Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
646/19.3GAVNF.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA DA PENA
CONFISSÃO
PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONFIANÇA DE MENORES E INIBIÇÃO DE RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Data do Acordão: 12/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Sumário :

I - A confissão, sendo relevante, é uma circunstância a favor do arguido. Não é correto afirmar a relevância da confissão para de seguida desdizer e desconsiderar a atenuante confissão, pretextando «uma frieza arrepiante e uma total indiferença pelas consequências que advieram para sua então companheira e mãe do filho de ambos (que resultam da imediação da audiência do julgamento e, no fundo, do contacto directo e visual com o arguido), sem que se denotasse qualquer arrependimento sincero – pese embora o tenha declarado nas suas últimas declarações, o certo é que não se nos afigurou sincero, não passando de mera declaração oca e carenciada de sentimento sentido, passando a redundância, e verdadeiro – e, ainda, sem qualquer capacidade de juízo auto-crítico».

II – Não pode ser considerada em sede de determinação da medida da pena a dimensão factual frieza arrepiante e a ausência de arrependimento, se não constava da acusação, nem oportunamente foi enunciada como relevante, e sobre ela não incidiu contraditório, nem foi levada aos factos provados.

III – A circunstância de não ter ficado provado o arrependimento não consente a conclusão de que ele não existe, e menos ainda consente que se valore essa ausência de prova como o seu contrário, como fator contra o arguido a justificar a agravação da pena.

IV – Aplicada a pena principal, por violência doméstica, a pena acessória de inibição das responsabilidades parentais pode ser aplicada, desde que a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente a exija.

V – Se o comportamento do arguido para com o filho não constitui crime nem lhe foi aplicada pena (principal) por violência doméstica, não se lhe pode, obviamente, aplicar uma pena acessória; esta, como o nome indica, só pode acompanhar a pena principal.

VI – Sabendo-se que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, e que o arguido tem direitos e deveres quanto à educação do filho, a limitação deste direito está submetido a uma clausula de legalidade, necessidade e proporcionalidade.

VII – Se a alteração da qualificação jurídica em vista da aplicação de pena acessória é em abstrato admissível, mas vier a concluir-se ser errada, admitir de seguida que se completem os factos para dar corpo à alteração da qualificação jurídica que não tinha factos, constitui uma alteração substancial, pois passamos de uma realidade factual que não consentia a aplicação de pena acessória a uma outra realidade factual que a possibilita, mediante uma dupla alteração primeiro da qualificação jurídica, depois pelo acrescento de novos factos, factos estes que já possibilitam a aplicação da pena acessória.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 646/19.3GAVNF.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. No Juízo Central Criminal ... foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

«A. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material:

i. um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152º, n.ºs 1, al. b), 2, al. a), 3, al. a), 4 e 5 do Código Penal, por referência ao art. 144º, als. a) e c) do mesmo diploma legal, na pena de 7 (sete) anos de prisão;

ii. na pena acessória de proibição de uso e porte de arma, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do disposto no art. 152.º, n.º 4 do Código Penal;

iii. na pena acessória de proibição de contactar com a vítima BB, por qualquer meio ou por interposta pessoa, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do disposto no art. 152.º, n.ºs 4 e 5 do Código Penal;

vi. (assim no original) na inibição do exercício de responsabilidades parentais relativamente ao menor CC pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do art. 152.º n.º 6 do Código Penal.

B. Arbitrar, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 67.º-A, n.º 1, al. b) e 82.º-A, ambos do Código de Processo Penal e do art. 16.º, n.º 2 do Estatuto da Vítima, a indemnização no valor de 60.000,00€ (sessenta mil euros).

C. Mantém-se o estatuto de vítima de BB».

2. Inconformado com o decidido no acórdão da 1.ª instância recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

O arguido não se conforma com as penas que lhe foram aplicadas pela prática material de um crime de Violência Doméstica Agravada, por serem excessivas e desproporcionais. Por douto acórdão foi condenado:

I - A pena de 7 (sete) anos de prisão;

II - na pena acessória de proibição de uso e porte de arma, pelo período de 5 (cinco) anos.

III - na pena acessória de proibição de contactar com a vítima BB, por qualquer meio ou por interposta pessoa, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo período de 5 (cinco) anos.

VI - na inibição do exercício de responsabilidades parentais relativamente ao menor CC pelo período de 8 (oito) anos.

Arbitrar, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 67.º-A, n.º 1, al. b) e 82.º-A, ambos do Código de Processo Penal e do art. 16.º, n.º 2 do Estatuto da Vítima, a indemnização no valor de 60.000,00€ (sessenta mil euros).

Não pode o arguido aceitar/conformar com a aplicação desta pena/condenação por entender ser excessiva e desproporcional.

a) O tribunal “a quo” merece censura na forma como apreciou e ponderou os factos tendo-se refletido na excessiva medida da pena em que condenou o arguido.

b) O arguido reconhece a censurabilidade da problemática criminal, mas não se expressa adequadamente o que foi valorado de forma negativa na sua confissão e na aplicação da pena.

c) O tribunal “a quo” considerou provados factos que entendeu ter acontecido, mas que não constam da acusação, são meras suposições, nomeadamente o facto de o menor ter assistido a agressões por parte do pai para com a mãe.

d) Não valorizou a favor do arguido a confissão dos factos e o seu comportamento de colaborador com a justiça, pelo contrário, desvalorizou a confissão e usou-a contra o arguido fazendo considerações e apreciações pessoais negativas sobre a sua personalidade e modo de estar.

e) Procedeu à livre apreciação da prova, mas sempre em manifesto arrepio das regras e princípios que devem nortear tal livre apreciação, com violação do disposto no art.º 127.º do C.P.Penal, como sejam as regras da experiência comum e da imparcialidade.

f) Não valorou nada a favor do arguido como se de um criminoso altamente perigoso se tratasse. O tribunal deixou-se influenciar pelo crime em apreço e várias vezes demonstrou a sua repugnância.

g) O arguido cresceu num contexto familiar, economicamente deficitário, quer ao nível financeiro, quer ao nível afetivo, ainda com a problemática do álcool por parte do progenitor, tem hábitos de trabalho, está integrado no meio social, é cumpridor das suas responsabilidades de pai.

h) Também de notar que todas as agressões foram praticadas quando o arguido se encontrava embriagado, diz a acusação: “ponto 6 -…o arguido, sempre que consumia bebidas alcoólicas em excesso…” há aqui uma diminuição, uma falta de consciência da ilicitude que é importante ter em conta e não se teve.

A moldura penal deste crime é de mínima 2 anos e máxima de 8 anos de prisão.

i) O tribunal aproveitou tudo o que o arguido tinha e fez de pior na ponderação da medida da pena a aplicar, valeu-se apenas de circunstâncias agravantes e nenhuma atenuante.

j) Não pode o arguido concordar com o tribunal a quo, que optou por aplicar uma pena de prisão efetiva muito próxima do máximo legal, a aplicação da pena de sete anos, é excessiva e desproporcional.

k) Também as penas acessórias são elevadas e não se mostram adequadas.

l) O tribunal a quo, fundamentou a aplicação deste quantum de pena por entender que a gravidade do crime, o grau de violência empregue, as lesões sofridas e irreversíveis, a falta de arrependimento (embora o tivesse verbalizado) e à existência de condenação anterior por crime da mesma natureza.

m) Quanto às exigências de prevenção geral positiva refuta os sentimentos de insegurança e intranquilidade na comunidade e no plano das exigências de prevenção especial, destacam-se de forma negativa, as qualidades desvaliosas da personalidade do arguido.

m) Na ponderação em conjunto, de todos os fatores relevantes por via da culpa e da prevenção e dos factos e da personalidade do arguido neles manifestada, nomeadamente, a interconexão e a concentração espácio-temporal dos factos e tendo presente a moldura penal, considera-se adequada e proporcional a pena de 4 anos de prisão.

n) Perante a globalidade da matéria factual provada, a medida da pena de prisão e medida das penas acessórias encontradas para o arguido é excessiva e demasiado gravosa.

o) Assim e pese embora, serem sempre fortes as necessidades de prevenção geral, atento ao flagelo que a violência doméstica constitui, não podemos esquecer que o arguido confessou os factos de que vinha acusado; assumindo uma posição colaborante para com a Justiça e que o tribunal não valorou como atenuante, é uma pessoa trabalhadora e cumpridora das suas obrigações, não cometeu mais nenhum ilícito criminal, não corre contra o arguido nem o mesmo é suspeito de nenhum inquérito ou processo crime e há pelo menos 3 anos que o arguido não mais procurou a vítima, seguiu com a sua vida assim como ela que também refez a sua.

p) Em nome da justiça e da equidade, impõe-se a aplicação ao arguido de uma pena não superior a quatro anos de prisão, a qual realiza as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente e exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade;

q) Também em nome da justiça se impõe a revogação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, por injusta não só para o arguido como para o seu filho menor e que a sua aplicação, privando-o do convívio com o pai, lhe trará sérios prejuízos na sua formação enquanto pessoa. Tendo em conta o superior interesse do menor, deve esta medida ser revogada, ou, no limite, reduzida para o mínimo legal, assim como a adequar o prazo da medida de proibição de contactos com esta.

r) Devem ainda as restantes penas acessórias serem reduzidas para o mínimo legal, assim como o quantum indemnizatório que se tem por demasiado elevado atentas as condições económicas do arguido e pelas lesões sofridas.

Pelo que antecede, foram violados os artigos 13.º; 30.º e 32.º. n.º 5 da C.R.P, artigo 127.º do C.P. P e artigos n.ºs 40.º n.º 1; 71.º n.º 1 e 72.º todos do Código Penal.

Devendo ser, pois, objeto do competente reparo.

Decerto que a redução da pena nos termos supra aduzidos, aplicando-se uma eventual pena de prisão de 4 anos será meio suficiente e proporcional para que o arguido possa arrepiar caminho e interiorizar o desvalor da sua conduta criminosa;

A revogação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais será mais justa e adequada, no entanto, caso assim se não entenda, a redução do tempo de inibição para o mínimo legal, desta, e das restantes penas acessórias a que foi condenado o arguido;

Impõe-se também uma redução do quantum indemnizatório para um valor que seja adequado para o ressarcimento à vítima, mas também mais justo para o arguido.

Termos em que nos melhores de direito aplicável e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., se deverá dar provimento ao presente recurso e em consequência, revogado o douto Acórdão recorrido, substituindo-o por outro que corresponda aos termos supra aduzidos. Assim é de Justiça!

3. O Ministério Público na 1.ª instância, na parte que aqui releva, entendeu (transcrição):

«(…) Face aos factos dados como provados, a medida da pena principal e das penas acessórias aplicadas ao recorrente fazem uma justa e adequada ponderação das circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depõem a favor e contra o recorrente e, por isso, se afirmam justas, adequadas e ponderam devidamente todas as circunstâncias a que aludem os artigos 40º, 70.º e 71.º e 77.º do Código Penal.

Não é pelo facto de o Tribunal a quo valorar de forma diferente da do recorrente as suas caraterísticas de personalidade, que não lhe prestou a devida atenção, nem foi perspicaz na sua avaliação.

A forma fria e distante como o arguido confessou os factos deixou a descoberto a sua ausência de compaixão e de empatia, sendo manifesta a sua ausência de juízo crítico.

Por esta razão, a sua confissão não foi, nem poderia ter sido valorada como circunstância atenuante, a atender aquando da determinação da medida da pena. A confissão do arguido deve ser valorada positivamente, apenas quando a mesma se revele sincera, sentida, e deve ser tida em linha de conta, na medida da pena (favoravelmente), quando dela se retira que o arguido ajuizou o desvalor da sua conduta.

Uma confissão “vazia”, com a qual se pretende apenas e tão só a redução da pena, não pode, nem deve obrigatoriamente ser tida em conta, sob pena de não ser feita qualquer destrinça entre o arguido que se encontra sinceramente arrependido e interiorizou o desvalor da sua conduta, daquele que apenas pretende clemencia, mas permanece indiferente para com o resultado da sua desvaliosa ação criminosa.

A pena de 7 anos de prisão aplicada pelo Tribunal a quo satisfaz de modo justo, adequado e necessário, as exigências de prevenção geral e especial que o caso requer, sendo a mesma proporcional à culpa do arguido, bem como à gravidade da sua ação criminosa e do resultado da mesma.

O mesmo se diga relativamente às penas acessórias previstas no artigo 152º, nºs 4 e 5, do Código Penal, cujo período temporal de 5 (cinco) anos fixado, se afigura, além de necessário, adequado e proporcional aos factos.

No que concerne à interdição do exercício de responsabilidades parentais, cuja revogação (ou subsidiariamente, a redução) o recorrente pretende, a douta decisão recorrida não padece de qualquer censura.

O arguido violou culposamente, de forma grave e reiterada os seus deveres para com o filho, tendo para este resultado grave prejuízo.

E no que envolve o valor arbitrado a favor da ofendida, não se descortina da fundamentação do recorrente argumentos aptos a suscitar dúvidas sobre a bondade da decisão e a justeza e equidade do valor fixado em razão das lesões (permanentes e graves) causadas pela conduta do ora recorrente.

O douto acórdão não violou qualquer preceito legal e nele se decidiu conforme a lei e o direito. Deve, assim, o recurso interposto restrito a matéria de direito ser julgado improcedente e, desta forma, mantido o douto acórdão recorrido nos seus precisos termos».

4. Neste Supremo Tribunal de Justiça a Procuradora-Geral Adjunta reiterou a posição do M.º P.º em 1.ª instância e foi de parecer que o recurso não merece provimento.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à Conferência para decisão.

II

A

Factos provados (transcrição):

1. A ofendida BB e o arguido AA viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, desde Julho de 2012 a Agosto de 2019.

2. Fixando residência, decorridos cerca de 2 anos de vida em comum, em habitação sita na Rua ..., em ..., ....

3. A ofendida e o arguido têm um filho em comum: CC, nascido a .../.../2017.

4. No âmbito do processo comum singular n.º 834/15.... que correu termos no Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., por sentença de 29.04.2016, transitada em julgado em 30.05.2016, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de violência doméstica cometido contra a ofendida, na pena de 26 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, por factos ocorridos entre meados de Setembro de 2015 e 25 de Outubro de 2015, inclusive, a qual foi declarada extinta, por decisão de 20.09.2018, transitada em julgado a 23.10.2018.

5. Não obstante a condenação sofrida, o arguido continuou a molestar verbal e fisicamente a ofendida com regularidade.

6. Com efeito, desde Novembro de 2015 até Janeiro de 2019 (data em que foi trabalhar para ...) o arguido, sempre que consumia bebidas alcoólicas em excesso, o que acontecia pelo menos uma vez por semana, apelidava a ofendida de puta e vaca e dizia que o menor CC não era seu filho.

7. Dirigindo também à ofendida a seguinte expressão: “vai para os teus amantes”.

8. De igual forma, desde Novembro de 2015 até Janeiro de 2019, pelo menos uma vez por mês, o arguido agredia fisicamente a ofendida (mesmo quando esta estava grávida), desferindo-lhe murros e pontapés pelo corpo e atirando objectos e vasos que estivessem à mão contra o corpo daquela.

9. Por mais do que uma vez o arguido disse à ofendida que se esta alguma vez revelasse a terceiros as agressões verbais e físicas que sofria, iria fugir com o filho menor e a ofendida nunca mais o via.

10. A partir do momento em que foi para ... e, pelo menos, até Agosto de 2019, o arguido, sempre que efectuava chamadas telefónicas para a ofendida e o filho menor não queria falar consigo, o que sucedia quase todos os dias, o arguido, desagradado, dirigia à ofendida as expressões injuriosas supra mencionadas nos pontos 6 e 7.

11. Dizendo ainda à ofendida: “és sempre a mesma merda; és sempre a mesma puta”.

12. Muitas destas situações foram presenciadas pelo filho menor CC.

13. Em data não concretamente apurada, mas posterior a Novembro de 2015, estando a ofendida sentada no Café M..., em ..., o arguido abeirou-se da mesma e, sem que nada o fizesse prever, desferiu-lhe um estalo que a fez embater com a cabeça numas grades que estavam colocadas atrás de si.

14. Em data não concretamente apurada mas situada entre Novembro de 2015 e o primeiro semestre do ano de 2016 (antes de a ofendida engravidar do filho CC), já de noite e no exterior da residência comum, o arguido, movido pelos ciúmes e encontrando-se alcoolizado, desferiu pontapés com a perna direita por todo o corpo da ofendida, com incidência no lado esquerdo.

15. Em seguida, o arguido desferiu vários murros na cara da ofendida e apertou-lhe o pescoço com os braços, fazendo-a perder os sentidos.

16. Tendo então o arguido pegado na ofendida, que permanecia desmaiada, e deitado a mesma na cama do quarto de casal, local onde viria, algum tempo mais tarde, a recuperar os sentidos.

17. No dia 14 de Julho de 2018, pela 01h00m, o arguido entrou na residência comum alcoolizado.

18. Nisto, abeirou-se da ofendida e disse que a mesma tinha amantes.

19. Após, sem que a ofendida nada lhe respondesse, o arguido começou a desferir murros e pontapés pelo corpo da ofendida com as botas de biqueira de aço que trazia calçadas.

20. Fazendo-o mesmo após a ofendida cair ao chão, sem se conseguir levantar, acabando a ofendida por desmaiar e perder os sentidos.

21. Tendo o arguido transportado a ofendida, desmaiada, para a cama do quarto de casal.

22. Aí a deixando, ensanguentada e sem qualquer ajuda médica, até ao dia seguinte.

23. No dia seguinte, a ofendida recuperou os sentidos e, ao ver-se ensanguentada e cheia de dores, ligou para DD, prima do arguido, pedindo-lhe que viesse a sua casa para a ajudar, o que esta fez.

24. Contando a ofendida àquela o que se havia passado, mas pedindo-lhe que guardasse segredo, por temer que o arguido concretizasse a ameaça de lhe retirar o filho menor.

25. Tendo então DD chamado uma ambulância, que transportou a ofendida para o Hospital.

26. E quando a ofendida estava a entrar na ambulância, o arguido dirigiu-lhe a seguinte expressão, assim a atemorizando: “tem cuidado que sou eu que estou com o menino”.

27. No dia 17 de Julho de 2018, estando a ofendida ainda internada no Hospital, o arguido foi visitá-la e tornou a dirigir-lhe a seguinte expressão, assim a atemorizando: “não te esqueças que se falares a verdade eu tenho o menino nas minhas mãos, em meu poder, e posso-lhe fazer o mesmo”

28. Pelo que a ofendida não narrou aos profissionais de saúde que a assistiram os factos que haviam sido contra si praticados pelo arguido.

29. Como consequência da conduta do arguido, sofreu a ofendida as seguintes lesões: - múltiplas equimoses dispersas pela face, membros, dorso, nádegas, tórax e abdómen; - hematoma peri-orbitário; - ferida na região do mento; - escoriações com equimose ao nível da anca mais à direita; - hematoma epicraniano fronto-parietal direito; - fracturas bilaterais das apófises transversárias de L2, L3 e L4; - laceração extensa ano-retal.

30. Tais lesões determinaram 552 (quinhentos e cinquenta e dois dias) para a consolidação médico legal e com afectação total da capacidade de trabalho profissional, sendo:

a) 30 (trinta) dias, com afectação total da capacidade de trabalho geral; e,

b) 492 (quatrocentos e noventa e dois) dias, com afectação parcial da capacidade de trabalho profissional.

31. Ademais, como consequências permanentes das lesões descritas resultaram as seguintes: - presença na face de cicatriz nacarada, oblíqua de baixo para cima e da direita para a esquerda, com 2cm de comprimento, localizada ao nível do mento; - presença de calo ósseo ao nível do 8º, 9º, 10º e 11º arcos costais esquerdo e das apófises espinhosas da 2ª, 3ª e 4ª vértebras lombares; - laceração do esfíncter anal com necessidade de realização de colostomia, a qual terá condicionado doença particularmente dolorosa; - perda de capacidade de defecação, com desfiguração associada (tendo em conta a presença de saco de colostomia e limitações inerentes);

32. Em dia não concretamente apurado de Agosto de 2018, no interior da residência comum, porque a ofendida dissesse que um tacho era de alumínio e o arguido entendesse que era de ferro fundido, o arguido tentou empurrar a ofendida pelas escadas da cozinha, só não logrando os seus intentos por ter sido impedido por terceiros.

33. No dia 9 de Agosto de 2019 o arguido regressou a Portugal.

34. No dia 19 de Agosto de 2019, de manhã, a ofendida abeirou-se do arguido, que dormia, para o informar que ia sair de casa para ir trabalhar.

35. Nisto, o arguido acordou, exaltado, e disse que a ofendida tinha de ficar em casa a tomar conta do filho menor e não devia ir trabalhar.

36. Começando, então, a desferir-lhe murros nos ombros, do lado esquerdo, e pontapés nas nádegas.

37. Perante tal actuação, temendo que o arguido atentasse contra a sua vida, a ofendida, para o acalmar, disse que o arguido tinha razão, voltando o arguido a deitar-se e a adormecer, momento em que a ofendida fugiu, juntamento com o filho menor, para casa de uma tia.

38. Ligando, desse local, para a GNR, solicitando auxílio.

39. E terminando, nesse dia, o relacionamento que mantinha com o arguido.

40. No dia 25 de Dezembro de 2019, a ofendida deslocou-se na companhia de EE, sua irmã, a casa da mãe do arguido, em ..., a fim de o mesmo passar algum tempo com o menor CC.

41. Nisto, ao chegar ao local e por ter verificado que o arguido se encontrava alcoolizado, a ofendida disse-lhe que não o deixaria ficar com o menor.

42. Tendo o arguido, ao ouvir tal expressão, tentado desferir uma bofetada na cara da ofendida, só não o fazendo porque EE se interpôs entre ambos, ao mesmo tempo que dizia, dirigindo-se ao arguido: “tu à minha frente não lhe bates”.

43. Ao actuar da forma e nas situações descritas, o arguido sabia que estava a maltratar verbal e fisicamente, de forma reiterada, a sua mulher e mãe do seu filho e a violar os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem, querendo agir da forma por que o fez.

44. O arguido sabia que ao comportar-se da forma descrita relativamente à ofendida, sua companheira, a submetia a sofrimento psíquico, causando-lhe humilhação e tratamento degradantes e atentatórios da sua honra, dignidade e autoestima, lesando-a na sua integridade moral, honra e dignidade pessoal.

45. Tinha, também, conhecimento que ao proferir as expressões mencionadas criava na ofendida sentimentos de insegurança, medo e inquietação, condicionando-a na sua liberdade de acção e decisão, o que quis.

46. Mais sabia o arguido, no tocante aos factos ocorridos no dia 14 de Julho de 2018, que ao atingir a ofendida da forma acima descrita, tal meio era apto a provocar-lhe lesões e cicatrizes, o que aconteceu.

47. E actuou, representando a possibilidade de poder vir a causar naquela doença dolorosa e permanente, bem como as lesões gravosas e irreversíveis referidas nos pontos 29, 30 e 31, mas confiou que tais eventos não ocorreriam.

48. À data dos factos, o arguido era capaz de avaliar a ilicitude dos seus comportamentos e das consequências dos mesmos, tendo capacidade para se autodeterminar, sendo imputável, havendo risco de este vir a cometer novos actos da mesma natureza.

49. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Provou[-se] ainda que:

50. Além das consequências físicas descritas nos pontos 29 e 31, a ofendida sentiu-se humilhada, vexada, triste e amedrontada, temor que ainda hoje continua a sentir.

51. Por temer novas agressões, ameaças e insultos por banda do arguido e após o ocorrido nos pontos 40 a 42, a ofendida procede à entrega do menor CC junto das instalações da P.S.P. e na pessoa da avó paterna. 

52. O arguido foi incorporado em 25 de Junho de 2008 no Regimento ..., tendo passado a reserva de disponibilidade em 25 de Junho de 2015, tendo prestado serviço numa Força Nacional destacada para o ... (.../...), no período compreendido ente 24 de Setembro de 2010 e 25 de Março de 2011.

Mais se provou que:

53. O arguido AA descende de um núcleo familiar de humilde condição económica integrado no agregado dos avós maternos, que além do arguido se constituía pelos progenitores e dois irmãos mais novos, sendo a dinâmica familiar instável associada ao alcoolismo do pai e, a promover episódios de alguma tensão relacional no seio familiar. Ingressou no sistema de ensino em idade própria e habilitou-se com o 6.º ano de escolaridade.

Frequentou o 3.º ciclo até ao 8.º ano, na vertente profissional e, que abandonou sem completar por manifesto desinteresse em prosseguir os estudos. Aos 17 anos de idade deu início ao seu percurso profissional na área da construção civil, actividade que cessou para ingressar no ..., como voluntário. Integrado na tropa ... realizou a missão referida no ponto 51, serviço que deixou findo o período de contrato com aquele ramo militar.

Após um período de desemprego no ano de 2015, começou a trabalhar como serralheiro civil, mais tarde emigrou para ... e, já em Portugal mudou-se para a área de revestimento de imóveis, actividade que desenvolveu até 2020.

À data dos factos o arguido vivia com a companheira, 26 anos, solteira, operária fabril e, o filho do casal com 2 anos de idade. Residiam em casa arrendada, na periferia de ....

Trabalhava no ramo da construção civil e com o salário auferido colaborava nas despesas familiares.

Actualmente mantém-se inserido no agregado de origem composto pelos progenitores, a mãe desempregada e o pai operário da construção civil e, um irmão no activo.

Dispõe do apoio/suporte destes familiares, e ainda nas visitas do filho, que faz com periodicidade quinzenal e, que de há 1 ano a esta parte são mediadas pela mãe do arguido.

A trabalhar como condutor/manobrador de máquinas numa empresa de construção civil, está efectivo e recebe um salário médio mensal de 650€. Auxilia o agregado na compra de géneros alimentares e de despesas fixas mensais quantificou a pensão de alimentos no valor de 105€ e, a prestação de aquisição de viatura própria de 240€/mês.

54. O arguido não revela capacidade auto-crítica pela sua conduta.

55. Consta do C.R.C do arguido a condenação referida no ponto 4.

*

2.2. Factos não provados:

a) [que] a sentença referida no ponto 4 tivesse transitado em julgado a 23.10.2018;

b) [que] o arguido tivesse agido com o propósito de lhe produzir doença dolorosa e permanente e, bem assim, as lesões gravosas e irreversíveis referidas descritas nos pontos 29 e 31.

*

B

O Direito

1. Suscita o recorrente múltiplas questões que, de modo simplificado, podemos agrupar do seguinte modo:

a) Medida da pena de prisão;

b) Penas acessórias;

c) Montante indemnizatório.

Medida da pena de prisão.

1. A primeira das críticas do arguido reside na medida da pena de prisão que entende ser «excessiva e desproporcional». Sustenta essa crítica na circunstância de a decisão recorrida não ter valorizado a favor do arguido a confissão dos factos e o seu comportamento de colaborador com a justiça, pelo contrário, desvalorizou a confissão e usou-a contra o arguido fazendo considerações e apreciações pessoais negativas sobre a sua personalidade e modo de estar. Nada valorou a favor do arguido. Afirma que apesar de ter crescido num contexto familiar, economicamente deficitário, quer ao nível financeiro, quer ao nível afetivo, ainda com a problemática do álcool por parte do progenitor, tem hábitos de trabalho, está integrado no meio social, é cumpridor das suas responsabilidades de pai. Contextualiza as agressões do modo seguinte: como ficou provado foram praticadas quando o arguido se encontrava embriagado, pelo que entende existir uma diminuição, uma falta de consciência da ilicitude que é importante ter em conta e não se teve. O tribunal valeu-se apenas de circunstâncias agravantes e nenhuma atenuante. Numa moldura penal de 2 a 8 anos de prisão, a pena de sete anos, muito próxima do máximo legal, é excessiva e desproporcional.

2. Disse a decisão recorrida, na motivação:

«[O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência nela se incluindo] «as declarações de arguido e o depoimento da testemunha BB. (…) Assim, há que dizer, antes do mais, que assumiram basilar relevância para a convicção do Tribunal, quer as declarações prestadas pelo arguido, o qual confessou integralmente os factos, quer o depoimento prestado pela vítima (…). No que respeita à forma como o arguido prestou as suas declarações, há que salientar a sua peculiaridade. Assim, pese embora os tenha assumido na sua totalidade, como vimos supra, há que dizer que o fez com uma frieza arrepiante e uma total indiferença pelas consequências que advieram para sua então companheira e mãe do filho de ambos (que resultam da imediação da audiência do julgamento e, no fundo, do contacto directo e visual com o arguido), sem que se denotasse qualquer arrependimento sincero – pese embora o tenha declarado nas suas últimas declarações, o certo é que não se nos afigurou sincero, não passando de mera declaração oca e carenciada de sentimento sentido, passando a redundância, e verdadeiro – e, ainda, sem qualquer capacidade de juízo auto-crítico».

3. E em sede da medida concreta da pena:

«(…) Há, pois, que relevar especialmente o seguinte:

- o dolo intenso (directo, dada a definição do art. 14.º, n.º 1 do C.P.);

- a negligência é grosseira (consciente, dada a definição do art. 15.º, al. a) do C.P.);

- a ilicitude, que é elevada, dados os concretos actos de grande violência física e mesmo psicológica em que se consubstanciou a conduta do arguido contra a ex-companheira e mãe do seu filho, tendo-a inclusivamente, no episódio de maior violência, deixado “ao abandono” num estado lastimável, sem que lhe tivesse prestado auxílio, aqui sim, revelador de uma arrepiante frieza e desprezo pela vida humana, ao deixá-la inanimada na cama sem cuidar sem lhe prestar cuidados ou solicitar a terceiros que zelassem pelo saúde da ofendida, revelador de, senão até falta de empatia, de compaixão, de uma desumanização, na pessoa da sua companheira e mãe de seu filho; a elevada ilicitude é ainda traduzida pela frequência dos actos violentos praticados pelo arguido, ou seja pelo menos em 38 ocasiões, no período compreendido entre Novembro de 2015 e Janeiro de 2019, desferiu murros e pontapés pelo corpo e atirando objectos e vasos que estivessem à mão contra o corpo da ofendida, pelo menos em 166 ocasiões (desde Novembro de 2015 até Janeiro de 2019, data em que foi trabalhar para ...) o arguido, pelo menos uma vez por semana, apelidava a ofendida de puta e vaca e dizia que o menor CC não era seu filho.

- as dores muito fortes que a ofendida sofreu quer com as lesões quer com tratamentos a que foi sujeita em decorrência da conduta descrita nos pontos 17 a 22 da factualidade provada;

- as consequências físicas já mencionadas para a ofendida, as quais lhe causaram e, continuarão a causar no futuro, muitos transtornos e limitações, inclusive sociais, e em particular na sua vida íntima como relatou em audiência de julgamento;

- as consequências psicológicas advenientes para a ofendida, das quais se destaca o pavor que tem do arguido, o que a levou a ocultar a sua nova morada, situação em que se mantém até hoje inalterada;

- as condições pessoais do arguido descritas na matéria de facto, das quais resulta que são muito elevadas as exigências de prevenção especial quanto ao mesmo, já que foi condenado anteriormente pela prática de um ilícito de idêntica natureza, cuja pena de prisão foi suspensa na sua execução com regime de prova, sendo certo que nunca deixou de ofender a sua ex-companheira, como o fez e com proporções ainda mais gravosas depois do trânsito daquela decisão - pontos 17 a 22 -, ou seja, em pleno período probatório, situação que demonstra, à saciedade, que não ficou de todo intimidado pela ameaça de prisão;

- finalmente diremos que, pese embora a confissão integral dos factos, o certo é que o fez com uma frieza arrepiante como explanámos supra, o que nos leva a concluir pela total ausência de arrependimento, denotando, ainda, uma total ausência de juízo crítico sobre a sua conduta. A ausência de juízo crítico ficou bem patente ainda pelo comportamento do arguido, após as agressões, quando a abandonava inanimada, e tendo este comportamento ocorrido em pleno período de suspensão de execução da pena de prisão por factos ilícitos praticados na pessoa da mesma ofendida, claramente evidenciando o arguido indiferença face às consequências da sua conduta e sem que tivesse manifestado qualquer sinal de auto-crítica ou arrependimento, demonstrando não ter interiorizado o mal do crime».

4. A leitura que o recorrente faz no sentido de a decisão recorrida ter desvalorizado a sua confissão parece-nos fundada perante o transcrito. Na 1.ª sessão da audiência de julgamento (ref. ...44) antes da produção de qualquer prova o arguido disse «deseja prestar declarações, confessando integralmente os factos». Perguntado o arguido pela Ex.ma Juíza Presidente «se a confissão que acaba de fazer foi livremente feita e fora de qualquer coacção, (…) o mesmo respondeu afirmativamente». «[F]ace à confissão livre, integral e sem reservas» o Ministério Público declarou que «prescinde da produção de prova testemunhal, com exceção da tomada de declarações à ofendida». De seguida pela Ex.ma Juíza Presidente foi proferido o seguinte despacho:

«Atenta a confissão integral e sem reservas feitas pelo arguido, nos termos do artº. 344º, nº 1 e 2 alínea a) e b) do C.P.P., não se afigura necessária a restante produção de prova relativa aos factos da acusação, à excepção da audição da vítima».

5. Uma conclusão irrefragável: o arguido fez uma confissão integral dos factos constantes da acusação no primeiro momento em que podia realizar essa confissão em audiência de julgamento. À confissão integral e sem reservas do arguido concede o CPP (art. 344.º) relevo processual e, subentenda-se, valor atenuativo. Em concreto a confissão foi relevante, afirma-o a decisão recorrida pois «assumi[u] basilar relevância para a convicção do Tribunal». Além disso, originou imediatamente economia processual, quer em menor tempo despendido, quer em custos na continuação do processo, a vítima foi poupada ao desgaste do confronto com o agressor, em suma celeridade processual e justiça mais pronta. A confissão, sendo relevante, como é aquela que ocorreu nos autos, é uma circunstância a favor do arguido. Não é correto afirmar a relevância da confissão para de seguida desdizer e desconsiderar a atenuante confissão, pretextando «uma frieza arrepiante e uma total indiferença pelas consequências que advieram para sua então companheira e mãe do filho de ambos (que resultam da imediação da audiência do julgamento e, no fundo, do contacto directo e visual com o arguido), sem que se denotasse qualquer arrependimento sincero – pese embora o tenha declarado nas suas últimas declarações, o certo é que não se nos afigurou sincero, não passando de mera declaração oca e carenciada de sentimento sentido, passando a redundância, e verdadeiro – e, ainda, sem qualquer capacidade de juízo auto-crítico».

O vivo e direto do julgamento é uma posição ímpar para a decisão da matéria de facto, mas importa manter distanciamento e sentido crítico, tanto mais que a íntima convicção insuscetível de tradução racional está arredada do nosso processo penal.

6. Em primeiro lugar, como já disse o STJ (ac. de 06.01.2020, Proc. n.º 3152/15....), a confissão e o arrependimento, mesmo que este último não seja materializado no sentido de que o agente assume a sua conduta e está disposto a não voltar a praticar atos semelhantes, são fatores relevantes para a determinação da pena, na medida em que traduzem a existência de uma menor necessidade de pena para satisfazer a finalidade de prevenção especial.

7. Depois, a decisão recorrida invocando as perceções que o tribunal recolheu durante a produção de prova, convoca em sede de determinação da medida da pena uma dimensão factual que não constava da acusação, nem oportunamente foi enunciada como relevante, e sobre ela não incidiu contraditório, nem foi levada aos factos provados, pelo que não pode ser considerada. Temos em vista a frieza arrepiante e a ausência de arrependimento.

8. Merece reserva a afirmação na decisão recorrida de que o arrependimento declarado pelo arguido «não se nos afigurou sincero, não passando de mera declaração oca e carenciada de sentimento sentido, passando a redundância, e verdadeiro». Não estando em causa, nem sendo questão a decidir saber se o que precede é ou não motivação suficiente para considerar não provado o facto arrependimento do arguido, não basta a precedente consideração para considerar como assente – mas fora do elenco dos factos provados – que o arguido não está arrependido quando este facto não constava na acusação, nem o tribunal o introduziu pelo meio próprio durante a produção de prova.

9. Encurtando razões, como disse o já referido ac. do STJ de 06.01.2020, a circunstância de não ter ficado provado o arrependimento não consente a conclusão de que ele não existe, e menos ainda consente que se valore essa ausência de prova como o seu contrário, como fator contra o arguido a justificar a agravação da pena. Tal como sustenta Jorge de Figueiredo Dias, (Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 355), deve recusar-se «em via de princípio uma valoração contra o arguido do seu comportamento processual dada a situação de pressão física e (ou) espiritual a que ele, em regra, está submetido. Só assim não deverá ser quando o seu comportamento for iniludivelmente de imputar à intenção de prejudicar o decurso normal do processo» (assim também Maurach, Gossel e Zipf, Derecho Penal, parte general, 2, p. 791, n.º margem185). Como já em 1968 dizia Castanheira Neves (Sumários de processo criminal, p. 165-6), com plena atualidade, o que ninguém hoje exige, superadas as atitudes degradantes do processo inquisitório, é o heroísmo (do arguido) de dizer a verdade, pelo que, concluímos nós, todo e qualquer contributo autoincriminatório do arguido relevante para o esclarecimento da verdade deve ser considerado a favor do arguido.

10. O arguido foi condenado pelo tipo agravado do art. 152.º/3/a, pois dos maus-tratos resultou ofensa à integridade física grave. A decisão recorrida considerou, e bem, que a circunstância de um dos resultados, ofensa à integridade física grave, ser imputável ao arguido a título de negligência não afasta a punição pelo tipo agravado. As várias ações delituosas do arguido são dolosas – dolo direto -, assim como os respetivos resultados também foram queridos, mas a imputação de um dos resultados, a ofensa à integridade física grave, só pode ser feita ao arguido a título de negligência nos termos previstos no art. 18.º, CP, mas tanto basta (Américo Taipa de Carvalho, CCCP, Tomo I, 2.ª ed., maio de 20012, págs. 532-533). Sendo correto este entendimento, em sede de medida da pena impõe-se não esquecer que esse resultado indiscutivelmente gravoso é censurável ao agente apenas a título de negligência.

11. A desconsideração da confissão relevante e a circunstância de não ter sido devidamente considerado que uma parcela da conduta, o resultado ofensa à integridade física grave, é imputável ao arguido apenas a título de negligência, conduziu à aplicação de uma pena de sete anos de prisão, numa moldura penal abstrata de dois a oito anos de prisão. Mas também não é caso de aplicar uma pena de prisão de 4 anos e suspensa na sua execução como pretende o recorrente. Há determinadas condutas e a do arguido é uma delas, que pela sua gravidade intrínseca – além de que desbaratou a oportunidade que lhe tinha sido outorgada em anterior condenação suspensa –, e pela natureza das suas consequências na saúde física e psíquica da vítima reclamam uma pena de prisão efetiva. Perante tudo o exposto, considerando o disposto nos artºs 40.º e 71.º, CP julgamos justa e proporcionada a pena de seis (6) anos e seis (6) meses de prisão.

Penas acessórias.

12. O arguido foi condenado na pena acessória de proibição de uso e porte de arma, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do disposto no art. 152.º, n.º 4 do Código Penal; na pena acessória de proibição de contactar com a vítima BB, por qualquer meio ou por interposta pessoa, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do disposto no art. 152.º, n.ºs 4 e 5 do Código Penal; na inibição do exercício de responsabilidades parentais relativamente ao menor CC pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do art. 152.º n.º 6 do Código Penal. Pede o recorrente a revogação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, ou, no limite, reduzida para o mínimo legal; as restantes penas acessórias, segundo o recorrente, devem ser reduzidas para o mínimo legal.

13. Se bem que impugne a medida das penas acessórias o certo é que o enfoque do recorrente na motivação de recurso visa no essencial a revogação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, ou, no limite, a sua redução para o mínimo legal; as demais penas acessórias, segundo o recorrente, devem ser reduzidas para o mínimo legal, sem mais.

14. As penas acessórias, dependendo da aplicação de uma pena principal, o que ocorre no caso em relação às penas acessórias de (a) proibição de uso e porte de arma e (b) proibição de contactar com a vítima, obedecem na fixação da respetiva medida, dentro da moldura penal abstrata, aos critérios legais gerais de culpa e prevenção (art. 40.º e 71.º, CP). O recorrente limita-se a uma conclusiva e evanescente discordância, sem identificar sequer as normas violadas. Tudo ponderado, os factos provados e a finalidade das penas acessórias onde pontifica a complementaridade para tornar mais eficaz a reação penal, reputamos proporcionada a medida das penas acessórias referidas em (a) e (b), pelo que improcede esta pretensão do recorrente.

15. A pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais relativamente ao menor CC foi fixada em 8 (oito) anos. A decisão recorrida disse a propósito:

«Interdição do exercício de responsabilidades parentais:

Em matéria de interdição do exercício das responsabilidades parentais a decisão do Tribunal deve ser sempre norteada pelo interesse do menor, atendendo às circunstâncias concretas do momento em que é proferida. Tal interesse passa necessariamente pela garantia de condições materiais, sociais, morais e psicológicas que possibilitem à criança/jovem um desenvolvimento afectivo integral, estável e harmonioso.

No caso em apreço, considerando o contexto em que os factos ocorreram e a sua gravidade, sendo que, alguns deles, foram cometidos na presença do filho menor de ambos, bem como a conclusão do relatório pericial psiquiátrico, em particular o risco de cometimento, pelo arguido, de novos factos da mesma natureza, entendemos que a manutenção do contacto com o filho menor poderá ser prejudicial para o crescimento e educação deste, razão por que, em nome do interesse do menor se decide interditar o exercício de responsabilidades parentais do progenitor, o ora arguido, pelo período de 8 anos».

16. Como vimos o recorrente pede a revogação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, ou, no limite, reduzida para o mínimo legal. Dispõe o art. 152.º/6, CP:

Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos (sublinhado nosso).

17. Aplicada a pena principal, por violência doméstica, a pena acessória em questão pode ser aplicada, desde que a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente a exija. Se um dado comportamento não é merecedor de pena (principal) por violência doméstica, não se lhe pode, obviamente, aplicar uma pena acessória; esta, como o nome indica, só pode acompanhar a pena principal. Sabendo-se que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis (art. 30.º/3, CRP e 65.º/1, CP), e que o arguido tem direitos e deveres quanto à educação do filho (art. 36.º/3, CRP), a limitação deste direito está submetido a uma clausula de legalidade, necessidade e proporcionalidade (art. 13.º/CRP).

18. Para a decisão recorrida foi linear a aplicação da pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, não se detendo o tribunal quando à legalidade e proporcionalidade da medida em concreto. Não se questionou se a pena acessória de inibição de responsabilidades parentais pode ser aplicada quando a vítima de violência doméstica não é o menor, mas a sua mãe.

19. Na fundamentação da pena acessória não foram identificados os concretos factos provados a que o menor assistiu. O facto provado 12, que diz «muitas destas situações foram presenciadas pelo filho», contrariamente ao afirmado pelo recorrente, já constava da acusação, mas padece de um carácter genérico que não permite elucidar quais as situações a que o menor assistiu, às mais graves? Às menos graves? Às ocorridas à noite? Estas, possivelmente não porque estaria a dormir... etc. Como adiante se verá, não terá sido por acaso que esta indefinição constou da acusação: na perspetiva da acusação essa narrativa era bastante para fazer funcionar a qualificativa do crime de violência doméstica (art. 152.º/2/a, CP), pois não foi requerida a aplicação da pena acessória em análise.

20. Socorrendo-se do relatório pericial psiquiátrico a decisão levou aos factos provados (48) o risco de o arguido vir a cometer novos atos da mesma natureza e daí deduziu que a manutenção do contacto com o filho menor poder ser prejudicial para o crescimento e educação deste, para em nome do interesse do menor decidir interditar o exercício de responsabilidades parentais do progenitor pelo período de 8 anos. O concreto juízo veiculado pelo relatório quanto ao aludido risco foi levado aos factos provados, pese embora essa alteração factual não tenha sido comunicada aos sujeitos processuais. Esse risco não foi convocado para a determinação da medida da pena de prisão. Se essa alteração factual tivesse sido relevante e ponderada para a determinação da pena de prisão pelo crime de violência doméstica estaríamos perante uma alteração não substancial, que não tendo sido introduzida conforme o disposto no art. 358.º, CPP, conduziria a nulidade da decisão nessa parte, art. 379.º/1/b, CPP. Como tal não ocorreu, não se verifica a nulidade, pois não basta fazer constar dos factos provados um facto novo relevante ao arrepio do mecanismo do art. 358.º, CPP, exige-se que esse facto depois seja ponderado em desfavor do arguido. Já a consideração dessa mesma factualidade em sede de aplicação de pena acessória muda de figura, não podendo ser considerada, por configurar alteração substancial dos factos, como tentaremos demonstrar.

21. O tribunal em momento prévio à decisão condenatória (ata de 5.7.2022 ref. ...18) entendeu proceder «a uma alteração da qualificação jurídica. Sendo a conduta indiciada [na acusação] passível de integrar uma eventual interdição do exercício das responsabilidades parentais, nos termos do art. 152.º, n.º 6 do Código Penal». Esta ocorrência processual – sabendo-se que todos os factos descritos na acusação passaram para o rol dos provados, em consequência da confissão do arguido – alerta-nos para o seguinte: ou o M.ºP.º na acusação, não tirou todas as consequências jurídicas dos factos que alegou omitindo a referência normativa a possível aplicação de pena acessória, ou a alteração da qualificação jurídica, não tinha, à data da sua comunicação, base factual bastante.

22. Se concluirmos que os factos não eram bastantes, como já deixamos entrever, não é caso de insuficiência dos factos provados, a desencadear reenvio. Se o tribunal em vista dos factos constantes da acusação alertou e deu conhecimento aos sujeitos processuais da possibilidade de esses factos também possibilitarem aplicação de pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, se concluirmos que esses factos são insuficientes para tal, a consequência é a revogação da pena acessória e não o reenvio para sanar a insuficiência de factos.

23. Se perante os mesmos factos o M.º P.º não acusa, não pede a aplicação da pena acessória, mas o tribunal depois de comunicar em tempo e pelo meio próprio a alteração da qualificação jurídica, condena em pena acessória, e se em recurso concluirmos que os factos provados não são suficientes para a consequência jurídica decretada, o remédio que temos é a revogação da pena acessória aplicada e não o reenvio para se apurarem os factos… Ordenando o reenvio, estaria o tribunal de recurso a violar o acusatório no seu desenho constitucional e legal, caucionando uma alteração substancial dos factos, quando o que foi comunicado ao arguido foi uma alteração da qualificação jurídica. Se a alteração da qualificação jurídica é(ra) em abstrato admissível, mas vier a concluir-se ser errada, admitir de seguida que se completem os factos para dar corpo à alteração da qualificação jurídica, constitui uma alteração substancial, pois passamos de uma realidade factual que não consentia a aplicação de pena acessória a uma outra realidade factual que a possibilita, mediante uma dupla alteração primeiro da qualificação jurídica, depois pelo acrescento de novos factos, factos estes que já possibilitam a aplicação da pena acessória. Ocorre algo de semelhante ao que acontece quando pela introdução de novos factos se transforma uma acusação inviável numa acusação que permite uma condenação penal. As precedentes considerações são válidas para os factos novos introduzidos nos provados em desrespeito pelo mecanismo do art. 358, CPP. Poderá dizer-se que o arguido pode aceitar essa alteração. Sim, pode até aceitar uma alteração não substancial. Mas no caso o arguido já deixou claro que não aceita a aplicação da pena acessória de inibição de responsabilidades parentais. E o processo justo e equitativo reclama de quem decide procedimentos claros e sem subterfúgios. Em conclusão, a alteração da qualificação jurídica (comunicação da possibilidade de aplicar uma pena acessória aos factos da acusação), combinada com a introdução de novos factos também relevantes para a nova qualificação jurídica operada, mas não comunicados, por isso sem a possibilidade de o arguido se defender da alteração factual, constitui alteração substancial não consentida, o que tem no caso como consequência não poder ser considerada no processo constituindo nulidade da decisão nessa parte (art. 379.º/1/b, CPP); mas como do comportamento processual do arguido se deduz que não aceita a alteração substancial, a nulidade pode ser sanada pela desconsideração no âmbito da aplicação da pena acessória da factualidade introduzida sem respeito pelas regras do art. 359.º, CPP.

Mas voltemos à pena acessória.

24. A afirmação do arguido relativa à paternidade do menor é censurável. Se o arguido não aceita(va) a paternidade tinha meios ao seu dispor para a impugnar. Mas as afirmações não constituem crime em relação ao menor; o arguido não foi acusado, nem condenado pela prática de crime de violência doméstica relativamente ao menor. Se a investigação teve esse âmbito, nessa parte, em despacho preliminar à acusação, o inquérito foi arquivado. Essa a razão possível por que a acusação não faz referência ao art. 152.º/6, CP, onde se prevê a pena acessória de inibição de responsabilidades parentais.

25. Os comportamentos do arguido são de indiscutível gravidade, mas visaram diretamente a companheira do arguido e mãe do menor, não o menor. Os comportamentos ocorreram antes do menor nascer, outros posteriormente e em relação aos por ele presenciados, além do já referido nomeadamente no ponto 19., não se deve perder de vista que ocorreram desde o seu nascimento até completar dois anos de idade, com o que isso significa e o que se apurou, ou não apurou, e consta dos factos provados. Por outro lado, o n.º 12 dos factos provados, reporta-se às situações relatadas antes desse número, isto é, no que aqui releva, aos seguintes factos: quando o arguido consumia bebidas alcoólicas em excesso dizia que o menor CC não era seu filho; que se a ofendida revelasse a terceiros as agressões verbais e físicas que sofria, iria fugir com o filho menor e a ofendida nunca mais o via; e que desde Novembro de 2015 até Janeiro de 2019, pelo menos uma vez por mês, o arguido agredia fisicamente a ofendida (mesmo quando esta estava grávida), desferindo-lhe murros e pontapés pelo corpo e atirando objectos e vasos que estivessem à mão contra o corpo daquela.

26. Além das considerações já expendidas, nomeadamente no ponto 19., diremos que as condutas do arguido não constituem, de per si, facto criminoso tendo como vítima o menor. Não tendo o arguido sido condenado por crime de violência doméstica na pessoa do seu filho menor, em princípio não pode ser condenado na pena acessória de inibição das responsabilidades parentais. Acresce que os factos que o menor presenciou são parte de um quadro de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado, mas não têm conexão direta com a função exercida pelo agente pelo que não lhe pode ser imposta a questionada pena acessória.

27. Admitindo-se, quanto mais não seja por eficácia de argumentação, que o pressuposto de aplicação da pena acessória possa ser também a prática de facto criminoso contra outrem, que não o menor, desde que esse facto seja conexo com as responsabilidades parentais, e do mesmo passo admitindo-se como verificada no caso a exigida conexão, importa dizer que apenas a afirmação do arguido relativa à paternidade do menor viola o dever de respeito que o pai deve ter em relação ao filho (art. 1874.º/1, CC).

28. A decisão enfoca e considera apenas o passado quando, partindo dos factos, devia ponderar a realidade dinâmica, passado, presente e futuro. Importa perspetivar o cumprimento da pena e o futuro após a libertação. E admitir como provável que as penas aplicadas surtam algum efeito, pois é essa a sua finalidade… esse é um postulado do direito penal, possibilidade que em concreto não foi desmentida. A decisão recorrida esqueceu na ponderação da aplicação da pena acessória que o nosso ordenamento jurídico assenta num princípio fundamental da corrigibilidade do delinquente; importando também atender, cumpre sublinhar, aos estudos estatísticos relativos à reincidência no domínio da violência doméstica, em que as motivações para a prática deste crime são complexas e contendem com padrões de conduta interiorizados pelo agressor ao longo de décadas, paradigmas de resposta assentes numa ideia de sociedade patriarcal, supra/infra ordenada, que não desaparecem como mero efeito do cumprimento da pena (Maria Elisabete Ferreira, Julgar Online, março de 2018, p. 6).

29. É pressuposto que os tribunais procedem com o cuidado necessário ao determinar a medida da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais de modo proporcional à gravidade da infração, às exigências de prevenção do caso e, mormente, ao interesse do menor (Maria Elisabete Ferreira, Julgar Online, março de 2018, p. 8 e ss). Admitindo que o menor ouviu as expressões, não sabemos se o menor chegou a entender o que ouvia, atendendo à sua idade. Mesmo que se desconsidere essa dúvida, perante o quadro factual apurado na parte relevante para a aplicação da pena acessória de inibição de responsabilidades parentais, afirmar a necessidade de aplicação de uma pena acessória é um passo que a proporcionalidade não permite. Desde logo porque a decisão recorrida esqueceu-se de chamar à discussão a seguinte circunstância constante do ponto 53: «[o arguido] dispõe do apoio/suporte destes familiares, e ainda nas visitas do filho, que faz com periodicidade quinzenal e, que de há 1 ano a esta parte são mediadas pela mãe do arguido». Se a decisão recorrida não reporta incidentes no exercício das responsabilidades parentais no período da pendência deste processo é porque eles não existiram. Essa é uma indicação clara no sentido de que o caso concreto não reclama a intervenção do direito penal, como direito de última ratio, isto é, a aplicação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, porquanto o regime estritamente civil, já desencadeado, responde a contento às necessidades de tutela em causa, com a vantagem de oferecer um mecanismo de resposta maleável e adequado à dinâmica do exercício do poder dever em causa e ao previsível arrepiar caminho por parte do arguido, depois da certeza da condenação e início de cumprimentos da pena, o que não se verifica com a pena acessória, por sua natureza imutável depois de aplicada. A aplicação da pena acessória não é automática e importa não desconsiderar a subsidiariedade da intervenção penal.

30. Em conclusão não há fundamento legal para aplicar a pena acessória; admitindo-se que essa aplicação é consentida no caso, a compatibilização e congruência dos direitos fundamentais em conflito é realizada a contento pelo regime civil das responsabilidades parentais, pelo não é necessária a aplicação da pena acessória de inibição das responsabilidades parentais. Assim, não pode subsistir a pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais relativamente ao menor CC pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do art. 152.º n.º 6 do Código Penal, que se revoga.

Resta a responsabilidade civil.

31. Diz o recorrente que se impõe uma redução do quantum indemnizatório para um valor que seja adequado para o ressarcimento à vítima, mas também mais justo para o arguido.

As lesões sofridas pela arguida foram as seguintes:

29. Como consequência da conduta do arguido, sofreu a ofendida as seguintes lesões: - múltiplas equimoses dispersas pela face, membros, dorso, nádegas, tórax e abdómen; - hematoma peri-orbitário; - ferida na região do mento; - escoriações com equimose ao nível da anca mais à direita; - hematoma epicraniano fronto-parietal direito; - fracturas bilaterais das apófises transversárias de L2, L3 e L4; - laceração extensa ano-retal.

30. Tais lesões determinaram 552 (quinhentos e cinquenta e dois dias) para a consolidação médico legal e com afectação total da capacidade de trabalho profissional, sendo:

a) 30 (trinta) dias, com afectação total da capacidade de trabalho geral; e,

b) 492 (quatrocentos e noventa e dois) dias, com afectação parcial da capacidade de trabalho profissional.

E estas as consequências permanentes das lesões:

31. Ademais, como consequências permanentes das lesões descritas resultaram as seguintes: - presença na face de cicatriz nacarada, oblíqua de baixo para cima e da direita para a esquerda, com 2cm de comprimento, localizada ao nível do mento; - presença de calo ósseo ao nível do 8º, 9º, 10º e 11º arcos costais esquerdo e das apófises espinhosas da 2ª, 3ª e 4ª vértebras lombares; - laceração do esfíncter anal com necessidade de realização de colostomia, a qual terá condicionado doença particularmente dolorosa; - perda de capacidade de defecação, com desfiguração associada (tendo em conta a presença de saco de colostomia e limitações inerentes);

Basta ponderar o quadro das consequências permanentes para a vítima, em resultado da conduta do arguido, para taxar de infundada a sua pretensão. Improcede nesta parte o recurso.

Uma última nota. Não sendo este recurso o meio próprio, importa deixar registo de que nada nos autos permite a afirmação do arguido de que ocorreu violação do dever imparcialidade.

III

Decisão:

Acordam em julgar parcialmente procedente o recurso do arguido e em consequência fixar a pena de prisão em seis (6) anos e seis (6) meses; e em revogar a pena acessória de inibição de responsabilidades parentais imposta ao arguido.

Sem tributação

Supremo tribunal de Justiça, 07.12.2022.

António Gama (Relator)

João Guerra.

Orlando Gonçalves