Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | PEREIRA MADEIRA | ||
| Descritores: | EXTINÇÃO MORTE DO AGENTE EXTINÇÃO DAS PESSOAS COLECTIVAS DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA | ||
| Nº do Documento: | SJ200610120029305 | ||
| Data do Acordão: | 10/12/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário : | I - Pese embora a declaração de falência, resta um espesso «substrato» da sociedade falida, circunstância que, à saciedade, impede que se defenda que da pessoa jurídica, nada mais resta, tal como de pode afirmar da pessoa do ser humano após a morte. II - De resto, por força do disposto no art. 141°, nº 1, e), art. 146°, nº 2 e art. 160°, nº 2, todos do CSC, se é certo que as sociedades comerciais se dissolvem pela declaração de falência, o certo é que, ao invés das pessoas singulares cuja personalidade cessa com a morte – art.º 68.º, n.º 1, do Código Civil – aquelas mantêm a personalidade jurídica na fase da sua liquidação, considerando-se apenas extintas pelo encerramento dessa liquidação. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. AA, BB e “... – Design Computorizado, Lda.” – pessoa colectiva nº ..., todos devidamente identificados, foram acusados pelo Ministério Público e subsequentemente pronunciados: a) Os arguidos BB e AA, como co-autores, em concurso real, de 34 crimes de abuso de abuso de confiança fiscal, sendo 11 crimes previstos e puníveis, pelos artigos 24º nº1 do RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras) – aprovado pelo Dec.Lei nº 20-A/90, de 15.1, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24.11 e Decreto-Lei nº 140/95, de 14.6, e actualmente pelos artigos 105º, nº1 e 6º, do RGIT; 8 crimes previstos e punidos pelo art.º 24º nº1 e 4 do mesmo RJIFNA, ora p. e p. pelo art.º 105º nºs 1 e 6 do RGIT; e 15 crimes, p. e p. pelo art.º 105º, nº1 e 6 do RGIT. b) A Sociedade “... – Design Computorizado, Lda.” nos termos do art.º 7º de cada um dos referidos diplomas (D.L. nº 20-A/90 e RGIT). Efectuado o julgamento, veio a ser proferida sentença em que, além do mais, foi decidido: A) – Como «questão prévia»· «Em relação á arguida “..., Lda.”, resulta dos autos que a mesma foi já declarada falida, por sentença proferida nos autos nº .../2002, do 2º Juízo do Tribunal de Comércio de V.N. Gaia, datada de 23.9.03, e transitada em julgado em 24.11.03. Tal decisão acarreta a dissolução da sociedade, nos termos do art. 141º, nº 1, al. e) do C. Soc. Com., ficando a mesma constituída em património autónomo tendente à satisfação das suas responsabilidades financeiras. Não obstante o respectivo património ainda não estar totalmente liquidado (encontrando-se nos dizeres do Sr. Liquidatário judicial em fase de liquidação final), razão pela qual a empresa mantém a sua personalidade jurídica, tem esta efeitos limitados, tal como limitada é a sua capacidade jurídica, sendo agora representada pelo liquidatário judicial que lhe foi nomeado. Ora tal como acontece com a morte de um indivíduo, que acarreta a extinção da respectiva responsabilidade criminal nos termos do art. 127º do C.P., entendemos que, por analogia, a declaração de falência acarreta a extinção da responsabilidade criminal da pessoa colectiva arguida da prática de um crime. A adequação desta conclusão resulta ainda mais evidente ao verificar-se que a eventual condenação da arguida pelo crime imputado não teria qualquer consequência ao nível da sua actividade – cessada por efeito da declaração de falência – e que ao nível patrimonial os resultados da sua condenação em multa, originando uma responsabilidade económica ulterior à declaração de falência, seriam inconsequentes. Assim, em razão da declaração da respectiva falência, julga-se extinta a responsabilidade criminal da arguida “..., Lda.”, determinando-se o arquivamento dos autos em relação à mesma.» B) Quanto ao mais: Foi decidido julgar a acusação deduzida totalmente procedente, em razão do que foram condenados os demais arguidos, como autores materiais de um crime de abuso de confiança na forma continuada contra a Segurança Social, p. e p. pelos art.s. 7º e 107º, nº 1 do R.G.I.T, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5/6/2001, com referência ao art. 105º, nº 1 do mesmo diploma: 1- O arguido AA, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de € 20, o que perfaz a pena de multa única de € 2.000; 2- O arguido BB, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de € 20, o que perfaz a pena de multa única de € 2.000. Discordando da decisão da falada questão prévia, dela interpôs recurso o Ministério Público, assim delimitando conclusivamente o objecto do seu recurso: «1° A sociedade ..., Lda. foi acusada pelo prática de 34 crimes de abuso de confiança fiscal, sendo 11 deles p. e p. pelos art.ºs 24°, n.º 1, do DGIFNA, aprovado pelo DL nº 20 – A/90, de 15.01, na redacção que lhe foi dada pelo DL n°394/93, de 24.11 e DL n°140/95, de 14.06, actualmente previsto pelos art. 105° nº 1 e 6 do RGIT, 8 deles p. e p. pelo art.º 24° nº 1 e 4 do RJIFNA, actualmente pelo art.º 105° nº 1 e 6 do RGIT e os outros 15 p. e p. pelo art.º 105° nº 1 e 6 do RGIT. 2° Os factos em apreço remontam ao período compreendido entre Setembro de 1999 a Dezembro de 2002 e reportam-se, em síntese, à não entrega aos Cofres do Estado de impostos sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) relativos a rendimentos da categoria A, tendo procedido às respectivas retenções, conforme consta dos recibos de salários dos trabalhadores e à não entrega dos montantes de IVA que liquidou e declarou no referido período de tempo, num total de €84.651,76. 3° Por sentença proferida no processo nº .../2002, do 2° Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, transitada em julgado em 24.11.2003, a sociedade arguida foi declarada falida. 4° Nestes autos foi declarada extinta a responsabilidade criminal da sociedade ..., Lda. com o fundamento de que a mesma sociedade fora declarada falida, interpretando-se, deste modo, que a falência acarreta a extinção da responsabilidade criminal da sociedade tal como acontece com a morte de um indivíduo, por aplicação analógica do disposto no art. 127° do Cód. Penal. 5° Salvo melhor entendimento, a interpretação conjugada das normas previstas no Cód. das Sociedades Comerciais, no CPEREF e actual CIRE, conduz a uma conclusão diversa. 6° Com efeito, por força do disposto no art. 141°, nº 1, e), art. 146°, nº 2 e art. 160°, nº 2, todos do CSC, temos que as sociedades comerciais se dissolvem pela declaração de falência, mantendo a personalidade jurídica na fase da sua liquidação, considerando-se apenas extintas pelo encerramento dessa liquidação. 7° Porém, de acordo com o disposto no art. 231°, 237°, nº 2 e art. 238°, nº 1, a) do CPEREF, o acordo extraordinário entre o devedor (sociedade falida) e a maioria dos credores, homologado pelo juiz no processo de falência, faz com que a sociedade previamente declarada falida por sentença transitada em julgado, recupere a disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios. 8° A homologação deste acordo, depende da apreciação que o juiz deve fazer quanto à lisura e diligência da actuação do falido, e tratando-se de pessoa colectiva ou de sociedade, esta apreciação respeita à sua administração. 9.º Assim, não se compreenderia que a sociedade declarada falida viesse a conseguir a homologação do referido acordo, ou a reabilitação, passados 5 anos, quando na sua actividade anterior violou interesses penalmente protegidos, desviando quantias descontadas nos salários dos trabalhadores, que devia entrar nos cofres do Estado. 10° Na mesma linha o GIRE aprovado pelo DL no 53/2004, em vigor desde 18/09/2004, continua a prever a possibilidade de a sociedade mesmo após ter sido declarada falida possa retomar a sua actividade comercial: “Baseando-se o encerramento do processo na homologação de um plano de insolvência que preveja a continuidade da sociedade comercial, esta retoma a sua actividade independentemente de deliberação de sócios”; Os sócios podem deliberar a retoma da actividade se o encerramento se fundar na alínea c) do nº 1 do art. 230°”, conforme dispõe, respectivamente o nº 1 e nº 2 do art. 234° do citado Código. Ou seja, de acordo com o artigo 230°, no 1, c) do CIRE” Prosseguindo o processo após a declaração de falência, o juiz declara o seu encerramento a pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento” e, após o encerramento do processo, o devedor recupera o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, de acordo com o disposto no art. 233°, nº 1, a) do citado diploma legal. 11° Estas previsões legais afastam, desde logo, a conclusão, que a mera sentença de declaração de falência se equipare à morte do agente, para efeitos da aplicação do disposto no art. 127° do Cód. Penal. 12° Concluiu-se, assim, que a sociedade arguida, falida por sentença transitada em julgado, embora dissolvida, mantém a sua personalidade jurídica, e a possibilidade de ver extinto o processo de falência ou de conseguir a reabilitação da sociedade, mediante ponderação judicial, que pode e deve tomar em linha de conta a eventual condenação nos crimes de que está acusada. 13° A sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos art.s 127° do Cód. Penal e art.s. 141°, nº 1, e), art. 146°, n°2 do CSC. 14° Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão, na parte em que, julgou extinto o procedimento criminal contra a arguida ..., Lda. Termos que se deverá manter a decisão recorrida assim se fazendo Justiça!» Respondeu a recorrida em defesa do julgado. Subidos os autos foi promovida a sua remessa para julgamento. 2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir. A questão posta é meramente de direito e para sua decisão bastam os factos acima descritos, sem necessidade de entrar em linha de conta com os demais que basearam a decisão de mérito. Trata-se apenas de ajuizar da bondade do decidido pelo tribunal recorrido em sede de questão prévia quanto à extinção do procedimento criminal contra a sociedade ..., L.da, em consequência de a mesma haver sido, entretanto, declarada falida, circunstância que o tribunal a quo sem grandes preocupações de fundamentação, equiparou à morte das pessoas singulares para o efeito, invocando para tanto o artigo 127.º do Código Penal. Tarefa, que, importa adiantar, se encontra altamente facilitada ante o que o Pleno deste Supremo Tribunal, em questão similar, decidiu, como fundamento do acórdão uniformizador n.º 5/2004, de 2/6, publicado no DR I-A de 21/6, relatado com mestria pelo Conselheiro Henriques Gaspar também com assinatura do ora relator como adjunto. Aí se discorreu com efeito que: « ( …) Nos termos do artigo 127.º do Código Penal, a responsabilidade criminal extingue-se por morte, amnistia, perdão genérico e indulto, com os efeitos determinados relativamente a cada categoria nos n.ºs 1 a 4 do artigo 128.º, que são, assim, por força do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, as normas aplicáveis à extinção da responsabilidade por contra-ordenações. A primeira causa de extinção da responsabilidade é a morte do agente, que extingue tanto o procedimento como a pena (coima) ou a medida de segurança (ou sanção acessória); a morte, como causa de extinção da coima e das sanções acessórias, está expressamente referida no artigo 90.º do regime jurídico de mera ordenação social. Estabelece-se, assim, nos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal (e também no artigo 90.º do regime jurídico de mera ordenação social) a concretização do princípio da individualidade e da intransmissibilidade das penas, inscrito como princípio fundamental no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição ("a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão"), vindo já do Código Penal de 1886 (artigo 125.º, n.º 1) e igualmente com assento na Constituição de 1933 (artigo 12.º, n.º 8). Enquanto causa de extinção da responsabilidade (procedimento, pena e coima), a morte a que a lei se refere significa o fim da vida física de uma pessoa; é o acontecimento, físico e da natureza, que faz terminar a vida e que constitui um momento inelutável da existência de cada indivíduo inerente à própria natureza do género humano. A morte que faz cessar a personalidade (artigo 68.º, n.º 1, do Código Civil: "a personalidade cessa com a morte") e que constitui causa de extinção da responsabilidade criminal (e por contra-ordenação) é um acontecimento, o momento e o culminar de um processo que só tem sentido, no plano jurídico e no da natureza quando se refira a uma pessoa física; a noção de morte, juridicamente relevante, assenta numa pré-compreensão biológica e antropológica. E assim é considerada na unidade do sistema, desde logo como momento determinante da sucessão mortis causa, própria dos indivíduos. E é assim também porque a responsabilidade criminal só tinha sentido em relação aos indivíduos, e foi em relação às pessoas singulares que se construiu o princípio da individualidade da responsabilidade criminal e da intransmissibilidade das penas. […] No entanto, o Código Penal de 1982 – instrumento de codificação que acolheu as modernas construções dogmáticas, especialmente relativas aos grandes princípios e aos institutos da parte geral – introduziu uma radical alteração no que respeita à posição problemática sobre a responsabilidade penal das pessoas colectivas (contemporânea da previsão da responsabilidade por contra-ordenações), ultrapassando o princípio (ou o dogma) com assento no Código Penal de 1886 de que só a pessoa física, individualmente considerada, podia ser agente de infracções criminais. O artigo 11.º do Código Penal de 1982, com efeito, dispõe, no n.º 2, sobre o "carácter pessoal da responsabilidade", que, "salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal". Afirma-se, deste modo, a regra (não o princípio) da individualidade da responsabilidade criminal, mas admitem-se excepções, que têm de resultar da lei e estão pensadas precisamente para a situação específica das pessoas colectivas. O princípio da individualidade da responsabilidade criminal, tomado praticamente em dogma na transição do século XVIII para o século XIX – à luz, sobretudo, das chamadas "teorias da ficção" sobre a essência das pessoas morais –, passou a ser discutido a partir do Congresso Internacional de Direito Penal de Bucareste (1929), em nome da convicção de que as exigências programáticas da política criminal devem passar à frente dos preconceitos filosóficos, e se, em sede político-criminal, se concluir pela alta conveniência, mesmo imperiosa necessidade, de responsabilização das pessoas colectivas em direito penal secundário, não haverá então "razão dogmática" de princípio a impedir que sejam consideradas agentes possíveis dos tipos de ilícito respectivos (cf. Figueiredo Dias, "Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal económico e social português", in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 116.º (1983-1984), pp. 263 e segs., e ano 117.º (1984-1985), pp. 7 e segs., e também na colectânea Direito Penal Económico e Europeu - Textos Doutrinários, vol. I, Problemas Gerais, Coimbra, 1998, pp. 35 e segs., designadamente as pp. 67 e 68). Na verdade, refere Figueiredo Dias (ibidem) que, "se, em sede político-criminal, se conclui pela alta conveniência ou mesmo imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito penal secundário, não vejo então razão dogmática de princípio a impedir que elas se considerem agentes possíveis dos tipos de ilícito respectivos. A tese contrária só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do conceito de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo tipo de ilícito exigências normativas que o conformem como uma certa unidade de sentido social. E tão-pouco me parece impensável ver nas pessoas colectivas destinatárias possíveis do juízo de censura em que a culpa se traduz. Certo que, na acção como na culpa, se tem em vista um 'ser livre', como centro ético-social de imputação jurídico-penal, e aquele é o do homem individual. Mas não deve esquecer-se que as organizações humano-sociais são, tanto como o próprio homem individual, 'obras da liberdade' ou 'realizações do ser livre'; pelo que parece aceitável que em certos domínios especiais e bem delimitados – de acordo com o que poderá chamar-se, seguindo Max Müller, o princípio da identidade da liberdade – ao homem individual possam substituir-se, como centros ético-sociais de imputação jurídico-penal, as suas obras ou realizações colectivas e, assim, as pessoas colectivas, associações, agrupamentos ou corporações em que o ser livre se exprime. Que se torna necessário usar aqui um pensamento analógico, relativamente aos princípios do direito penal clássico – onde a máxima da responsabilidade individual deve continuar a valer sem limitações –, é evidente. Mas talvez agora já seja claro o erro que cometeria quem confundisse um tal pensamento analógico com uma utilização de 'ficções' que aqui não está em causa". Aberto, do ponto de visa dogmático, o caminho para admitir uma responsabilidade das pessoas colectivas em direito penal secundário, o artigo 11.º, n.º 2, do Código Penal seguiu-o quando estabelece a possibilidade de a lei expressamente admitir a responsabilização para além das pessoas singulares; a concretização mais importante da admissibilidade da responsabilidade criminal das pessoas colectivas ("a importante novidade", na assunção do preâmbulo) ocorreu logo com o Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que definiu algumas infracções no domínio económico susceptíveis de ter como agentes pessoas colectivas. […] O quid agregador que dá sentido e consistência material à assimilação das construções do espírito e realizações colectivas (pessoas colectivas, agrupamentos e sociedades) do homem indivíduo, como centros ético-sociais de imputação jurídico-penal, está, assim, em um pensamento analógico relativamente aos princípios do direito penal clássico, reforçado porque também no direito das contra-ordenações se suscitam problemas análogos aos do direito penal, aceitando-se neste campo dogmático, sem discussão, a responsabilidade das pessoas colectivas. O pensamento analógico como agregador, cimento de assimilação e factor de recompreensão das categorias dogmáticas há-de ter como referentes os critérios materiais da analogia como método de análise e tópicos de argumentação. A convocação da analogia é característica de todos os tipos de pensamento, e com particular relevo no pensamento jurídico. Foi no quadro da compreensão do direito como sistema racional que surgiu a fórmula analogia juris para enunciar explicitamente a racionalidade sistemática do direito ou da sua normatividade, embora como prática metódica antecedesse a palavra e a designação, desde o casuísmo decisório romano dos exempla à prática jurídico-decisória da common law. Analogia é "proporção entre relações", a "similitude de relações", argumento retórico que conexiona o particular ao particular mediante a comparação, invocando a correspondência ou semelhança ("analogia de atribuição"); o étimo ana-logos pensa a assimilação e a correspondência do distante ou diferente – "integração ou assimilação de qualidades diferentes numa unitária racionalidade". Trata-se de uma "específica integração inteligível de entidades diversas" em que se verifiquem três características fundamentais: as entidades diversas não vêem reduzida pela analogia a sua diversidade, e subsistem não obstante a sua diferença; a inteligível integração deverá ser uma conclusão niveladora em termos de 'same level reasoning'; e exige-se um "fundamento específico de integração" a justificar a racionalidade da associação na diferenciação (cf. A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica - Problemas Fundamentais, colecção "Studia Iuridica", pp. 241 e segs.). No critério específico do juízo analógico, os casos são análogos quando os sentidos concretos puderem fundar-se numa conexão justificada pela intenção fundamental que os constitui; quando as intenções constitutivas forem, no fundo, as mesmas ou afins, e a solução jurídica de um é normativo-juridicamente adequada também para o outro no sentido de satisfazer as expectativas normativo-jurídicas da sua solução; solução pré-compreendida ou solução da hipótese da norma em referência pragmática à situação problemática (cf., idem, ibidem, pp. 253, 254 e 261). […] A aceitação dogmática da responsabilidade criminal (não excepcional, mas específica nos casos em que a lei o determinar) e da responsabilidade por contra-ordenações (geral) das pessoas colectivas – e mesmo de entes de facto na responsabilidade por contra-ordenações – introduz, necessariamente, uma novidade na leitura e na apreensão das categorias, dir-se-ia tradicionais, próprias do regime material do direito sancionatório matriz, pensadas eminente ou exclusivamente para a realidade antropológica que é o género humano, e não para criações do espírito, funcionalistas e instrumentais, como é a personalidade jurídica das pessoas colectivas (a personalidade colectiva ou, em expressão conceptualmente marcada, personalidade moral). A (re) apreensão do sentido e a passagem (ou mesmo a validade da passagem) da substância do espaço natural das categorias normativas (material e física e próprias do indivíduo) para os modelos de criação jurídica supõe, pois, que possam determinar-se os fundamentos das (novas) realidades (que são um real construído), e a medida em que tais fundamentos convocam a aplicação das categorias que, por princípio, lhe não são destinadas. Neste aspecto, como se salientou, a "morte", como categoria da natureza com relevância normativo-jurídica, é co-natural ao homem; as pessoas colectivas, como tal, não estão tocadas pelo momento da "morte", que faz cessar a personalidade da pessoa singular (artigo 68.º, n.º 1, do Código Civil); as pessoas colectivas, neste sentido, não "morrem", embora, como entidades com existência determinada por actos de vontade de criação e de extinção, possam extinguir-se, deixando, então, de ser construções instrumentais do homem para agirem com centros autónomos de imputação de direitos e deveres. Na concretização dos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal, o que está traduzido não é mais do que a insusceptibilidade de transmissão da responsabilidade criminal (e por contra-ordenações), que constitui princípio constitucional: a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão. A intransmissibilidade das penas, como princípio constitucional inscrito no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, significa que a responsabilidade se extingue com a morte do agente e não se transmite para familiares, parentes ou terceiros (sucessão), e que não há possibilidade de sub-rogação no cumprimento das penas (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., pp. 197 e 198). A morte, que faz cessar a personalidade da pessoa singular, faz também, natural e necessariamente, extinguir a responsabilidade criminal e por contra-ordenações, porque esta é inerente à pessoa e à sua capacidade de acção, de vontade e de culpa e não pode transmitir-se para além da vida, como se transmitem para os sucessores responsabilidades de outra natureza que integrem o complexo dos direitos e deveres jurídicos de uma pessoa. A responsabilidade criminal e por contra-ordenações acompanha, assim, a pessoa e não lhe sobrevive, porque é indissociável de cada pessoa na sua capacidade e personalidade como indivíduo. Na inseparabilidade de uma pessoa e da sua responsabilidade por um crime ou contra-ordenação, esta onera-a e acompanha-a, mas não permanece para além da pessoa. A assimilação, a extensão ou a equiparação da noção de "morte", exclusiva, na natureza e na configuração directamente normativo-jurídica, das pessoas singulares, às formas de extinção das pessoas colectivas, para os efeitos de determinar a aplicabilidade (ou as dimensões relevantes de aplicabilidade) dos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal e 90.º do RGDMOS, só poderá, pois, ter lugar se e enquanto puder compreender-se e ser pensada nos critérios e instrumentos metodológicos do pensamento analógico. Há, por isso, que apelar à "similitude de relações" e à comparação, invocando a correspondência ou semelhança, e à assimilação de qualidades diferentes numa mesma racionalidade, que possa justificar, no plano normativo, a razão de associação na diferenciação – critérios metodológicos do same level reasoning próprios do pensamento analógico, que, como se salientou, constitui a fundamentação dogmática essencial da responsabilidade criminal das pessoas colectivas e da responsabilidade por contra-ordenações no que seja comparada ou regulada pelos princípios e disposições próprios do direito penal. A morte da pessoa significa, na natureza das coisas, que nada de si permanece no espaço físico e de relação para além do momento da morte; a pessoa cessa a sua existência, sem que nada de si se separe e permaneça. É que só os seres humanos percebem que são seres para a morte e que se movem nesse horizonte último que a morte representa, nas concepções religiosas e culturais, como rito de passagem – a passagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos (cf. José de Faria Costa, "O fim da vida e o direito penal, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, pp. 759 e segs., designadamente a p. 766). A morte, relevante no sentido normativo e especificamente no campo penal, não é, como se salientou, pensável senão em relação aos seres humanos. A extinção de uma pessoa colectiva, diversamente, por ser uma criação instrumental do direito, pode não determinar, por si mesma, que nada de si permaneça, continuando alguma substância afecta ao desempenho, ainda, sob uma outra perspectiva jurídico-funcional, das finalidades da pessoa colectiva que foram a sua razão de ser. A pessoa colectiva ou a pessoa jurídica aparece no mundo da normatividade como "unidade organizatória" que é centro autónomo de imputação funcionalmente construído. "A realidade material de interesses que [a] 'unidade organizatória' consubstancia, ao revestir a forma jurídica de pessoa colectiva, densifica-se ainda mais e surge-nos com sentido e vocação para uma função apelativa, conquanto instrumental. E instrumental porque insusceptível [...] de uma recondução a uma dimensão onto-antropológica, que acompanha, [...], um qualquer agir comunicacional de uma pessoa concreta. A possibilidade de se imputarem factos, juridicamente relevantes, à pessoa colectiva reduz a complexidade [...] e aumenta [...] o grau de eficiência e fluidez sistemática de todo o ordenamento jurídico." [Cf. José de Faria Costa, "A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2.º (1999), pp. 537-559.] Por isso, o que releva essencialmente é a existência de um centro de imputação funcionalmente construído, que pode não desaparecer como realidade material de interesses ao lado da respectiva função instrumental e é, por isso, independente desta no caso de continuidade organizatória e de prossecução das respectivas finalidades. Na ponderação metodológica e intervenção dos critérios da analogia, a similitude de relações e a comparação numa mesma racionalidade entre a morte da pessoa singular e as formas de extinção das pessoas colectivas só podem ser encontradas se e quando a existência, como construção jurídica instrumental, de uma pessoa colectiva cessar, não em perspectiva funcionalista estritamente jurídica mas cessação e desaparecimento de todos os elementos integrantes da pessoa colectiva, não apenas o suporte jurídico mas também o corpus e o respectivo substrato. Dependerá da natureza das pessoas colectivas que estejam em causa, da respectiva finalidade e dos modos da sua realização. Com efeito, só na medida em que possa ser encontrada na diferença entre pessoas singulares e colectivas uma mesma racionalidade, poderá ser equiparada a categoria do artigo 128.º, n.º 1, do Código Penal à extinção de uma pessoa colectiva.» Pois bem. Não é preciso dizer mais, e com dificuldade se poderia dizer melhor na exposição desta doutrina que, naturalmente, se continua a seguir por se manter válida e actual. Importa reter, em suma, que «a assimilação, a extensão ou a equiparação da noção de "morte", exclusiva, na natureza e na configuração directamente normativo-jurídica, das pessoas singulares, às formas de extinção das pessoas colectivas, para os efeitos de determinar a aplicabilidade (ou as dimensões relevantes de aplicabilidade) dos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal e 90.º do RGDMOS, só poderá, pois, ter lugar se e enquanto puder compreender-se e ser pensada nos critérios e instrumentos metodológicos do pensamento analógico. Há, por isso, que apelar à "similitude de relações" e à comparação, invocando a correspondência ou semelhança, e à assimilação de qualidades diferentes numa mesma racionalidade, que possa justificar, no plano normativo, a razão de associação na diferenciação – critérios metodológicos do same level reasoning próprios do pensamento analógico, que, como se salientou, constitui a fundamentação dogmática essencial da responsabilidade criminal das pessoas colectivas e da responsabilidade por contra-ordenações no que seja comparada ou regulada pelos princípios e disposições próprios do direito penal.» No caso, essa «similitude de relações», não existe. Com efeito, pese embora a declaração de falência, resta um espesso «substrato» da sociedade em causa, circunstância que, à saciedade, impede que se defenda que da pessoa jurídica, nada mais resta, tal como de pode afirmar da pessoa do ser humano após a morte. De resto, como bem salienta o recorrente, por força do disposto no art. 141°, nº 1, e), art. 146°, nº 2 e art. 160°, nº 2, todos do CSC, se é certo que as sociedades comerciais se dissolvem pela declaração de falência, o certo é que, ao invés das pessoas singulares cuja personalidade cessa com a morte – art.º 68.º, n.º 1, do Código Civil – aquelas mantêm a personalidade jurídica na fase da sua liquidação, considerando-se apenas extintas pelo encerramento dessa liquidação. E, como aponta o mesmo recorrente podem, nesse interim, ser objecto de vicissitudes várias, entre elas o reatamento da actividade nas condições previstas na lei. Nem se diga, como o faz a recorrida, que decisão contrária à impugnada não tem qualquer efeito. As penas previstas para as sociedades comerciais são, naturalmente, de natureza não pessoal, em geral, sanções pecuniárias. Como tal, quando existam, podem e devem ser levadas em conta, no momento da liquidação, assim atingindo o objectivo para que foram previstas, o que reforça a demonstração de que a falência da sociedade não pode para o efeito em causa, ser equiparada à morte da pessoa singular, já que, em relação a esta, pena alguma pode surtir efeito após esse evento fatal do ser humano. Por outro lado, improcede o argumento invocado pelo tribunal recorrido, segundo o qual «a eventual condenação da arguida pelo crime imputado não teria qualquer consequência a nível da sua actividade», pois, inter alia, a real possibilidade supra referida de retoma dessa mesma actividade não obstante a declaração de falência, aliada aos eventuais futuros efeitos da condenação penal, nomeadamente para efeitos de reincidência e (ou) sucessão de crimes e suas consequências jurídicas, mostram justamente o contrário. Em suma: o recurso logra inteiro provimento, impondo-se a revogação daquela decisão preliminar, para que o tribunal recorrido, extraia agora as consequências adequadas à nova realidade jurídica. 3. Termos em que, no inteiro provimento ao recurso, revogam a parte impugnada do acórdão recorrido, e, consequentemente, consideram não extinto o procedimento criminal contra a recorrida ..., L.da, por motivo da respectiva declaração de falência. Honorários de tabela pela defesa oficiosa Sem tributação. Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Outubro de 2006 Pereira Madeira (relator) Santos Carvalho Costa Mortágua Rodrigues da Costa |