Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B4257
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NORONHA NASCIMENTO
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE ARQUITECTURA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Nº do Documento: SJ200602090042572
Data do Acordão: 02/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Num contrato de prestação de serviços, na falta de regras supletivas (v.g.instruções) fixadas pelos contraentes, são aplicáveis as normas legais do mandato - art.1156º do C. Civil.
II - Se não provou que para a elaboração de um projecto de arquitectura, engenharia e urbanismo o contraente-mandante haja estabelecido a consideração de um limite máximo (plafond) para o respectivo custo de execução das obras, preço esse que veio a ser excedido, não pode ser assacada, qualquer responsabilidade contratual à firma prestadora.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


A Autora AA propôs acção com processo ordinário contra a Ré "Empresa-A, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 3.883.717$00 a titulo indemnizatório e relativo a danos emergentes e ainda a que se apurar em execução de sentença relativa a lucros cessantes.
Alega em suma que celebrou com a Ré um contrato de prestação de serviços (projecto de arquitectura e remodelação de morada) que não foi cumprido pela Ré e de que sobrevieram os danos referidos.
Citada, a Ré contestou e deduziu reconvenção pedindo a condenação da A. a pagar-lhe a quantia de 5.186.344$00 acrescida de juros de mora à taxa legal por prejuízos sofridos e imputáveis à conduta contratual da A..
Procedeu-se a julgamento; e na sequência da normal tramitação processual foi proferida sentença que julgou procedente o pedido da A. condenando a Ré a pagar, a titulo indemnizatório, a quantia a liquidar em execução de sentença e julgou improcedente o pedido reconvencional da Ré.
Inconformada, apelou esta com êxito
Nessa conformidade, o Tribunal da Relação revogou em parte a sentença da 1ª instância julgando improcedente o pedido formulado pela A. (dele absolvendo a Ré) e julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional condenando a A. a pagar à Ré, a título de honorários, a quantia de 434.607$00 (ou 2.167,80 euros) bem como o montante a liquidar em execução de sentença e a calcular com base no valor da construção do projecto aprovado (57.958.559$00 ou 289.096,07 euros).
Inconformada, recorre agora de revista a A. formulando nas alegações as seguintes conclusões:
a) o T.Relação alterou a matéria de facto em relação a vários quesitos em contrário àquilo que é uma regra basilar, qual seja a da manutenção da matéria provada pelo julgador da 1ª instância que goza do privilégio da imediação na produção e apreciação da prova;
b) ademais, o T.Relação alterou os factos provados, aludindo a vários documentos sem os especificar e aos depoimentos de várias testemunhas sem concretizar a razão de ser dessa alteração;
c) pode o Supremo Tribunal de Justiça sindicar o modo como a 2ª instância usa os seus poderes de apreciação e cognição do facto a fim de verificar se foi excedida essa sua competência;
d) o que sucedeu no caso em apreço;
e) ainda assim os factos dados como provados pela 2ª instância justificam a procedência do pedido da Autora;
f) era essencial na decisão tomada pela Autora a limitação dos custos da obra projectada, custos esses que tinham como limite máximo 44.000 contos já que a A. não tinha disponibilidade financeira para despender mais;
g) sendo irrelevante para a A. que as mais valias fossem proporcionais ao aumento dos custos;
h) aliás, a Ré tinha o dever de informar e aconselhar a A. sobre esse aumento de custos dever que adivinha do contrato de prestação de serviço celebrado;
i) assim, um aumento de 25.000 contos nos custos da obra era inaceitável porque vedava à A. a execução de qualquer projecto;
j) a Ré é responsável pois, nos termos dos arts. 485 nº 1 e 486 do C.Civil;
l) no tocante ao pedido reconvencional deve ser confirmado o decidido em 1ª instância.
Pede, em consonância, que se conceda a revista, confirmando-se o decidido em 1ª instância ou, pelo menos, que se ordene à 2ª instância a justificação das alterações à matéria de facto.
Contra - alegou a Ré defendendo a bondade da decisão.
1º Insurge-se a recorrente contra a alteração da matéria de facto que foi em sentido contrário àquilo que é a posição normal dos tribunais de 2ª instância.
Na verdade o registo da prova produzida em julgamento de 1ª instância não se destina a permitir um novo julgamento em sede de recurso mas sim a permitir a reapreciação - dentro dos limites que a concentração, a oralidade a imediação do julgamento permitem - da prova apresentada.
Daí que, neste particular, tenham vingado dois modelos diferentes: ou o julgamento da matéria de facto por um colectivo de juízes que decidia o facto em definitivo (salvo casos extremos) apostando-se então na imediação total do colégio de decicones; ou o julgamento por um juiz monocrático com registo da audiência para permitir uma reapreciação colegial em recurso da matéria de facto provada.
Entre nós passou-se do primeiro modelo (que vigorou décadas) para o segundo; temos, por isso hoje, um sistema de imediação no julgamento sujeito a reapreciação da prova registada quando se recorre da matéria de facto fixada.
A tendência dos Tribunais de recurso para, só em casos especiais, alterarem a matéria de facto advém precisamente da situação privilegiada de que desfruta o julgador da 1ª instância. Com a visão directa e imediata do comportamento dos actores do julgamento - ainda por cima concentrada no tempo - o juiz de 1ª instância tem a percepção transparente que um registo translúcido não comporta.
Isso justifica a tendência de pouca modificabilidade da matéria de facto que se nota nos acórdãos sobre a matéria; mas daí até pretender que não se deve modificar, praticamente nunca, o facto (como a recorrente pretende) vai uma distância intransponível.
Ademais a maior garantia que o julgamento colegial em 1ª instância dava anteriormente desapareceu com a generalização da tendência para o juiz monocrático que implica - obviamente - como contraponto a generalização do registo probatório.
No caso, a modificação da matéria de facto operada pelo T. Relação baseou-se (conforme se constata directamente dele) nos documentos que explicita expressamente, no acordo das partes operado sobre a matéria de facto na audiência de julgamento de 9/10/03 e nos depoimentos registados das testemunhas identificadas.
Daí que se não veja que haja falta de justificação / fundamentação dos meios de prova sindicados através dos quais se operou a modificação da factualidade provada.
Não cabe a este Supremo Tribunal controlar o julgamento sobre o facto feito pela 2ª instância porque isso lhe está expressamente vedado (arts. 722 nºs. 2 e 729 nº 1 do C.P.C.); o que significa que se tem que manter o decidido, neste particular, pelo Tribunal recorrido.

2º) A Autora responsabiliza a Ré por incumprimento do contrato de prestação de serviço outorgado entre as partes (art. 1154 do C.Civil como todos os que se citarem sem indicação expressa de diploma).
Esquematicamente, a Autora raciocina assim: a A. celebrou com a Ré um contrato daquele género para lhe elaborar num projecto de arquitectura, engenharia e urbanismo de um prédio seu que devia ser remodelado tendo como limite máximo de custo de obra o montante de 44.000 contos; a Ré, porém, elaborou-lhe um projecto que, no mínimo, custaria cerca de 69.000 contos.
Com isto, ficou inviabilizado o projecto da Autora que teve os prejuízos que peticiona.
Estamos perante um contrato de prestação de serviço ao qual, na falta de regras supletivas fixadas pelos contraentes, são aplicáveis as normas legais do mandato (art.1156).
Assim, as prestadoras de serviço são obrigadas a seguir as instruções da contraparte (art. 1161 a)) na execução do contrato que outorgou.
No caso concreto, provou-se que, para a A., era essencial a definição dos custos porque a sua disponibilidade financeira não era ilimitada; daí que ela tenha insistido sempre na justificação custo - benefício do projecto.
Mas nunca se demonstrou que a A. tivesse alguma vez estabelecido um plafond máximo de custos como afirma nas suas alegações.
É certo que ficou provado que o valor estimado das obras projectadas foi de 39.725.000$00 ( e é com base no valor de 44.000 contos que a A. parte para a formulação jurídica do seu pedido por incumprimento negocial) mas aquele preço não só foi calculado para a remodelação do imóvel sem cave já que esta estava excluída do projecto inicial como ainda (e muito principalmente) ele era apenas válido para efeito de instrução na autarquia local e não valia como estimativa do custo real.
O que ressalta por conseguinte da factualidade provada (e poderíamos ainda aditar a resposta dada ao quesito 44) é a inexistência da instrução que claramente fixassem um plafond máximo (ainda que aproximado) a ser cumprido pela Ré.
O dever contratual previsto no citado art. 1161 a) pressupõe manifestamente a fixação dessas instruções; inexistindo elas é impossível falar-se em incumprimento contratual neste ponto particular.
Alude, ainda, a Autora à violação pela Ré do disposto nos arts. 485 n 2 e 486 do C.Civil.
Tais normas não são aplicáveis ao caso em apreço porquanto se reportam à responsabilidade extra - contratual e não à contratual.
Estamos na esfera da responsabilidade negocial (como a própria A. invoca) à qual é aplicável o regime previsto nos arts. 790 e segs.; daí mesmo que se presumisse a culpa da Ré - devedora (art. 799) caso tivesse ficado provado o incumprimento da prestação negocial a cargo dela.

3º) No tocante ao pedido reconvencional - e ainda nos aspectos relacionados com a questão abordada no item anterior (o nº2) - remete-se para o acórdão recorrido com cuja fundamentação se concorda.

Termos em que se nega a revista confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela Autora.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2006
Noronha Nascimento
Abílio de Vasconcelos
Manuel Duarte Soares