Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE MÉDICA DEVER DE INFORMAÇÃO CONSENTIMENTO INFORMADO MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE REVISTA DUPLA CONFORME FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE NULIDADE DE ACÓRDÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA NULIDADE PROCESSUAL SANAÇÃO RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA REFORMA DE ACÓRDÃO INADMISSIBILIDADE ERRO DE JULGAMENTO | ||
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Data do Acordão: | 02/09/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO E MANTER O ACÓRDÃO ENTRETANTO PROFERIDO EM 2/12/2020 | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I – A omissão de pronúncia a que se refere a al. d) do nº 1 do artigo 615.º do CPC traduz-se na circunstância de o juiz não se ter pronunciado sobre questões que estava vinculado a apreciar, nos termos do estatuído na 1ª parte do nº 2 do artigo 608.º, do CPC. Trata-se de um vício de conteúdo, que não se confunde com a omissão da prática de ato processual que devesse ter sido praticado. Como é sabido, enquanto que as nulidades da sentença (a que se reporta o artigo 615.º do CPC) derivam de atos ou omissões praticados pelo juiz no acórdão (ou na sentença) e são arguidas e conhecidas pelo tribunal ad quem, as nulidades processuais derivam de omissões ou atos praticados antes da prolação do acórdão (ou da sentença) e, constituindo anomalia do processado, devem ser conhecidas no tribunal onde ocorreram. II - A nulidade processual pode ser suprida pela prática do ato omitido, sem necessidade de anular todo o processado subsequente, de acordo com o princípio de que os efeitos da nulidade processual devem ser circunscritos ao indispensável, conforme salienta a doutrina (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª edição, 2018, p. 404), remetendo a lei esse juízo de anular ou não os atos subsequentes ao ato omitido para uma análise casuística do juiz (Abrantes Geraldes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, p.249). III – Tendo o Tribunal da Relação procedido a uma alteração da matéria de facto que incidiu, não sobre uma questão lateral ou secundária na economia do processo, mas sobre a questão central e decisiva para aferir da responsabilidade civil médica e que implicou uma modificação essencial da motivação jurídica, conclui-se que o Tribunal da Relação, apesar de ter confirmado a sentença de 1.ª instância, adotou uma “fundamentação essencialmente diferente” da perfilhada pelo tribunal de 1.ª instância, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC. IV - É consensual que, tendo a reforma da sentença como desiderato suprir os lapsos ou erros manifestos assinalados nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC, não se destina a corrigir eventuais erros de julgamento ou a servir de veículo para o reclamante exprimir a sua discordância com a decisão ou defender a sua posição técnico-jurídica em relação às questões de direito resolvidas pelo Acórdão objeto do pedido de reforma. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça Relatório 1. AA, réu/recorrido nestes autos, tendo sido notificado do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, datado de 2 de dezembro de 2020, que o condenou, a si e à interveniente principal: i) no pagamento à autora na indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 150.000,00, com juros de mora a partir desta decisão e até efectivo e integral pagamento; ii) na indemnização por danos patrimoniais, nos termos do artigo 564º nº 1 do Código Civil, a liquidar em execução de sentença, acrescidos de juros de mora a partir da citação e até efetivo e integral pagamento; e iii) na indemnização por danos patrimoniais futuros (artigo 564º nº2 e 569º nº 1, ambos do Código Civil, a liquidar em execução de sentença) vem, nos termos dos artigos 195º, 613º a 617º, 666º, 685º, todos do CPC: «I - Arguir a nulidade processual, nos termos do artigo 195º nº 1 do CPC, por omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve e a irregularidade cometida influir no exame e na decisão da causa. II - Arguir a nulidade do acórdão de Revista por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no nº 1, alínea d) do artigo 615º do CPC. III - Requerer a reforma do acórdão de revista com fundamento em manifesto erro na determinação da norma aplicável e qualificação jurídica dos factos, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 616º do CPC».
Os fundamentos da reclamação estão expostos em 32 páginas, sem conclusões, que se consideram aqui integralmente reproduzidas devido à sua extensão.
2. A autora, BB, notificada do requerimento do Réu, veio apresentar a sua resposta, na qual defende que devem ser indeferidas as nulidades arguidas, que a reforma pretendida não é legalmente admissível, por não estarem verificados os requisitos do artigo 616.º, n.º 2, do CPC, e que não se verifica qualquer erro de julgamento. Termina, requerendo a aplicação do artigo 670.º do CPC, tendo em conta a extensão do requerimento apresentado pelo réu e a sua falta de fundamento.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
1. e 2. Arguição de nulidades
Invoca o reclamante que, no apenso (processo n.º 359/10……) ao presente processo, a Relatora decidiu, por despacho singular, a admissibilidade do recurso de revista da Autora, na sequência de uma reclamação desta, ao abrigo do artigo 643.º do CPC, contra o despacho de não admissibilidade do recurso proferido pelo Tribunal da Relação. Entende que foi omitida uma formalidade essencial, na medida em que o réu reclamou do despacho singular para a Conferência, nos termos previstos no artigo 643.º, n.º 4, que remete para o artigo 652.º, n.º 3, ambos do CPC, mas não obteve resposta a essa reclamação. Alega, em consequência, que, verificada uma nulidade processual, o Acórdão reclamado deve ser anulado, nos termos do artigo 195.º, n.º 2, CPC, ou, em alternativa, anulado por estarmos perante uma omissão de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC. A omissão de pronúncia a que se refere a citada al. d) do nº 1 do artigo 615.º traduz-se na circunstância de o juiz não se ter pronunciado sobre questões que devesse apreciar ante o estatuído na 1ª parte do nº 2 do artigo 608.º, do CPC, vício este, que, no entanto, não se confunde com a omissão da prática de ato processual que devesse ter sido praticado. Como é sabido, enquanto que as nulidades da sentença (a que se reporta o artigo 615.º do CPC) derivam de atos ou omissões praticados pelo juiz no acórdão (ou na sentença) e são arguidas e conhecidas pelo tribunal ad quem, as nulidades processuais derivam de atos ou omissões que foram praticados antes da prolação do acórdão e, constituindo anomalia do processado, devem ser conhecidas no tribunal onde ocorreram. Consultado o processo que correu por apenso, com base na reclamação da autora ao abrigo do artigo 643.º, n.º 1, do CPC, constata-se a omissão da prática de um ato: a intervenção da Conferência, suscitada pelo ora reclamante, sobre a questão da admissibilidade do recurso. Tendo sido omitida a prática de um ato que devia ter ocorrido em momento anterior à prolação do acórdão, em princípio, estariamos perante uma nulidade processual nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, que, em abstrato, seria suscetível de influir no exame da causa. Todavia, considera-se que esta nulidade processual ficou suprida pelo acórdão de revista, proferido em 2 de dezembro de 2020, que julgou a questão colocada pelo réu na reclamação para a Conferência, quando, a fls. 26 e 27, justificou a ausência de dupla conformidade, nos seguintes termos, que agora se reproduzem: «As instâncias declararam a ação improcedente com um fundamento distinto. O Tribunal Judicial da Comarca ... considerou não verificados os requisitos da responsabilidade civil médica, por entender que a autora não provou a violação do dever de informação, nem o nexo de causalidade entre os procedimentos médicos utilizados pelo réu e os danos sofridos, enquanto factos constitutivos do seu direito à indemnização. O acórdão recorrido, no decurso das alterações de facto a que procedeu, entendeu que a autora não foi informada das caraterísticas do produto utilizado no tratamento, o C....., designadamente do caráter definitivo do tratamento e do facto de o produto infiltrado nas rugas se comportar como uma prótese. Contudo, considerou que o ónus da prova do consentimento informado se repartia entre o réu (médico) e a entre a autora (lesada), cabendo a esta a demonstração da previsibilidade dos riscos, do seu caráter significativo e grave. Assim, no sumário do acórdão recorrido, concluiu-se que «Enquanto facto impeditivo do direito da apelante compete ao réu/recorrido (médico), fazer a prova do consentimento informado, mas essa prova não abrange a demonstração de que os riscos que não foram informados eram imprevisíveis, irrazoáveis ou não significativos, cabendo antes ao lesado demonstrar que o risco de cuja verificação resultaram os danos era um dos riscos conhecidos, previsíveis, razoáveis e significativos que lhe deviam ter sido transmitidos». Ainda assim, para que não restem dúvidas de que os argumentos do réu foram considerados, decide-se, agora, responder expressamente à reclamação para a Conferência então apresentada, ao abrigo do artigo 643.º, n.º 4, do CPC, cujo teor se considera aqui integralmente reproduzido. O conteúdo do despacho singular impugnado foi o seguinte: «3. O artigo 671.º, n.º 3, do CPC, dispõe o seguinte: «Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte». Sendo assim, uma das situações em que deixa de se verificar o requisito negativo da dupla conformidade e em que o recurso de revista deve ser admitido, verifica-se quando o Tribunal da Relação assenta a sua decisão numa fundamentação essencialmente diferente. Ponderados os argumentos de ambas as partes e analisadas a sentença e o acórdão do Tribunal da Relação, resulta que tendo o acórdão recorrido modificado a matéria de facto provada e não provada em relação ao dever de informação do médico, cujo cumprimento o tribunal de 1.ª instância considerou provado e o Tribunal da Relação considerou não provado, tal permite, em abstrato, a discussão de percursos jurídicos novos, e a reanálise e reponderação dos mesmos institutos jurídicos a outra luz, tanto mais que o instituto da responsabilidade civil médica está em permanente evolução e discussão doutrinal. Para o que aqui releva, o tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos: Se é certo que ambas as instâncias decidiram com base na responsabilidade civil médica e na análise dos seus pressupostos, o acórdão recorrido, em virtude da alteração da matéria de facto a que procedeu, colocou de outra forma o requisito da ilicitude, com repercussão na repartição do ónus da prova entre autora e réu. O tribunal de 1.ª instância afastou liminarmente o requisito da ilicitude por não ter sido provada a violação do dever de informação pelo médico, independentemente da repartição das regras quanto ao ónus da prova; já o acórdão recorrido considerou que a autora não foi informada das caraterísticas do produto utilizado no tratamento, o C....., designadamente o caráter definitivo do tratamento e que o produto infiltrado nas rugas se comportava como uma prótese. Entendeu o acórdão recorrido que não se tinha provado o cumprimento do dever de informação quanto aos riscos resultantes da aplicação desse produto, fazendo incidir o debate na questão de saber como se reparte o ónus da prova entre a autora (lesada) e o réu (médico) quanto à previsibilidade desses riscos, ao seu caráter significativo e grave, e ao seu conhecimento médico à data das intervenções. Por outro lado, aceitou, diferentemente do tribunal de 1.ª instância, a existência de um nexo de causalidade entre a aplicação do C..... e os danos sofridos pela autora. Pelo que, tem de se considerar que a fundamentação aduzida pelo acórdão recorrido é essencialmente diferente da desenvolvida na sentença de 1.ª instância – o argumento decisivo para a improcedência da ação incidiu sobre uma questão distinta daquela que baseou a sentença de 1.ª instância e foi proferida também uma opinião distinta da desenvolvida pelo tribunal de 1.ª instância acerca do nexo de causalidade – o que justifica a abertura à recorrente do recurso de revista, com fundamento no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, segunda parte». Em síntese, no caso vertente, a alteração factual a que procedeu o Tribunal da Relação incidiu, não sobre uma questão lateral ou secundária na economia do processo, mas sobre uma questão decisiva para a indagação do cumprimento ou incumprimento do dever de informação do médico, questão de direito essencial para a análise dos pressupostos da responsabilidade civil, cujo tratamento tem evoluído significativamente no direito nacional e europeu no sentido de uma proteção crescente do lesado, sobretudo quanto à importância do consentimento informado.
Vejamos: O Tribunal da Relação deu como não provados os factos que a sentença de 1.ª instância considerou provados (factos n.º 55 e 59) e que diziam respeito aos esclarecimentos que o médico teria prestado à paciente, a questão central do processo, na medida em que o fundamento invocado pela recorrente, para fundamentar o seu direito à indemnização, foi a violação do dever de informação pelo médico. O acórdão do Tribunal da Relação fundamentou assim a modificação dos factos: “Serve isto para dizer que não tendo a prova produzida incidido sobre os esclarecimentos que terão sido prestados à autora previamente à realização das cirurgias que efectuou, não se alcança de que modo se pode dar como provado que todo esse processo cirúrgico foi precedido de esclarecimentos globais e individuais, porque ninguém se pronunciou, em concreto, sobre qualquer uma dessas intervenções, pelo menos no que diz respeito às informações que sobre elas terão sido prestadas. Todavia, se ao se referir ao processo cirúrgico que se iniciou subsequentemente à consulta de 26 de Julho de 1994 o tribunal recorrido inclui a infiltração do produto C....., de igual modo não se vislumbra que a prova que convocou para sustentar a afirmação de que foram prestados todos os esclarecimentos globais e individuais desse procedimento seja suficiente para o demonstrar”.
Afirmou o acórdão recorrido que, não havendo documento escrito a demonstrar o consentimento informado, a única prova válida para o efeito era o depoimento de parte da autora e do réu. Referindo-se às declarações de parte da autora e do réu, o acórdão da Relação concluiu o seguinte: “Naturalmente que tais declarações contrariam, de facto, os factos provados nos pontos 55. e 59., pois que a autora nega que lhe tenha sido dada qualquer explicação, informação ou esclarecimentos sobre o produto e sobre a maneira como este funcionava, tendo-lhe sido referido apenas que se tratava de um produto para encher as rugas e a boca, nunca lhe tendo sido referido que se tratava de um procedimento definitivo. (…) Sucede, porém, que neste caso não se pode acompanhar o tribunal recorrido quando, valendo-se sobremaneira das declarações de parte do réu AA, dá como provados os factos vertidos nos pontos 55. e 59. Na verdade, a assertividade que a senhora juíza a quo identificou em tais declarações não são extensíveis à concreta questão que está em apreciação nos pontos de facto impugnados, ou seja, o alcance da informação que foi prestada à autora sobre a infiltração do produto para enchimento de rugas profundas. (…) No que concerne à transmissão à paciente das características do produto C..... aplicado em Setembro de 1994 e do modo como funcionava e seus eventuais efeitos adversos, não se pode, em rigor, aceitar que o réu tenha logrado convencer que prestou todos os esclarecimentos acerca do procedimento, nomeadamente, que tenha sido conversado e discutido entre ele e a autora os riscos e benefícios decorrentes desse procedimento».
Apesar de o Tribunal da Relação ter confirmado a absolvição do réu, a modificação dos factos provados e não provados a que procedeu repercutiu-se, de forma inovatória, na fundamentação aduzida, tendo a Relação justificado de forma essencialmente diversa a decisão, suscitando questões novas e resolvendo de forma distinta as questões do ónus da prova do dever de informação e do nexo de causalidade. Enquanto a sentença de 1.ª instância aplicou ao caso as regras gerais da responsabilidade civil, onerando a paciente com a prova dos factos constitutivos do seu direito, o Tribunal da Relação, para além da alteração da matéria de facto em pontos essenciais, suscetíveis de se repercutirem na resolução da questão de direito, analisou os requisitos da responsabilidade civil a uma luz completamente distinta do tribunal de 1.ª instância, tendo em conta as especificidades da responsabilidade médica e recorrendo a uma motivação jurídica essencialmente distinta. Assim, tem de se considerar que, nos termos exigidos pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, estamos perante uma fundamentação essencialmente distinta, a que alude o artigo 671.º, n.º 3, do CPC, na medida em que as instâncias divergiram essencialmente no iter jurídico conducente à mesma decisão, relevando sobremaneira a análise da questão fulcral adotada pelas instâncias (09-07-2015 - Revista n.º 5838/11. .0TBMAI.P1.S1 - 7.ª Secção). No mesmo sentido, referindo-se à essencialidade da modificação dos factos operada pela Relação, apesar de a parte dispositiva das decisões das instâncias ser idêntica, vide o acórdão deste Supremo datado de 26-11-2015 - Revista n.º 6027/09.0TVLSB.L1.S1, que no seu sumário afirmou o seguinte: «I - A circunstância de ter havido dupla conforme no que respeita ao estrito segmento decisório, confirmando a Relação a sentença apelada, não inibe o acesso ao STJ quando tais decisões idênticas assentaram numa fundamentação essencialmente diferente, enquadrável no n.º 3 do art. 671.º NCPC (2013) – o que ocorre quando a decisão constante da sentença assentou em se não ter considerado provada determinada factualidade essencial, ao passo que – no acórdão proferido pela Relação – se alterou o julgamento da matéria de facto, considerando provado aquele facto essencial, baseando-se a improcedência da acção numa argumentação esgrimida no plano jurídico, por não preencherem os factos definitivamente provados a fattispecie normativa invocada pelo autor. (…)»
Pelo que, não se verificou no caso vertente dupla conformidade quanto aos fundamentos das decisões das instâncias, justificando-se a intervenção deste Supremo em sede de recurso de revista normal. Assim, confirma-se em Conferência o despacho da Relatora que admitiu o recurso de revista, ficando suprida a nulidade processual invocada, sem necessidade de anular todo o processado subsequente, de acordo com o princípio de que os efeitos da nulidade processual devem ser circunscritos ao indispensável, conforme salienta a doutrina (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª edição, 2018, p. 404), remetendo a lei esse juízo de anular ou não os atos subsequentes ao ato omitido para uma análise casuística do juiz (Abrantes Geraldes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, p.249). Por último, reafirma-se que não se verifica no Acórdão agora impugnado, proferido em 2 de dezembro de 2020, qualquer nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que este decidiu todas as questões suscitadas pela recorrente nas conclusões do recurso e respondeu expressamente à questão suscitada pelo reclamante em relação à admissibilidade do recurso de revista. Como é sabido, a mera ausência de resposta a todos os argumentos invocados pelo reclamante não constitui qualquer nulidade por omissão de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC. Tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência, que importa distinguir entre as questões postas na ação e os argumentos apresentados para sustentar a pretensão ou posição processual. Neste conspecto, a nulidade por "omissão de pronúncia" só existe se o juiz deixar de se pronunciar sobre as questões postas pelas partes e não se deixar de apreciar algum dos argumentos utilizados (cfr., por todos, Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 06-10-2002, proc. n.º 02S1599; Acórdão de 08-01-2015, proc. n.º 129/11.0TCGMR.G1.S1). No mesmo sentido, Albertos dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 143, afirmava que “Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão (…)”.
Em consequência, improcede a arguição de nulidades do acórdão.
3. Reforma do acórdão
3.1. O reclamante pede ainda a reforma do Acórdão com base no artigo 616.º, n. 2, al. a), do CPC, pugnando para que o Acórdão reclamado seja substituído por outro que o absolva do pedido, por entender que houve um erro manifesto na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos. Mas não tem razão.
Nas suas alegações, o reclamante incorre numa confusão entre requisitos de reforma do acórdão e o alegado erro de julgamento. O artigo 616.º do Código de Processo Civil permite que seja requerida a reforma da sentença quando “tenha ocorrido lapso manifesto na determinação da norma aplicável, na qualificação dos factos ou na omissão de considerar documento ou outro elemento meio de prova plena que só por si implicasse necessariamente decisão diversa” (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, p. 742). No mesmo sentido se tem orientado a jurisprudência, como é o caso, entre muitos outros, dos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 02-06-2020 (proc. n.º 2444/07.8TVLSB.L1.S1), e de 26-01-2021 (proc. n.º 8963/16.8T8ALM-B-L1.S1), que afirmaram que «A reforma do acórdão é uma faculdade excecional só admissível em hipóteses de lapso manifesto, ou seja, de falha ostensiva na valoração de um meio de prova plena ou do direito aplicável, como, por exemplo, quando se aplica legislação revogada. Não é, portanto, mais um grau de recurso, ao dispor da parte descontente para expressar a sua discordância com a solução jurídica que não lhe foi favorável». Também no Acórdão de 28 de janeiro de 2020 (Revista n.º 392/18.5T8STR-C.E1-A.S1), se estabeleceu que «A circunstância das partes não estarem de acordo com a decisão produzida, não é fundamento para sustentar a reclamação por nulidades e/ou reforma do acórdão, constituindo um incidente extravagante». Esta orientação jurisprudencial é já antiga, remontando ao antigo artigo 669.º do CPC, norma de conteúdo semelhante ao artigo 616.º do CPC, conforme se estipulou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 09-06-2005 (proc. n.º 05B1422), «A reforma da sentença (ou do acórdão) a que alude o nº 2 do artigo 669º do Código de Processo Civil não abrange qualquer erro de julgamento, mas apenas aquele que foi resultante de lapso do julgador na fixação dos factos ou na interpretação e aplicação da lei».
3.2. Ora, o requerimento apresentado pelo Réu não se fundamenta em nenhuma das referidas possibilidades de reforma do acórdão, nos termos do referido artigo 616º do Código de Processo Civil, antes correspondendo a uma nova alegação de recurso, sendo que não existe no ordenamento jurídico um quarto grau de jurisdição, nem tal seria comportável ou constitucionalmente exigível. Na sua reclamação, o reclamante volta a discutir os argumentos técnico-jurídicos subjacentes à questão de mérito decidida pelo acórdão reclamado – a extensão do dever de informação do médico e o ónus da prova do seu cumprimento, o nexo de causalidade entre o tratamento e o dano, a presunção de comportamento conforme à informação e a presunção de culpa ínsita no artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, bem como o montante da indemnização arbitrada – questões que não cabem no objeto de um pedido de reforma do acórdão, por não ter sido demonstrado qualquer erro na determinação da norma aplicável, lapso manifesto ou desconsideração de um documento dotado de força probatória plena, que implicasse solução diversa. O reclamante assume a sua opinião em relação aos pressupostos da responsabilidade civil médica, questão em relação à qual tem aumentado a litigiosidade entre médicos e pacientes outrora praticamente inexistente. Mas nada afirma que possa sustentar a existência de um lapso manifesto na determinação da norma aplicável ou na qualificação dos factos. Na verdade, o vício que o Réu imputa ao Acórdão reclamado é o de “erro de julgamento”, como decorre do teor do pedido de reforma e como refere expressamente a fls. 10 e fls. 31 da “alegação”, conforme se passa a ilustrar: Fls.10: “Existe, por isso, um manifesto e cabal erro de julgamento na apreciação e decisão do presente acórdão de Revista” (sublinhado nosso); Fls. 31: “Por conseguinte, na apreciação do mérito, não se pode deixar de concluir que, in casu, se está perante um erro de julgamento, decomposto em erro de qualificação e apreciação dos factos provados e na aplicação do direito, sendo que, em qualquer das referidas modalidades, reconduz-se sempre a violação da lei substantiva” (sublinhado nosso). Ora, é consensual, que, tendo a reforma da sentença como desiderato suprir os lapsos ou erros manifestos assinalados nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC, não se destina a corrigir eventuais erros de julgamento ou a servir de veículo para o reclamante exprimir a sua discordância com a decisão ou defender a sua posição técnico-jurídica em relação às questões de direito resolvidas pelo Acórdão objeto do pedido de reforma.
3.3 Ainda assim, porque o reclamante tenta reconduzir as questões suscitadas a um erro manifesto na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, sempre se dirá o seguinte: a) Dever de informação O Acórdão reclamado baseou-se apenas na violação do dever de informação pelo médico em relação às caraterísticas do produto, o caráter definitivo da aplicação e os seus riscos, não lhe tendo imputado, contrariamente ao que parece afirmar o reclamante, qualquer erro médico. Pelo contrário, o acórdão deste Supremo reconheceu, em conformidade com as instâncias, que não se provou qualquer erro técnico na infiltração do produto, que foi aplicado corretamente. Todavia, de acordo com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, basta a violação do dever de informação para fundamentar uma ação de responsabilidade civil, mesmo na ausência de qualquer erro médico nas intervenções realizadas. Conforme se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-10-2019, Revista n.º 3192/14.8TBBRG.G1.S1 - 1.ª Secção) “A responsabilidade civil emergente da realização de ato médico, ainda que se prove a inexistência de erro ou má prática médica, pode radicar-se na violação do dever de informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do ato médico” O acórdão do Tribunal da Relação, ao alterar a matéria de facto, veio permitir uma distinta avaliação da questão do cumprimento e extensão do dever de informação, com consequências para a solução do caso. O Supremo, no exercício da sua função soberana de julgar, aderiu à orientação doutrinal mais exigente com os deveres do médico e que sobre ele faz recair as consequências da falta ou da insuficiência de prova, ao abrigo do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que não se verifica qualquer erro manifesto de aplicação do direito, mas apenas a aplicação da doutrina mais moderna relativa à responsabilidade médica e adotada também noutros Acórdãos deste Supremo Tribunal (cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2015, proc. nº 1263/06.3TVPRT.P1.S1; de 16- 06-2015, proc. n.º 308/09.0TBCBR:c1.S1; de 22-03-2018, proc. n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1). De acordo com esta orientação, cada vez mais comum na jurisprudência nacional e europeia, é ao médico que cabe o ónus da prova do cumprimento do dever de informação, o qual deve ser mais extenso na cirurgia voluntária não curativa, em que se enquadram as cirurgias e tratamentos estéticos destes autos (cfr. André Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Dissertação de doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, dezembro de 2012, p. 183). Como se afirmou no acórdão do Supremo contra o qual se apresentou a presente reclamação: Esta tese [que faz recair sobre o médico o ónus da prova] é a que promove a ideia de igualdade de armas no processo e de igualdade na aplicação do direito, protegendo o lesado da incumbência, considerada diabólica pela literatura processualista, de provar um facto negativo (Cf. André Dias Pereira, “Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade”, disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/10577/1/Responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf)). Já para o médico, dado ter um consultório ou trabalhar numa instituição de saúde, é mais fácil organizar os serviços de forma a reunir os documentos necessários para demonstrar que obteve o consentimento informado, por exemplo, dispensar a informação por escrito ao paciente e dispor de um registo das informações clínica e de um bom preenchimento do dossier clínico (cf. André Dias Pereira, “Responsabilidade médica…”, ob. cit.). O alcance e extensão do dever de informação, bem como o seu cumprimento ou incumprimento, constituem as questões de direito centrais do presente processo e a apreciação delas está incluída nos poderes cognitivos do Supremo, não tendo o Supremo cometido qualquer erro manifesto na decisão de fazer recair sobre o médico as consequências da falta de prova do cumprimento do dever de informação, pois é ao médico que compete fazer a prova desse cumprimento, como decorre do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, por se tratar de um facto impeditivo do direito da autora. b) Relatório pericial Invoca, ainda, o reclamante que o relatório pericial junto aos autos comprova que o médico cumpriu o dever de informação e que o produto C.... tinha sido aprovado pela entidade competente, e que por isso se verifica no acórdão reclamado um erro ou lapso manifesto. Mais uma vez não tem razão. A asserção de que o produto tinha sido aprovado pela entidade competente não foi levada, pelas instâncias, à matéria de facto, pelo que não podia este Supremo tê-la em conta na sua decisão, que tem de se basear exclusivamente na aplicação do direito aos factos dados como provados e não provados. As conclusões dos relatórios periciais relevam apenas na medida em que deles se tenham retirado factos provados para a matéria de facto assente, não assumindo qualquer relevo a respeito da questão do consentimento, que foi tratada pelo acórdão recorrido de forma essencialmente diferente da que conheceu na sentença do tribunal de 1.ª instância, ou seja, à luz de factos distintos e de uma interpretação distinta das normas jurídicas. De resto, a afirmação de que o produto tinha sido aprovado, nunca teria por consequência necessária a demonstração do cumprimento do dever de informação pelo médico e a obtenção do consentimento informado. Também não provam o cumprimento do dever de informação os factos provados n.º 18 e 19, que o reclamante agora invoca para fundamentar a sua reclamação, segundo os quais à data da aplicação do produto não tinham ainda sido comprovadas as complicações decorrentes do mesmo, e que o C..... era vendido aos cirurgiões como inofensivo. Como se esclareceu no Acórdão reclamado esta circunstância não dispensava o médico de informar a paciente das caraterísticas do produto e da natureza definitiva da sua aplicação, o que não ficou demonstrado, como entendeu o acórdão do Tribunal da Relação na sua fundamentação da alteração à matéria de facto. Essa informação era essencial para a paciente decidir aceitar ou não os tratamentos e para que pudesse, caso os aceitasse, conformar toda a sua atuação posterior em relação aos tratamentos feitos em 2003. Não é possível, pois, deduzir do relatório pericial o cumprimento deste dever de informação, como pretende o reclamante. É que não compete aos peritos decidir se foi ou não cumprido o dever de informação do médico, mas exclusivamente aos tribunais, in casu, a este Supremo Tribunal, como tribunal de última instância situado no topo da hierarquia dos tribunais judiciais. Os tribunais, cuja função é dirimir conflitos de acordo com a lei e proteger os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (artigo 202.º, n.º 2, da CRP), não podem delegar a sua posição de órgãos de soberania em entidades administrativas. Faz sentido, neste contexto, citar o velho brocardo latino de que o juiz é o “Peritus Peritorum” (“o Perito dos peritos”). O relatório pericial não goza de força probatória plena nem tem o valor de prova vinculada que imponha ao tribunal uma determinada decisão. Trata-se de um elemento probatório de livre apreciação pelos tribunais, estando até vedado a este Supremo a sua análise e reponderação, pois o Supremo Tribunal só tem poder para aplicar o direito aos factos provados e não provados, e decidir de direito, dentro do contexto fáctico do caso tal como consta da matéria fixada pelas instâncias. Ademais, é o próprio tribunal recorrido que afirma que, quer o relatório do Instituto Nacional de Medicina Legal, quer o parecer resultante da consulta técnico-científica solicitada àquele Instituto nenhuma valia contém em si para identificar se foram, ou não, prestados esclarecimentos à paciente e com que amplitude. A avaliação dos factos provados e não provados para o efeito de subsunção dos mesmos às normas jurídicas aplicáveis é uma tarefa que cabe nas competências deste Supremo. Pode não se concordar com a decisão, e com os percursos argumentativos adotados, mas, ainda assim, não se verifica qualquer erro ou lapso manifesto na qualificação jurídica dos factos e na determinação da norma aplicável.
c) Nexo de causalidade Invoca ainda o reclamante que a questão do nexo de causalidade é uma questão de facto sobre a qual não podia o Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se. Ora, não é este o entendimento que tem sido adotado por este Supremo Tribunal de Justiça quanto à aplicação da teoria da causalidade adequada, conforme se ilustra no Acórdão de 26-11-2009 (Revista n.º 3178/03.8JVNF.P1.S1 - 2.ª Secção) que confirma o que tem sido a posição dominante deste Supremo Tribunal, segundo a qual «cabe nos poderes de cognição do STJ apreciar se a condição de facto, que ficou determinada, constitui ou não causa adequada do evento lesivo». (…) «O art. 563.° do CC consagrou a doutrina da causalidade adequada, nos termos da qual o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada quando, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo. Tal doutrina também não pressupõe exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o resultado e admite ainda a causalidade indirecta de tal sorte que basta que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano». Pelo que também nesta questão não houve qualquer erro manifesto na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos. Contesta também, nesta sede, a presunção de conformidade do comportamento do paciente com a informação que devia ter sido fornecida, mas não há que conhecer novamente desta questão por se tratar de uma questão de direito, sobejamente aplicada em casos de responsabilidade civil médica (por todos, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 08-09-2020, proc. n.º 148/14.4TVLSB.L1.S1), que não pode sequer ser abrangida por um pedido de reforma do acórdão, que, como vimos, não se destina a uma reexame das questões de direito tratadas no acórdão impugnado. d) Presunção de culpa (art. 799.º, n.º 2, do Código Civil) Considera o reclamante que o Supremo errou na interpretação e aplicação desta norma, defendendo, a este propósito, que a presunção de culpa do médico foi ilidida. Ora, para além de este juízo estar subtraído ao objeto da reforma do acórdão, sempre se dirá que ilidir uma presunção de culpa em matéria tão sensível como o incumprimento dos deveres médicos constitui questão de direito em relação à qual a jurisprudência e a doutrina têm sido progressivamente mais exigentes, dada a finalidade do instituto da responsabilidade civil ser a proteção do lesado, sobretudo, estando em causa intervenções não curativas como a cirurgia estética. Pelo que não houve qualquer erro manifesto na interpretação e aplicação do preceito. e) A redução da indemnização ao abrigo do artigo 494.º do Código Civil Defende também o reclamante que o Supremo errou na determinação da norma aplicável por não ter aplicado o artigo 494.º do Código Civil, para reduzir o montante da indemnização, atendendo às circunstâncias do caso e ao grau de culpa verificado. Ora, não houve aqui qualquer erro. Desde logo é a própria doutrina dominante que defende não ser o artigo 494.º do Código Civil aplicável à responsabilidade contratual (cfr. João de Matos Antunes Varela, Direito das Obrigações em geral, vol. I, Almedina, 2000, p. 913; Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2006, p. 544). Aliás, conforme esclarecido pelo Acórdão agora reclamado, a doutrina especializada em direito da Medicina e da Saúde entende que o médico responde pela totalidade dos danos, não beneficiando da aplicação do artigo 494.º do Código Civil, mesmo em caso de culpa leve (cfr. André Dias Pereira, “Breves notas sobre a responsabilidade médica em Portugal”, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Nov. 2007, Ano XVI, n.º 17, p. 14). Também a alegação do reclamante de que a indemnização arbitrada para a compensação de danos não patrimoniais seria excessiva em comparação com casos congéneres na jurisprudência deste Supremo, violando o princípio da igualdade, para além de uma questão completamente fora do objeto de um pedido de reforma de um acórdão, não tem qualquer pertinência, pois o Acórdão fundamentou o cálculo da indemnização na jurisprudência do Supremo e na lei (artigo 496.º do Código Civil), que remete para juízos casuísticos de equidade.
4. Por último, o reclamante cita excertos da sentença de 1.ª instância e do acórdão recorrido, para fundamentar a sua posição, defendendo que este Supremo manifesta uma “oposição revogatória” ao decidido pelos tribunais inferiores, olvidando que existe um sistema de recursos previsto na lei que dá a última palavra ao Supremo Tribunal de Justiça em questões de direito. É na procura da justiça material e da melhor interpretação da lei que se justifica o sistema de recursos previsto no ordenamento jurídico, fazendo parte do funcionamento do sistema a possibilidade de os tribunais superiores decidirem revogar as decisões das instâncias. Na decisão de revogar o acórdão recorrido este Supremo exerceu, com total independência das decisões das instâncias, que não o vinculam – a não ser nos factos provados e não provados – os poderes que lhe estão cometidos pela lei de subsumir os factos nas normas jurídicas aplicáveis. Conforme se afirma, no artigo 682.º, n.º 1, do CPC, «Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado».
5. Resulta do exposto que o acórdão reclamado não se baseou em qualquer lapso manifesto sobre o valor pleno de um meio de prova ou sobre a determinação da norma aplicável ou qualificação jurídica dos factos. O que o reclamante pretende é exprimir a sua discordância com o Acórdão do Supremo Tribunal e obter a substituição deste Acórdão por outro que acolha a sua pretensão, nos termos em que tal sucede num recurso. Ora, a pretensão do reclamante não pode ter sucesso porque a lei não permite que, depois de proferido o acórdão de revista, as partes insatisfeitas disponham de mais um grau de recurso para voltar a discutir as questões de direito já debatidas e decididas no Acórdão reclamado.
6. É, assim, manifestamente infundada a pretensão do reclamante em ver reformado o Acórdão.
7. Solicita a autora que seja aplicada ao reclamante a norma do artigo 670.º do CPC, destinada a evitar demoras abusivas ou expedientes dilatórios para obstar ao trânsito em julgado. Contudo, entende-se que, tendo o reclamante usado um expediente previsto na lei e comum na prática judiciária, ainda que manifestamente sem fundamento, presume-se a sua boa fé processual, não havendo motivo, por ora, para recorrer à aplicação deste preceito.
8. Em conclusão, indefere-se a reclamação, considerando-se improcedentes, quer a arguição de nulidades do acórdão, quer o pedido de reforma.
Sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC: I – A omissão de pronúncia a que se refere a al. d) do nº 1 do artigo 615.º do CPC traduz-se na circunstância de o juiz não se ter pronunciado sobre questões que estava vinculado a apreciar, nos termos do estatuído na 1ª parte do nº 2 do artigo 608.º, do CPC. Trata-se de um vício de conteúdo, que não se confunde com a omissão da prática de ato processual que devesse ter sido praticado. Como é sabido, enquanto que as nulidades da sentença (a que se reporta o artigo 615.º do CPC) derivam de atos ou omissões praticados pelo juiz no acórdão (ou na sentença) e são arguidas e conhecidas pelo tribunal ad quem, as nulidades processuais derivam de omissões ou atos praticados antes da prolação do acórdão (ou da sentença) e, constituindo anomalia do processado, devem ser conhecidas no tribunal onde ocorreram. II - A nulidade processual pode ser suprida pela prática do ato omitido, sem necessidade de anular todo o processado subsequente, de acordo com o princípio de que os efeitos da nulidade processual devem ser circunscritos ao indispensável, conforme salienta a doutrina (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª edição, 2018, p. 404), remetendo a lei esse juízo de anular ou não os atos subsequentes ao ato omitido para uma análise casuística do juiz (Abrantes Geraldes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, p.249). III – Tendo o Tribunal da Relação procedido a uma alteração da matéria de facto que incidiu, não sobre uma questão lateral ou secundária na economia do processo, mas sobre a questão central e decisiva para aferir da responsabilidade civil médica e que implicou uma modificação essencial da motivação jurídica, conclui-se que o Tribunal da Relação, apesar de ter confirmado a sentença de 1.ª instância, adotou uma “fundamentação essencialmente diferente” da perfilhada pelo tribunal de 1.ª instância, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC. IV - É consensual que, tendo a reforma da sentença como desiderato suprir os lapsos ou erros manifestos assinalados nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC, não se destina a corrigir eventuais erros de julgamento ou a servir de veículo para o reclamante exprimir a sua discordância com a decisão ou defender a sua posição técnico-jurídica em relação às questões de direito resolvidas pelo Acórdão objeto do pedido de reforma.
III – Decisão Pelo exposto, decide-se, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça indeferir a reclamação, confirmando a admissibilidade do recurso de revista e mantendo-se o teor do Acórdão de 2 de dezembro de 2020, nos seus exatos termos.
Custas pelo reclamante.
Supremo Tribunal de Justiça, 9 de fevereiro de 2021
Maria Clara Sottomayor - Relatora) Alexandre Reis – 1.º Adjunto) Pedro de Lima Gonçalves – 2.º Adjunto)
Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).
Maria Clara Sottomayor – Relatora |