Processo n.º 79/20.9YRGMR.S1
Mandado de Detenção Europeu
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. Nos autos em referência, o arguido, AA (melhor identificado a fls. 282), interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Senhores Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães, a 8 de Junho de 2020, que decidiram (transcreve-se) «declarar procedente o pedido de entrega do cidadão português AA ao Estado Francês, para efeitos de cumprimento de pena, com a possibilidade, porém, de requerer novo julgamento ou recorrer da decisão proferida pelo Tribunal Correccional de ... – 5.º Juízo.»
O Recorrente extrai da motivação do recurso as seguintes (transcritas) conclusões:
«1 - O Requerido não se conforma com o acórdão ora sindicado, devendo o mesmo, pelas razões infra e supra avançados ser revogado, sendo substituído por outro que defira o peticionado pelo Requerido;
2 - O julgamento, quer da matéria de facto quer de direito, deve ser concretizada pela secção penal e os seus três juízes, porquanto não estamos em sede de recurso (em que as provas já estão produzidas) mas sim em julgamento de primeira instância, com produção de prova (sob pena de violação expressa do artigo 32.º, n.º 9, do Constituição da República Portuguesa), o que não aconteceu no processo em apreço;
3 - A nulidade em apreço é do conhecimento oficioso.
4 - Ocorreu, assim, atento o acima alegado, nulidade insanável nos termos do artigo 119.º, alínea a), do Código de Processo Penal, o que cumpre arguir e peticionar que seja reconhecida nos presentes autos.
5 - O acórdão em apreço padece de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
6 - É fixado em sede de relatório que o Exmo. Procurador Geral Adjunto do Tribunal a quo, requer a entrega ao Estado Francês do cidadão português (igualmente residente em Portugal, com a sua família) ora Requerido para “cumprimento da pena de três anos de prisão, com um ano de suspensão da sua execução, em que foi condenado, mas na sua ausência, por decisão do Tribunal Correcional de ..., 5.º Juízo, França.” (sublinhado nosso)
7 - Ora, se é para cumprimento de pena significa (e não pode significar outra coisa) que existe um acórdão francês firme, definitivo e exequível a condenar o Requerido a 2 anos de prisão efectiva (de três anos de prisão, com um ano de suspensão da sua execução).
8 - Ora, no presente, o que temos é um mandado de detenção para cumprir pena efectiva em resultado de um acórdão que no presente é firme, definitivo (no plano ordinário) e exequível.
9 - Aliás, o mesmo é preenchido por referência ao artigo 3.º, alínea f), da lei 65/2003, de 23 de Agosto.
10 - É que se assim não for, nunca poderia ser emitido o presente mandado de detenção, mas um outro, para sujeição do Requerido a investigação criminal e processo-crime.
11 - Ora, assim sendo, não podia o Ilustre Tribunal a quo no seu acórdão afirmar em absoluta contradição com tudo o anteriormente avançado: “Já quanto à invocada causa de recusa prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 65/2003, a mesma pressupõe a ocorrência de uma sentença condenatória estrangeira firme, transitada em julgado, o que não sucede in casu.
12 - Aliás, é conditio sine qua non para a emissão do presente mandado que a decisão que lhe está na base seja exequível.
13 - Existe, com o devido e justo respeito, ostensiva e evidente contradição da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, sendo a mesma insanável, o que cumpre ser reconhecido e ora se peticiona, devendo, em consequência, ser revogado o presente acórdão sindicado, com as legais consequências. (cfr. Artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, ex vi artigo 34.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto).
14 - Por tudo o acima avançado é evidente e indiscutível que estamos perante um processo de entrega para cumprimento de pena de prisão.
15 - É, igualmente, indiscutível, sempre com respeito por opinião contrária, que estamos perante uma sentença condenatória estrangeira firme, exequível e transitada em julgado (pelo menos ordinariamente e no presente).
16 - Mais: ao contrário do avançado pelo Tribunal a quo, o que exige o artigo 12.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 65/2003, é apenas e só que o mandado seja emitido para cumprimento de pena e o a pessoa procurada se encontrar em território nacional, ter nacionalidade portuguesa e/ou residir em Portugal.
17 - Ora, laborou em manifesto e involuntário erro o Tribunal a quo quando entendeu que não tinha de apreciar in casu a causa de recusa prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 65/2003.
18 - Na verdade, cumpria ao Tribunal a quo verificar se face às condições de vida da pessoa procurada e às finalidades da execução da pena se justificaria a recusa de execução do mandado, por haver vantagens no cumprimento da pena em Portugal segundo a legislação interna (in “A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do Regime Relativo ao Mandado de Detenção Europeu”, de António Pires Henriques Graça, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, pág. 27).
19 - Ora, cumpria ao Tribunal a quo apurar se existia o condicionalismo para aplicação desta razão de recusa facultativa: não o tendo feito gera nulidade insanável, o que ora se argui para todos os legais efeitos, bem como ocorre insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que gera fundamentação para revogação no acórdão ora sindicado, o que ora se peticiona, com as legais consequências (cfr. Artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, ex vi artigo 34.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto).
20 - O acórdão em apreço padece do erro de julgamento de direito em sede da apreciação da absoluta nulidade do mandado de detenção europeu em apreço e do reenvio prejudicial e da justa causa de recusa de entrega por violação directa do artigo 4.º a da decisão-quadro 2009/299/JAI, de 26/02/2009 e do artigo 12.º - a, da lei n.º 65/2003 e da violação do direito a um processo equitativo previsto no artigo 32.º da CRP.
21 - Entendia e entende o Requerido que o M.D.E. em apreço foi emitido por entidade não jurisdicional e não competente para o efeito, não tendo a autoridade em apreço os predicados exigidos pela Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho e pela Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, o que cumpre ser reconhecido e decretado nos autos, dando de nenhum efeito o mandado em apreço.
22 - Ora, fixou o douto acórdão ora sindicado: “Ora, revertendo ao caso sub judice, a aludida informação, em conformidade com o formulário anexo, consta do campo i) do mandado de detenção europeu, sendo que, à luz do princípio do reconhecimento mútuo, denominador comum de confiança entre os Estados-membros, nenhuma razão existe para colocar em causa a ali assinalada qualificação “de autoridade judiciária de emissão” do Procurador da República junto do Tribunal de Grande Instance de ..., na acepção dada pelo n.º 1 do artigo 6.º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho (A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado-membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.”
23 - Ora, o Tribunal a quo, pura e simplesmente, abdicou de apurar se a entidade que emitiu o mandado tinha ou não competência para o efeito.
24 - Permita-se com o devido respeito, tendo presente que estamos perante um processo jurisdicional e não perante um procedimento administrativo: é condição da aceitação do mandado que o Tribunal a quo aprecie se a autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado-membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse mesmo Estado;
25 - Competia ao Tribunal a quo identificar e verificar as normas de direito interno Francês que atestem a habilitação do Ministério Público de ... para o efeito.
26 - Ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, cumpre reconhecer verificada a nulidade arguida pelo Requerido, e, consequentemente, revogar o acórdão em apreço, sendo substituído por outro que decrete a nulidade do mandado de detenção europeu em apreço.
27 - Ocorreu in casu erro de julgamento de direito em sede da apreciação da absoluta nulidade do mandado de detenção europeu em apreço porquanto não demonstrada e verificada a competência do Ministério Público de ... para o efeito, ocorrendo a violação das normas jurídicas constantes do artigo 1.º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto e do artigo 6.º, n.º 1, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho (cfr. artigo 412.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal).
28 - Na verdade, o Tribunal a quo interpretou as duas citadas normas artigo 1.º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto e do artigo 6.º, n.º 1, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho) no sentido de não ser necessário ao Estado de Execução apreciar e verificar a competência da Autoridade de Emissão, mesmo perante a legislação deste Estado, à luz do princípio do reconhecimento mútuo.
29 - No nosso modesto entendimento, as referidas normas devem ser interpretadas no sentido de ser necessário ao Estado de Execução apreciar e verificar a competência da Autoridade de Emissão perante a legislação deste Estado;
30 - Nestes termos e nos mais de direito, cumpre, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, reconhecer verificada a nulidade do mandado de detenção in casu, e, consequentemente, revogar o acórdão em apreço, com as legais consequências.
31 - No acórdão sob recurso ocorre violação directa do artigo 4.º a da decisão-quadro 2009/299/JAI, de 26/02/2009 e do artigo 12.º-A, da lei n.º 65/2003 e da violação do direito a um processo equitativo previsto no artigo 32.º da C.R.P.
32 - Resulta dos autos que o Requerido:
a) Informou o processo, após ser levantada a prisão preventiva a que ele esteve sujeito durante o inquérito, da sua morada em ... (informou expressamente o Requerido que era nessa morada que devia ser notificado para qualquer acto processual), sabendo o Tribunal em apreço onde ele se encontrava, nunca se tendo furtado o Requerido à justiça francesa;
b) Nunca foi notificado para contestar a acusação e oferecer prova;
c) Não foi notificado para estar presente no julgamento;
d) Não esteve representado por defensor no julgamento;
e) Não foi notificado de que não estava representado por defensor;
f) Nunca foi notificado da decisão de primeira instância, nem da possibilidade de apresentar recurso;
g) Não foi nomeado defensor no Estado de emissão mesmo após o Tribunal a quo o ter ordenado (até á presente data nada foi dito pelo Estado Francês).
32 - Existe, assim, no nosso modesto entendimento, violação directa do artigo 4.º A da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, de 26/02/2009, porquanto, as condições previstas estão ultrapassadas pela situação em apreço do Requerido: quando são violados todos os elementares direitos que garantem um processo equitativo ao Requerido, violando, inclusive, o princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso.
33 - O artigo 4.º A da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, de 26/02/2009, deve ser interpretado no sentido de que autoriza um Estado-Membro a recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido para a entrega de uma pessoa que tenha sido objeto de uma sentença condenatória numa pena privativa de liberdade transitada em julgado, com o fundamento de que esse Estado-Membro violou as mais elementares regras do procedimento penal, mormente:
a) Sempre soube o Tribunal do Estado de Emissão do M.D.E. da morada actual do Requerido e que o mesmo nunca se tinha furtado à justiça desse Estado;
b) Nunca foi o Requerido notificado para contestar a acusação e oferecer prova;
c) Não foi o Requerido notificado para estar presente no julgamento;
d) Não esteve o Requerido representado por defensor no julgamento;
e) Não foi notificado o Requerido de que não estava representado por defensor;
f) Nunca foi notificado o Requerido da decisão de primeira instância, nem da possibilidade de apresentar recurso;
34 - É patente para o Requerido que é necessário, para uma melhor aplicação do Direito Europeu (sobretudo a sua uniformização), peticionar decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º TFUE.
35 - O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.º A da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, de 26/02/2009, o qual deve ser interpretado no sentido de que autoriza um Estado-Membro a recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido para a entrega de uma pessoa que tenha sido objeto de uma sentença condenatória numa pena privativa de liberdade transitada em julgado, com o fundamento de que esse Estado-Membro violou as mais elementares regras do procedimento penal, mormente:
a) Sempre soube o Tribunal do Estado de Emissão do M.D.E. da morada actual do Requerido e que o mesmo nunca se tinha furtado à justiça desse Estado;
b) Nunca foi o Requerido notificado para contestar a acusação e oferecer prova;
c) Não foi o Requerido notificado para estar presente no julgamento;
d) Não esteve o Requerido representado por defensor no julgamento;
e) Não foi notificado o Requerido de que não estava representado por defensor;
f) Nunca foi notificado o Requerido da decisão de primeira instância, nem da possibilidade de apresentar recurso;
36 - Ora, decidiu o Tribunal a quo no acórdão de que ora se recorre: “Pois bem, ao contrário do afirmado pelo Requerido, entendemos que é de afirmar a legalidade do MDE, porquanto se conforma com o previsto no artigo 12.º - A, da Lei n.º 65/2003 e com o previsto no artigo 4.º-A da Decisão-Quadro 2009/584/JAI. Se porventura o MDE patenteasse um julgamento do Requerido in absentia, mas fora de alguma das circunstâncias alternativas previstas no citado art.º 12.º-A, então estaríamos perante a uma causa de recusa facultativa. Porém, não é isso que sucede. O julgamento do Requerido na sua ausência é expressamente apontado no MDE – “Jugement rendu par default” e, por outro lado e simultaneamente, o formulário anexo dá conta dessa realidade ao serem preenchidos os campos da alínea d) pontos 2 e 3 e 4, onde consta que o Requerido não foi notificado pessoalmente da decisão, mas que será dela notificado pessoalmente na sequência na sua entrega; que será expressamente informado do direito que lhe assiste a novo julgamento que permite a reapreciação do mérito da causa; que será apresentado a um juiz (o juiz das liberdades e da detenção), que decidirá se ficará ou não detido até à nova audiência sobre a base do mandado de detenção; e que será informado do prazo para solicitar um novo processo de recurso. Ou seja, no caso, está expressamente demonstrada a verificação da situação prevista na alínea d) do art.º 4.º-A da Decisão-Quadro, inexistindo qualquer violação directa, ou outra qualquer, deste artigo, não tendo as dúvidas suscitadas virtualidade para provocar um qualquer reenvio prejudicial no que concerne a tal norma. Por último, e quanto à pretendida sindicância a efectuar pelos tribunais portugueses, mais uma vez se chama à colação o n.º 2, do artigo 1.º, da Lei 65/2003, que dispõe que o MDE “é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho de 13 de Junho.”….improcedem, pois, estes fundamentos da oposição.”
37 - Ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, cumpre reconhecer verificada a a violação do previsto no artigo 12.º - A, da Lei n.º 65/2003 e do previsto no artigo 4.º-A da Decisão-Quadro 2009/584/JAI.
38 - Existe, assim, no nosso modesto entendimento, violação directa do artigo 4.º A da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, de 26/02/2009, porquanto, as condições previstas estão ultrapassadas pela situação em apreço do Requerido: quando são violados todos os elementares direitos que garantem um processo equitativo ao Requerido, violando, inclusive, o princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso.
39 - Ocorreu in casu erro de julgamento de direito em sede da apreciação da nulidade do mandado de detenção europeu em apreço em resultado da violação das normas previstas no artigo 12.º - A, da Lei n.º 65/2003 e no artigo 4.º-A da Decisão-Quadro 2009/584/JAI.
40 - Bem como ocorreu erro de julgamento ao indeferir o reenvio prejudicial tendo por objeto a interpretação do artigo 4.º A da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, de 26/02/2009, no sentido acima avançado.
41 - Na verdade, o Tribunal a quo interpretou as duas citadas normas do artigo 12.º - A, da Lei n.º 65/2003 e do artigo 4.º-A da Decisão-Quadro 2009/584/JAI no sentido de que, mesmo quando se verifiquem a violação das mais elementares regras do procedimento penal como ocorre in casu (sendo que sobre isso o Tribunal nada diz), é sempre de deferir a entrega.
42 - No nosso modesto entendimento, as referidas normas devem ser interpretadas no sentido de que autoriza um Estado-Membro a recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido para a entrega de uma pessoa que tenha sido objeto de uma sentença condenatória numa pena privativa de liberdade exequível, com o fundamento de que esse Estado-Membro violou as mais elementares regras do procedimento penal, mormente:
a) Sempre soube o Tribunal do Estado de Emissão do M.D.E. da morada actual do Requerido e que o mesmo nunca se tinha furtado à justiça desse Estado;
b) Nunca foi o Requerido notificado para contestar a acusação e oferecer prova;
c) Não foi o Requerido notificado para estar presente no julgamento;
d) Não esteve o Requerido representado por defensor no julgamento;
e) Não foi notificado o Requerido de que não estava representado por defensor;
f) Nunca foi notificado o Requerido da decisão de primeira instância, nem da possibilidade de apresentar recurso;
43 - Repare-se: está em causa no processo sub judice a entrega de um cidadão português, com residência em Portugal e encontrado (em execução do referido MDE) em Portugal: Portugal garantiu a reserva de soberania precisamente para casos como este.
44 - Ora, jamais se poderá entregar um cidadão Português a um outro Estado sem atestar, pelo menos, a regularidade formal da emissão do mandado bem como se foram respeitados os mais elementares direitos fundamentais em sede do processo crime que está na base da emissão do mesmo.
45 - Ora, o princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso e da intervenção mínima do Direito Penal, impõe que, para garantia precisamente da cooperação judiciária, a notificação da sentença e decisão de requerer um novo julgamento bem como da decisão de recurso possam ser tramitadas através do tribunal de cumprimento do mandado (sob pena de ocorrer inconstitucionalidade gritante da norma do artigo 12.ª A da Lei n.º 65/2003, por violação dos artigos 27.º, 28.º e 29.º da C.R.P).
46 - Destarte, conforma já foi apreciado pelo Tribunal Constitucional Alemão, caso não estejam minimamente garantidos e salvaguardados os direitos mais elementares dos cidadãos portugueses pela Lei n.º 65/2003, mormente no seu artigo 12.ª A, ocorre inconstitucionalidade, a qual cumpre ser reconhecida.
47 - Atento os erros de julgamento em apreço e acima identificados, cumpre revogar o acórdão in casu, com as legais consequências;
48 - Acresce: a entender-se em sentido contrário, o que não se concede e só se admite por razões de patrocínio, ocorre a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 12.º - A, da Lei n.º 65/2003, quando interpretada no sentido de não ser fundamento de recusa da execução de um mandado de detenção europeu a verificação do incumprimento grosseiro, no Estado de Emissão, do princípio do processo equitativo (nomeadamente: i) Nunca foi o Requerido notificado para contestar a acusação e oferecer prova; ii) Não foi o Requerido notificado para estar presente no julgamento; iii) Não esteve o Requerido representado por defensor no julgamento; iv) Não foi notificado o Requerido de que não estava representado por defensor; v) Nunca foi notificado o Requerido da decisão de primeira instância, nem da possibilidade de apresentar recurso; não foi nomeado defensor oficioso ao requerido no país de emissão mesmo após tal ser ordenado pelo tribunal do país de execução, não podendo o seu mandatário em Portugal interpelar tal defensor para melhor defender o requerido), por violação expressa do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, o que cumpre ser declarado e reconhecido e ora se peticiona.
49 - Assim, sem prejuízo da nulidade absoluta do M.D.E. pelas razões avançadas, para o caso de assim não se entender, o que não se concede e se requer por mero dever de patrocínio, cumpria ordenar o oficiar às autoridades do Estado Emissor que se cumprisse a notificação da decisão em apreço ao Requerido por intermédio do Ilustre Tribunal a quo (artigo 6.º, n.º 1, da Lei 65/2003), com a faculdade do Requerido declarar já se pretende recorrer da decisão ou requerer um novo julgamento, sendo, consequentemente, o mandado declarado extinto por inutilidade superveniente.
50 - Padece o acórdão em apreço, igualmente, de erro de julgamento de direito em sede da apreciação das “excepções peremptórias inominadas” de inexistência de confiança judicial do estado português no estado francês e de violação reiterada dos direitos humanos dos detidos/arguidos bem como serem razões de política criminal que estiveram na génese da emissão do mandado.
51 - Ora, fixou o douto acórdão ora sindicado, apenas e só sobre esta matéria: “Pretende o Requerido a recusa de cumprimento do MDE com fundamento de que “São razões políticas que estão na génese da emissão do mandado de detenção em apreço”. Sucede que, além de não se vislumbrarem o mínimo resquício de motivação política subjacente à emissão do mandado de detenção europeu, também não se encontra fundamento na lei n.º 65/2003, nomeadamente nos seus artigos 11.º, 12.º, e 12.º-A, para tal recusa de execução do MDE. Improcede, pois, este fundamento de oposição.”
52 - Ora, ao Tribunal a quo competia, com a devida vénia, recusar a execução do mandado de detenção europeu em apreço, atento estar demonstrado que o Estado Francês não é credor, de momento, da nossa confiança judicial e que o mesmo viola de forma reiterada e ostensiva os direitos humanos dos detidos/arguidos universalmente protegidos e garantidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, maxime o seu direito a um processo judicial equitativo, bem como foram razões de politica criminal que estiveram na génese da emissão do mandado.
53 - Isto atento o fixado no considerando n.º 12 da Decisão Quadro 2002/584/JAI (ex vi artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto):”A presente decisão-quadro respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.o do Tratado da União Europeia e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia(7), nomeadamente o seu capítulo VI. Nenhuma disposição da presente decisão-quadro poderá ser interpretada como proibição de recusar a entrega de uma pessoa relativamente à qual foi emitido um mandado de detenção europeu quando existam elementos objectivos que confortem a convicção de que o mandado de detenção europeu é emitido para mover procedimento contra ou punir uma pessoa em virtude do sexo, da sua raça, da sua religião, da sua ascendência étnica, da sua nacionalidade, da sua língua, da sua opinião política ou da sua orientação sexual, ou de que a posição dessa pessoa possa ser lesada por alguns desses motivos. A presente decisão-quadro não impede que cada Estado-Membro aplique as suas normas constitucionais respeitantes ao direito a um processo equitativo, à liberdade de associação, à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão noutros meios de comunicação social.”
54 - Ocorreu, assim, erro de julgamento de direito em sede da apreciação das “excepções peremptórias inominadas” de inexistência de confiança judicial do estado português no estado francês e de violação reiterada dos direitos humanos dos detidos/arguidos bem como serem razões de política criminal que estiveram na génese da emissão do mandado, devendo assim o acórdão em apreço ser revogado com as legais consequências;
55 - De facto, ao indeferir as “excepções peremptórias inominadas” em apreço, laborou o Tribunal a quo em violação expressa do princípio de um processo equitativo consagrado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e em desrespeito pelo considerando n.º 12 da Decisão Quadro 2002/584/JAI (ex vi artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto).
56 - Destarte, também por estas razões cumpre revogar o acórdão em apreço, com as legais consequências, o que ora se peticiona.
57 - Padece, igualmente, o acórdão sub judice de erro de julgamento de direito em sede da apreciação da nulidade absoluta da emissão ostensivamente abusiva de mandado de detenção europeu por parte da autoridade judiciária francesa e da verificação das causas de recusa previstas nas alíneas h), c) e) e g) do artigo 12.º, n.º 1, da lei 65/2003, de 23/08;
58 - O que releva in casu são os factos fixados em sede de acórdão francês que está na base da emissão do mandado (não podem haver informações complementares válidas quando está junto aos autos o acórdão em causa).
59 - Não pode o tribunal a quo dar por válidas informações complementares quando está junto aos autos o respectivo acórdão condenatório.
60 - Ora, é ostensivo que, pelo menos, parte substancial dos factos foram praticados em Portugal (produção dos produtos contrafeitos e transporte dos mesmo para França), daí terem as autoridades francesas feito buscas em Portugal, seja na casa do Requerido em Portugal (daí a busca referida no acórdão em apreço) seja a busca na fábrica em Portugal (também referido no acórdão em apreço).
61 - Não obstante ser risível falar em importação (de Portugal para França não existem importações nem exportações atento ser um mercado comum), a fabricação e transporte de mercadorias ocorria a partir de Portugal.
62 - Não é alheio a condenação neste processo do português BB, dito responsável pela produção em Portugal dos produtos contrafeitos.
63 - É ostensivo, que os termos das informações e do próprio acórdão visavam impedir que os tribunais portugueses, de novo, recusassem o cumprimento do mandado atento parte dos factos serem praticados em Portugal.
64 - Aliás, conforme se pode confirmar em sede de gravação da audiência de produção de prova e de alegações, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, reconheceu em sede de alegações que, pelo menos, parte dos factos em apreço foram praticados em Portugal.
65 - Assim:
a) o mandado de detenção europeu em apreço foi emitido de forma abusiva porquanto as autoridades francesas sabiam que as condutas criminosas imputadas ao Requerido/Procurado foram todas praticadas em Portugal, não tendo os Tribunais Franceses qualquer competência para as julgar, devendo, assim, ser recusada a execução do mandado de detenção europeu em apreço, em razão da recusa prevista no artigo 12.º, n.º 1, alínea h), da Lei 65/2003, de 23/08;
b) Como os factos que motivam a emissão M.D.E. são do conhecimento do M.P. português e este pôs termo ao respetivo processo por despacho de arquivamento, devia ser recusada a execução do mandado nos termos do fixado no artigo 12.º, n.º 1, alínea c), da Lei 65/2003, de 23/08;
c) Como, sem margem para qualquer sofisma, pelo menos, parte substancial dos factos ocorreram em Portugal, logo os Tribunais portugueses são competentes para julgar tais factos (artigo 22.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), decorreu o prazo de prescrição (estamos perante um crime de contrafação, punível com uma pena de três anos e os últimos factos imputados reportam-se a Junho de 2010 e a participação em organização criminal que está em causa nos autos diz respeito apenas a um elemento agravante e não a crime autónomo, isto é, diz respeito ao fixado no artigo 132-71 do Code Pénal ou ao artigo 450.º - 1 do Code Penal), o que gera a razão de recusa prevista no artigo 12.º, n.º 1, alínea e), da Lei 65/2003, de 23/08;
d) Sendo para cumprir pena, como o Requerido tem a família toda em Portugal será menos penoso cumprir a pena em Portugal e haverá mais garantias de ressocialização, o que gera a razão de recusa prevista no artigo 12.º, n.º 1, alínea g), da Lei 65/2003, de 23/08;
66 - Fixou, nesta sede, o Tribunal a quo: “Ora, destes elementos resulta que não é a concreta acção de contrafacção das peças de vestuário da marca Hugo Boss que é imputada ao Requerido, mas, sim, mediante “lugar preponderante na rede”, a importação fraudulenta para França daquelas peças de vestuário contrafeita e respectiva comercialização em território Francês. O que significa que os crimes imputados ao Requerido se consumaram em território francês, lesando bens jurídicos com relevância para esse pais, não operando, assim, a invocada causa de recusa consagrada no artigo 12.º, n.º 1, al. h), ponto i, da lei n.º 65/2003, e, consequentemente, não operando aquela outras consagradas nas al. c) e e) do mesmo preceito. Já quanto à invocada causa de recusa prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 65/2003, a mesma pressupõe a ocorrência de uma sentença condenatória estrangeira firme, transitada em julgado, o que não sucede in casu. Improcedem, pois, estes fundamentos de oposição.”
67 - Ocorre erro de julgamento de direito em sede da apreciação da nulidade absoluta da emissão ostensivamente abusiva de mandado de detenção europeu por parte da autoridade judiciária francesa vem como da verificação das causas de recusa previstas nas alíneas h), c) e) e g) do artigo 12.º, n.º 1, da lei 65/2003, de 23/08;
68 - Violou de forma expressa a decisão em apreço o vertido nas alíneas h), c) e) e g) do artigo 12.º, n.º 1, da lei 65/2003, de 23/08.
69 - De facto, resulta da alínea h), do artigo 12.º, n.º 1, da lei 65/2003, de 23/08 que o mandado de detenção pode ser recusado quando tiver por objecto infração que, segundo a lei portuguesa, tenha sido cometido, em todo ou em parte, em território nacional.
70 - Resulta da alínea c), do artigo 12.º, n.º 1, da lei 65/2003, de 23/08 que o mandado de detenção pode ser recusado sendo os factos que motivam a emissão do mandado europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido decidido pôr termo ao respetivo processo por arquivamento.
71 - Ora, está junto aos autos, que, após se determinar a abertura de inquérito crime em resultado do acórdão da Relação que negou a entrega, foi proferido despacho que arquivou o processo.
72 - Dúvidas não devia haver de que devia ser recusada a entrega, nestes termos.
73 - Mais: resulta da alínea e), do artigo 12.º, n.º 1, da lei 65/2003, de 23/08 que o mandado de detenção pode ser recusado quando tiverem decorridos os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu.
74 - Como, sem margem para qualquer sofisma, pelo menos, parte substancial dos factos ocorreram em Portugal, logo os Tribunais portugueses são competentes para julgar tais factos (artigo 22.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), decorreu o prazo de prescrição (estamos perante um crime de contrafação, punível com uma pena de três anos e os últimos factos imputados reportam-se a Junho de 2010 e a participação em organização criminal que está em causa nos autos diz respeito apenas a um elemento agravante e não a crime autónomo, isto é, diz respeito ao fixado no artigo 132-71 do Code Pénal ou ao artigo 450.º - 1 do Code Penal), o que gera a razão de recusa prevista no artigo 12.º, n.º 1, alínea e), da Lei 65/2003, de 23/08;
75 - Por fim: resulta da alínea g), do artigo 12.º, n.º 1, da lei 65/2003, de 23/08 que o mandado de detenção pode ser recusado quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;
76 - Ora, in casu, estão verificados todos os pressupostos para ser deferida a recusa nos termos da alínea g), do artigo 12.º, n.º 1, da lei 65/2003, de 23/08.
77 - Ocorreu, então, erro de julgamento de direito em sede da apreciação da nulidade absoluta da emissão ostensivamente abusiva de mandado de detenção europeu por parte da autoridade judiciária francesa e da verificação das causas de recusa previstas nas alíneas h), c) e) e g) do artigo 12.º, n.º 1, da lei 65/2003, de 23/08, competindo revogar o acórdão em apreço, com as legais consequências.
78 - O acórdão em apreço padece, igualmente, de erro de julgamento de direito em sede do reconhecimento da causa de recusa obrigatória do perdão (equivalente a amnistia) da infração em apreço, nos termos do artigo 11.º, alínea a), da lei 65/2003, de 23/08;
79 - O Requerido foi condenado em três penas autónomas (em Portugal, a pena suspensa é uma pena autónoma da prisão efectiva):
h) 2 anos de prisão efectiva;
i) 1 ano de prisão suspensa na sua execução;
j) Pena de multa;
80 - Ora, nos termos da Lei 9/2020, de 28 de Abril, artigo 2.º, n.º 1, são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
81 - Como se referiu supra os tribunais portugueses são competentes para conhecimento das infrações em apreço.
82 - Ora, tal facto gera a razão de recusa prevista no artigo 11.º, alínea a), da Lei 65/2003, de 23/08 (embora fale em amnistia, o perdão em apreço implica tratamento igual (pois, para efeitos da aplicação deste regime jurídico estamos a falar em substância do mesmo), o que, caso hajam dúvidas interpretativas, deve ser, igualmente, objecto de reenvio prejudicial para o TJUE, o que desde já se requer;
83 - Fixou o tribunal a quo no acórdão ora sindicado: “É manifesta a inviabilidade da pretensão do requerido em pretender desencadear a mencionada causa de recusa obrigatória com respaldo na citada Lei 9/2020, de 28 de Abril, desde logo, por o artigo 11.º, al. a), da lei 65/2003, de 23/8, apenas consagrar como causa de recusa obrigatória do MDE a amnistia, e em precisa situação de competência do Estado de execução para conhecimento do crime em apreço naquele, e já não o perdão, salientando-se que, quanto aos efeitos, aquela “extingue o procedimento criminal e, no caso de já ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena principal como das penas acessórias” enquanto o perdão genérico “extingue a pena, em todo ou em parte (art.º 128.º, n.º 2 e 3, do Código Penal). Ademais, o Requerido esquece que a sentença francesa não é uma decisão definitiva, pois, que lhe assiste o direito pleno de a contraditar, requerendo um novo julgamento ou interpor recurso. Improcede, pois, este fundamento de oposição.”
84 - Discorda, em absoluto, o Requerido com o decidido, pois, estamos perante uma sentença francesa, no presente, firme e exequível, daí ser pedida a entrega para cumprimento de pena de prisão efectiva.
85 - Mais: o Requerido, atento estar sujeito à prisão domiciliária, já está a cumprir a pena de prisão efectiva, porquanto tal tempo será descontado no tempo que faltará cumprir, caso ocorra a entrega ao Estado Francês.
86 - Ora, sob pena de violação expressa do princípio da igualdade, fixado no artigo 13.º da Constituição da república Portuguesa, tem o arguido direito ao perdão em apreço.
87 - Não existem quaisquer razões objectivas para não tratar o perdão como a amnistia para efeitos de aplicação do artigo 11.º, al. a), da lei 65/2003, de 23/8.
88 - Na verdade, o termo amnistia é utilizado em termos lato sensu, abrangendo também o perdão (em sede da lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, não existe o tratamento rigoroso entre os termos, equiparando-se a amnistia a perdão).
89 - Aliás, sendo o perdão um plus relativamente à amnistia, cumpre usar o princípio interpretativo de que quem permite o menos permite o mais.
90 - Se se prevê tal faculdade para amnistia, que faz cessar a execução da pena, sobradas razões existem para prever tal faculdade para o perdão genérico, o qual extingue a pena.
91 - Ocorreu, assim, erro de julgamento de direito em sede do reconhecimento da causa de recusa obrigatória do perdão (equivalente a amnistia) da infração em apreço, nos termos do artigo 11.º, alínea a), da lei 65/2003, de 23/08, porquanto cumpria ao Tribunal a quo reconhecer a citada recusa obrigatória, devendo ser revogado o acórdão em apreço, com as legais consequências.
92 - Cumpre, destarte, por todas as razões acima avançadas, julgar o presente recurso totalmente procedente e, consequentemente, revogar o acórdão em apreço, sendo substituído por outro nos termos peticionados e com as legais consequências.»
2. O Senhor Magistrado do Ministério Público no Tribunal recorrido respondeu ao recurso.
Extrai da respectiva minuta as seguintes (transcritas) conclusões:
«1. Não se verifica uma qualquer nulidade insanável porquanto a produção da prova indicada pelo oponente à execução do MDE só pode ser realizada pelo juiz relator que procede à sua audição, só a ele competindo tal, tendo em vista o disposto no art.º 18 da Lei 65/2003, de 23/08, lei especial que prevê que as provas a apresentar por aquele são produzidas aquando da sua audição e pelo “juiz relator”, não por um qualquer tribunal plural;
2. O MDE emitido e difundido pelo Ministério Público francês em cumprimento de uma decisão judicial que ordenou a prisão do requerido obedece ao previsto nos art.ºs 1, n.º1, 3, n.º1, al. c) e 12-A, todos da Lei 65/2003 e está conforme com estabelecido no artigo 4-A da Decisão-quadro 2009/299/JAI e art.º 6 da Decisão-quadro 2002/584/JAI, pois que ao mesmo preside uma “decisão judiciária”, sendo o Ministério Público francês uma autoridade que participa na administração da justiça penal, não sendo uma entidade administrativa ou policial, visando o MDE em causa o cumprimento de uma pena de 3 anos de prisão, com um ano de suspensão na sua execução (sursis), com julgamento in absentia;
3. A decisão recorrida ao conferir validade formal e material ao referido MDE está a dar cumprimento exacto às citadas normas legais e que lhe conferem obrigatoriedade de execução, na linha do já decidido no acórdão de 05/04/2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU e C-198/16, no acórdão Poltorak – C-452/16, no acórdão de 29/06/2016, Kossowski, C‑486/14, e ainda do acórdão de 01/06/2016, C-241/15;
4. A “decisão judiciária” citada, é uma decisão executória imperativa surgida na sequência do julgamento do recorrente à revelia, isto é, estando ausente no seu julgamento, todavia esta circunstância não é impeditiva da emissão e execução do MDE tendo em conta a Decisão-quadro 2009/299/JAI e art.º 12-A da dita Lei 65/2003;
5. A sentença que ordenou a prisão do recorrente para cumprimento da citada pena de prisão não transitou em julgado, em face da citada revelia, sendo notificada àquele na sequência da sua entrega ao Estado da emissão;
6. Pode o recorrente, de seguida, interpor recurso da mesma, ou requerer um novo julgamento, direitos que pode exercer a seu contento, transformando assim o MDE num instrumento com a finalidade de procedimento criminal – acórdão de 21/10/2010, C-306/09;
7. Não possui a decisão posta sob sindicância qualquer contradição insanável, tendo em vista as finalidades do MDE que ela concretizou e bem interpretou;
8. Nenhuma causa de recusa facultativa se apresenta, mormente as referidas nas alíneas c), e), g e h) do art.º 12, n.º1 da Lei 65/2003, pois que os factos apontados no MDE tiveram lugar em solo francês, sendo o Estado francês o competente para deles conhecer, já não Portugal - o Estado de execução, pois que tais factos, na sua total amplitude, não foram objecto de conhecimento do Ministério Público português, pois que a pena de prisão cujo cumprimento o Estado de emissão pretende concretizar ainda não passou em julgado, podendo nem sequer haver condenação definitiva caso o recorrente peticione novo julgamento, ou interponha recurso, e por via disso venha a ser absolvido;
9. Bem andou a decisão recorrida ao não julgar verificadas tais causas, como bem julgou quando afastou o cumprimento da Lei 9/2020, de 28/04 ao requerido recorrente, por esta cuidar do perdão de penas, não de amnistia, por os tribunais portugueses não serem competentes para conhecer dos factos vertidos no MDE, por, afinal, não se achar preenchida a previsão do art.º 11, al. a) da Lei 65/2003;
10. Não se justifica um qualquer reenvio prejudicial para conhecimento interpretativo do art.º 2 da Decisão-quadro 2009/299/JAI, de 26/02 e que introduziu o art.º 12-A na Decisão-quadro 2002/584/JAI, porquanto não se encontram preenchidos os requisitos legais para tal e os requisitos que se enunciam no acórdão Cilfit, de 06/10/1982, proc. 283/81;
11. O art.º 12-A da Lei 65/2003 que operou a transposição da Decisão-quadro 2009/299/JAI para o ordenamento jurídico português não ofende a CRP até porque, como decidiu o acórdão Melloni, de 26/02/2013, C-399/11, “ o artigo 4.º-A, n.º1, da Decisão-Quadro 2002/584, conforme alterada pela Decisão-Quadro 2009/299, é compatível com as exigências que decorrem dos artigos 47.ºe 48.º, n.º2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia».
12. O recurso do requerido AA deverá ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente a decisão sub judice.»
3. O recurso foi admitido por despacho de 19 de Junho de 2020.
4. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões que o Recorrente extrai da respectiva minuta, reporta ao exame das seguintes questões:
(i) da nulidade insanável do acórdão recorrido, por o julgamento da matéria de facto e da matéria de direito não ter sido concretizado por três juízes – artigos 119.º alínea a), do Código de Processo Penal (CPP) e 32.º n.º 9, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – conclusão 2.ª;
(ii) da nulidade do MDE, por ter sido emitido por entidade não jurisdicional – artigos 1.º e 6.º, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (Lei 65/2003), artigo 6.º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, e artigo 412.º n.º 2 alíneas a) e b), do CPP – conclusões 21.ª, 27.ª e 49.ª;
(iii) do vício de contradição insanável entre a pretendida entrega do Requerente para cumprimento de pena de prisão aplicada por sentença judicial firme, definitiva e exequível, e a não apreciação das causas de recusa previstas nas alíneas c), e), h) e g) do artigo 12.º, da Lei 65/2003, face ao arquivamento do processo pelo Ministério Público, face à competência dos tribunais portugueses para o julgamento (artigo 22.º m.º 2, do CPP), e face ao decurso do prazo de prescrição – conclusões 11.ª, 17.ª, 57.ª, 65.ª e 76.ª;
(iv) da violação do disposto no artigo 4.º da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, de 26 de Fevereiro de 2009, do artigo 12.º-A, da Lei 65/2003 e do artigo 32.º, da CRP, por ter sido indeferido o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º, do TFUE, apesar da violação, pelo Estado emissor do direito do Requerente a um processo equitativo – conclusões 31.ª, 34.ª. 37.ª, 38.ª, 40.ª e 42.ª;
(v) da inconstitucionalidade do artigo 12.º-A, da Lei 65/2003, quando interpretado no sentido «de não ser fundamento de recusa da execução de um mandado de detenção europeu a verificação do incumprimento grosseiro, no Estado de Emissão, do princípio do processo equitativo», por violação do artigo 32.º, da CRP – conclusão 48.ª;
(vi) da não recusa de execução do MDE, atento estar demonstrado que o Estado Francês não é credor, de momento, da nossa confiança judicial e que o mesmo viola de forma reiterada e ostensiva os direitos humanos dos detidos/arguidos universalmente protegidos e garantidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, maxime o seu direito a um processo judicial equitativo, bem como foram razões de politica criminal que estiveram na génese da emissão do mandado - conclusões 52.ª e 53.ª;
(vii) da não aplicação do perdão de pena concedido pela Lei n.º 9/2020, de 28 de Abril (Lei 9/2020).
II
5. O Requerente põe em causa a decisão proferida no Tribunal da Relação de Guimarães, que determinou a respectiva entrega às autoridades judiciais francesas, em execução de Mandado de Detenção Europeu (MDE) emitido a 20 de Julho de 2018 pelo Primeiro Vice-Procurador da Repúblico no Tribunal de Grande Instância de ..., visando o cumprimento de uma pena de 3 anos de prisão, com um ano de suspensão na sua execução (sursis), visando dar execução a uma sentença, proferida a 4 de Março de 2016 pelo Tribunal Correccional de ... (5.º Juízo), França, precedendo julgamento em que o arguido respondeu in absentia.
6. Vejamos das questões suscitadas pelo Requerente, acima enunciadas, seguindo um critério de lógica e cronologia preclusivas.
7. O Recorrente defende que o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, recorrido, é nulo por o julgamento da matéria de facto e da matéria de direito não ter sido concretizado por três juízes – artigos 119.º alínea a), do Código de Processo Penal (CPP) e 32.º n.º 9, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – conclusão 2.ª.
8. A tanto opõe o Respondente que, no julgamento da oposição ao MDE, o Tribunal teve a composição prevista no artigo 12.º n.º 4, do Código de Processo Penal (CPP) e 56.º n.º 1 da Lei 62/2013, sendo integrado por um relator e dois adjuntos.
9. Não se verifica a pretextada nulidade.
10. Na audição do Recorrente foram cumpridas as formalidades prevenidas no artigo 18.º n.os 3 a 5, da Lei 65/2003 – o arguido foi ouvido pela Senhora Juíza Desembargadora relatora, na presença do Senhor Magistrado do Ministério Público e do Senhor Advogado, mandatário constituído – cfr. acta, a fls. 39-43, também subscrita pelo Recorrente.
11. Nessa diligência, o Recorrente pediu prazo para deduzir oposição, requerimento deferido, vindo a oposição a ser deduzida (cfr. fls. 61 e ss.).
12. O acórdão decisório, do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido a 8 de Junho de 2020, precedendo vistos e conferência, sendo o Colectivo, presidido pelo Senhor Presidente da Secção, integrado pela Senhora Juíza relatora e por dois Senhores Juízes adjuntos, que levaram os correspondentes vistos e adrede o subscreveram (cfr. fls. 281-297).
13. Mostra-se integralmente respeitado o disposto no artigo 12.º n.º 4, do CPP, e no artigo 56.º, da Lei 65/2003, não se verificando, ademais, a invocada inconstitucionalidade por violação do artigo 32.º n.º 9, da CRP.
14. Termos em que, nesta parcela, o recurso deve ser julgado improcedente.
15. O Recorrente defende que o MDE é nulo, por ter sido emitido por entidade não jurisdicional.
16. A tanto opõe o Respondente a plena validade formal, do MDE.
17. Neste particular, os Senhores Juízes do Tribunal recorrido ponderaram, designadamente, nos seguintes (transcritos) termos:
«Alega o Requerido que «(…)o M.D.E em apreço foi emitido por entidade não jurisdicional e não competente para o efeito, não tendo a autoridade em apreço os predicados exigidos pela Decisão-Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho e pela Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, o que cumpre ser reconhecido e decretado nos autos, dando de nenhum efeito o mandado em apreço».
O MDE, como refere o nº 1 do artigo 1º, da Lei 65/2003, é “ uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade”, e funda-se no princípio do reconhecimento mútuo, denominador comum de confiança, respeito e eficiência entre os Estados membros [vd. nº 2 do mesmo preceito e artº 1º, nº 2, da Decisão – Quadro].
Por sua vez, o conteúdo e forma do MDE estão regulados no artigo 3º da Lei nº 65/2003, o qual impõe a transmissão, apresentada em conformidade com o formulário anexo, de um elenco de informações cuja existência é conditio sine quo non de apreciação da sua regularidade formal e substancial, sendo que uma dessas informações respeita ao «nome, endereço, número de telefone e de fax e endereço de correio electrónico da autoridade judiciária de emissão» (al. b, do nº 1 do artº 3º).
Ora, revertendo ao caso sub judice, a aludida informação, em conformidade com o formulário anexo, consta do campo i) do mandado de detenção europeu, sendo que, à luz do princípio do reconhecimento mútuo, denominador comum de confiança entre os Estados-membros, nenhuma razão existe para colocar em causa a ali assinalada qualificação «de autoridade judiciária de emissão» do Procurador da República junto do Tribunal de Grande Instance de ..., na acepção dada pelo nº 1 do artigo 6º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho [“A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado-membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado”].»
18. Não se vê que tal deciso mereça qualquer reparo.
19. Desde logo, em vista do disposto no artigo 3.º, da Lei 65/2003, que reporta à indicação, no MDE, «da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva».
20. Ademais e para além de quanto se refere na decisão revidenda, importa assinalar que se assegurou que o MDE vinha subscrito por «entidade judiciária», no caso a Primeira Vice-Procuradora no Tribunal de ... (cfr. fls. 2 e ss.), e, por outro lado, que o conceito de «entidade judiciária», para efeitos do MDE, se reporta ao direito comunitário, menos que ao direito dos Estados emissor ou executor do mandado.
21. Por outro lado, não se figura questionável que o Procurador da República Francesa subscritor do MDE constitua, para tais efeitos, a necessária «entidade judiciária».
22. A decisão recorrida, revista a regularidade, a legalidade e a validade do MDE emitido pelo Ministério Público francês, considerou, se necessidade de suprimento e sem reparo, que o subscritor do MDE configura «autoridade judiciária», na previsão comum da Decisão-quadro e da Lei 65/2003, não constituindo, designadamente, entidade administrativa ou policial.
23. Salienta, ademais, que a emissão do MDE pelo Ministério Público francês o foi na sequência de uma outra decisão judiciária que a precedeu e fundamenta – antes dessa emissão, um juiz ordenou, por sentença de 4 de Março de 2016, a detenção do requerido na sequência da sua condenação numa pena de prisão, a pena que é referida no MDE agora em questão - «Le Tribunal décernant en outre mandat d'arrêt à son encontre.»
24. Termos em que, neste segmento, o recurso não pode lograr procedência.
25. O Recorrente defende que o acórdão recorrido evidencia um vício de contradição insanável entre a pretendida entrega do Requerente para cumprimento de pena de prisão aplicada por sentença judicial firme, definitiva e exequível, e a não apreciação das causas de recusa previstas nas alíneas c), e), h) e g) do artigo 12.º, da Lei 65/2003, face ao arquivamento do processo pelo Ministério Público, face à competência dos tribunais portugueses para o julgamento (artigo 22.º n.º 2, do CPP), e face ao decurso do prazo de prescrição.
26. A tanto se opõe o Respondente, concluindo que o vício se não verifica.
27. Neste particular, os Senhores Juízes do Tribunal recorrido ponderaram, designadamente, nos seguintes (transcritos) termos:
«Invoca o Requerido:
- a causa de recusa prevista no artigo 12º, nº 1, al. h), da Lei 65/2003, de 23/8, pois que “as autoridades francesas sabiam que as condutas criminosas imputadas ao Requerido/Procurado foram todas praticadas em Portugal, não tendo os Tribunais Franceses qualquer competência para as julgar”;
- a causa de recusa prevista na al. c) do nº 1, do mesmo preceito, pois “(…) os factos que motivam a emissão do M.D.E. são do conhecimento do MP português e este pôs termo ao respectivo processo por despacho de arquivamento», e
- a causa de recusa prevista na alínea e) do nº 1, ainda do mesmo preceito, uma vez que, aduz, segundo a lei portuguesa,” Decorreu o prazo de prescrição, o que gera a razão de recusa prevista no artigo 12º, nº 1, alínea e, da Lei 65/2003, de 23/8”.
Dispõe o citado artº 12º, na parte que ora releva:
“1- A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:
(…)
c) Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido decidido pôr termo ao respectivo processo por arquivamento;
(…)
e) Tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;
(…)
h) O mandado de detenção tiver por objecto infracção que:
i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portuguesas; ou
(…)”
Com relevância, importa ter presente que no campo da al. e) do MDE, consta a seguinte descrição factual das circunstâncias em que as infracções foram cometidas:
“No 1 de abril de 2009, foram apreendidas as contrafacções Hugo Boss. A informação judiciária estabelecia a existência de uma rede estruturada da fabricação em Portugal de roupas contrafazendo essa marca, cuja amplitude correspondia a várias dezenas de milhares de peças, produtos em seguida importados fraudulosamente em França à iniciativa de AA.
Em 28 de Junho de 2010, logo da busca ao seu domicílio, foram encontrados nomeadamente um carimbo da sociedade servindo de ecrã às importações, formulários de encomenda idênticos àqueles encontrados na fábrica de BB e etiquetas e listas de roupa Hugo Boss. Os “meles” trocados por AA, as conversas telefónicas interceptadas e as audições realizadas demonstravam o seu lugar preponderante na rede.
Em 4 de março de 2016, o Tribunal correccional condenava particularmente a uma pena de 3 anos de prisão, logo um ano de pena suspensa, emitindo além disso um mandado de detenção contra ele.”
E, importa ainda chamar à colação o conteúdo do “Anexo” que acompanha o MDE, onde existe uma maior densificação descritiva:
“Anexo
“Exposição detalhada dos factos
No primeiro de abril de 2009, foram apreendidas contrafacções da marca Hugo Boss. A informação judiciária aberta estabelecia a existência desde 2008 de uma rede estruturada de fabricação em Portugal de roupas contrafazendo a marca Hugo Boss, cuja amplitude correspondia a várias dezenas de milhares de peças, produtos em seguida importados fraudulosamente para França com a cobertura de sociedades inexistentes ou por transportes dissimulados.
As investigações realizadas permitiam de estabelecer que AA, tinha posto em prática as importações, fixando nomeadamente as condições de venda das roupas, antes de delegar a CC a sua representação em ... (...), a centralização das encomendas, a recuperação das entregas e em seguida dos pagamentos.
Em 28 de Junho de 2010, logo da busca ao seu domicílio, foram encontrados nomeadamente um carimbo da sociedade …, servindo de ecrã às importações, formulários de encomenda idênticos àqueles encontrados na fábrica de BB e etiquetas e listas de roupa Hugo Boss. Os “meles” (mensagens eletónicas) trocados por AA, as numerosas conversas telefónicas interceptadas e as audições realizadas demonstravam o seu lugar preponderante na rede.
Em 4 de março de 2016, o Tribunal correccional de ... (...) condenava AA, por estes factos a uma pena de 3 anos de prisão, dos quais um ano de pena suspensa, ao pagamento de uma multa de 20.000 euros, assim como a interdição de exercer uma profissão comercial ou industrial, de dirigir, administrar, gerir ou controlar uma empresa ou sociedade por um período de 5 anos a título de pena complementar. O Tribunal emitindo além disso um mandado de detenção contra ele.”
Ora, destes elementos resulta que não é a concreta acção de contrafacção das peças de vestuário da marca Hugo Boss que é imputada ao Requerido, mas, sim, mediante «lugar preponderante na rede», a importação fraudulenta para França daquelas peças de vestuário contrafeitas e respectiva comercialização em território francês.
O que significa que os crimes imputados ao Requerido se consumaram em território francês, lesando bens jurídicos com relevância para esse país, não operando, assim, a invocada causa de recusa consagrada no artº 12º, nº 1, al. h), ponto i), da Lei nº 65/2003, e, consequentemente, não operando aquelaoutras consagradas nas als c) e e) do mesmo preceito.
Já quanto à invocada causa de recusa prevista no artº 12º, nº 1, al. g), da Lei nº 65/2003 [vd. item 75. d), da oposição], a mesma pressupõe a ocorrência de uma sentença condenatória estrangeira firme, transitada em julgado, o que não sucede in casu.
Improcedem, pois, estes fundamentos de oposição.»
28. Importa, antes de tudo, ter presente que o vício de procedimento (que não pode ser assimilado à alegação de um erro de julgamento) implícito no alegado, há-de reportar-se à matéria de facto e à circunstância de a decisão recorrida evidenciar, por si ou com recurso às regras da experiência comum, uma incompatibilidade (não ultrapassável através da própria decisão revidenda), entre os factos provados, entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão – artigo 410.º n.º 2 alínea b), do CPP.
29. Depois, não se vê razão para divergir do decidido no Tribunal da Relação de Guimarães.
30. Desde logo, na medida em que o que se alega não reporta à matéria de facto: o Recorrente figura é que no Tribunal recorrido se deviam ter apreciado as causas de recusa previstas nas alíneas c), e), h) e g) do artigo 12.º, da Lei 65/2003, ressaltando o arquivamento do processo pelo Ministério Público (em Portugal), a competência dos Tribunais portugueses para o julgamento (artigo 22.º n.º 2, do CPP) e o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, o que entende contraditório relativamente à decidida entrega do Requerente ao Estado emissor para cumprimento de pena de prisão, aplicada por sentença judicial firme, definitiva e exequível.
31. Como acima se deixou editado, todas as referidas causas de não execução facultativa do MDE foram cabalmente apreciadas no Tribunal recorrido.
32. Não se demonstra [artigo 12.º n.º 1 alínea c), da Lei 65/2003] que o Ministério Público tenha decidido pôr termo ao processo por arquivamento, sequer que tenham decorrido, entretanto, os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena [artigo 12.º n.º 1 alínea e), da Lei 65/2003].
33. Os factos reportados no MDE traduzem uma imputação delitiva situada no tempo e no espaço, punível pela legislação penal francesa, não se verificando qualquer conflito positivo de competência entre as jurisdições portuguesa e francesa relativamente à prossecução do procedimento criminal contra o arguido, tanto mais que se aduz que, tendo a materialidade delitiva ocorrido em território francês, não foi instaurado, em Portugal, procedimento criminal contra o arguido relativamente aos factos alinhados no MDE.
34. Acresce que, falecendo competência territorial aos Tribunais portugueses para conhecer dos crimes imputados ao Recorrente, não pode conceder-se a causa de recusa facultativa prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º, da Lei n.º 65/2003.
35. No que respeita à causa de recusa prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 12.º, da Lei n.º 65/2003, o acórdão recorrido refere que «a mesma pressupõe a ocorrência de uma sentença condenatória estrangeira firme, transitada em julgado, o que não sucede in casu».
36. Não se vê qualquer piáculo no decidido, na medida em que aquele segmento normativo reporta a uma condenação definitiva, tal seja, transitada em julgado, o que no caso não ocorre, posto que o Requerente tem ainda a possibilidade, rectius, o direito, de sindicar e fazer comutar a decisão que suporta o MDE, na medida em que se está em presença de uma sentença sequente a um julgamento levado à revelia do arguido, sempre podendo este, designadamente, requerer novo julgamento e interpor recurso – e, por tal via, de um MDE, reportado ao estrito cumprimento de uma pena de prisão mas sim à prossecução do procedimento criminal, e quando se não vê comprovada a materialidade que subjaz à intimidade (de inserção, alegada) da relação do Requerente com o Estado executor.
37. No que respeita à causa de recusa facultativa prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 12.º, da Lei n.º 65/2003, não pode deixar de sublinhar-se, também aqui, desde logo, a frugalidade da matéria de facto julgada provada no acórdão recorrido.
38. Tal seja (transcrição):
«1 -Factos provados:
O Requerido é casado.
É asmático.
Tem dois filhos de 0 anos e 00 anos de idade, sendo que o filho mais novo padece de doença rara (...).
Vive em casa própria, com a esposa e os dois filhos.
Possui dois restaurantes em ....»
39. Termos em que, face à evidente precariedade dos factos comprovados em face do efeito pretendido, o alegado neste particular não pode merecer acolhimento.
40. O Recorrente defende que a decisão recorrida traduz uma violação do disposto no artigo 4.º da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, de 26 de Fevereiro de 2009, do artigo 12.º-A, da Lei 65/2003 e do artigo 32.º, da CRP, por ter sido indeferido o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º, do TFUE, apesar da violação, pelo Estado emissor do direito do Requerente a um processo equitativo.
42. A tanto opõe o Respondente que se não verifica a pretextada violação dos invocados artigos 4.º da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, de 26 de Fevereiro de 2009, 12.º-A, da Lei 65/2003 e do artigo 32.º, da CRP.
43. Os Senhores Juízes do Tribunal recorrido ponderaram, a respeito, nos seguintes (transcritos) termos:
«Alega o Requerido que:
- existe “violação directa do artº 4-A da Decisão-Quadro nº 2009/299/JAI, de 26/02/2009, e do 8º, nº1, alínea c), da Decisão-Quadro 2002/584/JAI”;
- impõe-se a necessidade de um reenvio prejudicial para o TJUE, visando a concreta interpretação a dar ao citados 4.º A e 8.º n.º1, al. a) daquelas Decisão-Quadro, para que o primeiro seja interpretado no “sentido de que autoriza um Estado-Membro a recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido para a entrega de uma pessoa que tenha sido objecto de uma sentença condenatória numa pena privativa de liberdade transitada em julgado, com o fundamento de que esse Estado-Membro violou as mais elementares regras de procedimento penal, mormente: a) Sempre soube o Tribunal do Estado de Emissão do M.D.E. da morada actual do Requerido e que o mesmo nunca se tenha furtado à justiça desse Estado; b) Nunca foi o Requerido notificado para contestar a acusação e oferecer prova; c) Não foi o Requerido notificado para estar presente no julgamento; d) Não esteve o Requerido representado por defensor no julgamento; e) Não foi notificado o Requerido de que não estava representado por defensor; f) Nunca foi notificado o Requerido da decisão de primeira instância, nem da possibilidade de apresentar recurso” e para o segundo que a “prática de não existir para emissão do M.D.E de uma sentença transitada em julgado (daí o exequível) ou um mandado de detenção nacional emitido de acordo com as normas de processo penal do Estado-Membro de emissão e, portanto, distinto do mandado de detenção europeu, não é conforme com a letra e o espírito da decisão-quadro e, em especial, com o seu artigo 8.º, n.º1, alínea c).”.
- A sindicância pelos tribunais portugueses da decisão que subjaz ao MDE, pois que “os Tribunais Portugueses, sob pena de violação da Constituição da qual são o máximo garante, não podem entregar um Português a um outro Estado Membro sem minimamente sindicarem se são respeitados os seus direitos fundamentais, sobretudo se esse Estado é judicialmente reconhecido por garantir o direito fundamental de um arguido a ser interrogado na presença de um advogado e de lhe ser comunicado que tem o direito ao silêncio e à não auto-incriminação.” Assim, “Não pode, assim, qualquer decisão penal francesa ter qualquer força executiva “automática” em Portugal, porquanto não garante minimamente que tenham sido ou sejam respeitados durante o processo os direitos humanos dos detidos/arguidos.”, pelo que “o Tribunal tem de recusar a execução do mandado de detenção europeu em apreço, o que ora se peticiona, atento estar demonstrado que o Estado Francês mão é credor, de momento, da nossa confiança judicial e que o mesmo viola de forma reiterada e ostensiva os direitos humanos dos detidos/arguidos universalmente protegidos e garantidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, maxime o seu direito a um processo judicial equitativo.”;
[…]
Pois bem, ao contrário do afirmado pelo Requerido, entendemos que é de afirmar a legalidade do MDE, porquanto se conforma com o previsto no artº 12º-A, da Lei nº 65/2003 e com o previsto no artº 4º-A da Decisão – Quadro 2009/584/JAI.
Se porventura o MDE patenteasse um julgamento do Requerido in absentia, mas fora de alguma das circunstâncias alternativas previstas no citado artº 12º-A, então estaríamos perante uma causa de recusa facultativa.
Porém, não é isso que sucede.
O julgamento do Requerido na sua ausência é expressamente apontado no MDE – “jugement rendu par default” e, por outro lado e simultaneamente, o formulário anexo dá conta dessa realidade ao serem preenchidos os campos da alínea d) pontos 2 e 3. 4, onde consta que o Requerido não foi notificado pessoalmente da decisão, mas que será dela notificado pessoalmente na sequência da sua entrega; que será expressamente informado do direito que lhe assiste a novo julgamento que permite a reapreciação do mérito da causa; que será apresentado a um juiz (o juiz das liberdades e da detenção), que decidirá se ficará ou não detido até à nova audiência sobre a base do mandado de detenção; e que será informado do prazo para solicitar um novo processo de recurso;
Ou seja, no caso, está expressamente demonstrada a verificação da situação prevista na alínea d) do artº 4-A da Decisão- Quadro, inexistindo qualquer violação directa, ou outra qualquer, deste artigo, não tendo as dúvidas suscitadas virtualidade para provocar um qualquer reenvio prejudicial no que concerne a tal norma.
Por último, e quanto a pretendida sindicância a efectuar pelos tribunais portugueses, mais uma vez se chama à colação o nº 2, do artigo 1º, da Lei 65/2003, que dispõe que o MDE “é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão-quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho de 13 de Junho”.
Como se escreveu em Acórdão do STJ, de 20/06/2012, procº nº 445/12.3YRLSB.S1- 3ª Secção, “(…) a execução de um mandado de detenção europeu não se confunde com o julgamento de mérito da questão de facto e de direito que lhe subjaz, julgamento esse a ter lugar, se for o caso, perante a jurisdição e sob a responsabilidade do Estado emissor, restando neste âmbito, ao Estado da execução, indagar da respectiva regularidade formal e dar-lhe execução, agindo nessa tarefa com base no princípio do reconhecimento mútuo (Lei 65/03, de 23-08, e Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13-06).”- disponível in www.dgsi.pt
Improcedem, pois, estes fundamentos da oposição.»
44. Estabelece o artigo 4.º-A da referida Decisão-Quadro:
1. A autoridade judiciária de execução pode também recusar a execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado de detenção europeu conste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos no direito nacional do Estado-Membro de emissão:
a) Foi atempadamente
i) Notificada pessoalmente e desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efectivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto, e
ii) informada de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento; ou
b) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal e foi efectivamente representada por esse defensor no julgamento; ou
c) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial.
i) declarou expressamente que não contestava a decisão, ou
ii) não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável; ou
d) Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas:
i) será notificada pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, e
ii) será informada do prazo para solicitar um novo julgamento ou recurso, constante do mandado de detenção europeu pertinente.”
2. (…)
3. (…)”.
45. Afigura-se que, também aqui, a decisão recorrida não merece censura nem suscita suprimento.
46. Como salienta o Respondente (transcrição),
«[…] não há qualquer violação ao disposto no art.º 4-A da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, de 26/02/2009 e ao previsto no art.º 12-A da Lei 65/2003. Há escrupuloso cumprimento do consignado em tais normas.
E recordando o que se decidiu no acórdão Melloni, de 26/02/2013, proc. C-399/11, “ o artigo 4.º-A, n.º1, da Decisão-Quadro 2002/584, conforme alterada pela Decisão-Quadro 2009/299, é compatível com as exigências que decorrem dos artigos 47.ºe 48.º, n.º2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia».
Não se apresenta necessário, ou fundamentado, suscitar um qualquer reenvio prejudicial no que concerne à citada norma. Basta recordar o que avisadamente se fez constar do inédito acórdão do STJ, de 08/04/2020, proferido no processo n.º 22/20.5YRGMR.S1, pendente que foi no Tribunal da Relação de Guimarães.
É que a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação - como resulta do acórdão Cilfit, de 06.10.1982 - Processo 283/81, pode ser dispensada quando: 1) a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; 2) o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; 3) o julgador nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente («teoria do acto claro»), cujos exigentes e cumulativos critérios de verificação também foram definidos nesse acórdão.
A decisão recorrida ao não laçar mão de qualquer reenvio prejudicial realizou o que se acabou e elencar. Assim, sem censura o seu proceder.»
47. Ademais, a possibilidade de reenvio prejudicial não configura forma de impugnação ao dispor das partes em causa sob julgamento num tribunal nacional; tal seja, não basta que o interessado suscite a interpretação do direito comunitário, pois cabe ao órgão jurisdicional verificar se é necessária uma decisão sobre a questão de direito comunitário, não havendo injuntiva quando o Tribunal considere que a correcta interpretação do direito comunitário se impõe com tal evidência que não suscita qualquer dúvida razoável.
48. Por que assim, o alegado, neste segmento, não pode lograr acolhimento.
49. O Recorrente pretexta a inconstitucionalidade do artigo 12.º-A, da Lei 65/2003, quando interpretado no sentido de não ser fundamento de recusa da execução de um mandado de detenção europeu a verificação do incumprimento grosseiro, no Estado de Emissão, do princípio do processo equitativo», por violação do artigo 32.º, da CRP.
50. A tanto opõe o Respondente, em conclusão, que a decisão recorrida cumpriu o previsto no artigo 12.º-A, da Lei 65/2003.
51. Assim é.
52. Como acima se deixou editado, o artigo 12.º-A, da Lei 65/2003, epigrafado de «decisões proferidas na sequência de um julgamento no qual o arguido não tenha estado presente», dispõe nos seguintes termos:
«1 - A execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade pode ser recusada se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado conste que a pessoa, em conformidade com a legislação do Estado membro de emissão:
a) Foi notificada pessoalmente da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto e de que podia ser proferida uma decisão mesmo não estando presente no julgamento; ou
b) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor por si designado ou pelo Estado para a sua defesa e foi efetivamente representado por esse defensor no julgamento; ou
c) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo de novas provas, que pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, declarou expressamente que não contestava a decisão ou não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável; ou
d) Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas na sequência da sua entrega ao Estado de emissão é expressamente informada de imediato do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo apreciação de novas provas, que podem conduzir a uma decisão distinta da inicial, bem como dos respetivos prazos.
2 - No caso de o mandado de detenção europeu ser emitido nas condições da alínea d) do número anterior, e de a pessoa em causa não ter recebido qualquer informação oficial prévia sobre a existência do processo penal que lhe foi instaurado, nem ter sido notificada da decisão, ao ser informada sobre o teor do mandado de detenção europeu pode a mesma requerer que lhe seja facultada cópia da decisão antes da sua entrega ao Estado membro de emissão.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, logo após ter sido informada do requerimento, a autoridade judiciária de emissão faculta, a título informativo, cópia da decisão por intermédio da autoridade judiciária de execução, sem que tal implique atraso no processo ou retarde a entrega, não sendo esta comunicação considerada como uma notificação formal da decisão nem relevante para a contagem de quaisquer prazos aplicáveis para requerer novo julgamento ou interpor recurso.
4 - No caso de a pessoa ser entregue nas condições da alínea d) do n.º 1 e ter requerido um novo julgamento ou interposto recurso, a detenção desta é, até estarem concluídos tais trâmites, revista em conformidade com a legislação do Estado membro de emissão, quer oficiosamente, quer a pedido da pessoa em causa.»
53. O punto nodens do reconhecimento mútuo reporta ao efeito directo e pleno sobre o conjunto do território da União de uma decisão de autoridade judiciária competente, por via do direito do Estado-membro de que procede, elaborada em conformidade com o direito desse Estado.
54. A decisão recorrida assenta e respeita o princípio do reconhecimento mútuo, que, por sua vez, se baseia na confiança recíproca entre os Estados‑Membros, em que as respectivas ordens jurídicas nacionais estão em condições de fornecer uma protecção equivalente e efectiva dos direitos fundamentais, reconhecidos ao nível da União.
55. E assim, mesmo na medida em que o Estado de execução apenas pode recusar dar execução ao MDE nos casos, exaustivamente enumerados, de não execução obrigatória previstos no artigo 3.° da Decisão‑Quadro, ou de não execução facultativa, previstos nos artigos 4.° e 4.°‑A da mesma, além de que a execução do mandado de detenção europeu apenas pode estar subordinada a uma das condições limitativamente previstas no artigo 5.° da decisão‑quadro.
56. Não se verifica, ademais, nos procedimentos levados no Estado emissor, revelados pelo MDE, qualquer incumprimento do princípio do processo equitativo, na medida em que os autos revelam que o MDE respeitou as regras, critérios e princípios decorrentes do disposto, seja no artigo 12.º-A, da Lei n.º 65/2003, seja no artigo 4.º-A, da Decisão-quadro n.º 2009/584/JAI.
57. Como se sublinha, irrespondivelmente, no acórdão recorrido (transcrição),
«Se porventura o MDE patenteasse um julgamento do Requerido in absentia, mas fora de alguma das circunstâncias alternativas previstas no citado artº 12º-A, então estaríamos perante uma causa de recusa facultativa.
Porém, não é isso que sucede.
O julgamento do Requerido na sua ausência é expressamente apontado no MDE – “jugement rendu par default” e, por outro lado e simultaneamente, o formulário anexo dá conta dessa realidade ao serem preenchidos os campos da alínea d) pontos 2 e 3. 4, onde consta que o Requerido não foi notificado pessoalmente da decisão, mas que será dela notificado pessoalmente na sequência da sua entrega; que será expressamente informado do direito que lhe assiste a novo julgamento que permite a reapreciação do mérito da causa; que será apresentado a um juiz (o juiz das liberdades e da detenção), que decidirá se ficará ou não detido até à nova audiência sobre a base do mandado de detenção; e que será informado do prazo para solicitar um novo processo de recurso;
Ou seja, no caso, está expressamente demonstrada a verificação da situação prevista na alínea d) do artº 4-A da Decisão- Quadro, inexistindo qualquer violação directa, ou outra qualquer, deste artigo, não tendo as dúvidas suscitadas virtualidade para provocar um qualquer reenvio prejudicial no que concerne a tal norma.
Por último, e quanto a pretendida sindicância a efectuar pelos tribunais portugueses, mais uma vez se chama à colação o nº 2, do artigo 1º, da Lei 65/2003, que dispõe que o MDE “é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão-quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho de 13 de Junho”».
58. Saliente-se ainda que o artigo 12.º-A da Lei 65/2003, que operou a transposição da Decisão-quadro 2009/299/JAI para o ordenamento jurídico português, não ofende a CRP até na medida, em que, «o artigo 4.º-A, n.º1, da Decisão-Quadro 2002/584, conforme alterada pela Decisão-Quadro 2009/299, é compatível com as exigências que decorrem dos artigos 47.ºe 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia» (cf. acórdão Melloni, de 26/02/2013, C-399/11, ademais expressamente citado pelo Respondente).
59. Assim, nesta parcela, o recurso não pode lograr provimento.
60. O Recorrente defende que a execução do MDE devia ter sido recusada por estar demonstrado que o Estado Francês não é credor, de momento, da nossa confiança judicial e que o mesmo viola de forma reiterada e ostensiva os direitos humanos dos detidos/arguidos universalmente protegidos e garantidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, maxime o seu direito a um processo judicial equitativo, bem como foram razões de politica criminal que estiveram na génese da emissão do mandado.
61. A tanto opõe o Respondente que o invocado carece de fundamento válido.
62. A sem razão do alegado é manifesta.
63. Por um lado, figura-se evidente que são sempre «razões de política criminal» que estão na base da condenação judiciária e da posterior emissão de MDE, não podendo a mera alegação de perseguição pelo Estado francês conduzir a uma recusa leviana de cumprimento do MDE, antes se exigindo que a recusa assente em factos objectivos e de conhecimento comum.
64. Por outro lado, sendo o Estado francês, emissor, parte integrante da União Europeia, e tanto assim o Estado português, executor, pretendendo aquele conferir eficácia a uma decisão judicial, emanada do respectivo poder judicial, está o Estado o mesmo a mover-se em conformidade com a referida Decisão-quadro e, ademais, de acordo com o Tratado da União Europeia, e com respeito pelos direitos fundamentais ali consignados, de par com os inscritos na Carta dos Direitos Fundamentais da EU.
65. Não se vê, ademais, que a decisão judicial que se pretende executar evidencie «elementos objectivos que confortem a convicção de que o mandado de detenção europeu é emitido para mover procedimento contra ou punir uma pessoa em virtude do sexo, da sua raça, da sua religião, da sua ascendência étnica, da sua nacionalidade, da sua língua, da sua opinião política ou da sua orientação sexual, ou de que a posição dessa pessoa possa ser lesada por alguns desses motivos» – cf. § 12 do preâmbulo da Decisão-quadro.
66. Termos em que, neste particular, o recurso não pode proceder.
67. O Recorrente defende, com apelo ao disposto na Lei 9/2020, que o acórdão revidendo deveria ter reconhecido a existência de (transcrição) «causa de recusa obrigatória do perdão (equivalente a amnistia) da infracção em apreço, nos termos do artigo 11.º alínea a), da Lei 65/2003.»
68. A tanto opõe o Respondente que a Lei 9/2020 cuida de perdão de penas, que não de amnistia, e que, não sendo os Tribunais portugueses competentes para conhecer dos factos vertidos no MDE, não se acha preenchida a previsão do artigo 11.º alínea a), da Lei 65/2003.
69. Neste particular, os Senhores Juízes do Tribunal recorrido ponderaram nos seguintes (transcritos) termos:
«É manifesta a inviabilidade da pretensão do requerido em pretender desencadear a mencionada causa de recusa obrigatória com respaldo na citada lei nº 9/2020, de 10/4, desde logo por o artigo 11º, al. a), da Lei 65/2003, de 23/8 [que reproduz artigo 3º, nº 1, da Decisão – Quadro 2002/584/JAI], apenas consagrar como causa de recusa obrigatória do MDE a amnistia, e em precisa situação de competência do Estado de execução para conhecimento do crime em apreço naquele, e já não o perdão, salientando-se que, quanto aos efeitos, aquela «extingue o procedimento criminal e, no caso de já ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena principal como das penas acessórias» enquanto o perdão genérico «extingue a pena, no todo ou em parte» [artº 128º, nºs 2 e 3 do CP].
Ademais, o Requerido esquece que a sentença francesa não é uma decisão definitiva, pois que lhe assiste o direito pleno de a contraditar, requerendo um novo julgamento ou interpondo recurso.
Improcede, pois, este fundamento de oposição.»
70. O alegado não pode colher assentimento.
71. O artigo 11.º («motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu») alínea a), da Lei 65/2003, que reproduz o artigo 3.º n.º 1 da referida Decisão-quadro, dispõe que a execução do mandado de detenção europeu é recusada quando a infração que motiva a emissão do mandado de detenção europeu tiver sido amnistiada em Portugal, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento da infração.
72. No caso, está em causa o cumprimento de uma pena de prisão, parcialmente suspensa, e multa (que não o cumprimento de três penas autónomas).
73. O artigo 2.º n.º 1, da Lei nº 9/2020, preceitua que «são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos», o que sempre excluiria a pena em referência da aplicação do perdão.
74. Acresce que o citado artigo 11.º da Lei 65/2003, consagra como causa de recusa obrigatória tão-apenas a amnistia (traduzida na extinção do procedimento criminal), que não o perdão (que se reporta à mitigação da pena), institutos jurídicos ditos de esquecimento, sabidamente diversos e não assimiláveis.
75. Por outro lado, a dita causa de recusa reporta a situações em que o Estado de execução seja competente para conhecimento da culpabilidade do arguido relativamente à prática do crime que sustenta o MDE, o que, manifestamente, não ocorre no caso.
76. Assim, o recurso não pode, neste segmento, merecer provimento.
77. Não cabe tributação – artigo 35.º, da Lei 65/2003.
78. Em conclusão e síntese:
a) Não se verifica a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação recorrido quando na deliberação sobre a oposição ao MDE oferecida pelo Recorrente, em conferência, dirigida pelo presidente da secção, participaram o relator e dois adjuntos, que subscreveram o acórdão;
b) o MDE foi emitido pelo Ministério Público francês, que configura autoridade judiciária, para execução de pena de 3 anos de prisão, aplicada por sentença judicial, precedendo julgamento à revelia, assegurado que o Requerente será notificado da decisão logo que presente às autoridades francesas e pode, designadamente, requerer novo julgamento;
c) não se verifica contradição entre o facto de se pretender a entrega do Requerente para cumprimento daquela decisão e a inverificação das causas de recusa atinentes ao arquivamento do processo em Portugal, à competência dos tribunais portugueses para o julgamento e ao decurso do prazo de prescrição;
d) não se verifica qualquer incumprimento, pelo Estado emissor, do princípio do processo equitativo, quando se está em presença de MDE para cumprimento de pena de prisão aplicada por sentença não transitada, assegurada a possibilidade de o Requerente suscitar a realização de novo julgamento;
e) são sempre «razões de política criminal» que estão na base da condenação judiciária e da posterior emissão de MDE, não podendo a mera alegação de perseguição pelo Estado francês conduzir a uma recusa leviana de cumprimento do MDE, antes se exigindo que a recusa assente em factos objectivos e de conhecimento comum, do passo ademais em que o Estado francês, emissor, parte integrante da União Europeia, e tanto assim o Estado português, executor, pretendendo aquele conferir eficácia a uma decisão judicial, emanada do respectivo poder judicial, está o mesmo a mover-se em conformidade com os tratados, cartas e decisões quadro aplicáveis no quadro jurisdicional da união europeia;
f) não se verifica causa de recusa, à luz do disposto no artigo 11.º n.º 1 alínea a), da Lei 65/2003 e no artigo 9.º n.º 2 da Lei 9/2020, quando aquele se reporta à amnistia e este se refere ao perdão, institutos não assimiláveis e ademais quando a apreciação da materialidade em questão não está no âmbito da competência dos tribunais portugueses, e a pena em presença se mostra desde logo excluída do âmbito de aplicação da Lei 9/2020.
III
79. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se julgar improcedente o recurso interposto pelo Requerente, AA.
Lisboa, 9 de Julho de 2010
António Clemente Lima (Relator)
Margarida Blasco