Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5407/16.9T8ALM.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
PESSOA COLETIVA DE DIREITO PÚBLICO
MUNICÍPIO
DIREITO AO BOM NOME
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
COLISÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ATO ILÍCITO
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. O titular do direito de personalidade ao bom nome pode ser uma pessoa coletiva pública, como um Município.
II. O bom funcionamento e democraticidade das instituições políticas, incluindo as que integram o poder local, como os Municípios, exige uma transparência na sua atuação e uma possibilidade de controle pelos munícipes que legitimam uma intensa liberdade de informação, discussão, divulgação e opinião sobre os atos dos seus órgãos representativos ou serviços.

III. Daí que, em princípio, não só a divulgação de factos verdadeiros que reproduzam, revelem ou denunciem tais atos, mesmo que afetem o bom nome do Município, não poderão considerar-se ilícitos, estando fora do campo de previsão do artigo 484.º do Código Civil, como, sendo divulgados factos inverídicos, a prova da sua falsidade deve competir ao ente público, de modo a prevenir a hipótese de, por insuficiência de prova, alguém possa ser responsabilizado pela divulgação de factos verdadeiros.

IV. Numa matéria em que a transparência e a garantia do controle dos poderes públicos são exigências do Estado de direito democrático, a liberdade de expressão assume uma extensão máxima, comprimindo consequentemente o direito ao bom nome do Município.

V. Nesta aparente colisão de direitos, o âmbito de proteção do direito ao bom nome é objeto de severa restrição, perante a amplitude que assume a liberdade de expressão, em obediência a um juízo de proporcionalidade.

VI. Na determinação dos limites entre estes direitos, não pode deixar de se atender à abundante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em casos semelhantes, sendo notória a preocupação deste tribunal internacional em garantir a liberdade de expressão, através da redução da área de proteção do direito ao bom nome.

VII. A mera atribuição de um facto inverídico a outrem não é, porém, suficiente para que se considere que estamos perante uma violação do bom nome da pessoa a quem foi atribuído essa falsa factualidade, sendo também necessário que a divulgação desse facto seja idónea a prejudicar esse bom nome.

VIII. A área de proteção do direito ao bom nome nas pessoas coletivas públicas não abrange, pois, a divulgação de todos os factos inverídicos imputados a um Município, mas apenas aqueles, cujo grau elevado de danosidade, justifique, como última ratio, uma intervenção heterotutelar reparadora/sancionadora.

IX. Nestas situações, existe uma margem alargada de tolerância que retira do alcance dos meios de tutela dos direitos de personalidade, aquelas ações que não afetam num grau significativo o bom nome do Município, facultando o ordenamento jurídico outros meios de repor a verdade adulterada no exercício da liberdade de expressão (v.g. o exercício do direito de resposta previsto nos artigos 24.º e seguintes da Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro – Lei de Imprensa).

Decisão Texto Integral:

*

I – Relatório

O Autor propôs ação declarativa com processo comum contra o Réu, alegando, em síntese, que este, em entrevista a um órgão de comunicação social, proferiu diversas afirmações, que sabia falsas, sobre situações em que o Município teria tido intervenção, imputando aos seus órgãos condutas ilegais, assim afetando a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao Autor, causando-lhe danos não patrimoniais, para cujo ressarcimento reputa adequado o pagamento do montante de € 60.000,00.

Concluiu, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe tal montante, acrescido de juros de mora, e a suportar o custo de publicação da sentença que assim o condene.

Contestou o Réu, alegando que a entrevista visava repor aquela que entendia ser a verdade dos factos, envolvendo o processo disciplinar que o Autor lhe moveu e que resultou na sua demissão, nunca tendo visado denegrir a imagem do Autor, como não o fez, sendo a entrevista um ato de legítima defesa e de exercício de direito à opinião.

Concluiu pela sua absolvição do pedido.

Foi proferida sentença que absolveu o Réu dos pedidos formulados pelo Autor.

O Autor interpôs recurso desta decisão, tendo o Tribunal da Relação …, com um voto de vencido, proferido acórdão que revogou parcialmente a decisão recorrida, passando a condenar o Réu a suportar a despesa da publicação no Jornal  …, com idêntico destaque ao da entrevista referida no ponto 14-B, do seguinte texto:

“Na edição do dia ….…… de ……. do Jornal "…", foi publicada nas páginas …, ….. e ….., uma entrevista de AA, constando, para além do mais, o título "CM …. compactuou para a perda do Estádio  ….".

O MUNICÍPIO … instaurou um processo civil contra o Réu AA por entender que o Réu tinha proferido, nessa entrevista, diversas afirmações que sabia falsas.

No referido processo o Réu AA foi condenado a suportar a presente publicação por se ter provado que ao dar a entrevista sabia da falsidade das acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez aos membros da Câmara Municipal, quanto à atribuição de artigos matriciais para autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio …. e quanto à viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal”.

Este acórdão manteve a absolvição do Réu do demais peticionado.

O Réu interpôs recurso de revista desta decisão, tendo concluído, no essencial, as suas alegações do seguinte modo:

...

V - A decisão do Tribunal da Relação …. assenta essencialmente, na existência da colisão de dois direitos Constitucionalmente reconhecidos de valor equiparado e sujeitos a ponderação entre si uma vez que nada existe na Constituição que imponha a prevalência de um sobre o outro, sendo ambos construídos no enquadramento do princípio da dignidade humana.

VI - Salvo o devido respeito, que é muito, discorda-se do assim decidido porquanto na sentença proferida na primeira instância, a Mmª. Juiz considerou decidiu e bem, pela inexistência da prática de qualquer facto ilícito pelo Réu. Sendo que, na fundamentação de direito da douta sentença e à semelhança dos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação …., procede à análise da entrevista em questão, subdividindo a mesma em duas partes.

VII - Analisando ainda forma exaustiva, o Tribunal de 1ª instância, forma exaustiva o direito do Réu ao Exercício da Liberdade de Expressão, seu alcance e respetivas limitações ao direito à honra da Autora.

VIII - Salvo o devido respeito que é muito, cremos que a posição primeira instância é a correta, sendo que a posição adotada no douto Acórdão do Tribunal da Relação …., ora em crise, enferma de violação da lei substantiva, por erro de interpretação, nos termos do disposto no artº 674 nº 1 alínea a) do CP

IX - Uma vez que, nos parece imprescindível que mesmo antes de ponderar a existência ou não de restrição ao exercício da liberdade de expressão sempre o Tribunal da Relação …. teria de ter previamente ponderado a existência, ou não da prática de qualquer ato ilícito por parte do Réu e aqui apelante.

X - Uma vez que, resulta também provado que o aqui apelante deu a entrevista de que se cura, para limpar a sua imagem pessoal e profissional, pois à data da entrevista não possuía qualquer credibilidade junto dos munícipes do …, tendo perdido a mesma ao longo de todo o curso do processo crime e exoneração de cargos que exercia na Câmara Municipal … (factos provados 51. a 53 – Acórdão Tribunal Relação … ).

XI - Sendo que da referida entrevista não resulta o lançamento de dúvidas de forma generalizada sobre o alegado cometimento de ilegalidades por parte da Autora.

XII - Antes mesmo de ponderar a prevalência ou cedência do exercício da liberdade de expressão do Réu perante o direito à honra e bom nome da Autora, sempre teria de aferir da existência da violação desse mesmo direito. O que, nos termos da decisão de 1ª instância não existiu, conforme supra referido e fundamentado.

XIII - O Tribunal da Relação …, no douto aresto, ora sob censura, modificado a matéria de facto dada como provada por forma a conduzir a conclusão diferente da decidida em 1ª instância.

XIV - Aliás, em sede de Recurso a Autora não impugnou a matéria de facto dada como assente.

Sendo que esta matéria de facto dada como provada resultou inequívoca de uma conjugação e articulação da prova documental e testemunhal sujeita a um escrutínio escrupuloso e minucioso da Mmª. Juiz de Direito do Tribunal a quo, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova acolhido no art. 607º, nº 5, do CPC.

XV - Sendo que, a mesma não foi impugnada em sede de Recurso nem sequer pedida a sua reapreciação pelo Tribunal da Relação ….

XVI - A decisão proferida em sede de 1ª Instância, resulta em absoluto da análise critica da prova feita pelo julgador perante quem a mesma foi produzida e que em face da mesma, de acordo com os princípios da imediação, da oralidade e da concentração decide de acordo com as impressões recém-colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as regras da ciência, do raciocínio, e das máximas da experiência, que forem aplicáveis. No mesmo sentido veja-se Acórdão Tribunal Constitucional nº 198/2004 (DR, II de 2.06.2004, páginas 8545 e seguintes

XVII - Tendo o Tribunal de 1ª instância decidido e bem, pela inexistência de acto ilícito porquanto existe uma inaptidão objetiva da entrevista do R.,aliada à sua inidoneidade, sobejamente confirmada por todas as testemunhas quer da Autora quer do Réu, para causar danos no bom nome da Autora. Para além de que da referida entrevista não resultou qualquer dúvida sobre a sua atuação no tratamento do assunto em análise, não estando assim perante a prática de um ato ilícito.

XVIII - Ao decidir como decidiu, pela absolvição do R. do pedido, o Tribunal a quo, em face da inexistência dos pressupostos legais da responsabilidade civil, não merece qualquer censura a douta sentença proferida nos autos.

XIX - Aliás, sendo claro e inequívoco que estamos perante uma situação de inegável interesse publico, reconhecido quer na douta sentença proferida em 1ª instância quer no douto Acórdão do Tribunal da Relação …. de que ora se recorre e ainda o facto de estarmos perante uma entidade publica, sempre deverá prevalecer a liberdade de expressão do Réu, como direito maior, para efeitos do disposto no artº 10º da CEDH.

XX - Não se encontrando, em nosso modesto entendimento, ultrapassados os limites ou restrições que vêm sendo impostas e decidas pela Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, aliás, diga-se sobejamente citada no Acórdão ora sob censura e na douta sentença proferida em sede de 1ª instância.

XXI - Pelo que deve manter-se na integra a douta decisão proferida em 1ª instância, revogando-se o douto Acórdão, ora sob censura porquanto o mesmo enferma de violação da lei substantiva, por erro de interpretação, nos termos do disposto no artº 674 nº 1 alínea a) do CPC.

O Autor apresentou contra-alegações, sustentando a manutenção da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.


*


II – Os factos

Foram considerados provados os seguintes factos [1]:

1. O R. foi funcionário do Município A., tendo iniciado funções na Câmara Municipal …. em ….1986, como contratado além do quadro, e celebrado contrato de prestação eventual de serviços para exercer as funções de …. .

2. O R. ingressou no quadro de pessoal da Câmara Municipal …. através de concurso externo de ingresso, aberto por aviso publicado no DR III série, n.º …., de …./.../1986, tendo sido nomeado por deliberação de Câmara datada de …/…../1986, conforme aviso publicado no DR III série, n.º …, de …/…/1987.

3. O R. foi nomeado Técnico …. de …. classe por Deliberação de Câmara datada de …./…./1989, conforme Edital n.º …., de …../……/1989, mediante aprovação prévia em concurso interno de promoção, aberto por Edital n.º ….., de …../…../1989.

4. O R. foi nomeado Técnico ……. por Despacho do Senhor Vereador do Pessoal datado de …/…/1992, conforme aviso publicado no DR III série, n.º …., de …/…./1992, mediante aprovação prévia em concurso interno de promoção, aberto por aviso publicado no DR III série, n.º …, de …/…./1992.

5. O R. foi nomeado …, com efeitos reportados a …./…/1998, por Despacho do Senhor Presidente da Câmara Municipal datado …/…./2002, conforme aviso publicado no DR III série, de …/…./2002.

6. O R. esteve nomeado, em Comissão de Serviço, no cargo de … do Departamento de …. desde …./…./1987, com última renovação datada de …../…../2009, e terminou a comissão de serviço em …./…./2010.

7. O R. foi nomeado, em regime de substituição, no cargo de …… do Departamento do ……., por Despacho n.º …-PCM/2011, de ….. de ……, com efeitos reportados a …./…./2011, tendo cessado a nomeação em …/…../2011.

8. O R. foi nomeado, em regime de substituição, no cargo de ……do Gabinete do …, equiparado a cargo de … intermédia de …. grau, por Despacho n.º ….-PCM/2011, de …. de …, tendo cessado a nomeação em …./…./2012.

9. Desde 1994 o R. acumulou as funções de …. com o exercício de funções de … do Município …, tendo a última nomeação ocorrido em …. de ……. de 2009 e cessado em …. de …. de 2012.

10. Na Reunião Ordinária da Câmara Municipal …, realizada em … de …. de 2016, foi tomada a Deliberação n.º ...., nos termos da qual foi aplicada ao R. a sanção disciplinar de demissão (doc. 1 - fls. 24 a 39).

11. O referido ato administrativo que aplicou a sanção disciplinar ao R. foi por este judicialmente impugnado no processo cautelar de suspensão da eficácia do ato, que corre termos na Unidade Orgânica …. do Tribunal Administrativo e Fiscal …, como Proc. n.° 245/16…, no qual foi proferida Sentença que indeferiu o procedimento cautelar, tendo esta Sentença sido revogada por Acórdão que julgou improcedente o procedimento cautelar, já transitado em julgado (fls. 275 a 313-v).

12. No processo disciplinar instaurado pelo Município A. ao R. e que culminou com a aplicação da sanção de demissão, considerou-se que foram apurados factos que consubstanciam a prática pelo R. de uma conduta dolosa que desrespeitou gravemente e atentou contra a honra e a imagem pública da Câmara Municipal …, dos seus membros e trabalhadores e que é manifestamente ofensiva da instituição Município … (fls. 275 a 313-v).

13. Os factos aludidos em 12. são os que respeitam à entrevista que o R. deu ao Jornal "…", na edição do dia …. de ….. de ….. (fls. 275 a 313-v).

14. A. Na edição do dia …. de …… de …. do Jornal "…", foi publicada nas páginas …., …. e …., uma entrevista do R. (doc. 2 - fls. 39-v a 41), da qual consta o seguinte:

"(Jornalista) Durante todo este tempo, tem-se mantido em silêncio perante as acusações feitas à sua gestão do SF…. No âmbito de um processo interposto pelo Ministério Público, foi exonerado do cargo de …. da CM… e do cargo de …. do Projecto …. As suas declarações públicas neste momento são uma forma de «vingança» em relação à forma como foi tratado pela CM….?"

(R.) Há muitas pessoas que me fazem essa pergunta, porque é que eu mudei a minha atitude, e digo-vos muito claramente, que foi porque entendi que a CM…. teve mais do que tempo para tomar a atitude que devia ter tomado e não o fez. Fui ……. da CM… desde ….. de 1986 até … de ….. de 2011. Dessa data até …. de ….. de 2012, fui ……. do Projecto ……... Em … de ….. de 2012 fui exonerado de ambas as funções por BB. Perante tudo isto, afirmo que a CM…. foi desonesta, quer política quer pessoalmente. Tudo começou com uma denúncia anónima que deu origem ao processo, feita a …. de ……. de 2003 ao Director da Polícia Judiciária. Nesta era dito o seguinte: «durante os últimos anos e ainda presentemente, têm vindo alguns altos responsáveis da CM... a desviar verbas públicas para pagar despesas de alimentação entre outras do Clube de Futebol …, das equipas de basket e de «okei» em patins num conhecido restaurante desta zona» e ainda «no que diz respeito às obras públicas, a troco de algum tipo de subornos, têm alguns altos responsáveis da Câmara vindo durante os últimos anos a entregar a realização dessas mesmas obras a determinados empreiteiros antes de abrirem concurso público (...) e estes empreiteiros continuam a realizar obras em casa do próprio presidente e de amigos e familiares do mesmo.» (segundo documento a que o Jornaç «…..» teve acesso). No âmbito deste processo, em 2008 a PJ realizou buscas ao meu escritório e às instalações municipais. Mas a CM… imputou tudo para cima de mim. Basta ver o comunicado que foi feito depois das buscas pela PJ, onde diziam que aquilo era unicamente uma questão particular e que tinha única e exclusivamente a ver com o funcionário AA e nada tinha a ver com a CM…. Depois da fase de Acusação, dá-se a fase de Instrução em que o processo é apreciado para verificar se existe alguma razoabilidade para continuar. A CM… constitui-se assistente no processo, para poder saber o andamento do mesmo e na fase de Instrução pede a minha condenação. Dá-se então a fase do julgamento, e é no final deste que a CM… volta a pedir a minha condenação.

-"(Jornalista) No entanto, e tendo em conta que a CM… sempre afirmou

que não se imiscui nos assuntos das colectividades, e se a acusação era relativa ao SFC,

com que base pediu a sua condenação?"

(R.) Essa é que é a questão. A CM… afirma que não se imiscui mas dava-lhe muito jeito ter um «bode expiatório». E mesmo depois das coisas provadas e do tribunal nos ter ilibado pela totalidade dos crimes de que fomos acusados, a CM… continuou a não reconhecer a minha inocência, após mais de vinte anos a trabalhar nesta instituição. Por outro lado, a CM… também foi indigna porque não teve a capacidade nem o reconhecimento de todo o trabalho feito por mim na …… do SFC.

-"(Jornalista) Neste momento, qual é a sua relação com a CM…?"

(R.) Actualmente sou um … na CM…, colocado no Departamento …, a fazer estudos pela internet. A CM… condenou-me, não tendo em conta a presunção de inocência que está constitucionalmente consagrada. Condenou-me retirando-me a Comissão de Serviço, retirando-me as funções de …, com base numa acusação e numa notícia do «…». E com isto prejudicou-me financeiramente em vinte mil euros por ano. E estou a aguardar para ter uma reunião com os responsáveis para colocar e ver respondidas estas questões: Porque é que pediram a minha condenação por duas vezes, conhecendo como conhecem o processo; porque é que me condenaram ilegalmente retirando-me as funções e o que é que estão a fazer para me ressarcirem dos prejuízos que tive até agora, para além dos incómodos e dos estragos feitos à minha imagem. Vou fazer tudo o que a Lei me permitir para que seja reposta a legalidade em relação a mim relativamente à CM… .

14-B. - "CM  …. compactuou para a perda do Estádio …". -"AA acusa ainda a autarquia de «cumplicidade, conivência e ilegalidade, ao emitir as declarações em como as construções existentes, no perímetro do Estádio …., sendo instalações de apoio à actividade desportiva, eram anteriores a 1951, quando isso é falso. Todas aquelas construções: Balneários, Posto Médico, Casa ……. e Lavandaria, são posteriores a 1951. Os Balneários atrás da baliza, com entrada subterrânea, foram construídos em 1964, o Posto Médico, a Lavandaria e a Casa do …. foram construídos na década de 1970 e posteriormente tiveram várias melhorias. A CM …., ao emitir essas declarações, sabia que estava a cometer uma ilegalidade, reconhecendo como propriedades autónomas as parcelas naquele terreno. E sabia perfeitamente que nenhuma das cinco parcelas eram independentes, pois fazem parte das instalações de apoio ao equipamento desportivo e tinham um contador para abastecimento de água e outro para o fornecimento de energia eléctrica, como uma única parcela. Foi autorizada a instalação de um ramal de abastecimento de água independente a uma das parcelas, contrariando os pareceres técnicos, uma vez que a mesma não tem acesso pela via pública. E no Registo Predial, foi efectuada a alteração da morada dessa parcela, o que só era possível com uma declaração da CM….»"

- "Outro aspecto que AA sublinha é que «foi adulterada a morada das fracções entretanto criadas, uma vez que, situando-se as mesmas no interior do Estádio, não podiam ter a mesma morada que consta nas declarações emitidas pela CM…. A Câmara Municipal não pode dar outra morada nem outro «número de polícia» às novas parcelas se não houver uma operação de loteamento.»"

"AA não tem dúvidas que «a assunção destas parcelas levou a que fosse possível a penhora do Estádio …… e a subsequente venda. Se a autarquia não tivesse emitido essas declarações, aquando da venda em hasta pública por parte das Finanças, nenhuma destas vendas podia ter sido feita. Mesmo com a penhora, não se podia concretizar a transmissão das parcelas, uma vez que não poderia ter sido feita a transmissão da propriedade, porque faltava um elemento essencial, que neste momento é obrigatório: a licença de utilização. E a CM… estaria em condições de negociar a compra do Estádio no seu todo e, se calhar, até pelo valor de apenas 5 euros, tendo em conta que a base de licitação foi de 1 euro. Como se veio a verificar, quem comprou e registou as fracções distintas, veio a ganhar muito com a sua posterior revenda ao …. Futebol SAD e a outras entidades.»"

"No âmbito deste processo, acusa que «houve aqui um conjunto de ilegalidades graves e hoje, não tenho dúvidas nenhumas que, em função do quadro que está estabelecido, a Câmara Municipal …. vai ficar com o Estádio …., com todos estes problemas que estão associados, nomeadamente ter pessoas a morar dentro de um Estádio Municipal, para além dos casos dos proprietários que ainda não venderam as suas partes. A CM… terá de definir os espaços comuns ou terá de negociar com os proprietários e, aqui, mais uma vez, a autarquia vai ter de desembolsar dinheiro para pessoas que, com todo o direito, compraram as parcelas para lucrarem com isso.»".

15. O R. referia-se na entrevista ao processo comum coletivo que correu termos na Instância Central Criminal da Comarca …, como Processo n.° 700/05…, no qual lhe era imputada a prática dos crimes de peculato de uso, peculato e participação económica em negócio, e onde a CM…. se constituiu Assistente, tendo no mesmo sido proferido Acórdão, a …. …. .2014, transitado em julgado a … …. .2015, que o absolveu das imputações (fls. 160 a 216).

16. Como resulta da decisão da matéria de facto constante dessa Sentença, não ficaram demonstrados os factos descritos na acusação (fls. 160 a 216).

17. A cessação de funções do R. como … da Câmara Municipal … encontra-se fundamentada no Despacho n.º ….. CM/2012, de … de … de 2012 (doc. 4-fls. 71 a 71v).

18. A cessação da comissão de serviço do R. do cargo de … do Projeto do …. encontra-se fundamentada no Despacho n.º .....CM/2012, de … de … de 2012 (doc. 5 -fls. 72 a 72-v).

19. No que respeita à situação dos prédios existentes no perímetro do Estádio …, a Autoridade Tributária e Aduaneira (Serviço de Finanças de …..) veio informar sobre a tramitação das vendas desses imóveis no âmbito dos processos de execução fiscal instaurados contra o …. Futebol Clube (doc. 6 - fls. 73 a 76).

20. Trata-se de imóveis que integravam o património do referido clube e que respondiam pelas dívidas perante os credores, nomeadamente as de natureza fiscal, que justificaram a penhora desses bens e a subsequente venda coerciva.

21. A venda dos imóveis nos processos de execução fiscal não dependeu da emissão de licenças de utilização pela Câmara Municipal … (doc. 6 - fls. 73 a 76).

22. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ….. sob o n.º  …, da freguesia ……, e inscrito na matriz predial sob o artigo …, foi adquirido por …. - Sociedade de Investimentos Imobiliários, Lda., por adjudicação em venda por negociação particular, promovida no processo de execução fiscal instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira contra o … Futebol Clube, tendo a aquisição sido registada em ….. de … de 2009, pela Apresentação n.º ….. (doc. 7-fls. 76-va77).

23. Só após a venda do imóvel naquele processo é que a nova proprietária, .... - Sociedade de Investimentos Imobiliários, Lda., veio, em …. de ….. de 2009, requerer ao Presidente da Câmara Municipal … que mandasse certificar que a construção, correspondente ao edifício da antiga Lavandaria, é anterior a 1951 (doc. 8-fls. 77-v).

24. A certidão requerida foi emitida pela Câmara Municipal … em ….. de ….. de 2009 (doc. 9 - fls. 78).

25. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial … sob o n.9 ….., da freguesia …, e inscrito na matriz predial sob o artigo …, foi adquirido por CC, por adjudicação em processo de execução fiscal instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira contra o …. Futebol Clube, tendo a aquisição sido registada em …. de …. de  2010, pela Apresentação n.º …. (doc. 10 - fls. 78-v).

26. Só após a venda do imóvel naquele processo é que a nova proprietária, CC, veio, em … ….. de 2014, requerer ao Presidente da Câmara Municipal …. que mandasse certificar que a construção, correspondente ao edifício da antiga Casa …., é anterior a 1951 (doc. 11 - fls. 79).

27. A certidão requerida foi emitida pela Câmara Municipal … em … de ….. de 2014 (doc. 12 - fls. 79-v).

28. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial … sob o n.º …, da freguesia …, e inscrito na matriz predial sob o artigo …, foi adquirido por CC, por negociação particular, em processo de execução fiscal instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira contra o …. Futebol Clube, tendo a aquisição sido registada em …. de ….. de 2013, pela Apresentação n.º … (doc. 13 - fls. 80).

29. Só após a venda do imóvel naquele processo é que a nova proprietária, CC, veio, em 15 de julho de 2014, requerer ao Presidente da Câmara Municipal …. que mandasse certificar que a construção, correspondente ao antigo Posto Médico, é anterior a 1951 (doc. 14-fls. 80-v).

30. E a Câmara Municipal … não emitiu nenhum documento a certificar tal facto (doc. 15 - fls. 81 a 81-v).

31. A emissão das declarações aludidas em 24. e 27. não pressupõe qualquer reconhecimento, por parte da Câmara Municipal, de autonomia de propriedades, porquanto apenas é atestado, por observação, se o processo construtivo coincide ou não com os métodos construtivos daquela data (doc. 15 - fls. 81 a 81-v).

32. No Processo de Obras n.º …/2010, referente ao Edifício da antiga Lavandaria, consta um pedido de ligação de ramal de água, o qual não foi concluído por falta de resposta da requerente, pelo que não existe qualquer autorização para a ligação do ramal de abastecimento de água (doc. 15-fls. 81 a 81-v).

33. Ainda no mesmo processo de obras foi emitida uma certidão de número de polícia com a toponímia correta para esta construção, mediante pedido da proprietária (doc. 15 -fls. 81 a 81-v).

34. Não é obrigatória a prévia operação de loteamento, para o efeito de atribuição de topónimos e/ou números de polícia (doc. 15 - fls. 81 a 81-v).

35. Não foi emitido pela Câmara Municipal ….. qualquer ato administrativo prévio à venda dos imóveis do …… Futebol Clube nos processos de execução fiscal, nem tal lhe foi solicitado pelo Serviço de Finanças …… onde decorreu o processo da venda dos bens (doc. 6 - fls. 73 a 76).

36. No dia … de …… de 2012 foi celebrada uma escritura de compra e venda (doc. 17 - fls. 82-v a 84-v), da qual consta a venda à "…….. - Futebol, SAD", do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ….., com o n.º ….., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …., da freguesia ……, composto de balneários e aquecimento, sito na Rua ……, constando ainda da referida escritura a referência que foi exibida uma certidão emitida pela Câmara Municipal ……., em … de ….. de 2012, nos termos da qual se refere que as edificações existentes no prédio foram construídas anteriormente a 1951, pelo que é dispensada a respetiva licença de habitação.

37. No procedimento disciplinar, o R. alegou que as instalações dentro do perímetro do Estádio …… eram de apoio ao equipamento desportivo, a saber, recinto desportivo com campo de jogos e bancadas, balneários e aquecimento, casa do ……, lavandaria e posto médico, que tinham acesso pelo portão do Estádio e não confinavam com a via pública, questionou as declarações emitidas pela Câmara Municipal em como as construções existentes nos imóveis são anteriores a 1951, alegou a existência de instalações elétricas e de água comuns, e questionou a alteração de toponímia dos imóveis (fls. 253 a 269-v).

38. O R. alegou na sua defesa apresentada no processo disciplinar que alguém da Direção …… Futebol Clube, em 2004, promoveu junto do Serviço de Finanças ……. a inscrição matricial, como propriedades autónomas, dos imóveis existentes no perímetro do Estádio …….. e acrescentou que foi com base nessas inscrições matriciais que um solicitador de execução requereu o registo desses prédios na Conservatória do Registo Predial (fls. 253 a 269-v).

39. O R. sabe que não foi da responsabilidade da Câmara Municipal ……. a constituição de propriedades autónomas no perímetro do Estádio ……., que veio a permitir a penhora desses imóveis e a subsequente venda.

40. Nos Modelos 121 dos artigos matriciais dos prédios consta que as construções são posteriores a 1951 (docs. 5 e 6 juntos com a contestação - fls. 118 a 119-v).

42. O R. revelou na sua defesa apresentada no processo disciplinar ser conhecedor dos processos de execução fiscal instaurados contra o …….. Futebol Clube e dos sucessivos atos de venda e de revenda dos imóveis penhorados, juntando documentos, situação à qual não é alheio o facto do R. ter sido Presidente do ……. Futebol Clube (fls. 253 a 269-v).

43. O Réu sabia da falsidade das acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez aos membros da Câmara Municipal quanto à atribuição de artigos matriciais para autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio ……. e quanto à viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal.

44. Em virtude de ter sido …. e … da Câmara Municipal …. durante largos anos, o R. tem notoriedade junto da população.

45. O assunto já era abordado nas redes sociais (doc. 18 - fls. 85 a 85-v).

47. Na sequência da publicação da entrevista dada pelo R. ao Jornal, sucederam-se na comunidade local comentários e reações sobre o teor dessas declarações.

48. O assunto foi também objeto de novos comentários no Facebook (doc. 19 -fls. 86 a 88-v).

49. Na reunião ordinária da Câmara Municipal … de … .02.2016, o munícipe DD interpelou o Presidente e os Vereadores nos seguintes termos: "Sobre o Estádio …., incomoda-me ler no facebook os insultos constantes à câmara, tem que haver uma posição, um esclarecimento porque é muita gente a ler aquilo e eu tenho confiança, como sempre tive, nas pessoas eleitas nesta câmara" (doc. 20-fls. 89 e 270 a 270-v).

50. Consta do despacho nº …..CM/2012, de … de …… de 2012, que determina a cessação de funções do R. como … do Gabinete do …, o seguinte: " (...) Com base na informação recente disponibilizada pela Procuradoria-Geral Distrital …., foi publicitado que, no âmbito do inquérito n.º 700/05……, do ….., por despacho final, de …… de 2012, o Ministério Público acusou, pela prática de crimes 81) peculato de usos (artigo 376.º, n.º 1, do Código Penal), (2) de peculato (artigo 375.º do Cód. Penal) e (3) de participação económica em negócio (artigo 377.º do Cód. Penal), o arguido que é trabalhador da Câmara Municipal ……., ……. Gabinete “……”, ……da CM…… e à data ……. do “……. Futebol Clube”. Considerando o supra exposto, determino o seguinte:

a) De harmonia com o disposto no art. 66º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 58/2008, de 9 Setembro, a abertura de um processo de inquérito aos factos constantes do despacho de acusação proferido no inquérito nº 700/05…… que correu termos nos serviços do Ministério Público Comarca ……, para o qual será designado o respectivo instrutor; b) Nos termos do nº 4 do art. 27º da Lei º 2/2004, de 15 de Janeiro, a cessação dos efeitos da designação do Dr. AA para o Cargo de …. do Gabinete do …….." (doc. 5 junto com a p.i. - fls. 72 a 72-v).

51. A entrevista dada pelo R. foi a pedido do referido Jornal Regional, com visibilidade apenas a esse nível, e com o único propósito de tentar limpar a sua honra, o bom nome e a imagem pessoal e profissional.

52. Tendo-o feito a nível regional apenas porque também era nessa medida que lhe interessava a reposição da verdade e a afirmação da sua inocência, até porque para além de trabalhar na mesma região, é também nela residente.

53. À data da publicação da entrevista o R. não tinha qualquer credibilidade junto dos munícipes do ……, tendo perdido a mesma ao longo de todo o curso do processo crime e exoneração de cargos que o R. exercia na Câmara Municipal … .

III – O objeto do recurso

Face ao teor do acórdão recorrido e às conclusões das alegações de recurso, cumpre averiguar se o Réu, ao proferir as afirmações que constam da entrevista concedida a um jornal regional (“…….”) e publicada na sua edição de … de ….. de ….., transcritas em discurso direto no ponto 14-B da matéria de facto considerada provada, violou o “direito ao bom nome” do Município ……. .

IV – O mérito do recurso

1. A proteção civilista do direito ao bom nome

O artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, reconhece a todos, entre outros direitos pessoais, o direito ao bom nome e à reputação, como expressão direta do princípio da dignidade humana [2].

Este direito fundamental tem por objeto o tipo de representação que os outros têm sobre uma pessoa, abrangendo todos os aspetos relativos a uma projeção social positiva e à consideração daí resultante no seio da sociedade.

Ele integra o conjunto dos direitos de personalidade referidos nos artigos 70.º e seguintes do Código Civil [3], merecendo, contudo, nesta secção do capítulo dedicado às pessoas singulares, apenas uma referência expressa marginal, a propósito da proteção ao direito à imagem, quando se proíbe a reprodução, exposição ou lançamento no Jornal … de retratos que causem prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada (artigo 79.º, n.º 3, do Código Civil). O direito ao bom nome [4]  é, pois, um direito de personalidade que, apesar de não ser objeto de proteção específica naquela seção do Código Civil, enquanto direito de personalidade especial, se encontra abrangido pela tutela geral dos direitos de personalidade constante do artigo 70.º do Código Civil.

No entanto, nas regras que regem a responsabilidade civil aquiliana, o Código Civil de 1996 incluiu, imediatamente a seguir à sua cláusula geral (artigo 483.º), um preceito especialmente dedicado à responsabilidade pela ofensa ao crédito ou ao bom nome de qualquer pessoa (artigo 484.º) [5].

Vaz Serra, temendo, que o direito ao crédito, com incidência em aspetos de cariz económico, não fosse admitido no “clube” dos direitos de personalidade [6], inspirando-se no artigo § 824 do BGB, previu, expressamente, no artigo 733.º, n.º 3, do seu Anteprojeto, a ressarcibilidade dos danos resultantes da sua ofensa. Como explicou na exposição de motivos do Anteprojeto [7]:

Parece haver vantagem em esclarecer que o crédito, a aquisição e a prosperidade são direitos subjetivos ou, pelo menos, interesses juridicamente protegidos contra falsas informações suscetíveis de os prejudicar. Poderia duvidar-se sobre se são direitos de personalidade e talvez seja, por isso, útil declarar que quem, contra a verdade, afirma ou difunde um facto suscetível de pôr em perigo o crédito de outrem ou de causar outros prejuízos à sua aquisição ou prosperidade é obrigado a reparar o dano daí resultante, se conhece a inexatidão ou devia conhecê-la.

Mas, na 1.ª Revisão Ministerial do Anteprojeto apresentado por Vaz Serra, acrescentou-se ao direito ao crédito o direito ao bom nome [8], o qual, sendo um inequívoco direito de personalidade, numa incoerência sistemática, viu o seu regime figurar no artigo 484.º do Código Civil, merecendo tratamento enquanto regime especial de responsabilidade extracontratual. A anómala localização da norma de proteção a este direito não deve, no entanto, determinar uma restrição dos meios de tutela conferidos aos direitos de personalidade, sendo também aplicáveis ao direito ao bom nome, os meios de reação previstos no artigo 70.º, n.º 2, do Código Civil, para além da responsabilidade civil do lesante.

2. O direito ao bom nome das pessoas coletivas públicas

Conforme refere expressamente o artigo 484.º do Código Civil, o titular do direito ao bom nome pode ser uma pessoa coletiva, uma vez que estamos perante um direito de personalidade cujas caraterísticas não são inseparáveis de uma pessoa física, não estando, por isso, abrangido pela exceção prevista na parte final do n.º 2, do artigo 160.º, do Código Civil.

No entanto, este direito, ao integrar a esfera jurídica de uma pessoa coletiva já não terá o seu fundamento imediato [9] na defesa da dignidade humana, surgindo antes como resposta à necessidade de proteção da sua reputação, granjeada pela atividade desenvolvida pelos seus órgãos representativos, o que constitui um bem jurídico essencial à prossecução dos seus objetivos [10]. Como esclarece o artigo 160.º, n.º 1, do Código Civil, a capacidade das pessoas coletivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins.

Perante o cariz instrumental e a menor densidade axiológica dos direitos de personalidade das pessoas coletivas, é habitual ouvir-se que tal titularidade deverá levar em linha de conta a particular natureza destas, tendo de reconhecer-se que, mesmo quando certo direito de personalidade seja compatível com essa natureza, daí não se segue que a sua aplicabilidade nesse domínio vá operar exatamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que ocorre relativamente às pessoas singulares [11].

Na presente ação o titular do direito ao bom nome cuja ofensa se discute é um Município.

O Município é uma pessoa coletiva territorial dotada de órgãos representativos, que visa a prossecução de interesses próprios das populações respetivas (artigos 235.º, n.º 2 e 236.º, n.º 1, da Constituição), sendo uma pessoa dotada de personalidade jurídica distinta do Estado central, com fins múltiplos definidos por lei e que tem por função a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações (artigo 235.º, n.º 2, da Constituição). O seu órgão deliberativo é a Assembleia Municipal (artigo 251.º da Constituição) e o executivo é a Câmara Municipal (artigo 252.º da Constituição).

Embora revele alguma problematicidade, a titularidade de direitos fundamentais por parte de pessoas coletivas públicas [12], consistindo o bom nome de uma pessoa coletiva na projeção para o exterior de credibilidade, prestígio e confiança, o que constitui uma fonte dinamizadora do desenvolvimento da sua atividade, não há nenhuma razão para que não seja reconhecida aos Municípios capacidade para serem titulares de um direito que lhes permita reagir perante atos que deterioram essa projeção social, dado estarmos perante um bem jurídico com relevância na promoção e salvaguarda dos interesses das populações que servem.

Sinal do reconhecimento pelo ordenamento jurídico da existência desse bem, é a criação do tipo legal de crime previsto no artigo 187.º do Código Penal – ofensa a pessoa coletiva que exerça autoridade pública. Esta tipificação deixou bem claro que estas pessoas coletivas podem ser agentes passivos de ações que atinjam a sua credibilidade, prestígio e confiança, pelo que estas qualidades são bens merecedores de proteção pela ordem jurídica.

É o bom nome próprio da natureza das pessoas coletivas que se pretende garantir e proteger. Como explica Faria Costa [13], não por certo o bom nome que a pessoa individual pode construir em torno da sua existência socialmente inserida, mas antes o bom nome da pessoa coletiva, organismo, serviço ou corporação que exerce autoridade pública. Bom nome que é, não só esteio para aquelas realidades mas, de igual maneira, a linha compósita daqueles três vetores. Conflui, por isso, no bom nome, não só a natureza de ser o elemento agregador que a dispersão da credibilidade prestígio e confiança exigem, mas também o facto de ser, de certa maneira, o resultado daqueles elementos que se têm vindo a enunciar. O bom nome assume-se assim como uma realidade dual. De um lado, suporte indesmentível para que a credibilidade, o prestígio, e a confiança possam existir. De outra banda, resultado dessas mesmas e precisas realidades ético-socialmente relevantes.

Tem sido objeto de discussão se a responsabilidade civil pela ofensa do bom nome só pode resultar da imputação ao ofendido de factos falsos ou se também a imputação de factos verdadeiros pode originar essa responsabilidade e a quem compete a prova sobre a veracidade/falsidade dos factos imputados [14].

No caso sub iudice, uma vez que o Autor é um Município, há que ter presente que o bom funcionamento e democraticidade das instituições políticas, incluindo as que integram o poder local, como os Municípios, exige uma transparência na sua atuação e uma possibilidade de controle pelos munícipes, que legitimam uma intensa liberdade de informação, discussão, divulgação e opinião sobre os atos dos seus órgãos representativos ou serviços.

Daí que, em princípio, não só a divulgação de factos verdadeiros que reproduzam, revelem ou denunciem tais atos, mesmo que afetem o bom nome do Município, não poderão considerar-se ilícitos, estando fora do campo de previsão do artigo 484.º do Código Civil, como, sendo divulgados factos inverídicos, a prova da sua falsidade deve competir ao ente público, de modo a prevenir a hipótese de, por insuficiência de prova, alguém possa ser responsabilizado pela divulgação de factos verdadeiros [15].

Sinal da existência desta limitação ao leque de condutas suscetíveis de ferir o bom nome de uma pessoa coletiva pública, é o facto do tipo objetivo de ilícito contante do referido artigo 187.º do Código Penal, restringir o seu âmbito de incriminação à divulgação de “factos inverídicos”.

Esta é a solução que se mostra compatível com a garantia do autogoverno democrático da comunidade e com a exigência de transparência da atuação do poder local.

Numa matéria em que a transparência e a garantia do controle dos poderes públicos são exigências do Estado de direito democrático, a liberdade de expressão assume uma extensão máxima, comprimindo consequentemente o direito ao bom nome do Município. Nesta aparente colisão de direitos, o âmbito de proteção do direito ao bom nome é objeto de severa restrição, perante a amplitude que assume a liberdade de expressão, em obediência a um juízo de proporcionalidade. Na verdade, apesar de muitas vezes assistirmos a que este tipo de situações seja resolvida, aplicando-se a harmonização prevista para a colisão de direitos (artigo 335.º do Código Civil), em bom rigor, estamos perante uma delimitação recíproca do âmbito de dois direitos subjetivos, em que importa determinar os limites do direito cuja ofensa foi objeto de reclamação, face às restrições impostas pela proteção devida ao direito em confronto [16]. E nestas situações, em que está em conflito o bom nome de um Município e a liberdade de expressão de um munícipe, a amplitude do primeiro destes direitos sofre uma considerável compressão. 

Na determinação dos limites entre estes direitos, não pode deixar de se atender à abundante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em casos semelhantes, sendo notória a preocupação deste tribunal internacional em garantir a liberdade de expressão, através da redução da área de proteção do direito ao bom nome. 

A título de exemplo, no caso Margulev v. Rússia (n.º 15449/09), o Estado Russo foi condenado por decisão proferida em 8.10.2019, pela 3.ª Secção daquele Tribunal [17]. Em causa estava uma sentença de um tribunal russo que, invocando o direito ao bom nome do órgão equivalente à Câmara Municipal em Moscovo, impôs a um periódico a publicação de uma nota que noticiasse a sua condenação a desmentir uma anterior peça jornalística, em que se havia criticado as obras de restauração de um complexo arquitetónico do século XVIII, realizadas por esse órgão autárquico, tendo-se afirmado falsamente que, na sequência daquelas obras, as pessoas haviam sido privadas do seu património histórico e cultural e que a restauração daquele complexo constituía a profanação de um monumento histórico.

 Lê-se no § 53 deste aresto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem:

Quanto à necessidade de realizar um exercício de equilíbrio entre o direito à reputação e a liberdade de expressão, o Tribunal salienta que o queixoso no processo de difamação, a Câmara Municipal de Moscovo, é o órgão executivo da cidade de Moscovo, uma entidade constituinte da Federação Russa. O Tribunal reitera que os limites das críticas admissíveis são mais amplos em relação a uma autoridade pública do que em relação a um cidadão privado ou mesmo a um político. Num sistema democrático, as ações ou omissões de um órgão investido de poderes executivos devem estar sujeitas a um controlo rigoroso não só das autoridades legislativas e judiciais, mas também da opinião pública (ver, mutatis mutandis, Sener v. Turquia, nº. 26680/95, § 40, 18 de Julho de 2000, e Lombardo e Outros, citado acima, § 54). Enquanto autoridade executiva de uma entidade federal constituinte, espera-se que a Câmara Municipal de Moscovo demonstre um elevado grau de tolerância às críticas (tradução nossa).

É esta tónica de que o bom nome das pessoas coletivas públicas, designadamente das autarquias locais, não tem a mesma amplitude e não exige o mesmo grau de proteção que um igual direito das pessoas singulares ou mesmo de outras pessoas coletivas, não podendo funcionar como um fator inibitório do direito de denúncia e de crítica das suas ações, que também deve estar presente no julgamento do presente caso.

3. A ofensa do bom nome do Município … na situação sub iudice

A decisão sob recurso, após laboriosa ponderação, reconheceu que o bom nome do Município do … havia sido ilicitamente ofendido por algumas das declarações prestadas pelo Réu numa entrevista que concedeu ao Jornal…, órgão de imprensa regional.

Na edição do dia …. de …. de …. do Jornal "…" foi publicada nas páginas 2, 3 e 5, uma entrevista ao Réu.

Como bem se refere no acórdão recorrido, há que distinguir duas situações, aliás tituladas e paginadas separadamente na referida edição do jornal: (1.ª) a parte da transcrição da entrevista realizada ao Réu, a respeito da sua situação na Câmara Municipal … e no … Futebol Clube e da atuação da Câmara Municipal …. relativamente ao Réu, na sua perspetiva, e (2.ª) a parte relativa a uma peça editada pelo jornalista subscritor que transcreve, nesse contexto, em discurso direto, as declarações do Réu, enquadrando-as com apreciações conclusivas do jornalista.

A transcrição dessa entrevista encontra-se no ponto 14 da lista dos factos provados, constando do ponto 14-A a parte acima referida em (1.ª), e do ponto 14-B a parte mencionada em (2ª).

É apenas nesta segunda parte que o acórdão recorrido entende que se mostra violado o direito ao bom nome do Autor.

A segunda parte da publicação reporta-se a declarações do Réu, enquadradas por apreciações do entrevistador, relativas à venda em hasta pública, em processo de execução fiscal, de "parcelas" do estádio do ….. Futebol Clube e à intervenção da Câmara Municipal …. nesse processo.

Sob o título “CM …. compactuou para a perda do Estádio ….", relata o jornalista do Jornal… :

- "AA acusa ainda a autarquia de «cumplicidade, conivência e ilegalidade, ao emitir as declarações em como as construções existentes, no perímetro do Estádio …, sendo instalações de apoio à actividade desportiva, eram anteriores a 1951, quando isso é falso. Todas aquelas construções: Balneários, Posto Médico, Casa do … e Lavandaria, são posteriores a 1951. Os Balneários atrás da baliza, com entrada subterrânea, foram construídos em 1964, o Posto Médico, a Lavandaria e a Casa do ……. foram construídos na década de 1970 e posteriormente tiveram várias melhorias. A CM…, ao emitir essas declarações, sabia que estava a cometer uma ilegalidade, reconhecendo como propriedades autónomas as parcelas naquele terreno. E sabia perfeitamente que nenhuma das cinco parcelas eram independentes, pois fazem parte das instalações de apoio ao equipamento desportivo e tinham um contador para abastecimento de água e outro para o fornecimento de energia eléctrica, como uma única parcela. Foi autorizada a instalação de um ramal de abastecimento de água independente a uma das parcelas, contrariando os pareceres técnicos, uma vez que a mesma não tem acesso pela via pública. E no Registo Predial, foi efectuada a alteração da morada dessa parcela, o que só era possível com uma declaração da CM….»"

- "Outro aspecto que AA sublinha é que «foi adulterada a morada das fracções entretanto criadas, uma vez que, situando-se as mesmas no interior do Estádio, não podiam ter a mesma morada que consta nas declarações emitidas pela CM…. A Câmara Municipal não pode dar outra morada nem outro «número de polícia» às novas parcelas se não houver uma operação de loteamento.»"

- "AA não tem dúvidas que «a assunção destas parcelas levou a que fosse possível a penhora do Estádio … e a subsequente venda. Se a autarquia não tivesse emitido essas declarações, aquando da venda em hasta pública por parte das Finanças, nenhuma destas vendas podia ter sido feita. Mesmo com a penhora, não se podia concretizar a transmissão das parcelas, uma vez que não poderia ter sido feita a transmissão da propriedade, porque faltava um elemento essencial, que neste momento é obrigatório: a licença de utilização. E a CM… estaria em condições de negociar a compra do Estádio no seu todo e, se calhar, até pelo valor de apenas 5 euros, tendo em conta que a base de licitação foi de 1 euro. Como se veio a verificar, quem comprou e registou as fracções distintas, veio a ganhar muito com a sua posterior revenda ao … Futebol SAD e a outras entidades.»"

"No âmbito deste processo, acusa que «houve aqui um conjunto de ilegalidades graves e hoje, não tenho dúvidas nenhumas que, em função do quadro que está estabelecido, a Câmara Municipal …. vai ficar com o Estádio …., com todos estes problemas que estão associados, nomeadamente ter pessoas a morar dentro de um Estádio Municipal, para além dos casos dos proprietários que ainda não venderam as suas partes. A CM… terá de definir os espaços comuns ou terá de negociar com os proprietários e, aqui, mais uma vez, a autarquia vai ter de desembolsar dinheiro para pessoas que, com todo o direito, compraram as parcelas para lucrarem com isso.»".

Nestes trechos da entrevista, o Réu acusou a Câmara Municipal …, órgão executivo da Autora, de ter emitido declarações relativas a quatro construções existentes no Estádio …, no … (Balneários, Posto Médico, Casa do … e Lavandaria), atestando, falsamente, que as mesmas eram anteriores a 1951, e adulterando-lhes a morada e número de polícia, além de ter autorizado a instalação de um ramal de abastecimento de água independente numa dessas construções.

Segundo o entrevistado, nessas declarações aquelas construções foram assumidas como parcelas autónomas, atribuindo-se-lhes uma morada e um número de polícia próprio, o que permitiu a sua penhora e subsequente venda em hasta pública em processo de execução fiscal, como unidades autónomas.

Ainda na perspetiva do entrevistado, a venda dessas parcelas, como unidades prediais autónomas, viabilizadas pela atuação ilegal da Câmara Municipal, terá como consequência, na hipótese provável do Município adquirir o Estádio …., a necessidade de serem definidos espaços comuns ou de a Câmara Municipal … negociar com os proprietários adquirentes das novas parcelas que integram aquele Estádio, com o consequente desembolso de dinheiros públicos, quando poderia ter comprado esse Estádio no seu todo pelo valor de apenas 5 euros, tendo em conta que a base de licitação foi de 1 euro.

Estamos perante a imputação pelo Réu aos serviços do órgão executivo da Autora de atos concretos, objetivamente verificáveis (a emissão das declarações, atestando a antiguidade das construções, a influência dessas declarações na penhora e subsequente venda dessas construções como unidades prediais autónomas e a autorização da instalação de um ramal de abastecimento de água independente numa dessas construções), e com isso suscetíveis de prova da sua falsidade.

Relativamente aos factos imputados pelo Réu ao órgão executivo da Autora, da leitura dos factos considerados provados resulta o seguinte:

- desconhece-se se as declarações emitidas pela Câmara Municipal …., relativas às construções existentes no Estádio do … no …, correspondiam à realidade;

- contrariamente ao declarado pelo Réu, não existiu qualquer autorização camarária para a ligação do ramal de abastecimento de água numa daquelas construções, apesar da mesma ter sido requerida (facto n.º 32);

- contrariamente ao declarado pelo Réu, a atuação da Câmara Municipal …., designadamente ao emitir as declarações relativas às construções existentes no Estádio do …, no …, em nada influiu na penhora e venda em processo de execução fiscal, das mesma, como unidades autónomas (factos n.º 21, 23, 24, 26 a 31, 35, 39, 43 e 44).

- é, no entanto, verdade que as declarações, atestando a antiguidade das construções, já tiveram influência na transmissão posterior de uma das frações destacadas do Estádio do …, uma vez que dispensaram a exibição de licença de utilização (facto n.º 36).

Atento o resultado da prova produzida, além de se ter evidenciado que inexistiu uma autorização camarária para a ligação de um ramal de abastecimento de água numa das construções em causa, a afirmação feita pelo Réu, que se provou ser falsa, e que justificou a condenação proferida pela decisão recorrida, foi a de que se a autarquia não tivesse emitido essas declarações, aquando da venda em hasta pública por parte das Finanças, nenhuma destas vendas podia ter sido feita. Mesmo com a penhora, não se podia concretizar a transmissão das parcelas, uma vez que não poderia ter sido feita a transmissão da propriedade, porque faltava um elemento essencial, que neste momento é obrigatório: a licença de utilização, sendo certo que esta afirmação foi precedida, nas declarações prestadas pelo Réu na entrevista em causa, de um juízo sobre a Câmara Municipal …, de cumplicidade, conivência e ilegalidade ao emitir as declarações.

Dispõe o artigo 484.º do Código Civil que, quem afirmar um facto capaz de prejudicar o bom nome de uma pessoa coletiva, responde pelos danos causados.

A mera atribuição de um facto inverídico a outrem não é, porém, suficiente para que se considere que estamos perante uma violação do bom nome da pessoa a quem foi atribuído essa falsa factualidade. É também necessário que a divulgação desse facto seja idónea a prejudicar esse bom nome.

É na apreciação deste elemento objetivo da ilicitude que tem peso a conclusão acima extraída no ponto 2. deste aresto, de que o bom nome das pessoas coletivas públicas, designadamente das autarquias locais, não tem a mesma amplitude e não exige o mesmo grau de proteção que um igual direito das pessoas singulares ou mesmo de outras pessoas coletivas.

Estando a ação dos órgãos representativos de um Município sujeita ao escrutínio dos munícipes, a proteção do seu bom nome deve restringir o mínimo possível a liberdade de expressão destes, de modo a não inibir o funcionamento desse escrutínio, instrumento essencial do controle democrático deste tipo de instituições.

A área de proteção do direito ao bom nome nestas pessoas coletivas não abrange, pois, a divulgação de todos os factos inverídicos imputados a um Município, mas apenas aqueles, cujo grau elevado de danosidade, justifique, como última ratio, uma intervenção heterotutelar reparadora/sancionadora. Nestas situações, existe uma margem alargada de tolerância que retira do alcance dos meios de tutela dos direitos de personalidade, aquelas ações que não afetam num grau significativo o bom nome do Município, facultando o ordenamento jurídico outros meios de repor a verdade adulterada no exercício da liberdade de expressão (v.g. o exercício do direito de resposta previsto nos artigos 24.º e seguintes da Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro – Lei de Imprensa).

A exigência deste grau elevado de danosidade não é inédita na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que, relativamente à ofensa ao bom nome de pessoas coletivas, afirmou que a fasquia relativa à gravidade merecedora da tutela do direito ... deverá ser colocada em ponto elevado [18].

A aptidão lesiva da atribuição de um facto inverídico deve ser apurada, ponderando-se todo o circunstancialismo em que se enquadra a respetiva imputação. No caso sub iudice, além do conteúdo da factualidade inverídica divulgada pelo Réu e do meio de divulgação utilizado, elementos com papel preponderante no juízo de idoneidade, há ainda que, face aos dados disponibilizados pela matéria de facto provada, ter em consideração o seguinte:

- Em virtude de ter sido …. e …. da Câmara Municipal …. durante largos anos, o R. tem notoriedade junto da população.

- O assunto já era abordado nas redes.

- Na sequência da publicação da entrevista dada pelo R. ao Jornal, sucederam-se na comunidade local comentários e reações sobre o teor dessas declarações.

- O assunto foi também objeto de novos comentários no Facebook.

- Na reunião ordinária da Câmara Municipal …. de …. 2016, o munícipe DD interpelou o Presidente e os Vereadores nos seguintes termos: "Sobre o Estádio …., incomoda-me ler no Facebook os insultos constantes à câmara, tem que haver uma posição, um esclarecimento porque é muita gente a ler aquilo e eu tenho confiança, como sempre tive, nas pessoas eleitas nesta câmara".

- A entrevista dada pelo R. foi a pedido do referido Jornal Regional, com visibilidade apenas a esse nível, e com o único propósito de tentar limpar a sua honra, o bom nome e a imagem pessoal e profissional.

- Tendo-o feito a nível regional apenas porque também era nessa medida que lhe interessava a reposição da verdade e a afirmação da sua inocência, até porque para além de trabalhar na mesma região, é também nela residente.

- À data da publicação da entrevista o R. não tinha qualquer credibilidade junto dos munícipes do ….., tendo perdido a mesma ao longo de todo o curso do processo crime e exoneração de cargos que o R. exercia na Câmara Municipal …..

Analisando a importância dos factos inverídicos imputados ao órgão executivo do Autor, verifica-se que os mesmos, apesar de respeitarem a um tema que poderá ter relevância regional (a penhora e subsequente venda em processo de execução fiscal de um Estádio), apenas é imputada à Câmara Municipal … uma influência indireta e num aspeto secundário (a qualidade de parcela autónoma em que foram penhoradas e vendidas em processo de execução fiscal algumas construções existentes nesse Estádio) no desfecho desse processo.

Além disso, o modo como é imputada essa influência é confuso, dificilmente percetível pelo comum dos munícipes, não sendo ainda compreensível em que é que, concretamente, se traduziram os juízos de valor de cumplicidade, conivência e ilegalidade na emissão das referidas declarações de antiguidade das construções. Apenas num raciocínio dedutivo é possível depreender que, na perspetiva do Réu, a Câmara Municipal …. teria beneficiado os adquirentes das referidas construções, vendidas como parcelas autónomas, em prejuízo do próprio Município, caso pretenda agora adquirir o Estádio … .

Assim, apesar do Réu ter proferido as suas declarações através de um meio – jornal regional - que permite a sua fácil divulgação por um grande número de pessoas, o conteúdo da factualidade imputada ao Autor e os termos dessa imputação não se afiguram capazes de abalar significativamente a credibilidade, o prestígio e a confiança do Município.

Acentuando a inaptidão do conteúdo das declarações do Réu para ferir o bom nome do Autor, soma-se ainda o facto de, à data da publicação da entrevista, aquele não ter qualquer credibilidade junto dos munícipes do …, tendo perdido a mesma ao longo de todo o curso do processo crime e exoneração de cargos que exercia na Câmara Municipal …. .

Pela soma destas razões, entende-se que as declarações prestadas pelo Réu na entrevista publicada na edição do dia …. de … de …. do Jornal "…", na parte em que imputa factos inverídicos ao órgão executivo do Autor, não é idónea a ofender o bom-nome deste, não integrando, portanto, uma conduta ilícita geradora de responsabilidade civil, nos termos previstos no artigo 484.º do Código Civil.

Não havendo lugar à responsabilização do Réu, não se pode manter a imposição de que este suporte a despesa com a publicação de uma notícia no Jornal …, dando nota da sua condenação neste processo.

Deve, pois, ser julgada procedente a revista interposta pelo Réu, revogando-se a decisão recorrida na parte em que o condenou, repondo-se a sentença proferida na 1.ª instância.


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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou o Réu, repondo-se integralmente a sentença proferida na 1.ª instância.


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As custas da ação e dos recursos são da responsabilidade do Autor.


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Notifique


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Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A, de 13 de março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/20, de 1 de maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Lisboa, 16 de dezembro de 2020

João Cura Mariano (Relator)

Abrantes Geraldes

Tomé Gomes

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[1] Os intervalos na numeração correspondem aos factos julgados não provados.  
[2] A opção do legislador constitucional de incluir expressamente entre os direitos fundamentais a menção a alguns direitos de personalidade, teve como consequência uma tutela mais ampla e completa destes direitos, não resultando somente numa simples promoção, na hierarquia das normas, do conteúdo que anteriormente já constava no Código Civil. Eles passaram a beneficiar da tutela conferida aos direitos liberdades e garantias, pelo que os deveres de respeito exigidos aos particulares pela ordem jurídica civilística, passaram também a ser exigidos ao Estado, no uso dos seus poderes públicos, ficando este obrigado a desenvolver políticas de promoção desses direitos.
[3] Ao abrigo de um direito geral de personalidade, merecem proteção os mais diversos direitos especiais de personalidade que, exemplificativamente, se encontram expressamente tipificados nos artigos 71.º a 80.º do Código Civil, tendo o legislador pretendido conferir uma proteção plena a todos os bens jurídicos - atuais e futuros - abrangidos pela personalidade humana.
[4] Escolhemos a expressão “bom nome” para designar este direito de personalidade por ser aquela que, na nossa perceção, melhor traduz o seu conteúdo.
[5] Para uma leitura crítica da história deste preceito, FILIPE ALBUQUERQUE MATOS, Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom Nome, Almedina, 2011, pág. 152-156.
[6] Os quais mereciam tutela no artigo 732º, n.º 1, do seu Anteprojeto, neles figurando o direito à honra.
[7] No B.M.J. n.º 92, pág. 129.
[8] JACINTO RODRIGUES BASTOS, Das Obrigações em Geral, vol. II, ed. do autor, 1972, pág. 55.
[9] MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. IV, 5.ª ed., Almedina, 2019, pág. 122, refere que a desonra de uma pessoa coletiva se repercute sempre sobre as pessoas que lhe sirvam de suporte, pelo que estamos sempre perante bens de personalidade individual que são atingidos de modo mediato.
[10] FILIPE ALBUQUERQUE MATOS, ob. cit., pág. 373-379.
[11] CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 5.ª ed., UCE, 2009, pág. 221, e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.2014, Proc. 366/12 (rel. João Bernardo).  
[12] Cfr. JORGE MIRANDA, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, 2.ª ed., Wolters Kluwer, sob a marca Coimbra Editora, pág. 211, GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, pág. 330, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, 2003, pág. 422-423, VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed., Almedina, 2016, pág. 122-125, e, especificamente, quanto aos direitos de personalidade, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, pág. 602-603.
[13] In Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 678.
[14] Sobe esta discussão, FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos sobre a responsabilidade civil, Almedina, 1995, pág. 310, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, 2009, pág. 564, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed. Almedina, 2000, pág. 548-549, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, 10.ª ed., Almedina, 2013, pág. 271-272, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina, 2010, pág. 555-557, JORGE RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 2020, pág. 423-424, FILIPE ALBUQUERQUE MATOS, ob. cit., pág. 432 e seg., MARIA PAULA GOUVEIA ANDRADE, Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome. Contributo para o Estudo do Art.º 484º do Código Civil, Tempus Editores, 1996, pág. 86-96, IOLANDA RODRIGUES DE BRITO, Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas, Wolters Kluwer, sob a marca Coimbra Editora, 2010, pág. 139 e seg., ELSA VAZ SEQUEIRA / CAROLINA MARTINS CORREIA, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, UCE, 2018, pág. 287, e ANA PRATA, Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2017, pág. 631.
[15] Defendendo, mesmo em termos gerais, esta distribuição do ónus da prova, Filipe Albuquerque Matos, ob. cit., pág. 502.
[16] Sobre esta precisão, ELSA VAZ SEQUEIRA, Dos pressupostos da colisão de direitos no Direito Civil, UCE, 2004, pág. 303-305, e ELSA VAZ SEQUEIRA / CAROLINA MARTINS CORREIA, ob. cit., 288-289.
[17] Acessível no sítio hudoc.echr.coe.int.
[18] Acórdão de 09.07.2014, Proc. 366/12 (rel. João Bernardo).