionais por não haver contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão invocado como sendo o acórdão. Vejamos. Dispõe o art. 671º, n.º 3 do CPC, que « Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância (…)». A admissibilidade do recurso de revista, no caso do acórdão da Relação ter confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância, está, assim, dependente do facto de ser empregue “fundamentação substancialmente diferente”. Explicitando o sentido e alcance da expressão “fundamentação essencialmente diferente”, esclarece Abrantes Geraldes[1] que «a aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspectos essenciais». No mesmo sentido, refere o Acórdão do STJ, de 16.06.2016 ( revista nº 551/13.7TVPRT.P1.S1) [2] que, para afastar o obstáculo da dupla conforme, impeditivo do recurso de revista, nos termos do nº 3 do art. 671º do CPC, não basta que a sentença e o acórdão da Relação, que a confirme por unanimidade apresentem fundamentação diferente, exigindo-se que tal diferença se mostre essencial, não se verificando este obstáculo se o efeito do caso julgado material formado for relevantemente diverso. No dizer do Acórdãos do STJ, de 19.02.2015 (revista 302913/11.6YPRT.E1.S1) e de 28.05.2015 ( revista 1340/08.6TBFIG.C1.S1)[3], « só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância – não preenchendo esse conceito normativo o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada». Dito de outro modo e na expressão do Acórdão do STJ, de 15.04.2015 (revista nº 849/09.9TJVNF.P1.S1), «a fundamentação do acórdão da Relação, apesar de nele se concluir pela confirmação da decisão da 1ª instância, terá de estribar-se num enquadramento fáctico-jurídico ou até meramente jurídico substancialmente diverso do adotado na sentença recorrida, em termos de se equiparar a uma solução de primeira linha que justifique a sua reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, de forma a que fique garantido o duplo grau de jurisdição». Equivale tudo isto por dizer, conforme, aliás, vem sido entendimento constante do STJ, que o legislador de 2013 elegeu, como óbice à verificação da dupla conforme, a verificação de uma situação em que o núcleo essencial da fundamentação jurídica é diverso e que, para esse efeito, irrelevam uma eventual modificação da decisão de facto efectuada pelo Tribunal da Relação, discrepâncias secundárias que não revelam um enquadramento jurídico alternativo, a não aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou o mero aditamento de fundamentos que não tenham sido antes considerados ou que não tenham sido admitidos. * No caso dos autos, defende a recorrente que, apesar do acórdão da Relação ter mantido a decisão da 1ª Instância, fê-lo com base em fundamentação essencialmente diversa, pois, enquanto a decisão proferida em 1ª Instância considerou que o prédio em causa integrava o património comum dos pais da autora por ter sido adquirido com dinheiro comum do casal, o Tribunal da Relação de Guimarães concluiu, com relevo para o presente recurso, que toda a atuação que o pai da autora desenvolveu relativamente ao prédio reivindicado para o património comum do ex-casal é de molde a indicar a efetiva intenção de, sobre ele, atuar como “dominus”, retroagindo os efeitos da usucapião à data do início da posse, ocorrida na constância do casamento dos pais da autora, nos termos do artigo 1288º do C. C. E, a nosso ver, assiste-lhe razão. Com efeito, basta fazer o confronto entre a fundamentação do julgado em 1ª Instância e a substancialmente assumida no acórdão recorrido para facilmente se constar ter a confirmação da sentença na 2ª instância assentado num enquadramento normativo, em grande parte, distinto daquele que foi ponderado na decisão da 1ª instância. De resto, é o próprio acórdão recorrido que o admite, afirmando confirmar « no que respeita ao efeito prático-jurídico visado pela Autora e ainda que com fundamentos em parte diversos, o julgamento de procedência da ação e de improcedência da reconvenção, reconhecendo que o prédio descrito no art. 24.º da petição constitui, por ter sido adquirido por usucapião cujos efeitos se retrotraem à vigência do respetivo casamento, património comum do casal formado pelo casal defunto CC e DD, com a consequente condenação da Ré a restituir à Autora, na qualidade de cabeça de casal do património comum dos referidos CC e DD, o dito prédio e o também consequente cancelamento do registo de aquisição do mesmo a favor da Ré, bem como absolvendo a Autora do correspondente pedido reconvencional». Daí, no caso dos autos, a uniformidade das decisões do Tribunal de 1ª Instância e do Tribunal da Relação, ser irrelevante para efeitos de verificação da dupla conforme, obstativa do recurso de revista, nos termos do art.º 671º, nº 3, do CPC. Termos em que se impõe julgar improcedente a questão prévia suscitada pela autora, concluindo-se pela admissibilidade do recurso de revista interposto pela ré ao abrigo do disposto no art. 671º, nº1, do CPC. *** III. Delimitação do objeto do recurso Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[4]. Assim, à luz destas considerações, as questões a decidir consistem em saber se: 1ª a posse exercida pelo promitente comprador beneficiário da entrega antecipada dos terrenos objeto de contrato promessa de compra e venda, cujo preço foi integralmente pago, é suscetível de conduzir à aquisição originária do direito de propriedade, através do instituto da usucapião; e 2ª- se, por ter sido iniciada na constância do seu casamento em regime de comunhão geral de bens e antes de decretada a separação de pessoas e bens do casal, essa posse aproveita ao outro cônjuge, determinando a aquisição desses bens, por usucapião, para o património comum do casal. *** IV. Fundamentação 4.1. Fundamentação de facto 4.1.1. As instâncias consideraram provada a seguinte factualidade: Da petição inicial: 1. A autora é a única filha nascida do casamento em primeiras e únicas núpcias, ocorrido em 13 de Maio de 1953 entre CC e DD, no regime da comunhão geral de bens. 2. DD faleceu no dia 6 de Julho de 1995, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de vontade, tendo-lhe a autora sucedido, por inexistirem quaisquer outros interessados, como única e universal herdeira. 3. Por sua vez, CC, faleceu, no estado de viúvo, no dia 28 de Março de 2013. 4. A 1 de Fevereiro de 1988, a DD requereu, no Tribunal Judicial da Comarca .., a separação judicial de pessoas e bens do dito CC, que correu termos sob o n.º …, do então 3.º Juízo cível do Tribunal Judicial .... 5. Decretada a separação a 12 de Dezembro de 1988, confirmada por acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 1990, foi iniciado, por apenso, inventário para separação judicial de bens de DD e de CC. 6. Corre termos processo de inventário para separação judicial de bens do defunto casal, no Cartório Notarial de GG, sito na Av. De ..., bloco …, …, ..., em …., sob o n.º …. 7. Durante a constância do casamento dos pais da autora, o CC manteve pelo menos duas relações com outras mulheres, das quais vieram a nascer quatro filhos, sendo que três desses filhos são dele e da aqui ré e uma outra filha é dele com uma irmã da ré, de nome II. 8. A autora sempre tomou o partido da sua mãe, DD. 9. Por testamento outorgado a 19.03.1997, no 1.º Cartório Notarial ..., o CC deserdou a autora, AA, privando-a da sua legítima, na sequência da condenação da mesma pela prática na sua pessoa a 14.05.1989 de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo então art. 142.º do Cód. Penal, por sentença proferida a 27.03.1990, transitada em julgado; 10. Por contrato promessa de compra e venda outorgado no dia 3 de Fevereiro de 1982, o pai da autora, CC, no estado de casado, prometeu comprar a FF, casado, residente no lugar da ..., da freguesia de ..., do concelho de ..., pelo preço de 1.700.000$00/€8.479,56 (um milhão e setecentos mil escudos), que pagou integralmente, um conjunto de terrenos composto pelo campo da ..., parte da ... e setecentos metros do ... e do .... 11. E, por contrato promessa outorgado em Fevereiro de 1983, o identificado FF prometeu vender ao pai da autora, CC, no estado de casado, pelo preço de 800.000$00/€3.990,38, que pagou integralmente, uma parcela de terreno com a área de 1005m2 a desanexar dos ..., do ..., prédios esses de onde já havia sido desanexada uma faixa de terreno de 700m, a qual foi objeto do contrato promessa referido no artigo anterior. 12. Os prédios objeto daqueles dois contratos promessa são contíguos entre si, encontrando-se atualmente inscritos em matriz predial e descrição registal una. 13. Nomeadamente, está inscrito na respetiva matriz rústica sob o art. … e descrito na CRP de ... com o n.º …/..., onde se encontra registado a favor da aqui ré, BB. 14. O pai da autora, após a outorga dos aludidos contratos promessa e, nas datas em que fez o pagamento dos preços, fez obras nos prédios. 15. Desde o ano de 1983 fez a terraplanagem dos terrenos. 16. Procedeu ao abate do pinhal e vendeu os pinheiros. 17. Fez arranjo do terreno e fez socalcos. 18. Procedeu à sua vedação. 19. Fez um poço e passou dele a extrair água. 20. Construiu uma garagem. 21. E abriu um arruamento/avenida e calcetou-a em cubos de pedra, rua essa que também serve os promitentes vendedores. 22. Foi o pai da autora quem, desde 1983 e até à sua morte, por si e antecessores, mandou cultivar, reparou, limpou, retirou rendimentos e pagou os impostos dos prédios. 23. Tudo de forma continuada, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, convencido que de que exercia um direito próprio e exclusivo como se fosse seu dono. 24. Após a entrada da acção judicial referida em 4., a 21 de Agosto de 1989 o pai da autora, CC, e o FF, acordaram e subscreveram o documento apelidado de “Rescisão Amigável de Contrato Promessa de Compra e Venda” a referir, entre o mais, que “ambos acordam, amigavelmente, rescindir os mencionados contratos promessas, devolvendo o promitente vendedor ao promitente comprador todas as importâncias por este pagas … nada havendo a exigir um do outro”. 25. Tudo com o intuito de retirar os prédios do património a partilhar com a DD. 26. O FF não devolveu ao pai da autora quaisquer quantias pagas a título de sinal e/ou antecipação de preço. 27. Na mesma data de 21 de Agosto de 1989, o FF e o EE, terceiro que foi indicado pelo pai da autora, subscreveram um outro “contrato-promessa de compra e venda”, tendo por objecto aqueles prédios, para ocultar o CC como seu verdadeiro outorgante. 28. Em 1991 o EE requereu a aprovação de um projecto de loteamento a implementar nos prédios em causa, mas foi o pai da autora quem se apresentou junto da CM a arrogar-se proprietário deles. 29. O EE não pagou ao FF o preço declarado no contrato-promessa referido em 27. de doze milhões de escudos. 30. Em Fevereiro de 1992 o FF subscreveu um documento denominado “Acordo revogatório de contrato promessa de compra e venda e adenda a outros contratos promessa”, documento onde aquele figura como primeiro outorgante, o EE, como segundo, e o pai da autora, como terceiro e onde é expressamente declarado: - “Entre o primeiro outorgante como promitente vendedor e o terceiro como promitente comprador foram celebrados dois contratos promessa de compra e venda, o 1.º em 3 de Fevereiro de 1982 e o 2.º em Fevereiro de 1983, tendo ambos, no seu conjunto, como objecto um prédio rústico, constituído por vários campos com a área de 12.000 m2, situado no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ... (…); - “Decorridos vários anos, no interesse e a solicitação do terceiro outorgante, em 21 de Agosto de 1989, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda entre o primeiro outorgante e o segundo, sendo o objecto desse contrato o mesmo, ou seja, o identificado prédio rústico, alterando apenas algumas das condições, inclusive o preço de 12.000.000$00 que o primeiro outorgante nunca chegou a receber como não restituiu as importâncias recebidas e a que se refere a declaração assinada entre o primeiro e o terceiro outorgante na mesma data, ou seja em 21 de Agosto de 1989 (…); - “Assim, os três outorgantes reconhecem ser fictício o contrato promessa de compra e venda celebrado entre o primeiro e o segundo outorgante”; - “Pelo que, acordam ficar o mesmo nulo, não produzindo qualquer efeito, não havendo qualquer importância a devolver pelo primeiro outorgante porque por ele não foi recebida qualquer quantia”. [ alterado pelo Tribunal da Relação ] 31. Nesse documento ficou ainda consignado que o pai da autora, CC, acordou com FF manter os termos e condições dos contratos promessa entre ambos celebrados em 3 de Fevereiro de 1982 e em Fevereiro de 1983. 32. A 26 de Julho de 1993 o mesmo promitente vendedor, FF, outorgou novo contrato promessa, através do qual prometeu vender os mesmos prédios à aqui ré, BB, pelo preço de 1.700.000$00/€8.479,56. 33. Por razões não apuradas não foi outorgada a escritura de compra e venda dos prédios prometidos vender através do contrato promessa referido em 32. 34. Para obviar à falta da escritura a aqui ré intentou em 8.4.1999, contra o promitente vendedor, FF e mulher, uma acção onde peticionou que os réus fossem condenados a reconhecer que ela há mais de quinze anos exercia a posse sobre os prédios em causa e que, em consequência, adquiriu os mesmos prédios por usucapião. 35. Mais invocava a aqui ré, ali autora, que: - não fez escritura dos mesmos por os pretender anexar a uns outros contíguos e que pagou o preço (1.700.000$00) em mês indeterminado do ano de 1980, talvez julho ou agosto; - que exercia a posse há cerca de 19 anos sobre uma parcela de terreno, com a área aproximada de 12.000 m2, a desanexar da denominada ..., sita no lugar da ..., da freguesia de ... e omissa à matriz. 36. Tal acção não foi contestada pelos réus, pelo que, foi proferida sentença a declarar ser a aqui ré a dona e a legítima possuidora dos prédios. 37. O preço dos prédios havia sido integralmente pago pelo pai da autora, em Fevereiro de 1982 e em Fevereiro de 1983, data em que tinha economia em comum com a DD. 38. A ré era operária fabril e não auferia ou possuía rendimentos ou posses que lhe permitissem liquidar o preço de 1.700.000$00 (um milhão e setecentos mil escudos). 39. O FF, a ré e o pai da autora, acordaram que o primeiro e a ré fizessem entre eles uma promessa de compra e venda dos prédios objecto dos contratos referidos em 10. e 11. em nome da mesma ré, com o único propósito de ocultar à DD que aqueles prédios haviam sido adquiridos pelo CC, quando era casado e com dinheiro do casal. 40. Do mesmo modo, na acção judicial referida foram proferidas falsas alegações por parte da ré, quanto ao pagamento do preço e ao exercício da posse sobre os prédios, que os ali réus não contestaram, porque a ré e eles agiram com o único intuito de ocultar à DD que o seu verdadeiro dono era o CC, para impedir que aqueles prédios fossem partilhados no inventário subsequente à separação judicial de pessoas e bens. * Da contestação: 41. CC foi cabeça-de-casal no processo de inventário referido em 5., após o óbito de DD, substituindo-a nesse mesmo cargo. 42. Por decisão proferida a 19 de Setembro de 2013 foi aquele processo de inventário extinto por inutilidade superveniente da lide, na sequência do óbito do pai da autora. 43. No processo de inventário referido em 6. é cabeça-de-casal a aqui autora, AA. [ retificado pelo Tribunal da Relação ] 44. A 18 de Maio de 2016 foi requerida a destituição da mesma de tais funções por JJ, LL e MM. 45. Por decisão de 4 de Julho de 2019 foi indeferido aquele incidente, mantendo- se como cabeça-de-casal a aqui autora. 46. Em data não apurada, os referidos JJ, LL e MM requereram a extinção, por inutilidade superveniente, do inventário n.º …. 47. A 13 de Setembro de 2017 a JJ requereu abertura de processo de inventário por morte do CC, e no qual figura como cabeça de casal a mesma, o qual corre termos sob o n.º … no Cartório Notarial do Dr. NN. 48. Neste inventário, na sequência de requerimento apresentado pelo interessado OO, foi decidida a 31 de Maio de 2019 a respectiva suspensão até decisão definitiva do inventário n.º …. 49. A 13 de Junho de 2019 os interessados JJ, LL e MM requereram a reforma/aclaração deste despacho. 50. A ré e o CC mantiveram uma relação amorosa da qual nasceram: - em 11 de Dezembro de 1976, JJ; - em 30 de Novembro de 1987, LL; - e em 2 de Janeiro de 1989, MM. 51. No inventário para partilha dos bens de DD e CC referido em 5., os prédios agora em litígio não foram relacionados. 52. A relação de bens foi ali apresentada por ambos os interessados, no caso o CC e a aqui autora. 53. A ré viveu em casa da mãe até passar a residir com o CC. E foram considerados não provados os seguintes factos: - que a aqui autora foi cabeça-de-casal no processo de inventário n.º …; - que a aqui autora aquando da apresentação da relação de bens referida em 52. já sabia que os prédios em litígio existiam; - que foi a aqui ré quem pagou, integralmente, o preço devido pela aquisição do prédio em litígio e suportou todas as despesas com o negócio e, inclusive, com os honorários e despesas judiciais com a instauração da acção n.º …; - a ré sempre desempenhou actividade remunerada e bem remunerada por força das vastas e diversas horas que trabalhava na empresa que era gerida pelo pai da autora; - na casa da mãe não suportava qualquer despesa com habitação e alimentação; - todo o dinheiro que auferia destinava-o a aforro e a posterior investimento; - há mais de 20, 30, 40, 50 anos, que a ré e os seus antepossuidores vêm gozando de todas as utilidades do prédio, suportando os encargos com a sua manutenção e pagando os impostos inerentes; - o que acontece à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição de ninguém, e na convicção de que exerce um direito próprio e de que não lesa direitos alheios. * 4.1.2. Ampliação da matéria de facto Em desenvolvimento dos factos supra descritos no nº10 e ao abrigo do disposto no art. 607º, nº 4, aplicável por via da sucessiva remissão dos arts. 663º, nº 2 e 679º, do CPC, considera-se ainda assente que: 10.a) – No âmbito do contrato promessa referido em 10, assinado por FF, por baixo da expressão “ O vendedor ”, e por CC, por baixo da expressão “ O Comprador ” ficou ainda estipulado que pelo conjunto de terrenos composto pelo campo da ..., parte da ... e setecentos metros do ... e do ..., “ irá passar uma Avenida, que o comprador se compromete a fazer e ficará pertença e para uso de ambos os contestantes, consoante verbalmente combinado ” . 11.a) No âmbito do contrato promessa referido em 11, em que figura como 1º Contratante, FF e 2º Contratante, CC, ficou ainda estipulado que: « 4º ) O 2º outorgante obriga-se a fazer uma avenida desde a E até ao caminho de Servidão do Caseiro. 5º ) Deverá ser vedada do lado do proprietário até ao ... com blocos de cimento de 1 m de altura e também 1 m de rede conforme vedações já existentes, vedação esta paga a “Meias”. 6º) Ficarão duas entradas uma no capo do Prado e outra no ... consoante o combinado. 7º) A água do Tanque da Estrada será metade para o 2º outorgante, isto é, terá lugar a um dia de lima e rega por semana durante todo o ano ». *** 4.2. Fundamentação de direito Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com as questões de saber se: 1ª a posse exercida pelo promitente comprador beneficiário da entrega antecipada dos terrenos objeto de contrato promessa de compra e venda, cujo preço foi integralmente pago, é suscetível de conduzir à aquisição originária do direito de propriedade, através do instituto da usucapião; 2ª- e se, por ter sido iniciada na constância do seu casamento em regime de comunhão geral de bens e antes de decretada a separação de pessoas e bens do casal, essa posse aproveita ao outro cônjuge, determinando a aquisição desses bens, por usucapião, para o património comum do casal. No sentido afirmativo, pronunciou-se o acórdão recorrido, considerando que toda a atuação que o pai da autora, CC, desenvolveu relativamente ao prédio ora reivindicado para o património comum do ex casal formado por ele e pela mãe da autora, DD, é de molde a indicar a efetiva intenção de, sobre ele, atuar com animus, pelo que iniciando-se essa posse na constância do respetivo casamento no regime de comunhão geral de bens e retroagindo os efeitos da usucapião à data daquele início, nos termos do art. 1288º do C. Civil, tal posse, mantida por 20 anos, é suscetível de conduzir à aquisição, por usucapião, do dito prédio para o património comum daquele casal. Diferentemente, sustenta a recorrente que o simples facto de ter havido contrato promessa com traditio não é, só por si, suficiente para se concluir que a detenção por parte do promitente vendedor não é uma posse precária, sendo necessário o animus do promitente comprador como se de um verdadeiro proprietário se tratasse. Mais sustenta que a matéria de facto dada como provada nos presentes autos não permite concluir pela inversão do título de posse, pois dela não resulta que o pai da autora, mero detentor, tenha tornado diretamente conhecido da pessoa em cujo nome possuía – o promitente vendedor - a sua intenção de atuar como titular do direito, tanto mais que, em Fevereiro de 1992, acordou com o FF em manter os contratos promessa celebrados em 3 de fevereiro de 1982 e em fevereiro de 1983, decorrendo ainda do teor do documento nº 14 que, em 1992, o pai da autora não assumia a posição de verdadeiro proprietário, nem se comportava como se a coisa prometida vender fosse sua propriedade. 4.2.1. Delineadas nestes termos as questões a decidir, importa começar por enfrentar a problemática da qualificação da natureza da posse do beneficiário da tradição da coisa, no âmbito de um contrato promessa de compra e venda de imóvel. E a este respeito, importa salientar, como referem Pires de Lima e Antunes Varela[5], que o contrato promessa de compra e venda « não é suscetível de, só por si, transferir a posse ao promitente comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo ( a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício do direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse »[6] . Daqui resulta que a eventual posse do promitente comprador sobre o imóvel objeto do contrato prometido de compra e venda não emerge do contrato promessa, que não tem, por regra, eficácia translativa, decorrendo, antes, do acordo negocial de entrega antecipada e da efetiva entrega do bem pelo promitente vendedor tendo em vista a antecipação dos efeitos translativos do contrato definitivo. E daí constituir entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência, que a qualificação da natureza da posse do promitente comprador que, no âmbito de um contrato promessa de compra e venda de um bem obtém a tradição deste, « depende fundamentalmente, de uma ponderação casuística que valore adequadamente os termos e o conteúdo do negócio, as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração » [7]. Assim, se dessa ponderação resultar comprovada a intenção do promitente vendedor de transferir, desde logo, para o promitente comprador, a posse do bem correspondente ao direito de propriedade - o que pode acontecer, excecionalmente, nos casos em que o promitente comprador já pagou a totalidade ou a quase totalidade do preço; as partes, por razões específicas, não têm o propósito de realizar o contrato definitivo; a entrega da coisa é feita pelo promitente vendedor ao promitente comprador como se dele fosse já e este passa a agir como tal, ou ainda em que a tradição seja motivada ou acompanhada de circunstâncias incompatíveis com ato de mera tolerância, revelem ou consolidem expetativa da irreversibilidade da situação - , impõe-se concluir que, nestas situações, a posição do promitente comprador com tradição do bem merece a qualificação originária de verdadeiro possuidor [8], o que determina, a seu favor, o início da contagem do prazo necessário para a verificação da usucapião, nos termos dos arts. 1251º, 1263º, al. b) e 1287º, todos do C. Civil. Mas, para além destas situações, outras há em que apesar da entrega inicial do bem ao promitente vendedor ter conferido a este apenas e tão só a mera detenção ou posse precária, enquadrável no art. 1253º do C. Civil, esta posse em nome de outrem pode converter-se em posse em nome próprio. É o que acontece se, na pendência da fruição do bem, se verificar, comprovadamente, uma situação de inversão do título de posse, prevista no art. 1265º, do C. Civil, caso em que ocorre, supervenientemente, a aquisição de posse por parte do promitente comprador, nos termos do art. 1263º, al. d) do C. Civil, facto que acarreta a favor deste o início da contagem do prazo para a aquisição do direito de propriedade, por usucapião[9]. Todavia, para que ocorra a inversão do título de posse torna-se necessário, no dizer de Pires de Lima e Antunes Varela[10], « um acto de posição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía. (…) o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito». Dito de outro modo e, nas palavras de Henrique Mesquita[11] « para ser eficaz, a inversão da posse tem de traduzir-se “em actos positivos (matérias ou jurídicos) inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que até então considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem ». Na mesma linha de entendimento, sublinha o Acórdão do STJ, de 16.06.2009 ( processo nº 240/2003.0TBRMR.S1)[12] que « Não basta a mera alegação de que houve intenção de inverter o título de posse e afirmar que essa intenção foi plasmada na actuação dos detentores precários; importa, isso sim, que essa “inversão”, inequivocamente, seja direccionada contra a pessoa em nome de quem detinham, através de actos públicos deles conhecidos, ou cognoscíveis, sob pena de tal actuação não ter relevância jurídica, porque desconhecida daqueles que poderiam reagir a essa proclamada inversão do título possessório, o que seria de todo violador das regras da boa-fé. (…) Tal como a posse relevante para usucapião (a par de outros requisitos, deve ser pública), também a oposição exercida pelo detentor precário tem de ser ostensiva em relação àquele em nome de quem possuía». Daí afirmar-se no Acórdão do STJ, de 12.03.2015 ( processo nº 3566/06.8TBVFX.L1.S2)[13] que, no contrato promessa de compra e venda, a posse em nome próprio do promitente comprador pode « resultar de superveniente inversão do título da posse, a qual pressupõe a sua efetivação por oposição à contraparte, levada ao conhecimento desta, em termos de poder razoavelmente inferir-se uma oposição séria ao seu direito de propriedade ». * Feitas estas considerações e analisando à luz deste quadro legal a matéria factual supra descrita nos pontos 4.1.1 e 4.1.2 vejamos, então, se, tal como decidiu o acórdão recorrido, no caso dos autos, estamos em presença de elementos que permitam concluir que a tradição dos imóveis se traduziu em mais do que um mero ato destinado a proporcionar ao promitente comprador um direito pessoal de gozo e que apontem, claramente, para uma posse uti dominus por parte do promitente comprador beneficiário da tradição dos dois imóveis. Assim e começando pela análise dos escritos epigrafados “contrato de promessa de compra e venda”, referidos nos nºs 10, 10.a), 11 e 11.a) dos factos provados, constata-se que deles não consta qualquer alusão à celebração do contrato definitivo, sendo que do escrito datado de 3 de fevereiro de 1982 as assinaturas de FF e de CC estão apostas por baixo das expressões “ O vendedor ”, e “ O Comprador ” , respetivamente. Acresce que no contrato datado de 3 de fevereiro de 1982 ficou estipulado que, pelo conjunto de terrenos composto pelo campo da ..., parte da ... e setecentos metros do ... e do ..., “ irá passar uma Avenida, que o comprador se compromete a fazer e ficará pertença e para uso de ambos os contestantes, consoante verbalmente combinado ” . No âmbito do contrato promessa referido em 11 e 11.a, em que figura como 1º Contratante, FF e 2º Contratante, CC, ficou ainda estipulado que: « 4º ) O 2º outorgante obriga-se a fazer uma avenida desde a Estrada até ao caminho de Servidão do Caseiro. 5º ) Deverá ser vedada do lado do proprietário até ao ... com blocos de cimento de 1 m de altura e também 1 m de rede conforme vedações já existentes, vedação esta paga a “Meias”. 6º) Ficarão duas entradas uma no capo do Prado e outra no ... consoante o combinado». 7º) A água do Tanque da Estrada será metade para o 2º outorgante , isto é, terá lugar a um dia de lima e rega por semana durante todo o ano». De salientar que o preço convencionado em ambos os contratos foi pago na sua totalidade pelo CC e que a autora logrou ainda provar que: Os prédios objeto daqueles dois contratos promessa são contíguos entre si, encontrando-se atualmente inscritos em matriz predial e descrição registal una. O pai da autora, após a outorga dos aludidos contratos promessa e, nas datas em que fez o pagamento dos preços, fez obras nos prédios: desde o ano de 1983 fez a terraplanagem dos terrenos; procedeu ao abate do pinhal e vendeu os pinheiros; fez arranjo do terreno e fez socalcos; procedeu à sua vedação; fez um poço e passou dele a extrair água; construiu uma garagem e abriu um arruamento/avenida e calcetou-a em cubos de pedra, rua essa que também serve os promitentes vendedores. Foi o pai da autora quem, desde 1983 e até à sua morte, ocorrida a 28 de março de 2013, por si e antecessores, mandou cultivar, reparou, limpou, retirou rendimentos e pagou os impostos dos prédios, tudo de forma continuada, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, convencido que de que exercia um direito próprio e exclusivo como se fosse seu dono. E se é certo ter pai da autora, CC, e o FF, em 21 de agosto de 1989, acordado e subscrito o documento apelidado de “Rescisão Amigável de Contrato Promessa de Compra e Venda” a referir, entre o mais, que “ambos acordam, amigavelmente, rescindir os mencionados contratos promessas, devolvendo o promitente vendedor ao promitente comprador todas as importâncias por este pagas … nada havendo a exigir um do outro”, certo é também ter ficado provado que este acordo foi celebrado após a mãe da autora, DD, ter requerido, em 1 de fevereiro de 1988, a separação judicial de pessoas e bens do CC e teve por propósito retirar os prédios em causa do património comum a partilhar, não tendo o FF devolvido ao pai da autora quaisquer quantias pagas a título de sinal e/ou antecipação de preço. Do mesmo e apesar de, na mesma data de 21 de Agosto de 1989, ter sido celebrado um contrato promessa de compra e venda entre o FF e o EE, terceiro que foi indicado pelo pai da autora e que teve por objeto os imóveis em causa, ficou também provado que este contrato teve por fim ocultar o CC como outorgante, que o EE não pagou ao FF o preço nele declarado de doze milhões de escudos e que, em Fevereiro de 1992, o FF subscreveu um documento denominado “Acordo revogatório de contrato promessa de compra e venda e adenda a outros contratos promessa”, reconhecendo que tal contrato era fictício, que, por ser nulo, não produzia qualquer efeito e que não havia qualquer importância a devolver pelo EE porque por ele não tinha sido recebida qualquer quantia, consignando ainda ter acordado com o pai da autora, CC, manter os termos e condições dos contratos promessa entre ambos celebrados em 3 de Fevereiro de 1982 e em Fevereiro de 1983. De salientar ainda que, no ano de 1991, o EE requereu a aprovação de um projeto de loteamento a implementar nos prédios em causa, mas foi o pai da autora quem se apresentou junto da CM a arrogar-se proprietário deles. Ora, conjugando o teor dos documentos que titulam os contratos promessa em causa com a factualidade acabada de descrever, as circunstâncias que os rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração, temos por certo deles resultar claro que os respetivos outorgantes nunca tiveram o propósito de realizar o contrato definitivo, pois, para além de nada terem estabelecido a esse respeito, era vontade do CC impedir que os prédios em causa pudessem integrar o património comum do casal por ele formado com a DD, mãe da autora. De resto, sempre será de dizer que se quisesse ter celebrado o contrato definitivo de compra e venda dispôs de muito tempo para fazê-lo, pois manteve esta situação ao longo de 30 anos. Do mesmo modo, neste contexto factual, torna-se também bastante evidente que o FF, promitente vendedor, quis entregar os ditos prédios ao promitente comprador, CC, como se seus fossem já, vontade essa materializada no acordo que fizeram quanto à realização, a cargo deste último, de um arruamento/avenida para uso dos prédios de ambos e que ficaria a pertencer-lhes em comum e quanto à forma de delimitação de cada um destes prédios e à divisão de águas. Na verdade, o CC, após a entrega dos imóveis, não só realizou as obras acordadas com o promitente vendedor, como passou a praticar sobre eles outros atos materiais e a atuar como verdadeiro dono dos mesmos, pelo que não sofre dúvida que com a entrega dos imóveis objeto dos referidos contratos este adquiriu não só o corpus possessório, mas também o aninus possuidendi, tornando-se, por isso, um verdadeiro possuidor em nome próprio. E nem se diga, como defende a recorrente, que a matéria de facto dada como provada nos presentes autos não é suficiente para que se possa falar numa situação de verdadeira posse por parte do pai da autora, quer porque este, em Fevereiro de 1992, acordou com o FF em manter os contratos promessa celebrados em 3 de fevereiro de 1982 e em fevereiro de 1983, quer porque do teor do documento nº 14, denominado “ Acordo revogatório de contrato promessa e adenda a outros contratos promessa”, que titula aquele acordo, decorre que, em 1992, o pai da autora não assumia a posição de verdadeiro proprietário, nem se comportava como se a coisa prometida vender fosse sua propriedade. Desde logo, porque, conforme resulta dos factos dados como provados no nº 30, o documento em causa mostra-se assinado apenas e tão só pelo FF, não se tendo provado qualquer intervenção do CC, na celebração do acordo nele aludido nem que o mesmo se tenha vinculado, de alguma forma, sendo, por isso, totalmente irrelevante que nele seja indicado, como terceiro outorgante, o pai da autora, CC, bem com o estipulado nas respetivas cláusulas. De sublinhar que, tendo ocorrido a transmissão da posse do promitente vendedor para o promitente comprador, benificiário da tradição dos imóveis, nem se coloca a questão da inversão, ou não, do título de posse, que só relevaria se tivesse ocorrido a mera detenção dos imóveis no momento da celebração dos contratos promessa de compra e venda. Deste modo, assente, por um lado, que nenhum dos factos alegados pela recorrente descaracteriza a posse que o CC vinha exercendo, desde há 30 anos ( fevereiro de 1983 a março de 2013) sobre o ditos imóveis, de forma continuada, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, convencido de que exercia um direito próprio e exclusivo como se fosse seu dono e consabido, por outro, que, por se tratar de uma posse não titulada, de boa fé, pacífica e pública, a usucapião dá-se ao fim de 20 anos, tudo nos termos das disposições conjugadas dos arts. 1259º, 1260º, 1261º, 1262º, 1287º e 1296º, todos do C. Civil, não podemos deixar de concluir ter o CC adquirido, por usucapião, do direito de propriedade sobre os imóveis reivindicados. * 4.2.2 Questão diferente e que importa, agora, enfrentar é a de saber se a posse exercida sobre os ditos imóveis pelo CC aproveita à DD e, consequentemente, se a aquisição, por usucapião, destes prédios comunica-se à mesma uma vez que casou com o CC no dia 13 de maio de 1953, no regime de comunhão geral de bens e dele se separou judicialmente de pessoas e bens, em 12 de dezembro de 1988, tendo o casamento de ambos sido dissolvido por morte dela, ocorrida no dia 6 de julho de 1995. Isto porque, conforme vimos, a posse conducente à usucapião iniciou-se aquando da celebração dos referidos contratos promessa em 1982 e 1983, antes da decretada separação judicia de pessoas e bens e, por conseguinte, na vigência do casamento de ambos mas o seu termo, ou seja, o decurso do referido prazo de 20 anos verificou-se em 2003 e, por isso, num momento posterior, à separação de bens decretada em 1988 e à dissolução do casamento de ambos, ocorrida em 6 de julho de 1995. A este respeito importa, desde logo, realçar, que o Código Civil, aprovado pelo DL 47344, de 25 de Novembro de 1966, só entrou em vigor em 1 de junho de 1967[14], pelo que, tendo o CC e a DD contraído reciprocamente matrimónio em 13 de maio de 1953, são aplicáveis, em matéria de regime de bens, o Código Civil de Seabra, que dispunha no art. 1098º do Código de Seabra que « Na falta de qualquer acordo, entende-se que o casamento é feito segundo o costume do reino (…)», estabelecendo no seu art. 1108º que « O casamento, segundo o costume do reino, consiste na communhão, entre os cônjuges, de todos os seus bens presentes e futuros não exceptuados na lei», pelo que à luz citado art. 1108º, o dinheiro usado pelo CC para pagamento da totalidade do preço dos imóveis objeto dos contratos promessa de compra e venda constitui um bem comum do casal, que o art. 1109º, do mesmo código não exclui da comunhão. Por sua vez, preceituava o art. 1117º deste mesmo código que « O domínio e posse dos bens comuns está em ambos os cônjuges, em quanto subsiste o matrimónio (…)», estipulando, no seu art. 1121º, que « A comunhão acaba pela dissolução do matrimónio, ou pela separação, em conformidade com a lei».» e no seu art. 1122º que « Fallecendo um dos cônjuges, continuará o sobrevivo na posse e administração do casal, enquanto se não ultimarem as partilhas (…) ». Todavia, já no que concerne ao regime da separação de pessoas e bens, tendo esta sido requerida em 1988, em plena vigência do atual Código Civil, é este o diploma aplicável, por força do disposto no seu art. 12º , nº 1. E o mesmo vale dizer relativamente ao regime da posse e da usucapião, posto que a posse do CC sobre os imóveis em causa iniciou-se em 1982/1983. Ora, consabido que, nos termos do disposto no art. 1795º-A, do C. Civil, a separação judicial de pessoas e bens relativamente aos bens produz os efeitos que produziria a dissolução do casamento e que, no caso dos autos, essa separação foi decretada por decisão ocorreu em 12 de dezembro de 1988, dúvidas não restam que a posse do CC sobre os imóveis que lhe foram entregues a título definitivo pelo promitente vendedor iniciou-se antes da separação judicial de pessoas e bens, e, por isso, em plena vigência do casamento sujeito ao regime de comunhão geral de bens, estando, por isso, sujeita ao regime do art. 1404º, do C. Civil, que manda aplicar a regra da compropriedade prevista no art. 1406º, nº 2, ou seja, a de que o “ uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva (…), salvo se tiver havido inversão do título” à comunhão de quaisquer outros direitos, designadamente à situação vertente que configura um caso de contitularidade de direitos reais, a chamada comunhão de mão comum em que aos contitulares assiste o direito a uma fração ideal sobre o conjunto do património comum, como é o direito à meação do património do casal, a ser efetiva mediante partilha do mesmo, nos termos do art. 1689, nº1 do mesmo código[15]. Podemos assim dizer, à luz destes preceitos legais e na esteira do decidido Acórdão do STJ, de 14.03.2013[16], que a posse exercida sobre os referidos imóveis e iniciada pelo CC na constância do casamento com a DD, não foi uma posse exercida exclusivamente em seu nome, mas sim uma posse exercida no interesse comum do casal por eles formado. Só assim não seria, tal como se afirma no citado acórdão e se defende também no acórdão recorrido, se tivesse sido feita prova da inversão do título da posse por parte do CC em relação à DD, ou seja, se tivesse levado ao conhecimento desta a sua intenção de atuar como titular exclusivo do direito, caso em que, a partir de então, se passaria a considerar os atos de posse por ele praticados no seu exclusivo interesse, podendo adquirir só para si os imóveis possuídos. E a verdade é que, quanto a esta matéria nada se apurou, resultando, antes, da matéria de facto apurada, conforme se afirma no acórdão recorrido, que, ao invés, o que o pai da autora « tratou, por diversos meios, de fazer foi ocultar da mãe da Autora a posse que após a separação judicial decretada continuou a manter sobre os terrenos que integram o prédio ora reivindicado para o património comum do já falecido casal, tudo de forma a poder vir a beneficiar da usucapião sobre o mesmo com exclusividade, assim subtraindo o bem ao património comum do casal». Ora, não havendo posse exclusiva por parte do CC, embora tenha sido o único a praticar os atos materiais constitutivos do corpus, não pode haver usucapião em seu benefício, mas, antes, em benefício do casal, tal como resulta do art. 1291º do C. Civil, que contendo a doutrina do art. 511º, do Código Civil de 1867, dispõe que « a usucapião por um compossuidor relativamente ao objecto da posse comum aproveita igualmente aos demais compossuidores». Assim sendo e porque segundo o disposto no art. 1288º do C. Civil, os efeitos da usucapião retrotraem-se à data do início da posse, que no caso dos autos, ocorreu em 1983 e sendo, portanto, esta a data considerada como o momento da aquisição do direito de propriedade, nos termos do o artº. 1317º, al. c), do mesmo código, dúvidas não restam que tal aquisição tem-se por ocorrida durante a vigência do casamento do CC e DD, sendo os terrenos objeto dos referidos contratos promessa e que constituem o prédio ora reivindicado um bem comum do casal, na medida em que vigorava entre eles o regime de comunhão geral de bens. Daí nenhuma censura merecer o acórdão recorrido ao decidir que tal prédio integra o património comum daquele casal com a consequente condenação da ré a restitui-lo à autora, na qualidade de cabeça de casal do património comum dos referidos CC e DD, absolvendo a mesma do pedido reconvencional. Termos em que improcede o recurso interposto pela recorrente.
*** IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista. As custas da revista ficam a cargo da recorrente. *** Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo. *** Supremo Tribunal de Justiça, 11 de março, de 2021
Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)
Catarina Serra Paulo Rijo Ferreira _________ [1] In, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág. 365. |