Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
196/06.8TTCBR-A.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
SUICÍDIO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 12/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANOXVIII, TOMO III/2010, P.271
ANOT. DE CLÁUDIA ALEXANDRA DOS SANTOS SILVA, PUBLICADO EM "QUESTÕES LABORAIS", A. 39, Nº 61 (JUL-DEZ. 2022), P. 143-166
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : I - No âmbito da LAT, a noção de acidente de trabalho reconduz-se a um acontecimento súbito de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador, encontrando-se este no local e no tempo de trabalho, ou nas situações em que é consagrada a extensão do conceito de acidente de trabalho.
II - O acidente de trabalho, enquanto noção ou conceito normativo, comporta outros elementos para além do evento naturalístico, ou seja, configura uma realidade complexa composta por aquele evento e pelo necessário nexo a estabelecer entre ele e as lesões quer para a vítima advenham e entre estas e a incapacidade de ganho ou a morte.
III - Estando demonstrado que o evento naturalístico causador das lesões sofridas pelo sinistrado consistiu na explosão de uma lata com materiais inflamáveis que viria a, imediatamente, provocar no mesmo várias queimaduras que foram causa adequada das lesões e que determinaram lhe fosse atribuída uma incapacidade permanente parcial, o suicido do sinistrado – enquanto acto conducente à morte – não pode ser subsumível ao conceito de lesão ou seu agravamento, por consistir, ele próprio, num acto idóneo à produção da morte.
IV - A descaracterização de acidente de trabalho, nos termos do disposto no art. 7.º, n.º 1, al. a) da LAT – que não prescinde da sua eclosão, no tempo e lugar de trabalho, e da produção de lesões que sejam causa adequada à perda de capacidade de ganho ou à perda da vida – determina a não reparabilidade dos danos que do mesmo provenham em razão de a conduta assumida pelo sinistrado ser a causa desse acidente, pelo que, a conduta deste tem que se situar a montante da ocorrência do acidente, o que não sucede, no caso de um suicídio.
V - A obrigação de indemnizar só tem cabimento quando existir um nexo de causalidade entre o acto ilícito do agente e o dano produzido, exigindo a lei, para fundamentar a reparação, que o comportamento do agente seja abstracta e concretamente adequado a produzir o efeito lesivo.
VI - A afirmação do nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes: - a vertente naturalística, do conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomologia real e concreta, deu origem ao dano; - a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode, em abstracto, ser havido como causa idónea do dano ocorrido.
VII - Estando provado que a morte do sinistrado ocorreu por acto próprio do mesmo quando pôs termo à própria vida por enforcamento, é de afirmar a quebra do nexo causal entre as lesões decorrentes do acidente que o sinistrado anteriormente sofrera e o dano (a morte) que sobreveio em momento ulterior pois esse dano não surgiu como decorrência típica ou adequada daquelas lesões.
VIII - Tanto mais quando não está demonstrado que o quadro depressivo de que o sinistrado padecia resultante daquele acidente tenha sido causa adequada da sua morte, posto que esta não surge como desenvolvimento causal de tal lesão, antes decorre de acto praticado pelo próprio lesado e, nessa medida, insusceptível de ser imputado à Ré, no quadro da sua responsabilidade infortunística
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório
1.1
AA, por si e em representação dos seus filhos menores BBe CC, patrocinada pelo Ministério Público, intentou a presente acção, com Processo Especial, emergente de acidente de trabalho, contra “DD - Companhia de Seguros, S.A.” pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe € 60,00, a título de despesas de transporte; € 2.997,60, a título de despesas de funeral; € 2.248,20, a título de subsídio por morte e o capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 2.100,00, com início a 16 de Março de 2006 e a pagar a cada um dos seus filhos menores € 1.124,10, a título de subsídio por morte e a pensão anual e temporária de € 1.080,00, a partir de 16 de Março de 2006, até perfazerem os 18, 22 ou 25 anos enquanto frequentarem o ensino secundário ou equiparado, superior ou, sem limite de idade, se ficarem a sofrer de doença que os afecte sensivelmente para o trabalho, montantes acrescidos de juros, vencidos e vincendos.
Alegou, em síntese útil, ser esposa e os seus representados filhos de EE, o qual pôs termo à vida em 15 de Março de 2006, devido ao quadro depressivo de que passou a padecer em virtude de acidente de trabalho sofrido em 19 de Março de 2005.

Em desabono das pretensões accionadas, contestou a Ré, sustentando, no essencial, que, para além de o enforcamento não ter sido causa do acidente de trabalho, o suicídio não é um acidente de trabalho, nem facto integrado num processo causal do dever de indemnizar, antes um acto premeditado da própria vítima.

O ISS, I.P./C.N.P. veio, ao abrigo do disposto no art. 1.º, n.º 2 do Dec.-Lei n.º 59/89, de 22 de Fev., reclamar da Ré o reembolso dos montantes de € 9.445,65 pagos aos AA. a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência, acrescida de juros de mora desde a citação até integral e efectivo pagamento.

A Ré contestou esse pedido de reembolso, impugnado o crédito peticionado e renovando a defesa deduzida na contestação ao pedido formulado pelos AA..

1.2
Instruída e discutida a causa, veio a 1.ª instância a julgar a acção procedente, tendo condenado a Ré a:
a) a pagar à Autora AA:
1. o capital de remição da pensão anual e vitalícia de dois mil e cem euros (€ 2.100,00), com início a 16 de Março de 2006;
2. o montante de dois mil duzentos e quarenta e oito euros e vinte cêntimos (€ 2.248,20) a título de subsídio por morte;
3. o montante de dois mil novecentos e noventa e sete euros e sessenta cêntimos (€ 2.997,60) a título de despesas de funeral;
4. o montante de sessenta (€ 60) euros a título de despesas de transporte.
b) a pagar ao Autor BB:
1. a pensão anual e temporária, com efeitos desde 16 de Março de 2006, de mil e quatrocentos euros (€ 1.400,00) até perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior ou sem limite de idade se ficar afectado para o trabalho;
2. o montante de mil cento e vinte e quatro euros e dez cêntimos (€ 1.124,10) a título de subsídio por morte.
c) a pagar ao Autor CC:
1. a pensão anual e temporária, com efeitos desde 16 de Março de 2006, de mil e quatrocentos euros (€ 1.400,00) até perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior ou sem limite de idade se ficar afectado para o trabalho;
2. o montante de mil cento e vinte e quatro euros e dez cêntimos (€ 1.124,10) a título de subsídio por morte.
d) os juros de mora, à taxa legal, sobre as prestações vencidas, nos termos do art. 135º do C. Processo do Trabalho.
e) a pagar ao I.S.S., I.P./C.N.P. – que, entretanto, havia ampliado o pedido de reembolso para a quantia de € 12 518,43 – a quantia de doze mil quinhentos e dezoito euros e quarenta e três cêntimos (€ 12.518,43), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde 8 de Maio de 2008, sobre o montante de € 9.945,65, e, desde 23 de Março de 2009, sobre o demais.

Sob a apelação da Ré, a que concedeu parcial procedência, veio o Tribunal da Relação de Coimbra a proferir acórdão, onde se sentenciou que:
- no reembolso a efectuar ao ISS fosse descontado o valor pago por tal instituto aos beneficiários a título de subsídio por morte;
- no pagamento do capital de remição fosse descontado o valor já pago pela Ré a esse título.
No mais, foi a apelação julgada improcedente.

1.3
Mantendo a Ré o seu inconformismo, veio a pedir a presente revista, onde convoca o seguinte quadro conclusivo:
1. O acto de suicídio, por enforcamento, não é “acidente”;
2. Muito menos um “acidente de trabalho” nos termos da legislação sobre Acidentes de Trabalho;
3. O suicídio por enforcamento exige, sempre, um acto de premeditação da própria vítima;
4. O acto de suicídio por enforcamento é um acto praticado de forma intencional;
5. A preceder o suicídio, intervém, sempre, na sua premeditação, uma série de raciocínios e estados afectivos complexos mas compreensíveis, com a sua razão e lógica;
6. O acto de suicídio, por escolha da vítima, enforcamento, é um acto praticado, de modo isolado pela própria vítima, como única solução de emergência em que caiu;
7. O acto de suicídio – enforcamento – é autónomo, no plano jurídico quanto às suas consequências, nunca uma consequência ou causa do dever de indemnizar;
8. O que originou o fim da vida, ou seja, o termo da sua própria, foi o comportamento voluntário do EE;
9. O conceito de Acidente de Trabalho tem inerente, obviamente, o que se deve entender por acidente, seja ele, uma causa directa de lesão, seja ele, uma causa directa ou indirecta de agravamento de lesão anterior. Em qualquer das situações equacionadas, a voluntariedade é um pressuposto alheio ao conceito de acidente;
10. A delimitação do conceito de acidente de trabalho está prevista na lei dos Acidentes de Trabalho (na altura do acidente a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril). Aí se prevê o que se entende por acidente de trabalho e as condições para que o mesmo possa ser descaracterizado (arts. 6.º e 7.º da Lei n.º 100/97 e arts. 6.º, 7.º e 8.º, do Decreto-lei Regulamentar).
11. A Lei descaracteriza o acidente (art. 7.º, da Lei n.º 100/97):
- que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou,
- que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado;
12. A intenção legislativa é a de que, de modo algum, a acção do sinistrado intervenha intencionalmente, como causa do acidente ou a causa de agravamento das consequências de um acidente de trabalho;
13. Se a lei não admite como acidente de trabalho qualquer acto lesivo provocado, intencional, do próprio sinistrado, também não pode considerar-se como enquadrável no conceito lato de acidente, o agravamento das lesões ou sequelas de um anterior acidente intencionalmente provocadas;
14. A acção do sinistrado não pode, nunca, legitimar o dever de indemnizar previsto na Lei dos Acidentes de Trabalho porquanto, o enforcamento não é acidente.
15. Por maioria de razão, o suicídio por enforcamento como acção causal do agravamento das lesões/sequelas do acidente tido um ano antes, não é susceptível de ser aí legalmente enquadrado.
16. O contrato de seguro em apreço, rege-se pelas Condições Gerais Uniformes do Contrato de Seguro de Acidentes de Trabalho, emanadas do Órgão de Tutela para a Indústria de Seguros – Instituto Nacional de Seguros, através da Norma Regulamentar n.º 12/99 R de 8 de Novembro, com as alterações introduzidas pelas Normas 11/2000 R de 13 de Novembro e 16/2000 R de 21 de Dezembro, obrigando a sua aplicação, quer as seguradoras quer os demais interessados;
17. O risco seguro pretendido pelo legislador e transposto para a Apólice Uniforme de Acidentes de Trabalho não foge à caracterização dos riscos normais: tem de ser incerto ou aleatório, tem de ser possível no sentido de que o risco deve “poder suceder”, tem de ser concreto, no sentido de que pode ser, no plano das probabilidades estatísticas avaliável quer a sua natureza, qualidade e determinação quantitativa, tem de ser fortuito, no sentido de que em princípio o risco deve ter origem num acontecimento alheio à vontade humana e tem de ser lícito, no sentido de que, em termos de normalidade, o risco tem de ser adequado a uma possibilidade legal de existir, quer dizer, possível de ocorrer de acordo com os normativos legais, mas alheio à intencionalidade;
18. Numa pura técnica de análise de risco, no suicídio por enforcamento, falta-lhe no mínimo as últimas características, para poder ser segurável, no âmbito de uma apólice de Acidentes de Trabalho: não é concreto, não é fortuito e não é lícito.
19. No âmbito dos acidentes de trabalho, o risco de morte provocada (enforcamento) não é um risco segurável.
20. Os riscos normais de Acidentes de trabalho, estão, previstos na lei, no seu aspecto qualitativo, tendo em conta, a amplitude do art. 6.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e pela delimitação constante do seu art. 7.º;
21. O suicídio, nem como circunstância agravante dos riscos assumidos no contrato de seguro, pode ser incluído nas coberturas de riscos normais do seguro de acidentes de trabalho, porque além de ser um acto voluntário e intencional, (risco excluído) não é previsível de ocorrer, objectivamente, no plano das probabilidades estatísticas, como causa adequada de uma lesão ou sequela;
22. O risco de suicídio como acto premeditado, inerente à própria vítima, é um risco insusceptível de estar coberto pelos riscos normais de Acidentes de trabalho;
23. As consequências do acto de suicídio, enforcamento, qualquer que seja a sua causa, não são indemnizáveis por quem aceitou segurar os riscos de acidentes de trabalho tal como juridicamente são tratados, quer no quadro da sua delimitação legal, quer na sua extensão de conceito, exclusão, redução ou agravamento da responsabilidade predisposição patológica, incapacidade ou morte;
Por cautela:
24. A entidade responsável pela reparação dos danos de acidentes de trabalho só está desobrigada à dita reparação de danos, nas situações expressamente previstas na lei, enunciadas nos arts. 7.º e 8.º da LAT;
25. Aí se prevêem situações em que o acidente (ou agravamento das lesões, por maioria de razão) for dolosamente provocado pelo sinistrado. Trata-se de situações em que o acidente (ou agravamento das lesões de acidente) se deveu à intenção dolosa do trabalhador, tendo este não só tido a intenção de praticar o acto determinante do acidente ou do agravamento das suas consequências, como também querido as suas consequências nocivas. Teoricamente, situam-se aqui as situações de auto-mutilação ou actos análogos como será o caso de suicídio por enforcamento.
26. O suicídio é “morte violenta de um indivíduo pelas lesões que se auto-inflige com o objectivo de pôr fim à sua vida”, como refere a Sentença do Tribunal a quo;
27. O acto de suicídio por enforcamento enquadra-se no contexto da alínea a) do art. 7.º, da LAT;
28. Havendo privação do uso da razão por incapacidade acidental porque o suicida é “incapaz de avaliar o seu comportamento ou de se auto-determinar em função da sua avaliação” (como refere a Sentença) então deverá aplicar-se a alínea c) do n.º 1 do art. 7.º da LAT.
O correcto enquadramento legal da descaracterização será sempre o vertido na alínea a) do art. 7.º da LAT;
Ainda que assim se não entenda, o que só por mera hipótese se admitirá:
29. Em termos de nexo de causalidade adequada, a responsabilidade não se estende aos efeitos danosos excepcionais, cuja gravidade em enorme desproporção com a gravidade do acto ou omissão, seja ele instantâneo ou prolongado no tempo. Interessa, pois, que a causa adequada seja uma consequência normal, típica, provável e previsível e objectivamente produza um efeito adequado;
30. Pela conjugação dos pontos 15, 24 e 27 dos factos provados da Sentença, não existe causalidade adequada entre as lesões do acidente de trabalho, processo de cura clínica, e morte por enforcamento do próprio sinistrado, pelo que é manifestamente injusto, incoerente e errado considerar como provado que “EE … pôs termo à própria vida em consequência do quadro depressivo resultante do acidente sofrido em 19.03.2005” (ponto 26 da matéria assente);
31. A “Depressão anterior ao acidente” (cfr., ponto 15 dos factos provados) não foi tida em conta na fundamentação da causalidade adequada.
32. Não existe nexo de causalidade adequada, que possa permitir que a morte por suicídio tenha sido consequência do acidente de trabalho. O acidente de trabalho e seu tratamento pós-traumático, adequado, em abstracto e segundo a sua natureza não é causa adequada da morte por suicídio. O juízo de adequação necessário deve ter em conta, um juízo de probabilidade normal e típica, manifestamente, o que não aconteceu no caso sub judice. Em suma, acidente de trabalho, consequente tratamento clínico ministrado e, consequente alta médica não podem ser as causas objectivamente adequadas, à morte por enforcamento;
33. A Sentença e o douto Acórdão violaram o disposto nos ats. 6.º e 7.º, da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro;
34. O Acórdão violou o disposto nos arts. 37.º e 38.º da Lei 100/97, de 13 de Setembro, conjugados com o disposto nas Normas Regulamentares do Instituto de Seguros de Portugal, relativamente à aplicação do conteúdo normativo da Apólice Uniforme de Acidentes de Trabalho.
Conclui pela revogação do Acórdão da Relação.
1.4.
Os Autores, com o patrocínio do Ministério Público, contra-alegaram, sustentando a improcedência do recurso.
1.5.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Factos
As instâncias firmaram pacificamente a seguinte factualidade:
1) EE, nascido a 27 de Outubro de 1970, faleceu em Março de 2006, no estado de casado com a A. AA.
2) AA nasceu a 12 de Agosto de 1972.
3) CC, nascido a 28 de Setembro de 1998, e BB, nascido a 5 de Março de 2004, encontram-se registados como filhos de EE e AA.
4) A firma FF, Pinturas, Ldª é uma empresa que tem por objecto a pintura em construção civil e colocação de janelas.
5) EE era sócio-gerente da FF, Pinturas, Ldª, exercendo, predominantemente, funções de pintor da construção civil.
6) Pelas funções que nela desempenhava EE recebia 7.000 € de remuneração anual (500 € x 14).
7) No dia 19 de Março de 2005 EE, quando queimava lixo tóxico nas instalações da empresa FF-Pinturas, Lda., sitas em casal da …, L..., foi atingido por chamas provenientes de uma lata com materiais inflamáveis que explodiu.
8) Essas chamas provocaram-lhe queimaduras dos 2.º e 3.º graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical inferior, tórax, dorso abdómen, coxa esquerda, num total de aproximadamente de 15% da superfície corporal.
9) Por causa das lesões então sofridas, EE esteve internado na unidade de queimados dos HUC, durante várias semanas.
10) As queimaduras sofridas em 19 de Março de 2005 tiveram uma forte influência negativa em EE, na sua auto-imagem e na sua avaliação do desempenho pessoal,
11) (…) situação que manifestava no acompanhamento familiar dos filhos, evitando todas as situações de exposição corporal e mesmo da sua intimidade conjugal.
12) A nível profissional deixou de assumir responsabilidades, passou a evitar algumas tarefas, abandonou a vontade de progredir profissional e socialmente,
13) (…) chorava com frequência, passou a não cuidar dos filhos, isolava-se, não falava e passava muito tempo a olhar para as cicatrizes resultantes do acidente tecendo considerações e apreciações negativas sobre si próprio.
14) Por causa desse seu quadro depressivo EE recebeu apoio e acompanhamento psiquiátrico por parte dos serviços clínicos da seguradora.
15) Em data anterior a 19 de Março de 2005, EE apresentou um quadro depressivo e foi medicado com benzodiazepinas.
16) A Ré prestou apoio e acompanhamento psiquiátrico a EE, com a 1.ª consulta ocorrida a 29 de Abril de 2005.
17) EE iniciou tratamento psico-farmacológico com anti-depressivos e ansiolíticos prescritos pelo psiquiatra Dr. GG.
18) Como resultado da terapia instituída, não obstante manter uma atitude depressiva, EE passou a mostrar melhor controlo emocional, menos tendência ao isolamento, melhor relacionamento familiar e mais estabilidade pessoal.
19) O tratamento psiquiátrico foi interrompido em Outubro de 2005 por decisão do psiquiatra que o acompanhava que entendeu que o sinistrado tinha melhorado.
20) Em consequência do entendimento do médico psiquiatra da Ré seguradora, no sentido da melhoria do seu quadro clínico face ao acompanhamento por parte daquela, foi atribuída alta a EE, na valência de psiquiatria, em 28 de Outubro de 2005.
21) A partir dessa data EE e os seus familiares não mais reclamaram assistência clínica à Ré.
22) Nessa data (2005.10.28), EE mantinha sintomas depressivos ainda que moderados e factores que o predispunham ao risco de recaída - lesão física, alteração da imagem pessoal, perda de competências pessoais.
23) Após tal decisão de cessação de tratamento psiquiátrico, EE sofreu gradual e progressiva deterioração do seu estado, voltando a exibir todos os sintomas que anteriormente levaram à constatação de necessidade de acompanhamento psiquiátrico como sejam isolamento, negativismo, afastamento da actividade profissional, tristeza, pessimismo e apatia.
24) No dia 11 de Março de 2006, EE acabou por consultar o Dr. HH que, depois de se inteirar do seu estado depressivo grave, lhe prescreveu tratamento farmacológico com os anti-depressivos e ansiolíticos anteriormente receitados pelo Dr. GG.
25) No dia 15 de Março de 2006, após ter deixado os seus empregados numa obra próxima, EE regressou a casa e, por enforcamento, pôs termo à sua vida.
26) EE pôs termo à própria vida em consequência do quadro depressivo resultante do acidente sofrido a 19.03.2005.
27) Com a ressalva do referido em 19 e 20, durante o decurso do tempo entre 19 de Março de 2005 e o suicídio, EE estava medicado com os métodos científicos adequados à cura, tomando Trazadona nas doses apropriadas.
28) Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, FF-Pinturas, Ldª havia transferido para a Ré DD Companhia de Seguros, SA, a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho que vitimassem EE, mediante o vencimento mensal deste de € 500 (x14).
29) Devido ao falecimento de EE, o ISS-I.P./CNP pagou aos AA., a título de pensões de sobrevivência, o montante de € 9.783,66 (à A. AA € 6.521,70, € 1.630,98 ao filho CC e € 1.630,98 ao filho BB).
30) Devido ao falecimento de EE, o ISS-I.P./CNP pagou aos AA., a título de subsídios por morte, o montante de € 2.734,77 (à A. AA € 1.349,89, € 692,44 ao filho CC e € 692,44 ao filho BB).
31) O cadáver de EE foi autopsiado no GML da Figueira da Foz e trasladado para o cemitério do L..., em Pombal.
32) Foi a A. AA que suportou as despesas do funeral.
33) Em deslocações ao Tribunal, a A. AA gastou € 60 (4x15).

III. Direito
3.1.
A análise da petição inicial com a qual se iniciou a fase contenciosa do presente processo conjugada com matéria que, pela Ré, foi aduzida na sua contestação, permite-nos asseverar que a questão em debate nos autos se prendeu, naquela fase, com a existência de nexo causal entre as lesões pelo sinistrado sofridas em resultado do acidente e a morte que lhe sobreveio, tal como os demandantes reclamam.
Afirmada pela 1.ª Instância a existência do apontado nexo causal, veio a Ré seguradora, no âmbito do recurso de apelação que interpôs para o Tribunal da Relação de Coimbra, a ampliar aquele que era o objecto da acção, introduzindo novas questões subsumíveis ao conceito de acidente de trabalho – declinando a demandada a sua responsabilidade por o suicídio não consubstanciar acidente de trabalho – e à descaracterização desse acidente.
O recurso de apelação interposto veio, em toda a sua extensão e temática, a ser conhecido pelo Tribunal da Relação, sem que a novidade das enunciadas questões viesse a ser sequer abordada. O mesmo é dizer que, a elas, o Acórdão recorrido dedicou expressa pronúncia.
Tal postura poderia configurar nulidade decisória, por excesso de pronúncia, ao abrigo do disposto no art. 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC. Todavia, nenhuma das partes, maxime, os Autores – a quem tal invocação aproveitaria, saliente-se – curou de o fazer.
Visto que a apontada nulidade não foi invocada e porque se não trata de matéria cujo conhecimento oficioso se imponha, também, quanto a ela o Supremo Tribunal dedicará expressa pronúncia, tanto quanto é certo que toda a sobredita temática, pelas razões expostas, integra o objecto da revista.
Como assim, e em exacta consonância com o quadro conclusivo recursório, esse objecto pressupõe a análise de três questões:
a) a susceptibilidade de qualificar como acidente de trabalho o suicídio por enforcamento que vitimou o sinistrado;
b) a descaracterização do acidente por força de acto praticado pelo sinistrado;
c) a possibilidade de estabelecer um nexo causal entre o acidente de trabalho e o referido suicídio por enforcamento.

3.2.
Atendendo ao período temporal em que ocorreram os factos, o quadro normativo atendível é o que se mostra plasmado na Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro – “Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais” – que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2000, conforme decorre do seu artigo 41.º n.º 1 alínea a), conjugado com o disposto no artigo 71.º n.º 1 do D.L. n.º 143/99, de 30 de Abril – “Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho” – na redacção que lhe foi dada pelo D.L. n.º 382-A/99, de 22 de Setembro.
O conceito de “acidente de trabalho” é fornecido, basicamente, pelo artigo 6.º da Lei n.º 100/97, que o define como “... aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
A referida L.A.T. não alterou substancialmente o quadro normativo vindo do pretérito (Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965): sem embargo de abranger agora causas indirectas de dano, evidenciando uma tendência de socialização do risco empresarial, e de alargar o âmbito subjectivo da reparação, a verdade é que a noção do próprio “acidente”, enquanto tal, permanece incólume.
O Acórdão desta Secção de 28 de Março de 2007, proferido na Revista n.º 3957/06, cuidou de discorrer aprofundadamente sobre o conceito em análise.
Ali se escreveu:
Em geral, considera-se acidente o acontecimento repentino, fortuito e desagradável (cfr. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Volume I, Editorial Enciclopédia, Ld.ª, Lisboa, Rio de Janeiro, Agosto de 1978, pág. 259, e Dicionário da Língua Portuguesa, Dicionários Editora, 8.ª edição, Porto Editora, 1998, pág. 22).
Discorrendo sobre o conceito de acidente de trabalho, Mário Bigotte Chorão (Direito do Trabalho, Volume II, lições policopiadas, Instituto de Estudos Sociais, Lisboa, 1970-1971, pág. 127-128) define-o «como uma alteração do organismo determinada por uma causa violenta que actua por ocasião do trabalho e que provoca a morte do trabalhador ou a sua incapacidade para o trabalho», logo acrescentando, no que respeita ao requisito «ocasião do trabalho», que este requisito se considera preenchido nos chamados acidentes «in itinere», «aduzindo-se que o trabalhador se expõe ao risco do trajecto para cumprimento das obrigações laborais, em suma, por motivos do trabalho», por isso, «ainda de algum modo, neste caso, a causa violenta e danosa actuará por ocasião do trabalho».
Por seu lado, Feliciano Tomás Resende (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Legislação Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 1971, pág. 16-18), dando conta das redacções ensaiadas durante os trabalhos preparatórios da Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965, e em anotação à Base V daquela Lei (conceito de acidente de trabalho), refere que o texto final desse preceito «corresponde ao da proposta governamental, depois de substituída a palavra «evento» por «acidente» e de eliminada a expressão «salvo quando a este inteiramente estranho», conforme uma proposta de eliminação e de substituição apresentada por um grupo de deputados e largamente discutida na Assembleia Nacional (v. Diário das Sessões, de 22-4-1965, págs. 4805 a 4809), constando da intervenção de um dos autores da proposta de alteração que se eliminou a expressão «salvo quando a este inteiramente estranho», «por se entender que esse elemento descaracterizador tinha assento noutro local e já aí estava compreendido tudo quanto pode descaracterizar o acidente».
Por outro lado, parece depreender-se da discussão havida que se reputou a palavra «evento» de significado inconvenientemente amplo, preferindo-se, com prejuízo do rigor formal da definição (tautologia), o termo acidente, com o sentido, em geral aceite pela doutrina e pela jurisprudência, de acontecimento ou evento súbito, inesperado e de origem externa (v., por ex., os acórdãos do STA de 16-11-1933, 26-5-1953 e 9-3-1954, respectivamente, na Colecção II, 381, IX, 285, e XVI, 122).
Para Melo Franco («Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais», Direito do Trabalho, B.M.J., Suplemento, Lisboa, 1979, pág. 62), citando Sachet, acidente é «o acontecimento anormal, em geral súbito, ou pelo menos de uma duração curta e limitada, que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano».
Especificamente sobre o actual âmbito de reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho Romano Martinez (Direito do Trabalho, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 779), citando Cunha Gonçalves e Carlos Alegre, salienta que o acidente de trabalho «pressupõe que seja súbito o seu aparecimento, assenta numa ideia de imprevisibilidade quanto à sua verificação e deriva de factores exteriores».
Nesta linha de entendimento, refira-se que o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, veio a acolher como noção de acidente de trabalho, «o sinistro, entendido como acontecimento súbito e imprevisto, sofrido pelo trabalhador que se verifique no local e no tempo de trabalho» (artigo 284.º, n.º 1).
(...)
Tudo para concluir que a noção de acidente de trabalho se reconduz a um acontecimento súbito de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte do trabalhador, encontrando-se este no local e no tempo de trabalho, ou nas situações em que é consagrada a extensão do conceito de acidente de trabalho” (FIM DE TRANSCRIÇÃO).
3.3
Nas suas conclusões recursórias, maxime, nas elencadas sob os ns. 1. a 23., discorre a Ré quanto à impossibilidade de o suicídio por enforcamento ser qualificável como acidente de trabalho por provir de um acto voluntário da própria vítima.
Numa primeira abordagem, perspectiva a Ré essa sua asserção com fundamento numa visão de acidente de trabalho reconduzida, apenas, ao evento naturalístico, isto é, ao acontecimento súbito, de verificação inesperada e de origem externa. E, nesse enquadramento, parece claro que um suicídio jamais poderia ser qualificado como um acontecimento com semelhantes características.
Mas, conforme se deixou exposto, o acidente de trabalho, enquanto noção ou conceito normativo, comporta outros elementos para além do evento naturalístico, ou seja, configura uma realidade complexa composta por aquele evento e pelo necessário nexo a estabelecer entre ele e as lesões que para a vítima advenham e entre estas e a incapacidade de ganho ou a morte.
Ora, tal como nos parece claro, até pela conformação da presente acção – proposta ao abrigo do disposto no art. 142.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho – a questão em debate nos autos nunca se cingiu à de saber se o suicídio, por enforcamento, era ou não susceptível de ser configurado como acidente de trabalho, enquanto evento naturalístico. O objecto da presente causa circunscreveu-se sempre, tal-qual emerge da causa de pedir exposta na petição inicial, à questão de aquilatar da possibilidade de estabelecer o necessário nexo causal entre as lesões sofridas pelo sinistrado, decorrentes do evento naturalístico ocorrido – consistente na explosão de uma lata com materiais inflamáveis – e a sua morte.
Acrescente-se, ademais, que o posicionamento da Ré, em sede de tentativa de conciliação (cfr., fls. 61 e 62, dos autos), foi sempre o de não aceitar o estabelecimento do apontado nexo causal e nunca a rejeição da ocorrência do acidente, enquanto evento naturalístico.
Numa segunda abordagem, invoca a demandada que a reparação de um acidente de trabalho está sempre dependente da inexistência de conduta que, assumida pelo sinistrado, contribua para a lesão ou o seu agravamento.
Entendemos não assistir razão à Ré. O suicídio não é, in casu, susceptível de ser comparável a uma lesão ou ao seu agravamento que, por provir de acto da vítima, excluiria a reparação infortunística. Já aqui dissemos – e tanto não é, sequer, matéria controvertida – que o evento naturalístico causador das lesões sofridas pelo sinistrado consistiu na explosão de uma lata com materiais inflamáveis. Tal explosão viria a, imediatamente, provocar no sinistrado várias queimaduras que foram causa adequada das lesões reconhecidas e que determinaram lhe fosse atribuída uma incapacidade permanente parcial, em consequência da qual, aliás, viriam os demandantes a receber o correspectivo capital de remição. A par das lesões físicas, resulta da matéria de facto provada que o sinistrado veio a desenvolver patologia depressiva, tendo-lhe, de resto, sido, pela Ré, prestada assistência médica do foro psiquiátrico. Ora, a valer a tese da demandada, teria que ser neste âmbito que a conduta do sinistrado haveria que relevar, enquanto causa da lesão ou do seu agravamento. E, de forma nenhuma a matéria de facto consente tal conclusão, na justa medida em que da mesma se não extrai por que forma é que o sinistrado contribuiu na produção dos sintomas depressivos e, a final, para que lhe fosse diagnosticada tal patologia. Daí que se tenha afirmado que o suicídio – enquanto acto conducente à morte – não possa ser subsumível ao conceito de lesão ou seu agravamento. O suicídio consiste num acto idóneo à produção da morte, não numa lesão ou seu agravamento conducente àquele resultado.
Mais uma vez, pois, a questão fundamental que importa dilucidar consiste em saber se a patologia depressiva desenvolvida pelo sinistrado, e produzida pelo acidente que o vitimou, foi, ou não, causa adequada da sua morte.
4.
Aduz a Ré, na presente revista – conclusões ns. 24.ª a 28.ª – que o acidente que vitimou o sinistrado haverá que ser descaracterizado, ao abrigo do disposto no al. a), do n.º 1, do art. 7.º, da LAT.
Diz-nos este preceito que “1. Não dá direito à reparação o acidente:
a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei (…)”.
Na concreta vertente recursória ora em análise, relembre-se que a figura da descaracterização do acidente – que não prescinde da sua eclosão, no tempo e lugar de trabalho, e da produção de lesões que sejam causa adequada à perda de capacidade de ganho ou à perda da vida – determina a não reparabilidade dos danos que do mesmo provenham em razão de a conduta assumida pelo sinistrado ser a causa desse acidente. A conduta do sinistrado tem que se situar, pois, a montante da ocorrência do acidente. Significa o exposto que, para que valesse a tese da Ré teria que estar demonstrado que a conduta – dolosa – do sinistrado havia determinado a explosão da lata com materiais inflamáveis, o que não foi manifestamente o caso. Relembre-se, mais uma vez, que a ocorrência do acidente, enquanto evento naturalístico, jamais foi colocada em causa pela Ré, que, de resto, também não declinou a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos imediatos que do mesmo advieram para o sinistrado. O que a demandada sindica é a possibilidade de entre o acidente e as lesões pelo mesmo produzidas ser estabelecido o necessário nexo causal com a morte do sinistrado. Mas essa é questão distinta daquela outra que se prende com a descaracterização do acidente e à qual dedicaremos, em seguida, expressa pronúncia.

5.
5.1
Finalmente, sustenta a Ré que não é possível estabelecer o necessário nexo causal entre as lesões sofridas pelo sinistrado em consequência do evento naturalístico ocorrido – descrito no ponto 7., da matéria de facto provada – e a sua morte, o que a leva a afirmar, também por esta via, a sua irresponsabilidade na reparação peticionada pelos demandantes.
Conforme já referimos anteriormente – ponto 3.3 – a questão agora submetida a veredicto constitui, afinal, aquela que, desde os articulados, corporiza o verdadeiro litígio entre as partes.
Ambas as instâncias concluíram pela verificação do apontado nexo causal: daí que tivessem conferido inteiro ganho de causa aos ora Autores.
Para o efeito, acobertaram-se, fundamentalmente, na matéria de facto provada sob o ponto n.º 26 que reza assim:
EE BB pôs termo à própria vida em consequência do quadro depressivo resultante do acidente sofrido a 19.03.2005”.
Neste contexto, pode ler-se no Acórdão recorrido:
“(…) no que toca ao estabelecimento do nexo causal entre o acidente e a morte do sinistrado, a matéria de facto dada por assente é, segundo cremos, clara e isenta de dúvidas.
Na verdade, encontra-se provado (ponto 26 da matéria de facto provada) que o «EE pôs termo à própria vida em consequência do quadro depressivo resultante do acidente sofrido a 19.03.2005».
Mais claro não se podia ser; sublinhando-se que a recorrente na impugnação da decisão da matéria de facto nem sequer pôs em causa a matéria constante deste ponto que corresponde à matéria do quesito 11.º da base instrutória”.
5.2
A produção de um dano resulta necessariamente de um processo causal, onde podem concorrer circunstâncias da mais variada natureza.
Sendo assim, e porque a obrigação de indemnizar só tem cabimento quando existir um nexo de causalidade entre o acto ilícito do agente e o dano produzido, a questão que se coloca reside em saber quando é que o resultado lesivo se há-de ter como efeito daquele sobredito comportamento.
Debruçando-se sobre esta temática, Pessoa Jorge começa por aludir à “teoria da equivalência das condições”, para a qual “... cada condição sine qua non seria causa de todo o efeito, porque, sem ela, as outras condições não teriam actuado” (in “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil” – “Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal”, Lisboa, 1972, reedição, pág. 389).
Sendo notório, porém, que uma tal teoria jamais poderia ser transposta, na sua genuidade, para o domínio da responsabilidade civil – por ser patentemente injusto responsabilizar alguém por prejuízos que nada tiveram a ver, em concreto, com a sua conduta – haverá que eleger então, de entre as várias condições do dano, aquelas que legitimam a imposição, ao respectivo agente, da obrigação de indemnizar.
O nosso sistema positivo acolheu a “teoria da causalidade adequada”, na sua formulação negativa (1), ao consignar, no artigo 563.º do Código Civil, que “... a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
Como a transcrita previsão legal logo sugere, a adequação relevante não é aquela que se basta com o simples confronto entre o facto e o dano isoladamente considerados mas, pelo contrário, aquela que atende a todo o processo causal que, na prática, conduziu efectivamente ao dano.
E, nessa medida, exige-se “... que o efeito tenha resultado do facto, considerado causa dele, pelo processo por que este é abstractamente adequado a produzi-lo”, como salienta o mesmo professor que, logo após, explicita:
Pode, na verdade, suceder que o comportamento do agente seja adequado (por si e em abstracto) a provocar o dano, mas este se produza segundo um processo diferente daquele que leva a considerar tal comportamento como causa adequada desse dano”, o que leva a excluir da responsabilidade “... não só os prejuízos, que este normalmente não produziria, como também aqueles que normalmente produziria, mas por processo diferente do que realmente se deu” (obra citadas, páginas 395 e 396).
Conforme se vê, a lei exige, para fundamentar a reparação, que o comportamento do agente seja abstracta e concretamente adequado a produzir o efeito lesivo.
Por isso se diz que a afirmação do nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes:
- a vertente naturalística, do conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano;
- a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode, em abstracto, ser havido como causa idónea do dano ocorrido.
Por outro lado, só cumpre ao Supremo apurar o nexo legal de adequação se, previamente, as instâncias tiverem considerado assente o nexo factual.
5.3
No caso dos autos, é fora de dúvida que o dano – a morte – ocorreu por acto próprio do lesado que, no dia 15 de Março de 2006, pôs termo à própria vida por enforcamento – ponto n.º 25.
O que importa decidir é se esse facto teve a virtualidade de quebrar o nexo causal entre as lesões decorrentes do acidente – evento naturalístico – que o sinistrado anteriormente sofrera e o dano (a morte) que sobreveio em momento ulterior, ou se, ao invés, tal dano surgiu como decorrência típica ou adequada das mencionadas lesões.
As instâncias sufragaram o segundo entendimento, para o que atribuíram decisivo relevo à factualidade contida no ponto 26, quando dela curaram em sede de subsunção jurídica.
Já conhecemos este ponto que – repete-se – dispõe como segue:
EE BB pôs termo à própria vida em consequência do quadro depressivo resultante do acidente sofrido a 19.03.2005”.
Sendo certo que a factualidade transcrita estabeleceu um evidente nexo factual, também nos parece seguro que esse nexo tem um alcance muito concreto:
- apenas evidencia que o sinistrado se deixou determinar, na prática do acto voluntário que cometeu, pelo quadro clínico depressivo decorrente do anterior acidente.
É coisa bem diversa do que concluir – como fizeram as instâncias – que a sobredita factualidade demonstra uma vinculação causal entre o próprio acidente e a morte do sinistrado.
Por isso, essa vinculação causal haveria de ser extraída, por necessário, de outra factualidade que, porventura, a consentisse.
Não foi esse o caminho trilhado pelas instâncias.
E também nós, prescrutando todo o acervo factual coligido, não lobrigamos que nele se contenha alguma matéria com virtualidade para firmar aquele imprescindível juízo.
Com efeito, embora se possa afirmar que do evento naturalístico – explosão de uma lata com materiais inflamáveis – resultaram para o sinistrado lesões – as queimaduras e, bem assim, o quadro depressivo (cfr., pontos 8 e 14) – e que dessas lesões – as que estritamente se referem às queimaduras (cfr., fls. 9) – resultou para o sinistrado Incapacidade Parcial Permanente, já não se poderá afirmar, por ausência de factos que o suportem, que o quadro depressivo de que padeceu o sinistrado tenha sido causa adequada da sua morte, posto que esta não surge como desenvolvimento causal de tal lesão, antes decorre de acto praticado pelo próprio lesado e, nessa medida, insusceptível de ser imputado à Ré, no quadro da sua responsabilidade infortunística.
Aduzir-se-á, em desabono do que vem de ser dito, que o estado depressivo do sinistrado o impediria de, convenientemente, avaliar os seus actos e, daí, que a sua “decisão” de colocar termo à vida surgisse destituída de uma vontade livre.
Nesse contexto, a sua incapacidade de livre determinação implicaria concluir que o acto praticado derivava ainda do sobredito quadro depressivo.
Porém, nada nos autos nos habilita a dizer, nem mesmo remotamente, que o estado depressivo da vítima a impedia de avaliar ponderadamente o (ou os) seu(s) comportamento(s).
Com efeito, veja-se que o sinistrado, em consequência do diagnóstico do quadro depressivo, veio a ser acompanhado pela Ré que, perante as melhoras apresentadas, lhe atribuiu alta médica nessa valência clínica, sem atribuição de IPP (pontos ns.º 14, 16, 18, 19 e 20 e documento de fls. 9).
A partir dessa data, e embora esteja provado que, posteriormente, o sinistrado viu o seu estado de saúde progressivamente deteriorado, a verdade é que o mesmo não mais demandou da Ré qualquer assistência de natureza psiquiátrica, em ordem a que esta, dentro das obrigações que lhe cabem, pudesse debelar ou, pelo menos, atenuar os sintomas evidenciados pelo sinistrado.
Perante o descrito quadro factual, não se pode validamente concluir que as lesões decorrentes do acidente tivessem aptidão para conduzir normalmente à morte do trabalhador, o que tanto basta para excluir este evento da sua reclamada reparação.
IV. Decisão
Pelo exposto, concede-se a Revista, revogando-se, em consequência, o Acórdão recorrido, assim se absolvendo a Ré de todos os pedidos contra si formulados.

Sem custas, dada a isenção subjectiva de que gozam os Autores – art. 2.º, n.º 2, al. m), do CCJ.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2010

Sousa Grandão (Relator)
Pinto Hespanhol
Vasques Dinis
________________
1)- Cfr., neste sentido, Antunes Varela, das Obrigações em Geral, Volume I, págs. 897 e ss., 7.ª Edição, Almedina.