Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
1. Relatório.
"A", por si e em representação de seus filhos menores, B, C e D, todos melhor identificados nos autos, intentaram, com o patrocínio oficioso do Ministério Público, a presente acção emergente de acidente de trabalho, sob a forma de processo ordinário, contra a Companhia de Seguros E, e a "F - Extracção de Saibro e Areias, Ldª”, com sede em Esmoriz, Ovar, peticionando o direito à reparação pela morte de G, cônjuge e pai dos autores, ocorrida quando este desempenhava a sua actividade profissional ao serviço da segunda ré.
Por sentença do Tribunal de Trabalho de Oliveira de Azeméis, a entidade seguradora foi absolvida do pedido, e a entidade patronal condenada no pagamento de uma pensão anual e vitalícia de 452.904$00 a favor da viúva A, e pensões anuais temporárias de 251.613$00 a favor de cada um dos filhos, além de outros encargos relativos a despesas de funeral e de transportes.
Em apelação, a ré entidade patronal invocou, além do mais, que não incorreu em qualquer inobservância das regras de segurança ao caso aplicáveis e que constando o nome do sinistrado das folhas de férias relativas ao mês anterior ao acidente, a responsabilidade infortunística devia considerar-se transferida para a entidade seguradora.
Tendo sido confirmada a decisão de primeira instância pelo Tribunal da Relação do Porto, a ré entidade patronal recorre agora de revista, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1. Da matéria dada como provada não pode concluir-se pela culpa da Ré na produção do acidente;
2. Ficou provado que o sinistrado quando chegou ao local de trabalho disse que preferia começar pela reparação de um motor (quesito 9°) que já antes havia sido reparado sem descida ao poço, e que foi dito ao sinistrado para preparar as coisas para eventual descida ao poço.
3. Nas instalações da R existiam capacetes, luvas e botas de protecção e os seus trabalhadores tinham ordens expressas para os utilizarem.
4. Não ficou provado que o sinistrado na altura do acidente usasse o capacete.
5. Consta do processo que a vítima tinha amarrado uma corda a uma carrinha e que a aproximou do poço.
6. Tais factos, são inconciliáveis com a responsabilização da R.
7. A matéria de facto provada e que consta também da descrição do acidente feita pelo IDICT no relatório do acidente, não permite concluir que este foi devido à inobservância de qualquer preceito legal ou regulamentar referente à segurança no trabalho, não podendo, por isso, considerar-se ter resultado de culpa da entidade patronal, diversamente do que se entendeu no douto acórdão recorrido.
8. A matéria provada não permite afirmar que a descida ao poço iria ser necessária e imediata, bem pelo contrário. E, assim sendo, a entidade patronal do infeliz sinistrado não podia prever nem sequer representar a possibilidade de uma queda.
9. A R. não omitiu qualquer medida de segurança, pois, não havendo qualquer elemento indiciador da previsibilidade do risco, não pode censurar-se a conduta da ré ao não ter previsto o que não era previsível.
10. A R é uma pequena empresa cuja actividade não é nem nunca foi a descida a poços, os seus trabalhadores não estão, assim, expostos ao risco de queda livre, pelo que não será de se lhe exigir que possua os equipamentos que protejam os trabalhadores contra tais riscos
11. Da matéria provada atendível não se pode inferir qualquer nexo de causalidade entre a conduta da R e a morte do infeliz sinistrado.
12. Não tendo havido, assim qualquer inobservância de preceitos legais ou regulamentares que possa considerar-se causa adequada do acidente é insustentável e não pode funcionar a presunção - que é ilidível - de culpa estabelecida pelo artigo 54° do Decreto n° 360/71, de 21/8, culpa que sendo manifestamente elemento constitutivo do direito à reparação prevista na Base XVII da Lei 2127, nos termos do art. 342° do CC., competia aos AA. provar, o que, de forma alguma conseguiram.
13. Pelo exposto, o dou to acórdão recorrido violou ao disposto na Base XVII da lei 2127, e o art. 54° do Decreto n.º 360/71.
Quanto à Absolvição do pedido da R. Seguradora:
14. O acórdão aqui em crise, absolveu Ré E Seguradora do pedido por ter considerado que o acidente ocorreu numa actividade não abrangida pelo contrato de seguro.
15. Ficou provado que a responsabilidade infortunística da Ré F tinha sido transferida para a Ré E através de um contrato de seguro na modalidade de prémio variável ou de folhas de férias.
16. Provou-se igualmente que o sinistrado constava das folhas de férias de Agosto de 1999.
17. A actividade da Ré F é a extracção de areias e outros minerais não metálicos.
18. Ao contrário do que ficou decidido, o art. 16°, n° 1, alíneas a) e b), da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de trabalho para Trabalhadores por Conta de Outrem, contêm as obrigações a que o tomador do seguro está sujeito quando a modalidade de seguro contratada for outra que não a de prémio variável. O disposto na alínea c) é específico para a modalidade de seguro de prémio variável. Aqui apenas se exige que nas folhas enviar à seguradora até ao dia 15 de cada mês seja mencionada a totalidade das remunerações previstas na lei, como parte integrante da retribuição para efeito de cálculo, na reparação por acidente de trabalho.
19 A cláusula 01 das Condições Especiais da Apólice, diz claramente que no seguro de prémio variável estão cobertos pelo contrato os trabalhadores ao serviço do tomador do seguro na unidade produtiva identificada e de acordo com as folhas de retribuição.
20. O âmbito deste tipo de contratos está delimitado apenas pela inclusão do nome e retribuição do trabalhador da entidade empregadora na folha de férias.
21. Em lado algum, nem na Apólice Uniforme nem nas Condições Especiais, se exige a discriminação das funções dos trabalhos.
22. Nesta modalidade de seguros o prémio varia em função do número de trabalhadores que constam das folhas de férias, da respectiva retribuição e não das funções efectivamente exercidas pelos trabalhadores cobertos.
23. E a alínea b) do art. 4° diz que quando a apólice cobre um número variável de pessoas seguras, são consideradas pela seguradora as pessoas e as retribuições identificadas nas folhas de vencimento que lhe são enviadas periodicamente pelo tomador do seguro.
24. Nos termos do n° 1 do art. 2° da Apólice a Seguradora garante a responsabilidade do tomador do seguro, pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras identificadas na apólice, ao serviço da unidade produtiva independentemente da área em que exerçam a sua actividade.
25. Entendendo-se por Unidade Produtiva "O conjunto de pessoas que, subordinadas ao tomador do seguro por um vínculo laboral, prestam o seu trabalho com vista à realização de um objectivo comum e que constituem um único complexo agrícola ou piscatório, industrial, comercial ou de serviços." (art. 1° da Apólice Uniforme).
26. Atendendo a que o acidente ocorreu no local e horário de trabalho e foi um serviço ocasional e espontaneamente prestado pelo sinistrado, não pode deixar de se integrar no conceito de Acidente de Trabalho contido no art. 1° da Apólice Uniforme, nomeadamente nas alíneas a) e d).
27. Nos termos da apólice os trabalhadores cobertos pelos seguros são aqueles que estiverem ao serviço do tomador do seguro na unidade produtiva identificada.
28. Assim, ter-se considerado no douto acórdão recorrido que o acidente ocorreu numa actividade não abrangida pelo contrato de seguro e tendo, por isso, absolvido do pedido a R. E Seguradora, foi cometido um erro de interpretação e foram violados os artigos 245° do Cód. Comercial e os artigos 1°, 2°, n° 1, 4°, alínea b), e 16°, n° 1, alínea c), da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho, e o n° 1 da clausula O 1 das Condições Especiais daquela apólice.
29. Nestes termos, como se requer, deverá ser julgada procedente a presente revista e revogado o acórdão na parte em que condenou a Recorrente que deverá ser absolvida do pedido contra ela formulado.
30. Deverá ainda, por força e ao abrigo do contrato de seguro existente entre a R. F e a R. Seguradora, ser esta considerada responsável pela reparação do acidente que vitimou o infeliz G, condenando-a a pagar as quantias peticionadas, com o que V. Exas farão a costumada justiça.
A ré companhia seguradora, ora recorrida, contra-alegou, entendendo ser de manter a decisão recorrida com base nas considerações já expendidas nesse aresto e na sentença de primeira instância.
Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
2. Matéria de facto.
As instâncias deram como provada a seguinte matéria de facto:
I – Da especificação:
A) A, nascida em 13/7/67, era casada com G à data da morte deste.
B) B, nascida em 12/7/90, C, nascido a 30/7/95, e D, nascido a 29/8/99, eram filhos do G.
C) O G trabalhava mediante remuneração e sob a direcção e autoridade da ré F.
D)No dia 9/9/99, pelas 17h, o G, preparava-se - por conta da F - para reparar um motor num poço - no Lugar de Barreiro de Cima, Estarreja -, tendo-se desequilibrado e caído para o interior do mesmo).
E) Em consequência, sofreu traumatismo crâneo-encefálico que foi a causa directa e necessária da sua morte às 17h47 desse mesmo dia.
F) Na data do acidente o sinistrado auferia o salário de 106.100$ x 14 meses/ano, acrescido de 19.800$ x 11 meses/ano, a título de subsídio de
alimentação.
G) A F tinha a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho transferida para a E, através da Apólice n° 2015.199.592, pelo valor referido em O.
H) Este contrato de seguro foi convencionado na modalidade de folha de férias ou de prémio variável, obrigando-se a F a enviar mensalmente à E, e até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que dissessem respeito as folhas de férias de todo o pessoal ao seu serviço nesse mês, e que devem ser duplicados ou fotocópias das remetidas à segurança social - alínea C) do artigo 16° das Condições Gerais da Apólice
I) Obrigando-se a seguradora, por sua vez, a garantir, em conformidade com a legislação aplicável e nos termos da apólice respectiva, a responsabilidade da entidade patronal, tomadora do seguro, pelos encargos obrigatórios provenientes de um qualquer acidente de trabalho ocorrido com as pessoas seguras identificadas na apólice, quando ao serviço da mesma entidade patronal.
J) O G constava na folha de férias de Agosto 99, com a profissão de condutor de veículos industriais).
L) Houve trasladação.
M) Os autores gastaram 4.000$ com transportes a este tribunal.
II Da base instrutória:
- O acidente ocorreu quando o G descia ao poço, de cerca de 6,5 metros de profundidade (resposta ao quesito 1°).
- A F não disponibilizou ao G qualquer equipamento de protecção individual contra o risco de queda livre, nomeadamente cinto de segurança, de forma e material apropriado, suficientemente resistente e bem assim cabos de amarração e respectivos elementos de fixação (resposta ao quesito 3°).
- O G não era, aquando da descida, vigiado da exterior por terceiro (resposta ao quesito 4º).
- O acidente deu-se por força e em consequência do que antecede (ques.o 5°).
- Tinha sido posto à disposição do sinistrado, como dos restantes trabalhadores, capacete, luvas e botas de protecção (resposta ao quesito 6°).
- O sinistrado, como os restantes trabalhadores, tinha instrução e ordem expressas para utilizar o capacete, as luvas e as botas de protecção (resposta ao quesito 7°).
- Algumas vezes os trabalhadores andam nas obras sem protecção não obstante os cuidados das entidades patronais (resposta ao quesito 8°).
- O G chegou pelas 16h45, perguntou o que iria fazer e que preferia começar pela reparação do motor (resposta ao quesito 9°).
- O motor já antes havia avariado e foi reparado sem descida ao poço (resposta ao quesito 10°).
- Pelo gerente da ré' "F" foi dito ao G para preparar as coisas para eventual descida ao poço (resposta ao quesito 11°).
- O G não esperou (resposta ao quesito 13°).
- Nalgumas empresas pequenas, alguns trabalhadores por vezes executam tarefas correspondentes a diversas categorias (resposta ao quesito 15°).
3. Fundamentação de direito.
São duas as questões a dirimir: se o acidente de trabalho pode considerar-se imputável ao incumprimento das regras de segurança por parte da entidade empregadora; se a responsabilidade infortunística desta entidade se encontrava transferida para a companhia de seguros através da modalidade de seguro por folha de férias.
Quanto àquele primeiro aspecto, a recorrente formula quatro ordens de considerações: (a) encontravam-se disponíveis nas suas instalações equipamentos individuais de protecção, como capacetes, luvas e botas, que os trabalhadores tinham ordens expressas para utilizarem, não lhe sendo, por isso, imputável que o sinistrado não usasse o capacete, na altura do acidente; (b) da matéria de facto provada nada permite inferir que o acidente tenha ficado a dever-se ao incumprimento de regras de segurança; (c) a ré não podia prever o risco de queda em altura, e, por conseguinte, não lhe pode ser assacada a responsabilidade por não ter implementado medidas adequadas de segurança para prevenir esse tipo de ocorrência; (d) a ré é uma pequena empresa cuja actividade não é, nem nunca foi, a reparação de poços, pelo que não lhe é exigível que possua os equipamentos que protejam os trabalhadores contra os riscos inerentes a esse tipo de actividade.
Deve começar por dizer-se que é inteiramente irrelevante, quando está em causa o direito à reparação por danos resultantes de acidente de trabalho, que a entidade empregadora se dedique ou não, por regra, à actividade em cuja realização ocorreu o acidente. O que importa reter, no caso concreto, é que o sinistrado se encontrava a trabalhar sob a direcção e autoridade da ré e que o acidente ocorreu quando aquele se preparava para reparar um motor no interior de um poço, sendo que a entidade empregadora, como se depreende das respostas aos quesitos 9º e 11º, se não deu ordens directas para que o trabalhador executasse essa tarefa, pelo menos consentiu e não ignorava que ela poderia ser realizada.
A maior ou menor dimensão das empresas e o seu grau de especialização em certas actividades apenas releva, no âmbito do sistema de prevenção de riscos profissionais, no plano da organização dos mecanismos de segurança, que poderá envolver a necessidade de proceder, na concepção das instalações, dos locais e processos de trabalho, à identificação dos riscos previsíveis e à planificação dos procedimentos de prevenção, de forma a garantir um nível eficaz de protecção em função do número de trabalhadores envolvidos e da natureza dos trabalhos que lhes caiba executar (cfr. alíneas a), d) e n) do n.º 2 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de Novembro).
Como princípio geral, “todos os trabalhadores têm direito à prestação de trabalho em condições de segurança, higiene e de protecção da saúde (artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 441/91), o que implica por parte do empregador (de todos os empregadores) a obrigação de “assegurar aos trabalhadores condições de segurança, higiene e de protecção da saúde em todos aos aspectos relacionados com o trabalho (artigo 8º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 441/91).
A ré não se encontrava, portanto, dispensada de adoptar as medidas de protecção individual que fossem adequadas para evitar qualquer acidente, tendo sobretudo em conta a especial perigosidade da tarefa que ao trabalhador cabia executar, e, caso não se encontrasse preparada para assegurar convenientemente a protecção do trabalhador (mormente porque a operação em causa não se enquadrava no âmbito da sua actividade habitual), deveria ter impedido o trabalhador de a executar e, porventura, encarregado uma outra empresa especializada de a levar a cabo.
Assente que a entidade empregadora não está, à partida, isenta de responsabilidade, apenas porque o seu trabalhador executava uma tarefa esporádica e não habitual, a única questão que se coloca é a de saber se, no caso concreto, ocorreu ou não a violação de regras de segurança.
A este propósito, o que resulta da matéria de facto é suficientemente elucidativo.
A ré não disponibilizou ao sinistrado “qualquer equipamento de protecção individual contra o risco de queda livre, nomeadamente cinto de segurança, de forma e material apropriado, suficientemente resistente e bem assim cabos de amarração e respectivos elementos de fixação” (resposta ao quesito 3°), sendo que a ré também não adoptou qualquer medida de vigilância, que o caso manifestamente exigia (resposta ao quesito 4º).
Por outro lado, como resulta da resposta ao quesito 5º, o tribunal deu como provada a existência de uma nexo de causalidade entre esses dois factores e a ocorrência do acidente.
A alegação de que o acidente se não ficou a dever ao incumprimento de regras de segurança não tem, pois, o mínimo apoio da factualidade tida como assente. E nesse contexto, é inteiramente irrelevante que a ré tenha posto à disposição do sinistrado capacete, luvas e botas de protecção ou que tenha dado instruções expressas para os trabalhadores utilizarem esses meios de protecção (respostas aos quesitos 6º e 7°). O certo é que se deixaram de cumprir regras básicas relativas à execução de trabalhos em poços, com é o caso de protecção por meio de cabos ou cordas, a que se refere o anexo III da Portaria n.º 988/93, de 6 de Outubro, diploma que – diga-se – pretende regulamentar o Decreto-Lei n.º 348/93, de 1 de Outubro, no tocante à implementação de prescrições mínimas de segurança no domínio dos equipamentos de protecção individual do trabalho, e que vem desenvolver, nesse plano, o regime geral definido pelo já citado Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de Novembro).
Nos termos previstos no artigo 54º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, ao caso aplicável, “considera-se ter resultado de culpa da entidade patronal ou do seu representante o acidente devido à inobservância de preceitos legais e regulamentares, assim como de directivas das entidades competentes, que se refiram à higiene e segurança do trabalho.” E, deste modo, constatando-se que o acidente ocorreu por incumprimento de regras de segurança por parte da entidade empregadora, haverá que reconhecer forçosamente a sua responsabilidade a título de culpa, mormente para efeito do disposto no n.º 4 da Base XLIII da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, que impõe que a instituição seguradora responda, nesse caso, apenas subsidiariamente pelas prestações normais que integrem o direito de reparação.
4. E é neste ponto que entronca a segunda questão suscitada pela recorrente.
Sustenta a recorrente que tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a Companhia de Seguros E, também demandada nos presentes autos, através de um contrato de seguro na modalidade de prémio variável ou de folhas de férias, e que o sinistrado constava das folhas de férias de Agosto de 1999 – mês anterior ao do acidente -, pelo que os danos resultantes do acidente se encontram cobertos pelo seguro, sendo indiferente que o sinistrado se encontrasse a laborar em actividade diversa daquela que se encontra mencionada na apólice.
Afigura-se, porém, que, ainda neste ponto, a recorrente carece de razão.
A apólice uniforme do seguro obrigatório de acidentes de trabalho (publicada no Diário da República, III Série de 2 de Novembro de 1995), vigente à data do acidente, ao pretender definir o objecto e âmbito do seguro, estabelece que a seguradora “garante a responsabilidade do tomador do seguro pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras identificadas na apólice, ao serviço da unidade produtiva também identificada nas condições particulares, independentemente da área em que exerçam a sua actividade” (artigo 2º, n.º 1), esclarecendo o nº 2 desse artigo que “por acordo estabelecido nas condições particulares, podem não ser identificados na apólice, no todo ou em parte, os nomes das pessoas seguras”.
Uma das modalidades de cobertura admissível é a de seguro a prémio variável, que tem lugar quando “a apólice cobre um número variável de pessoas seguras, com salários seguros também variáveis, sendo considerados pela seguradora as pessoas e os salários identificados nas folhas de vencimento que lhe são enviadas periodicamente pelo tomador de seguro” (artigo 4º, n.º 2).
O que caracteriza o seguro a prémio variável, como resulta com evidência desta última disposição, é a circunstância de a apólice cobrir um número variável de trabalhadores que só são identificados na folha de salários a enviar mensalmente à seguradora. O objecto do contrato, nesta modalidade de seguro, é assim determinado em cada período mensal, pelo conteúdo das folhas de férias enviadas à seguradora, quer quanto aos trabalhadores abrangidos, quer quanto à massa salarial coberta.
E, por isso mesmo, o que importa nesse tipo de contrato, para determinar o prémio a cobrar e os montantes indemnizatórios, bem como as pessoas que ficam cobertas pelo seguro, é o que consta das folhas de salários que deverão ser sistematicamente remetidos à seguradora.
A obrigação que impende sobre o segurado, sob pena de resolução do contrato e de ser exercido contra ele o direito de regresso, é a de enviar mensalmente à seguradora, e até ao dia 15 de cada mês, as folhas de salários ou ordenados pagos no mês anterior a todo o seu pessoal - artigos 7º, n.º 2, e 16º, n.º 1, alínea c), da apólice.
Tal não significa, porém, que o seguro não se encontre delimitado pelo seu objecto, que, tratando-se de um seguro de acidentes de trabalho, deverá ser definido pela natureza da actividade económica a que o segurado se dedica.
Ao pretender efectuar um contrato de seguro, é o segurado quem, conhecedor do objecto do contrato que pretende celebrar, declara aquele objecto e os riscos que pretende cobrir com o seguro e as condições determinantes para a sua avaliação, sendo que tais declarações deverão ser conscienciosas e completas, por forma a permitir fixar com suficiente amplitude e rigor o tipo de risco que está em causa.
Por isso é que o artigo 429º do Código Comercial comina com a nulidade o seguro afectado por declarações inexactas ou reticências de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato.
No contrato de seguro de prémio variável, ao celebrar o seguro, as partes acordam sobre o tipo de risco, a natureza do trabalho, as condições da sua prestação e outras circunstâncias que relevem para a avaliação do risco. O que sucede é que, ao contrário do que se verifica com o seguro sem nomes, não necessitam de definir o número de trabalhadores, o qual é determinado, em função das flutuações do pessoal ao serviço do segurado, através das folhas de salários (neste sentido, o acórdão do STJ de 14 de Abril de 1999, Processo n.º 67/99).
São, pois, as folhas de salários que determinam, em cada mês, o âmbito pessoal da cobertura do seguro. No entanto, no plano objectivo, essa cobertura está, à partida, circunscrita ao tipo de actividade que constitui o objecto do contrato, e em função da qual foram estipulados o prémio e as restantes condições contratuais.
O artigo 2º, n.º 1, da apólice uniforme, que especifica o objecto e âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho, deve assim ser interpretado em termos hábeis e, especialmente, em consonância com o disposto no artigo 426º do Código Comercial, quanto às menções que deverão constar do contrato. Neste contexto, a expressão independentemente da área em que exerçam a sua actividade, ínsita naquele dispositivo, deve ser entendida como significando que a cobertura opera em relação às pessoas seguras identificadas na apólice, independentemente da área funcional em que os trabalhadores exercem a sua actividade ao serviço da unidade produtiva.
Isto é, todos os trabalhadores incluídos nas folhas de salários encontram-se cobertos pelo seguro de prémio variável, sem embargo de poderem desempenhar tarefas profissionais distintas. O ponto é que todas essas tarefas se enquadrem na actividade económica que constitui objecto do contrato de seguro.
No caso concreto, a ré, ora recorrente, dedica-se à extracção de areias e outros minerais não metálicos, e era essa a actividade que havia sido indicada, na apólice do seguro de acidentes de trabalho, como constituindo o objecto do seguro, ao passo que o acidente que vitimou o sinistrado veio a ocorrer quando este se preparava para reparar um motor no interior de um poço.
Como a própria recorrente reconhece, nas suas alegações, essa era uma operação eventual e esporádica, que nada tem a ver com a sua normal actividade produtiva, e para a qual a recorrente não se encontrava preparada sequer para fazer accionar os necessários mecanismos de segurança. O acidente ocorreu, portanto, no exercício de uma tarefa que, envolvendo um elevado grau de risco, não está coberta pela apólice se seguro.
Deste modo, não há motivo para atribuir responsabilidade subsidiária à entidade seguradora.
5. Decisão
Em face do exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 30 de Junho de 2004
Fernandes Cadilha
Mário Pereira
Salreta Pereira
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