Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | SOUTO DE MOURA | ||
Descritores: | ESCUSA RECUSA JUIZ TRIBUNAL DA RELAÇÃO IMPARCIALIDADE JUIZ NATURAL BUSCA DOMICILIÁRIA INQUÉRITO | ||
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Data do Acordão: | 11/15/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | ESCUSA | ||
Decisão: | INEDEFERIDA | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL - SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / RECUSAS E ESCUSAS - PROVA / MEIOS DE OBTENÇÃO DE PROVA. ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - ESTATUTOS PROFISSIONAIS / MAGISTRADOS JUDICIAIS. | ||
Doutrina: | - Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa”, Anotada, vol. III, p. 43. - Paul Martens, "La tyrannie des apparences", Revue Trimestrielle des Droits de L´Homme, 1996, p. 640. - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, 4ª Edição, pp. 132 e 133. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 43.º, N.ºS1 E 4, 44.º, 174.º, N.ºS 1 E 2, 177.º, N.º1. LEI N.º21/85, DE 30-7, ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGOS 16.º, N.º4. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: -Nº 135/88, DE 16 DE JUNHO DE 1988. -*- ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 8/05/2003, PROC. N.º 1497/03-5; DE 13/04/2005, PROC. N.º 1138/05-3; DE 28/6/2006 PROC. N.º 06P1937. | ||
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Sumário : | I - O CPP estabeleceu, no n.º 1 do art. 43.°, uma cláusula geral nos termos da qual “a intervenção de um juiz pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, cláusula que é aplicável aos pedidos de escusa. Prescreve, com efeito, o n.° 4 do mesmo art. 43.º que “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir, quando se verificarem as condições dos números 1 e 2”. II - Constituindo o deferimento do pedido de escusa ou do requerimento de recusa sempre um desvio ao princípio do juiz natural, o consequente deferimento só se mostra legítimo quando estiver verdadeiramente em causa a imparcialidade do juiz. III - No caso em apreço, do ponto de vista subjetivo, nenhuma notícia existe de que o comportamento do requerente pode inculcar uma possível falta de imparcialidade. Pelo contrário, sendo o presente processo suscitado por um pedido de escusa do próprio magistrado, estamos perante uma atitude que só pode ser qualificado de escrupulosa, por parte do Juiz Desembargador requerente. IV - Do ponto de vista objetivo, por outro lado, parece-nos que não existe um “motivo sério e grave” que faça a generalidade das pessoas desconfiar da imparcialidade do mesmo. O requerente alega uma relação de amizade com M, que vem dos tempos do CEJ, e que se tem traduzido em visitas à casa da mesma, a última das quais em agosto de 2011, bem como noutras expressões de cortesia. Percebe-se facilmente o desconforto, para o requerente, causado pela sua intervenção neste processo. Porém, aquilo a que importa atender é tão só saber se a generalidade das pessoas que saibam dessa específica intervenção, serão levadas a desconfiar da imparcialidade do requerente. V - Ora, os contornos do caso apontam para que se trate, essa, de uma eventualidade remota. Na verdade, o processo em questão encontra-se na fase de investigação, a qual é levada a cabo pela PJ. Foi no decurso do inquérito que o MP, em promoção circunstanciada, promoveu e solicitou autorização para a realização da busca, tendo os autos sido distribuídos ao requerente. Está em causa portanto uma intervenção no processo que se traduz, pontualmente, na verificação dos pressupostos da busca, pautados pelos indícios de que “objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova” se encontrem em “lugar reservado ou não livremente acessível ao público”, no caso a habitação da magistrada referida (cf. art. 174.°, n.ºs 1 e 2, do CPP), com a consequente autorização (ou não) da busca (cf. art. 177.°, n.º 1, do CPP). VI - A intervenção do requerente ocorre numa fase investigatória secreta, em que o espectro das pessoas que possam ter conhecimento da mesma, é limitado. Se o requerente presidir à busca em foco, será acompanhado, por certo, por elementos da PJ e pelo MP, para além de um membro delegado pelo CSM, nos termos do art. 16.°, n.° 4, do EMJ. VII - Motivos pelos quais se indefere o pedido de escusa formulado pelo requerente. | ||
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Decisão Texto Integral: |
A - O PEDIDO
O Juiz-Desembargador da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, Sr. Dr. AA, veio requerer ao Supremo Tribunal de Justiça a sua escusa para intervir no processo nº 947/12.1TABRG-A, invocando o disposto no art. 43º nºs 1 e 4 do Código de Processo Penal. Alegou para tanto, em síntese, que o processo em questão se encontra na fase de inquérito e aí se investiga o crime de pornografia de menores. Que nesses autos, o Mº Pº, titular do inquérito, promoveu a autorização e realização de busca ao domicílio da Srª BB, para pesquisa e apreensão de todos e quaisquer objetos relacionados com o crime em apreço, incluindo dados informáticos e seus suportes. Ora, o requerente alega que mantém uma relação de amizade com aquela magistrada, bem como com a família, evidenciada pelos seguintes factos: “Em 1988/1989 o signatário e a BB, foram colegas .... Desde 1995, há mais de 17 (dezassete) anos, pois, o signatário é amigo pessoal da BB: - Logo no verão de 1995, o signatário e o seu cônjuge passaram alguns dias em casa daquela BB, em ... . - Mantendo desde então um regular contacto com a referida BB, de que destaca, • A ida do signatário e da sua família, cônjuge e filhas, a casa da BB, em B..., primeiro, num 5° andar e mais recentemente numa moradia, aquela cuja busca se pretende, onde tomou refeições com a BB e a respetiva família, nomeadamente mãe, enquanto viva, irmã, cunhado e sobrinhos; • O acompanhamento da evolução do estado de saúde da BB após o acidente que a mesma sofreu e que motivou a sua prematura jubilação, primeiro no Hospital de B... e depois em casa; • A presença do signatário na apresentação pública da tese de mestrado da BB, na Universidade de B..., aonde se deslocou de Sintra exclusivamente para tal fim; • A presença da BB na tomada de posse do signatário ..., em setembro de 2010, quando o mesmo aí tomou posse como auxiliar. O apontado relacionamento justificou que na última deslocação do signatário e da sua família a B..., em agosto de 2011, num domingo, mais uma vez tivesse ocorrido um almoço entre ambas as famílias, na casa cuja busca se pretende, após o que a BB acompanhou a família do signatário em visita a pontos de interesse de B... . O mesmo relacionamento motivou que ainda em setembro passado, aquando da tomada de posse do signatário como efetivo na Relação de G..., a BB tivesse telefonado para expressamente justificar a sua ausência nesse ato. V. Face ao apontado regime legal e aos factos descritos, afigura-se que o Signatário não deve ter competência funcional para processar os presentes autos, quer porque a Comunidade dificilmente compreenderia tal, nomeadamente que interviesse numa busca em casa que bem conhece, quer porque o estado de relacionamento com a BB e sua família não lhe permitir a imparcialidade que a situação exige e o múnus de ... impõe.” O requerente arrolou como testemunha, para o caso de se mostrar necessário, a sua própria esposa, CC, a qual exerce funções, atualmente, como ... . Colhidos os vistos os autos foram presentes à Conferência.
B - APRECIAÇÃO
Nos termos do disposto no art. 45º nº 1 do Código de Processo Penal, o pedido de escusa do juiz (que não pertença ao STJ), é apresentado, juntamente com elementos que o fundamentam, ao tribunal imediatamente superior (portanto, ao STJ, estando em causa um pedido de escusa de um Sr. Juiz Desembargador), devendo o pedido ser formulado, conforme se estabelece no art. 44.º do CPP, até a início da audiência. O requerente apresentou o seu pedido em tempo, e este tribunal é o competente.
I - No recente Pº 117/12.9YFLSB, em que o relator do presente acórdão figura como um dos subscritores, disse-se o que, com a devida vénia, se transcreve: “A independência dos tribunais expressa no art. 203º da Constituição, que constitui exigência do Estado de Direito, é caracterizada pela independência dos demais poderes do Estado, sendo garantida pela independência dos juízes. Conforme acentuou o Prof. Figueiredo Dias ao afirmar que [É] "através da característica da independência dos juízes, [que] se asseguram os fundamentos de uma atuação livre dos tribunais perante pressões que se lhes dirijam do exterior. Isto não basta, porém, para que fique do mesmo passo preservada a objectividade de um julgamento: é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a 'imparcialidade' dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar. […] E o que interessa - convém acentuar - não é tanto o facto de, a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados"(in “Direito Processual Penal”, pág. 315). Esta lição foi acolhida pelo Tribunal Constitucional, tendo servido de fundamento ao acórdão nº 135/88, de 16 de junho de 1988, que julgou inconstitucional a norma do art. 116º do Código de Processo Penal de 1929. Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros na Constituição Portuguesa Anotada, (vol. III, pág. 43) “a independência dos juízes – de cada juiz – pressupõe e reclama a sua não submissão às partes em litígio e, designadamente a sua exterioridade em face dos interesses em conflito.” O Código de Processo Penal estabeleceu, no nº 1 do art. 43º, uma cláusula geral nos termos da qual “a intervenção de um juiz pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, cláusula que é aplicável aos pedidos de escusa. Prescreve, com efeito, o nº 4 do mesmo art. 43º que “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir, quando se verificarem as condições dos números 1 e 2.” Constituindo o deferimento do pedido de escusa ou do requerimento de recusa sempre um desvio ao princípio do juiz natural, o consequente deferimento só se mostra legítimo quando estiver verdadeiramente em causa a imparcialidade do juiz. Este princípio da imparcialidade, que tem sido objeto de uma larga reflexão pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, deve ser apreciado, segundo a ótica deste tribunal internacional, sob um duplo prisma: numa aproximação subjetiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião, e numa apreciação objetiva, quanto a saber se o magistrado em causa oferece as suficientes garantias para repelir e excluir, a este propósito, quaisquer dúvidas aceitáveis. (Cfr. ac. STJ de 8-05-2003 - Proc. 1497/03-5 e de 13-04-2005 - Proc. 1138/05-3). Segundo se acentuou neste último acórdão, “a imparcialidade objetiva apresenta-se como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objetiva, que poderia ser devastadora, e para não cair na "tirania das aparências" (cfr., Paul Martens, "La tyrannie des apparences", Revue Trimestrielle des Droits de L´Homme, 1996, pag. 640), ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser.” “A gravidade e a seriedade do motivo” – afirmou-se ainda – “hão de revelar-se, assim, por modo prospetivo e externo, e de tal sorte que num interessado - ou, mais rigorosamente, num homem médio colocado na posição do destinatário da decisão possam razoavelmente suscitar-se dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão. “ Conforme refere P.P.Albuquerque, “O teste subjetivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjetivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objetivos evidentes devem afastar essa presunção. (…) O teste objetivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade” (in “Comentário do CPP”, 4ª Edição, pág. 132 e 133). Depois de reiterar a posição do TEDH, segundo a qual a imparcialidade subjetiva se presume até prova em contrário, o Acórdão deste STJ de 28/6/2006 (Pº 06P1937), afirmou, e bem, que “a imparcialidade objetiva releva essencialmente de considerações formais, e o elevado grau de generalização e de abstração na formulação do conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos atos processuais.”
II - É evidente que, do ponto de vista subjetivo, nenhuma notícia existe de que o comportamento do requerente pode inculcar uma possível falta de imparcialidade. Pelo contrário, sendo o presente processo suscitado por um pedido de escusa do próprio magistrado, estamos perante uma atitude que só pode ser qualificado de escrupulosa, por parte do Juiz Desembargador requerente. Do ponto de vista objetivo, por outro lado, parece-nos que não existe um “motivo sério e grave” que faça a generalidade das pessoas desconfiar da imparcialidade do mesmo. O requerente alega uma relação de amizade com a Srª Drª BB que vem dos tempos do CEJ, e que se tem traduzido em visitas à casa da mesma, a última das quais em agosto de 2011, bem como noutras expressões de cortesia. Percebe-se facilmente o desconforto, para o requerente, causado pela intervenção sua neste processo. Porém, aquilo a que importa atender, é tão só saber se a generalidade das pessoas que saibam dessa específica intervenção, serão levadas a desconfiar da imparcialidade do requerente. Ora, os contornos do caso apontam para que se trate, essa, de uma eventualidade remota.
C - DECISÃO
Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de escusa formulado pelo Juiz-Desembargador da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, Sr. Dr. AA, para intervir no processo nº 947/12.1TABRG-A, da Secção Penal daquela Relação. Sem custas.
Lisboa, 15 de novembro de 2012 |