Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1. AA. e marido BB., bem assim CC. e mulher DD., todos já melhor identificados nos autos, vieram deduzir oposição, através de embargos, à lide executiva que lhes foi movida por
EE., com residência indicada no país na Rua …, em que este último pretende a cobrança coerciva da quantia de € 71.895,29, a título de capital, de € 17.433,60, a título de juros remuneratórios vencidos, de € 6.106,16, a título de juros moratórios, bem assim de juros remuneratórios e moratórios vincendos, a incidir sobre o montante de capital em primeiro indicado.
O exequente, para sustentar a mencionada cobrança, ofereceu como títulos executivos 10 documentos, com idêntico clausulado, denominados de contratos de mútuo, por todos os intervenientes processuais subscritos, tendo os 1.ºs embargantes/executados em cada um desses documentos reconhecido terem recebido do exequente o montante de € 12.500 (somando o valor global mutuado de € 125.000) e obrigando-se a restituir (amortizar) esses valores mutuados com juros remuneratórios, ao longo de 10 anos, nos termos estabelecidos em tais documentos, enquanto os 2.ºs executados assumiram a qualidade de fiadores e principais pagadores do débito decorrente do convencionado em cada um desses documentos; sendo que, para liquidação desses empréstimos, os 1.ºs executados haviam entregue, entre 28.7.2009 e 8.9.2009, apenas a quantia de € 95.000.
Os embargantes/executados deduziram oposição à lide executiva, sustentando a sus extinção por três ordens de razões que se podem resumir ao seguinte:
. os aludidos documentos (ditos contratos de mútuo) oferecidos como títulos executivos não dispunham de exequibilidade bastante para desencadear a execução, posto que, apesar dos mesmos titularem a celebração de 10 “contratos de mútuo” pelo valor de € 12.500 cada um, a verdade era que o exequente havia emprestado duma só vez a quantia global de € 125.000 através de dois cheques, conforme acordo verbal, no âmbito do qual a restituição daquele último montante devia ocorrer no prazo de 10 anos, sendo pagos juros remuneratórios mensais com referência a uma taxa anual de 5%, podendo a restituição do capital mutuado ser realizado em dinheiro ou o equivalente em serviços a prestar pela executada AA., enquanto advogada, ao exequente, a uma sociedade de que este era sócio/gerente ou a familiares próximos deste (mãe e irmã),
tudo isso a justificar se estivesse perante um contrato nulo por falta de forma, atento o montante objecto do dito empréstimo, a acarretar também a inexequibilidade dos mencionados documentos;
. ter-se verificado, no âmbito desse empréstimo de € 125.000, o pagamento do devido, através da entrega de quantias tituladas por cheques (no valor global de € 108.124,98) e por compensação dos honorários e despesas devidos pelos serviços prestados pela executada AA. (no valor global de 26.683,83 €), a ponto de ter sido emitida competente quitação quanto aos “contratos de mútuo” representados nos documentos oferecidos como títulos executivos;
. a serem devidos juros nos termos da documentação em último referida, sempre estariam prescritos os juros vencidos há mais de 5 anos, tendo como referência da data da citação dos executados para os termos da lide executiva.
O exequente deduziu contestação, impugnando parte da alegação inicial, mas adiantando que,
. embora tivesse ocorrido a entrega aos 1.ºs executados/embargantes da quantia de 125.000 € duma só vez e através de dois cheques por si (exequente) sacados, a verdade era que, no interesse e a solicitação dos executados, em ordem a evitarem suportar custos acrescidos com a celebração da competente escritura, optaram, para formalização desse empréstimo, pela subscrição de cada um dos documentos (contratos de mútuo) dados à execução, constituindo os mesmos um distinto e autónomo contrato de mútuo, formal e substancialmente válido;
. nessa perspectiva e aceitando o pagamento, para liquidação desses mútuos, do montante global de €108.124,98 € e não apenas de €95.000, sempre era devido o pretendido na lide executiva, com a excepção da diferença entre aqueles valores, mas sempre com observância do clausulado nesses diferentes contratos;
. porém, a acolher-se a tese factual defendida pelos embargantes quanto à celebração dum único contrato de mútuo, a invocação da sua nulidade representaria o exercício abusivo de direito, para além de ser contrário aos ditames da boa fé aceitar-se não estarem os executados obrigados à restituição do mutuado em estrita obediência aos termos em que acordaram fazê-lo em cada um dos contratos dados à execução,
tudo a justificar a improcedência da oposição deduzida à lide executiva, apenas devendo atender-se ao pagamento pelos executados da falada quantia global de € 108.124,98.
Findos os articulados, dispensou-se a realização de audiência prévia, proferiu-se despacho saneador tabelar, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas objecto de prova.
Realizou-se audiência de julgamento, após o que se sentenciou a causa, julgando-se procedentes os embargos e determinando-se a extinção da lide executiva.
2. Inconformado, interpôs o exequente/embargado recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido julgar improcedente a apelação e confirmado a sentença recorrida, determinando a extinção da lide executiva.
3. EE., não se conformando com o acórdão proferido em 23/01/2020, que julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida, dele vem interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, entendendo não se ter formado dupla conformidade, na medida em que as instâncias, apesar de terem decidido de forma idêntica, adotaram uma “fundamentação essencialmente diferente”.
3.1. Na verdade, analisado o conteúdo da sentença e do acórdão recorrido, temos que, apesar de ambas as instâncias terem declarado extinta a execução, o tribunal de 1.ª instância, fê-lo em virtude de considerar que os documentos dados à execução não dispunham de força executiva bastante para sustentar a cobrança de capital e juros remuneratórios, tal como peticionado na lide executiva, na precisa medida em que àqueles subjazia um único negócio de empréstimo (de 125.000 €) que estava sujeito, à data em que foi celebrado, à forma mais solene, ou seja, devia ser formalizado através da competente escritura pública, pelo que, assim não tendo sucedido, estava-se perante um negócio nulo, o que, quanto muito, legitimaria a utilização daquela documentação para a cobrança coerciva do capital mutuado, já não dos juros remuneratórios neles previstos (aplicação do AUJ n.º 3/2018). Tendo ficado demonstrada a entrega de quantias pelos executados ao exequente em valor suficiente para cobrir o capital mutuado, o tribunal declarou a extinção da execução.
Já o acórdão recorrido, após alterações à matéria de facto, eliminação de factos e aditamento de um facto, concluiu que, por força de um fundamento novo, a procuração junta aos autos, interpretada à luz do prescrito nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, conferia poderes à irmã do recorrente para declarar que a agora executada nada mais devia ao seu representado, determinando-se, assim, a extinção da execução, por se encontrar liquidado tudo o que era devido.
4. Na sua alegação de recurso, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
«1ª. - A única questão com base na qual o douto acórdão da Relação decidiu a apelação do ora recorrente, e, assim, a questão verdadeiramente essencial que esteve na base dessa decisão prende-se, de facto e apenas, por um lado, com o trecho da al. h) da procuração de fls 93 a 95 - segundo o qual - no entendimento daquele acórdão - o recorrente, agindo simultaneamente em seu nome próprio e em nome da sociedade comercial por quotas por ele aí também representada, teria dado à procuradora, sua irmã, poderes para “Celebrar, alterar e revogar qualquer contrato ... podendo receber quaisquer quantias a que tenha direito, assinando recibos e dando quitação, nos termos e condições que entender, assinando tudo o que for necessário para o efeito” -, entendendo esse texto como referindo-se a todo e qualquer contrato, qualquer que fosse a sua natureza e objecto, dele e ou da sociedade por ele também representada, e, por outro lado, com a parte final da declaração de fls 15 vº, segundo a qual após o pagamento dos cheques aí referidos, a embargante AA., nada mais devia, encontrando-se os contratos de mútuo celebrados a 10/02/2004, 16/02/2004, 28/02/2004, 20/02/2004, 05/03/2004, 13/03/2004, 18/03/2004, 26/03/2004, 04/04/2004 e 13/04/2004, liquidados”.
2.ª- Resultando da leitura da sentença de 1ª instância que essa questão não foi sequer aí abordada, então dever-se-á concluir que (i) o acórdão da Relação … decidiu (sem voto de vencido e sem sequer apreciar qualquer das questões apreciadas naquela sentença e das colocadas na apelação) com base em “fundamentação essencialmente diferente” da daquela sentença, e (ii) que o presente recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça é admissível com fundamento no disposto no artigo 671º, nº 3 do CPC.
3ª.- A questão fulcral do presente recurso tem a ver com a interpretação da alínea h) da procuração de fls 93 a 95, conferida pelo recorrente, na dupla qualidade em que nela interveio, ou seja, em seu nome próprio e, simultaneamente, em nome da sociedade por quotas por ele aí representada, a sua irmã FF., com base na qual aquela subscreveu a parte final da declaração de fls 15 vº, de modo a decidir se aquela procuração lhe dava poderes para fazer essa declaração em seu nome e, assim, se tal declaração é eficaz ou ineficaz, oponível ou inoponível a ele, ora recorrente.
4ª.- A decisão dessa questão depende da interpretação e da determinação do sentido juridicamente relevante a atribuir ao texto daquela alínea h).
5ª.- Ao entender e decidir que aquela alínea da procuração dava poderes à procuradora para “Celebrar, alterar e revogar qualquer contrato, (fosse de que natureza e com que objecto fosse, incluindo o contrato de mútuo em causa nos autos) ... podendo (em relação a tais contratos) receber quaisquer quantias a que tenha direito, assinando recibos e dando quitação, nos termos e condições que entender, assinando tudo o que for necessário para o efeito”, o douto acórdão da Relação ….. fez errada interpretação do sentido juridicamente relevante dos poderes conferidos pela procuração, à luz dos critérios dos artigos 236º a 238º do CCivil.
6ª.- O douto acórdão recorrido não entendeu nem interpretou aquela declaração contida na alínea h) da procuração com o sentido por ele querido, à luz da dupla qualidade em que ele aí intervém e do que resulta da globalidade do texto da procuração, designada e particularmente, do que consta das suas alíneas i) e p), não podendo, por isso, por força do artº 236º do CC, valer com o sentido e alcance que tal acórdão lhe atribuiu.
7ª.- À luz da dupla qualidade em que o recorrente aí intervém e do que resulta do texto da procuração, considerado globalmente, designada e particularmente, do que consta daquelas suas alíneas i) e p), a recorrida, enquanto tomadora ou declaratária da declaração de fls 15 vº, para mais sendo advogada de profissão, e sendo até, na altura, a advogada do recorrente e da sociedade por ele representada, não podia ignorar que tal procuração não conferia poderes à procuradora para emitir em seu favor a declaração de quitação que consta da parte final daquela declaração de fls 15 vº.
8ª.- Ou seja, na interpretação da alínea h) da referida procuração, o douto acórdão recorrido violou o sentido literal que decorre para essa alínea do teor das alíneas i) e p) da mesma procuração, tendo em conta a dupla qualidade em que o “declarante” aí intervém, sentido esse que era conhecido e cognoscível pela recorrida, enquanto tomadora da declaração de fls 15 vº, e desse modo não respeitou os critérios legais de interpretação impostos pelos citados arts 236.º e 238.º do CCivil.
9ª.- As razões ou fundamentos pelos quais o acórdão recorrido interpretou inadequadamente o texto daquela alínea são as constantes de fls 9, 10 e 11 das anteriores alegações.
10ª.- No contexto da globalidade da presente procuração em concreto, o advérbio “nomeadamente” utilizado na sua alínea h) torna a referência ali feita a “qualquer contrato nomeadamente com a G..., S.A., H…, Serviços Municipalizados, empresas fornecedoras de Serviços de Gás, Serviços de Televisão, serviços de telefone”, como “taxativa” e não, como de modo inadequado interpretou o douto acórdão recorrido, como “meramente exemplificativa”.
11ª.- A questão de, neste caso em concreto, decidir excepcionalmente pela taxatividade do termo “nomeadamente”, resulta da interpretação da procuração na sua globalidade e em especial do confronto do texto da alínea h) com o texto das alíneas i) e p), tendo em conta a dupla qualidade em que o outorgante da procuração aí interveio.
12ª.- A leitura conjugada do texto da procuração, no seu conjunto, e as 4 razões anteriormente expostas (págs 9 a 11 destas alegações) demonstram (i) que a intenção do recorrente com o texto da referida alínea h) e o sentido a atribuir ao texto da alínea h) é o de que, como atrás já se disse, o termo “nomeadamente” foi, neste caso concreto, utilizado no sem tido de “taxativo” e ainda (ii) que o outorgante aí se quis referir apenas aos contratos celebrados ou a celebrar com as entidades aí expressamente mencionadas (G...., S.A., H…., Serviços Municipalizados, empresas fornecedoras de Serviços de Gás, Serviços de Televisão, serviços de telefone).
13.ª - Não pode, como se fez no douto acórdão recorrido, atribuir-se ao texto da alínea h) da procuração o sentido de que abrange todos e quaisquer contratos, de qualquer natureza, além dos ali invocados expressamente, que tivessem sido ou viessem a ser celebrados quer com o outorgante quer com a sociedade por ele também aí representada, porque a letra das alíneas i) e p) vai frontalmente contra essa interpretação e esse sentido.
14.ª- A embargante/recorrida, para mais sendo advogada de profissão, e sendo até, na altura, a advogada do recorrente, quando recebeu em mãos a declaração de fls 15º vº, não podia desconhecer que a procuração nela invocada, e, concretamente, a sua alínea h), não davam poderes à procuradora FF. para assinar a declaração final que dela consta, no sentido de que, “após o pagamento desses cheques, aquela, a AA., nada mais devia, encontrando-se os contratos de mútuo celebrados a 10/02/2004, 16/02/2004, 28/02/2004, 20/02/2004, 05/03/2004, 13/03/2004, 18/03/2004, 26/03/2004, 04/04/2004 e 13/04/2004, liquidados.”
15ª.- E, por isso, aquela declaração era e é ineficaz em relação ao ora recorrente enquanto outorgante daquela procuração.
16ª.- O douto acórdão recorrido não fez a melhor interpretação do sentido e alcance da procuração e do sentido e alcance que a declaratária da declaração de fls 15 vº (a recorrida) lhe atribuiu, concretamente quanto à sua alínea h).
17ª.- E só por essa razão decidiu como decidiu e deixou de se pronunciar sobre as questões colocadas pelo ora recorrente na apelação.
Nos termos expostos e nos demais de direito do douto suprimento, deve o presente recurso ser recebido e julgado procedente e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido e ordenada a baixa do processo à 2ª instância para que o Tribunal da Relação … conheça das questões colocadas na apelação do recorrente e, em especial, nas conclusões das suas alegações daquela apelação,
assim se fazendo a esperada e costumada JUSTIÇA!».
5. AA. e outros, notificados das alegações de revista, apresentaram contra-alegações, nas quais formularam as seguintes conclusões:
«I – O ataque à douta decisão recorrida é, salvo o devido respeito, desconexo no seu conjunto, revelando falta de fé nos próprios argumentos que esgrime, os quais, além de claramente improcedentes, se revelam desadequadamente redutores, dando a entender ter-se o recorrente fixado na idéia de que tudo o que é exemplificativo, passou a taxativo, esbarrando, por isso, na lucidez e acerto da decisão recorrida.
II – A procuração aqui em causa constitui a típica procuração “com todos os poderes” emitida em Portugal – e não só. Carregada de redundâncias, precisamente para evitar exercícios de contorcionismo intelectual e sintático, normalmente, para se furtarem ao pagamento, no que concerne às seguradoras, ou, como é o caso, ao “efeito da representação” prescrito no art. 258.º, do CCivil, assim se julgando livres para sonegar actos anteriormente praticados, as procurações com amplitude de poderes daquele jaez, repetem-se várias vezes, sendo comum vermos consignado “para todos e também para as seguradoras, ou os bancos ou as Finanças,” etc., sem que, de forma alguma se pretenda excluir o poder repetidamente indicado, ou transformar o que expressamente se indica como exemplificativo em taxativo.
III – O documento de quitação total dos “contratos de mútuo” dados à execução subscrito pela irmã do recorrente, “na qualidade de procuradora de EE.”, com, também ela expressa imediata menção à procuração que lhe conferiria tal poder, “(Procuração emitida em 07/12/2006, no Cartório Notarial de ….)” qualidade em que a mencionada irmã do recorrente actuava, desde a sua emissão, na relação com a recorrida e com as demais pessoas e entidades de que esta se podia aperceber, a partir do momento em que ela própria, recorrida, minutou tal procuração, precisamente para o mencionado efeito, é perfeitamente válido e eficaz por inquestionavelmente se compreender “nos limites dos poderes” que a dita procuração lhe confere, nos termos e para os efeitos do art. 258.º, do CCivil.
IV – Da procuração mencionada naquela quitação, constam, concretamente na al. h), os poderes para “Celebrar, alterar e revogar qualquer contrato nomeadamente com a G...., S.A., H…., Serviços Municipalizados, empresas fornecedoras de Serviços de Gás, Serviços de Televisão, Serviços de telefone, podendo receber quaisquer quantias a que tenha direito, assinando recibos e dando quitação, nos termos e condições que entender, assinando tudo o que for necessário para o efeito;”, conferindo assim à subscritora da dita quitação poderes bastantes para validamente subscrever, como subscreveu, a declaração de quitação a que nos vimos referindo.
V – Ainda que se não entendam da forma vinda de expor os poderes conferidos pela procuração emitida pelo recorrente, assim carecendo, nos termos do n.º 2, do art. 268.º, do CCivil, a subscrição da quitação, de ratificação pelo recorrente, o decurso de vários anos de plena disposição do dinheiro por via dela recebido, bem como os actos sobre ele praticados, nomeadamente escritos, de ordens de transferência, emissão de cheques e outros, seja mesmo a impressão dos extractos bancários, constituem inquestionavelmente actos onde, sem margem para dúvidas, “com toda a probabilidade” se revela a ratificação da declaração.
V – 1. O propugnado no corpo desta cláusula funda-se nos n.ºs 1 e 2, do art. 217.º do CCivil.
VI – O facto de o recorrente permitir que a sua irmã e procuradora andasse durante anos a receber os pagamentos realizados pela recorrida e a dar as correspondentes quitações, afirmando-se, aliás com base numa procuração minutada por esta, como sua bastante procuradora, criando nela a confiança legítima de que nunca enjeitaria os actos praticados pela Irmã, levando-a a entregar- lhe, nessa convicção, os €95.000,00 que para o efeito de proceder à liquidação integral da sua dívida pediu ao banco, impedi-lo-ia sempre, agora, de vir invocar a ineficácia da declaração face a ele, por configurar uma nítida actuação em abuso de direito, por venire contra factum proprium”.
VI – 1. Este o comando que se contém no art. 334.º, do CCivil, não obstando à sua arguição agora o facto de não ter sido apreciado antes, porque se trata de facto de conhecimento oficioso».
Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso se delimita pelas conclusões do recurso, que definem o thema decidendum, excetuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, as questões suscitadas pelo recorrente são as seguintes:
a) Determinação do sentido juridicamente relevante dos poderes conferidos pela alínea h) da procuração outorgada pelo recorrente à sua irmã, FF., à luz dos critérios fixados nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil para a interpretação das declarações negociais;
b) Reenvio do processo ao Tribunal da Relação para conhecimento das questões da apelação que ficaram prejudicadas pela resposta dada pelo acórdão recorrido à interpretação da procuração.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação de facto
A matéria de facto fixada pelas instâncias, após o exercício pelo Tribunal da Relação dos seus poderes, é a seguinte:
«1 - A exequente intentou ação executiva, apresentando à execução os documentos denominados “contrato de mútuo”, de fls. 6v a 21 dos autos principais;
2 - Não obstante os referidos documentos dados à execução pelo exequente terem, cada um, a quantia de 12.500 € como capital mutuado e datas diferentes, na realidade a quantia global de 125.000 € foi entregue pelo exequente, de uma só vez e por meio de dois cheques sacados, um no valor de 100.000 € (cem mil euros) sobre o “BCP, S.A. (Nova Rede)” e outro no valor de 25.000 € (vinte e cinco mil euros) sobre o “Banif”, à executada AA., a seu pedido e a título de empréstimo, em 13.2.2004;
3 - Tal quantia destinou-se à compra do local do escritório profissional da executada AA. e onde tem, desde então, exercido a sua atividade profissional de …;
4 - Na aludida data de 13.2.2004, exequente e executados acordaram ainda que os executados CC. e DD. seriam fiadores e que deveria ser restituída a mencionada quantia de 125.000 €, no prazo de dez anos, em dinheiro (Facto modificado pelo Tribunal da Relação);
5 - Mais acordaram que os executados pagariam mensalmente juros remuneratórios à taxa de 5% ao ano sobre a quantia de 125.000 €, taxa essa que seria revista semestralmente e que corresponderia à taxa de “Euribor de referência”, acrescida de 3%;
6 - O que foi feito no primeiro semestre da vigência do mencionado contrato de empréstimo, por via dos seguintes pagamentos efetuados pelos executados, a título de juros, calculados à taxa de 5% ao ano:
a/ Cheque no valor de. 520,83€ (quinhentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos), sacado sobre o “Banco Santander”, em 20.3.2004;
b/ Cheque no valor de 520,83€ (quinhentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos), sacado sobre o “Banco Santander”, em 20.4.2004;
c/ Cheque no valor de 520,83€ (quinhentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos), sacado sobre o “Banco Santander”, em 20.5.2004;
d/ Cheque no valor de 520,83€ (quinhentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos), sacado sobre o banco Santander, em 20.6.2004;
e/ Cheque no valor de 520,83€ (quinhentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos), sacado sobre o “Banco Santander”, em 20.7.2004;
f/ Cheque no valor de 520,83€ (quinhentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos), sacado sobre o “Banco Santander”, em 20.8.2004;
7 – Facto eliminado pelo Tribunal da Relação;
8 – Os executados pagaram ao exequente, no âmbito do empréstimo aludido nos Pontos 2/ a 5/ supra, a quantia global de 95.000 €, através dos seguintes cheques (Facto modificado pelo Tribunal da Relação):
a/ Cheque no valor de 12.500€ (doze mil quinhentos euros), sacado sobre “BBVA”, datado de 28.7.2009;
b/ Cheque no valor de 12.500€ (doze mil quinhentos euros), sacado sobre “BBVA”, datado de 1.8.2009;
c/ Cheque no valor de 10.000€ (dez mil euros), sacado sobre “BBVA”, datado de 7.8.2009;
d/ Cheque no valor de 12.00€ (doze mil euros), sacado sobre “BBVA”, datado de 15.8.2009;
e/ Cheque no valor de 12.500€ (doze mil quinhentos euros), sacado sobre “BBVA”, datado de 20.8.2009;
f/ Cheque no valor de 12.500€ (doze mil quinhentos euros), sacado sobre “BBVA”, datado de 30.8.2009;
g/ Cheque no valor de 8.000€ (oito mil euros), sacado sobre “BBVA”, datado de 2.9.2009;
h/ Cheque no valor de 8.000€ (oito mil euros), sacado sobre “BBVA”, datado de 8.9.2009;
i/ Cheque no valor de 7.000€ (sete mil euros), sacado sobre “BBVA”, datado de 21.8.2009;
8.a - FF. subscreveu a declaração constante de fls.15v, através da qual, na qualidade de procuradora do exequente, conforme instrumento cujo teor consta a fls. 93 a 97, declarou, entre o mais, ter recebido a quantia de 95.000 €, para pagamento do empréstimo de que era devedora AA., através dos cheques identificados no Ponto anterior, bem assim que, após o pagamento desses cheques, nada mais a AA. devia, encontrando-se os contratos de mútuo celebrados a 10.2.2004, 16.2.2004, 28.2.2004, 20.2.2004, 5.3.204, 13.3.2004, 18.3.2004, 4.4.3004 e 13.4.2004 liquidados (Facto aditado pelo Tribunal da Relação);
9 - Os executados entregaram ainda ao exequente, para pagamento parcial do empréstimo aludido nos Pontos 4/ a 5/ supra, a quantia global de 10.000 €, através dos seguintes cheques (Facto modificado pelo Tribunal da Relação):
a/ Cheque no valor de 5.000€ (cinco mil euros), sacado sobre “Banco Banif”, em 30.7.2007;
b/ Cheque no valor de 2.500€ (dois mil e quinhentos euros), sacado sobre “Banco Banif”, em 6.10.2008;
c/ Cheque no valor de 1.500€ (mil e quinhentos euros), sacado sobre “Banco Santander”, em 6.10.2008;
d/ Cheque no valor de 1.000€ (mil euros), sacado sobre “Banco Santander”, em 31.10.2008.
10 – Facto eliminado pelo Tribunal da Relação
III – Fundamentação de direito
1. A única questão a decidir no recurso de revista é a de saber qual o sentido juridicamente relevante da al. h) da procuração outorgada pelo recorrente à sua irmã FF., cuja cópia consta a fls. 93 a 95 dos autos.
Ficou consignado no ponto 8.a da matéria de facto, aditado pelo tribunal recorrido, que FF. subscreveu a declaração constante de fls.15v, através da qual, na qualidade de procuradora do exequente, declarou, entre o mais, ter recebido a quantia de 95.000 €, para pagamento do empréstimo de que era devedora AA., através dos cheques identificados no ponto 8, e que, após o pagamento desses cheques, nada mais a AA. devia, encontrando-se liquidados os contratos de mútuo celebrados a 10.2.2004, 16.2.2004, 28.2.2004, 20.2.2004, 5.3.204, 13.3.2004, 18.3.2004, 4.4.3004 e 13.4.2004.
Convirá ainda destacar que, através da citada procuração, o exequente conferiu à sua irmã, FF., vastos poderes para a prática de diversos atos em sua representação, aqui se destacando, entre o mais, conforme al. h) da dita procuração, o seguinte:
“Celebrar, alterar e revogar qualquer contrato nomeadamente com a G...., S.A., H…., Serviços Municipalizados, empresas fornecedoras de Serviços de Gás, Serviços de Televisão, Serviços de telefone, podendo receber quaisquer quantias a que tenha direito, assinando recibos e dando quitação, nos termos e condições que entender, assinando tudo o que for necessário para o efeito”.
Ora, face aos poderes que assim foram conferidos à sua irmã, FF., pelo exequente, o que se pergunta é se a mesma estava autorizada à prática do ato representado na declaração descrita no ponto 8.a com o alcance de dar por liquidados (pagos) os mútuos a que se reportam os documentos dados à execução.
O Tribunal da Relação entendeu que, em obediência às regras da hermenêutica negocial que decorrem dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, tem de se concluir que o exequente conferiu poderes à sua irmã, FF., enquanto sua procuradora, para dar por liquidado o contrato de mútuo em discussão nos autos, ficando o exequente vinculado, por força do artigo 258.º do Código Civil, à “quitação” contida na “declaração” aludida no assinalado ponto de facto (8.a). Mais referiu que não ficaram demonstrados quaisquer factos suscetíveis de traduzir uma situação em que a vontade manifestada através da dita “declaração” da procuradora padecesse de algum vício que gerasse a sua invalidade (nulidade ou anulabilidade), nos termos do prescrito no artigo 259.º do Código Civil.
O recorrente entende, contudo, que o acórdão recorrido fez errada interpretação do sentido juridicamente relevante dos poderes conferidos pela procuração, à luz dos critérios dos artigos 236º a 238º do CCivil. O seu principal argumento é o de que se deve ter em conta o contexto da globalidade da procuração, e que o advérbio “nomeadamente” utilizado na sua alínea h) torna a referência ali feita a “qualquer contrato nomeadamente com a G...., S.A., H…., Serviços Municipalizados, empresas fornecedoras de Serviços de Gás, Serviços de Televisão, serviços de telefone”, como “taxativa” e não meramente exemplificativa, excluindo portanto a atribuição de poderes para a celebração ou execução de outros contratos para além dos expressamente referidos.
Mas não tem razão.
É jurisprudência assente neste Supremo Tribunal que a interpretação da declaração negocial em função dos critérios estabelecidos nos artigos 236.º e 238.º do Código Civil constitui problema de direito, como tal suscetível de cognição em sede de recurso de revista.
A procuração é um negócio jurídico unilateral, constituído por uma declaração de vontade através da qual alguém confere a outrem poderes de representação, tendo por consequência que, se o procurador celebrar o negócio jurídico para cuja conclusão lhe foram dados esses poderes, o negócio produz os seus efeitos em relação ao representado.
Como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 01-03-2018 (processo n.º 878/15.3T8VRL.G2.S1): I - Na representação (art. 258.º do CC) há um representante que participa no tráfico jurídico negocial em nome de outrem (contemplatio domini) - o representado - e os efeitos dos negócios por aquele conduzidos produzem-se directa e imediatamente na esfera jurídica deste (dominus negotii). II - Uma das fontes do poder de representação é a procuração, definida pelo art. 262.º do CC como o acto pelo qual alguém (dominus) atribui a outrem (procurador), voluntariamente, poderes de representação. III - Trata-se de acto unilateral, por intermédio do qual é conferido ao procurador o poder de celebrar negócios jurídicos em nome de outrem (dominus) em cuja esfera jurídica se vão produzir os seus efeitos (art. 262.° do CC)».
A procuração é um negócio jurídico formal, cuja interpretação está sujeita às regras definidas pelos artigos 236.º a 238º do Código Civil (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10-09-2019, proc. n.º 546/15.1T8CTB.C1.S1).
Assim, é da interpretação dos termos da procuração que há de resultar a validade ou não do documento de quitação total dos “contratos de mútuo” dados à execução, subscrito pela irmã do recorrente, na qualidade de procuradora daquele.
Nos termos do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, vigora, entre nós, o princípio da interpretação de acordo com a impressão do declaratário normal colocado na posição do declaratário real, tendo em conta o sentido corrente e usual das palavras escritas neste tipo de instrumentos amplamente utilizados no tráfego jurídico. Sendo a procuração um negócio jurídico unilateral, não há propriamente um declaratário, mas apenas um conjunto amplo de destinatários de declarações negociais proferidas com base nessa procuração. No caso concreto, a executada, com a profissão de advogada, não pode deixar de ter entendido que a referida procuração dava poderes gerais à irmã do recorrente para o representar individualmente e como gerente da sociedade, na celebração de negócios jurídicos, e para receber pagamentos de dívidas e dar quitação dos mesmos. Tinha, assim, quando fez os pagamentos à irmã do exequente, uma expetativa legitimamente fundada de que a procuradora, dando quitação dos mesmos e declarando que nada mais havia a pagar, teria agido com base em poderes que lhe tinham sido conferidos pelo credor através da procuração junta aos autos. Por outro lado, o declarante é sócio gerente de uma sociedade e está habituado a compreender o que significa a linguagem usada numa procuração. Acresce que, sendo a procuradora sua irmã, é natural que lhe conferisse amplos poderes, dada a estreita relação familiar entre ambos.
Em termos de português corrente não existe qualquer fundamento para que a expressão “nomeadamente”, que significa, de forma inequívoca, uma enumeração meramente exemplificativa, comporte, afinal, o sentido de uma enumeração taxativa, como pretende o recorrente, de forma completamente contrária ao elemento literal de interpretação. Nem o sentido global da procuração, designadamente das alíneas i) e p), que conferem poderes representativos para celebrar quaisquer contratos da sociedade e para celebrar quaisquer contratos com companhias de seguro, bem como para “receber quaisquer quantias a que tenha direito, assinando recibos e dando quitação, nos termos e condições que entender, assinando tudo o que for necessário para o efeito”, permite, como invocou o recorrente, tal transmutação linguística, por alegadamente não fazer sentido voltar a conferir poderes gerais de representação nas alíneas i) e p), se estes já tivessem sido atribuídos pela cláusula h). As considerações feitas pelo autor nas suas alegações a este propósito, para fundamentar uma alegada inutilidade da al. h), que teria então de ser interpretada restritivamente, são de natureza especulativa e não se sobrepõem à força do elemento literal no que diz respeito ao significado da expressão “nomeadamente” inserida na citada cláusula da procuração.
Assim, conclui-se que a alínea h) da procuração se reporta a todo e qualquer contrato, qualquer que fosse a sua natureza e objeto, do recorrente e/ou da sociedade, por ele também representada, e não apenas a contratos com “a G…, S.A., H…, Serviços Municipalizados, empresas fornecedoras de Serviços de Gás, Serviços de Televisão, serviços de telefone”, incluindo poderes para receber quaisquer quantias a que tenha direito, nessa dupla qualidade, assinando recibos e dando quitação.
Nestes termos, a declaração de quitação proferida pela procuradora e a afirmação de que a executada nada mais deve ao agora exequente é eficaz em relação a este, não constituindo um negócio sem poderes de representação inoponível em relação ao representado, nos termos do artigo 268.º do Código Civil.
Em consequência, as eventuais obrigações, que pudessem imputar-se aos executados pela subscrição dos mencionados documentos dados à execução, têm de se considerar extintas, e o débito imputado aos executados, decorrente da subscrição dos mencionados documentos, considera-se liquidado (pago), com a consequente extinção da lide executiva.
Por último, mantendo-se o decidido no acórdão recorrido, não há que ordenar a baixa do processo ao Tribunal da Relação, por ficar prejudicado o conhecimento das questões alegadas na apelação, às quais o acórdão recorrido não respondeu em virtude de terem ficado prejudicadas pela decisão tomada sobre a interpretação da procuração (artigo 608.º, n.º 2, 1.ª parte do CPC).
Em conclusão, mantém-se o acórdão recorrido e declara-se extinta a execução.
IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se, na 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, confirmar o acórdão recorrido e declarar extinta a execução.
Custas pelo recorrente.
Supremo Tribunal de Justiça, 26 de janeiro de 2021
Maria Clara Sottomayor – Relatora
Alexandre Reis – 1.º Adjunto
Pedro de Lima Gonçalves – 2.º Adjunto
Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).
Maria Clara Sottomayor - Relatora