Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELDER ROQUE | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL TRIBUNAL DO TRABALHO COMPETÊNCIA EM RAZÃO DE HIERARQUIA SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO CUMULAÇÃO SUB-ROGAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 02/22/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA DA RÉ E CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA DO AUTOR | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL CIVIL | ||
Doutrina: | - Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, 379 e 380. - Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, AAFDL, 1990, 557. - José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999,47, 146, 152. - Larenz, Lehrbuch des Sculdrechts, citado por Vaz Serra, in RLJ, Ano 108º, 37. - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 74, 75, 91. - Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Lex, 1999, 31 e 32. - Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 1971, 220. - Vaz Serra, RLJ, Ano 94º, 187, 225, 226 e 259, nota (1). - Vaz Serra, RLJ, Ano 108º, 37,38 e 39. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL: - ARTIGOS 562.º, 566.º, NºS 1 E 2, 847.º. CÓDIGO COMERCIAL: - ARTIGOS 426º, CORPO, E § ÚNICO, E NºS 3, 4, 6 E 8, 427.º, 435.º, 441.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): -ARTIGOS 66.º, 102º, NºS 1 E 2, 493º, NºS 1 E 2 , 494º, Nº 1, I), 497.º, NºS 1 E 2, 498.º, NºS 1, 2 E 3, 712.º, N.º 2. DL Nº 35.746, DE 17 DE JULHO DE 1946: - ARTIGO 6.º. DL Nº 85/86, DE 7 DE MAIO: - ARTIGO 1.º. DL Nº 176/95, DE 26 DE JULHO: - ARTIGO 1º, J). DL N.º 94-B/98, DE 17 DE ABRIL: - ARTIGO 123.º, B). LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS (LOFTJ): - ARTIGOS 18.º, Nº1, 19.º, Nº 1, 34.º, 57.º, Nº 1, 85.º, «A CONTRARIO», 94.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 9-2-99, BMJ Nº 484, 292; -DE 9-5-95, CJ (STJ), ANO III, T2, 68; -DE 4-10-2001, Pº Nº 01B2309, WWW.DGSI.PT ; -DE 21-2-2001; -DE 4-11-2004, Pº Nº 04B3062; -DE 4-10-2004, CJ (STJ), ANO XII, T3, 39; -DE 21-4-2009, Pº 09A0449, WWW.GDSI.PT . ACÓRDÃOS DOUTRINAIS DO STA, ANO XL, 479º, 1539. | ||
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Sumário : | I - Não constitui violação das regras próprias da competência, em razão da matéria, a dedução ou abatimento operada pelo tribunal comum do quantitativo resultante da condenação em Tribunal do Trabalho, em virtude da cumulação do seguro de acidentes de trabalho com o seguro de acidentes pessoais na mesma pessoa segurada. II - Respeitando a questão da competência, em razão da matéria, apenas aos tribunais judiciais, e não tendo a mesma sido suscitada, até ser proferido o saneador, ainda que se pudesse contra-argumentar que, até então, era uma questão meramente virtual, não pode ser objecto de apreciação e decisão, em sede de recurso de revista. III - Não existe violação das regras da competência, em razão da hierarquia, quando, não sendo permitida a cumulação de indemnizações provenientes do seguro de acidente de trabalho e do seguro de acidentes pessoais, haja de optar por uma delas, com vista à fixação do montante indemnizatório devido ao lesado. IV - O seguro de acidentes pessoais tem subjacente o princípio indemnizatório que reflecte o carácter não especulativo do contrato de seguro, ao interditar que este possa constituir fonte de rendimento para os lesados, e cujas principais implicações consistem em evitar o sobre-seguro, impedir a cumulação de seguros e obstar a que o lesado seja, também, indemnizado pelo lesante. V - Não tendo o contrato de seguro de acidentes pessoais sido contratado pelo lesado, motorista e membro do quadro de pessoal dos corpos associativos de bombeiros, mas pelo Município, que o concluiu com a ré seguradora, em obediência a uma imposição legal, em que o lesado é a "pessoa segura" e o “beneficiário”, não pode o mesmo, em princípio, cumular as indemnizações provenientes do seguro de acidentes pessoais e do seguro de acidentes de trabalho, devendo optar por uma delas e exigir do outro devedor de indemnização o que faltar para a reparação integral do dano, por aplicação analógica da solução que se defende como a mais correcta, em matéria paralela de acidente, simultaneamente, de viação e de trabalho. VI - O Município, ao celebrar o contrato de seguro de acidentes pessoais, não teve intenção de atribuir ao autor, motorista e membro do quadro de pessoal dos corpos associativos de bombeiros, um beneficio autónomo, independente da eventual indemnização a que tivesse direito contra terceiros, por força de anterior contrato de seguro emergente de acidente de trabalho, assumindo antes aquele contrato de seguro de acidentes pessoais uma função de garantia, destinado a valer ao lesado, na falta de outro meio de ressarcimento patrimonial contra terceiros, hipótese em que o segurador, ao pagar o montante do seguro, fica subrogado nos direitos do lesado contra o terceiro responsável. VII - Tendo sido inserida, no respectivo contrato de seguro de acidentes pessoais, uma cláusula de sub-rogação, verifica-se a excepção ao princípio da não cumulabilidade das duas indemnizações, podendo o lesado cumular a indemnização proveniente do contrato de seguro emergente de acidente de trabalho com a indemnização resultante do contrato de seguro de acidentes pessoais, já que o direito a esta se transfere para o segurador que tenha pago o montante seguro, que fica subrogado nos direitos do lesado contra o terceiro responsável. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (1): AA, residente na T... J... de D..., nº ..., O... do H.., propôs a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB-“Companhia de Seguros I... B... SA”, com sede na Rua A... H..., nº .., Lisboa, pedindo que, na sua procedência, a ré seja condenada a pagar ao autor a quantia de €76.814,00 (setenta e seis mil oitocentos e catorze euros), acrescida de juros, à taxa legal, a contar da citação e até integral cumprimento, alegando, para tanto, em resumo, que, na qualidade de bombeiro voluntário da Associação dos Bombeiros Voluntários de O... do H..., com a categoria de motorista, desde 3 de Setembro de 2002, inscrito no Comando Distrital de Operações de Socorro de Coimbra do Serviço Nacional de Bombeiros, conduzia, no passado no dia 10 de Outubro de 2005, um veículo de transporte de doentes, com a matrícula ...-...-RV, tendo perdido o controlo da viatura, despistando-se e, por força desse acidente, sofreu diversas lesões de que resultou para si uma situação de invalidez permanente, acrescentando que é beneficiário de seguro de acidentes pessoais, celebrado entre o Município de O... do H... e a ré, e que, até à data, não obstante as comunicações legais, esta ainda não efectuou qualquer pagamento, no âmbito deste contrato. Na contestação, a ré defende-se, por impugnação, alegando, também, em síntese, que o autor não está abrangido pelo contrato de seguro de acidentes pessoais dos bombeiros, em que é tomador o Município de O... do H... e seguradora a ora ré, relativo à apólice n° B..., mas sim pela apólice do contrato de acidentes de trabalho, nos termos do qual lhe vem pagando, e isto porque o autor era, à data do acidente, trabalhador subordinado da Associação de Bombeiros, exercendo a actividade de motorista, sendo certo que, enquanto trabalhador remunerado ao serviço daquela Associação, encontrava-se abrangido pelo contrato de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n° 0..., no âmbito do qual a ré já efectuou os pagamentos devidos. A isto acresce, continua a ré, que o contrato de seguro de acidentes pessoais em apreço exclui do núcleo da sua garantia o autor, enquanto motorista dos quadros da Associação de Bombeiros, atento o disposto na cláusula 1a, b), das condições especiais da apólice n° B..., que titula o contrato em apreço, celebrado entre a ré e o Município de O... do H..., pois tal cláusula afasta do conceito "segurados" os bombeiros, com as categorias ali enumeradas, obrigados por lei a contratar o seguro de acidentes de trabalho, ou seja, faz depender a aplicação desse contrato da circunstância de tais pessoas não serem obrigadas por lei a contratar o seguro de acidentes de trabalho, terminando com o pedido da improcedência da acção. Na réplica, o autor sustenta que o legislador pretendeu garantir ao bombeiro os direitos advenientes, quer do seguro de acidentes de trabalho, quer do seguro de acidentes pessoais, como reflecte a própria ostensiva cumulação do seguro de acidentes pessoais com a pensão de preço de sangue. A sentença condenou a ré a pagar ao autor a quantia de setenta e seis mil oitocentos e catorze euros (€76814,00), acrescida de juros legais, actualmente, à taxa de 4%, desde 11 de Outubro de 2006 e até efectivo e integral pagamento, descontados, neste montante, os quantitativos pagos ao abrigo do contrato de seguro por acidente de trabalho. Desta sentença, o autor e a ré interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedentes ambas as apelações, confirmando a decisão impugnada. Deste acórdão da Relação de Coimbra, o autor e a ré interpuseram agora recurso de revista, terminando as alegações com a formulação das seguintes conclusões, que, integralmente, se transcrevem: O AUTOR: 1ª – O Tribunal da Relação de Coimbra não apreciou materialmente as normas jurídicas invocadas nem os fundamentos nelas alicerçado, limitando-se a proferir decisão sobre fundamentos parciais de índole formal invocados como a existência ou não de compensação de créditos e a violação do princípio da intangibilidade do caso julgado, olvidando o fundamento principal sobre o qual recaiu a pretensão do recorrente, i. e., a possibilidade de cumulação real e efectiva dos dois contratos de seguros referidos nos autos sem desconto (cfr. conclusão 3ª do recurso de apelação). 2ª – O seguro de acidentes de trabalho é um seguro de coisas, real ou contra danos, porque se destina a cobrir o prejuízo efectivo que dos acidentes pode resultar para o património da entidade patronal, objectivamente responsável pelo ressarcimento referente à redução da capacidade de ganho do seu trabalhador acidentado. 3ª – O seguro de acidentes pessoais é um seguro de pessoas, incidindo sobre a vida, a integridade física ou a situação familiar das pessoas, não tendo natureza indemnizatória, pelo que o valor, o capital, é, normalmente, fixado no início do contrato e não corresponde ao valor real dos danos sofridos pelo lesado, sendo compensatórios de lesões de natureza não patrimonial referentes à vida ou à integridade física em si mesmas e directamente consideradas e não à respectiva repercussão em termos da capacidade de ganho do lesado. 4ª - Ao prever no artº 6º, nº 1 do DL nº 35746 de 12 de Julho de 1946, que os “Municípios procederão obrigatoriamente ao seguro contra acidentes pessoais dos bombeiros profissionais e voluntários previsto na alínea e) do nº 1 do art. 6º da Lei nº 21/87, de 20 de Junho, “desde que aqueles constem dos quadros homologados do Serviço Nacional de Bombeiros, o legislador não pretendeu apenas garantir um mínimo de protecção aos bombeiros, à falta de qualquer outra cobertura infortunística, mas quis efectivamente atribuir o direito cumulativo a cobertura adicional derivada do contrato de seguros por acidentes pessoais, sem que houvesse desconto ou compensação entre ambos os seguros. 5ª – Para que se alcance tal conclusão, basta atender ao facto de aquela obrigação legal dos Municípios valer não só para o caso dos bombeiros voluntários, mas também para bombeiros profissionais, como os sapadores ou os municipais, estes últimos, aliás, expressamente abrangidos na apólice referida nos autos, sendo que, dado o seu vínculo jurídico-administrativo, não se pode defender, em face do actual quadro legal que regula a relação jurídica de emprego público, que os bombeiros sapadores ou os bombeiros municipais não tenham uma cobertura infortunística. 6ª – Sendo inaceitável, ao abrigo do princípio da igualdade, que, admitindo tal cobertura cumulativa adicional para os bombeiros profissionais, o legislador excluísse da referida protecção os bombeiros voluntários quando também assalariados do corpo de bombeiros. 7ª – O seguro múltiplo não é, por si só, ilícito: o artigo 434º do Código Comercial, que apenas se aplica aos seguros reais, proíbe somente que, por força de segundo seguro pelo mesmo tempo e risco de determinado objecto, venha o beneficiário a obter lucros, quando, in casu, os danos cobertos pelos dois seguros não são de natureza idêntica, nem a natureza jurídica dos seguros de acidentes de trabalho e de acidentes pessoais é a mesma. 8ª – Como se refere na nota 6 do acórdão do STJ de 21.04.2009 (Relator Juiz Conselheiro Fonseca Ramos), “Nada impede, como ademais sucede no caso em apreço, que uma mesma pessoas seja a um tempo segurado num seguro de acidentes pessoais e num seguro de acidente de trabalho dada a natureza diferente de um e outro dos seguros, como é geralmente considerado o seguro de acidentes pessoais [os que afectam a vida, a integridade física ou a situação familiar das pessoas seguras] não tem natureza indemnizatória; os seguros de prestação indemnizatória [seguros de danos] são aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro e seguros de prestação convencionada são aqueles cujo conteúdo e montante estão previamente definidos, dependendo apenas a sua realização da verificação de determinado facto”. 9ª – Por força do artigo 35º da Lei nº 100/97, os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas por aquela lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis, não podendo operar a compensação de créditos, ao abrigo do disposto no artigo 853º, nº 1, b) do Código Civil. 10ª – Considerando que o efeito útil do impugnado segmento decisório é a preclusão dos feitos jurisdicionais da sentença do Tribunal do Trabalho de Coimbra junta aos autos que condenou a aqui recorrida ao cumprimento da pensão anual e vitalícia por responsabilidade por acidentes de trabalho, violou a sentença recorrida o princípio da intangibilidade da sentença do Tribunal do Trabalho de Coimbra que se encontra a coberto do disposto no nº 1 do artigo 671º do CPC, segundo o qual a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele, salvo se for objecto de recurso extraordinário de revisão ou de oposição de terceiro. 11ª – O Tribunal de Comarca deveria, pelo exposto na conclusão anterior, in fine, considerar-se materialmente e hierarquicamente incompetente para ordenar a referida compensação de créditos, valoração que o Tribunal da Relação não fez. 12ª – Ao decidir em termos contrários, violou a sentença as normas legais contidas nos artigos 1º do DL nº 36/94, do artigo 28º, nº 1, do DL nº 214/89 e 1º da Portaria nº 35/99, o artigo 434º do Código Comercial, os artigos 405º e 853º, nº 1, b) do Código Civil, o artigo 35º da Lei nº 100/97 e os artigos 66º, 70º e ss., e 671º, nº 1, do CPC, devendo o recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogado o acórdão que confirmou o segmento impugnado da sentença em que se previa o “desconto” das quantias pagas ao autor ao abrigo do contrato de seguro de acidentes de trabalho. A RÉ: 1ª – Da interpretação literal do corpo da cláusula que exclui a garantia do seguro de acidentes pessoais no caso de existir contrato de seguro de acidente de trabalho resulta que nela estão incluídos não só os médicos, farmacêuticos e enfermeiros, mas ainda o pessoal dos corpos associativos e municipais de bombeiros, dado que a vírgula colocada entre “enfermeiros” e “quando” quis precisamente incluir todas estas categoriais profissionais. 2ª – Por outro lado, não sendo os médicos, farmacêuticos e enfermeiros pertencentes aos quadros homologados pelo Serviço Nacional de Bombeiros, não fazia nenhum sentido que aquele grupo profissional aparecesse isolado, objecto de uma tutela que não respeitasse a todas as demais pessoas indicadas na cláusula, só se entendendo a sua inserção na cláusula desde que diga respeito a todos aqueles grupos profissionais que não estão abrangidos pelo seguro de acidentes de trabalho. 3ª – O seguro em apreciação nos autos destinou-se aos bombeiros voluntários que à data da sua celebração não estavam abrangidos pelo seguro de acidentes de trabalho, justificando-se assim a sua protecção por seguro de acidentes pessoais devido à falta de tutela por aquele seguro. 4ª – A decidir como decidiu violou o Tribunal recorrido o artigo 405º do Código Civil e os artigos 425º e seguintes do Código Comercial, devendo, na procedência da revista, revogar-se o acórdão recorrido, substituindo-se por outro que acolha a interpretação exposta. Em sede de contra-alegações, que apenas o autor apresentou, este conclui no sentido de que deve ser mantido o acórdão, no segmento censurado pela ré, sem prejuízo do que se encontra impugnado no recurso por si interposto. O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz, acrescentando-lhe factos suplementares, sob os nºs 39 e 40, com base no teor da sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho e no documento das condições gerais do seguro de acidentes pessoais, atento o disposto pelos artigos 369º, nº 1, 371º, nº 1, 373º, nº 1 e 376º, nº 1, do Código Civil, 659º, nº 3, 713º, nº 2 e 726º, do CPC: 1. O autor ocupa, desde 3 de Maio de 1978 a 2 de Setembro de 2002, a categoria de Bombeiro de 3ª classe, na Associação de Bombeiros Voluntários de O... do H... - A). 2. E, desde 3 de Setembro até à presente data, a categoria de motorista - B). 3. O autor encontra-se inscrito, no Comando Distrital de Operações de Socorro de Coimbra do Serviço Nacional de Bombeiros, com o n.° mecanográfico 0...- C). 4. No dia 10 de Outubro de 2005, o autor, ao serviço da Associação dos Bombeiros Voluntários de O...H..., conduzia o veículo de transporte de doentes, com a matrícula ...-...-RV, de marca M... B..., pela Estrada Nacional n.°..., no sentido O... do H...– Coimbra – D). 5. Transportando uma doente menor, de nome BB, com 4 anos de idade, e dois acompanhantes desta, sua mãe, CC, e seu irmão menor, DD - E). 6. Em virtude de naquela data decorrerem obras, na Estrada Nacional n.° ..., o autor efectuou um desvio pela Estrada Municipal que liga V... do A... a S..., na Serra de S... P... D... - F). 7. Aquela via é bastante sinuosa – G). 8. Nesse dia chovia e o piso encontrava-se molhado - H). 9. O autor circulava nessa via, a uma velocidade não superior a 40 K/hora - I). 10. Por volta das 14,15 horas, por motivo que o autor desconhece, perdeu o controlo do veículo - J). 11. Tendo-se despistado - K). 12. E caído numa ravina, de cerca de 50 metros de altura - L). 13. Tendo o veículo ficado imobilizado num caminho de terra batida existente no fundo dessa ravina - M). 14. No dia do acidente, foi o autor assistido, nos Hospitais da Universidade de Coimbra /HUC – N). 15. No dia 10 de Outubro de 2005, o autor exercia a actividade de motorista, por conta, sob a direcção e autoridade da Associação dos Bombeiros Voluntários de O...H..., sua entidade empregadora, conduzindo o veículo de transporte de doentes, de marca Mercedes Benz, com a matrícula ...-...-RV - O). 16. O autor era trabalhador subordinado da referida Associação de Bombeiros e auferia, mensalmente, por conta da mesma, a quantia mensal de 582,00€, como motorista - P). 17. Nessa actividade subordinada competia-lhe, designadamente, proceder ao transporte de doentes, como era o caso - Q). 18. Enquanto trabalhador remunerado, ao serviço da Associação dos Bombeiros Voluntários de O...H..., o autor encontrava-se abrangido pelo contrato de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n° 0..., em que é tomadora aquela Associação de Bombeiros e seguradora a ora ré - R). 19. No âmbito desse contrato de acidentes de trabalho, a ré já pagou ao autor as quantias constantes dos documentos de fls. 45 e 47, que se dão por reproduzidos, para todos os efeitos legais - S). 20. Foi celebrado seguro de acidentes pessoais entre o Município de O... do H... e a ré, titulado pela apólice n° BO... - T). 21. Nas condições especiais do seguro de acidentes pessoais relativos a bombeiros, juntas pelo autor, consta do seu texto como pessoas seguras, no seu artigo 1º «o pessoal dos Corpos Associativos e Municipais de Bombeiros, pertencentes ao comando, ao quadro activo, às categorias de aspirante, motorista e maqueiro (socorrista) do quadro auxiliar, os cadetes e ainda os médicos, farmacêuticos e enfermeiros, quando não obrigados por Lei a contratar o Seguro de “Acidentes de Trabalho”, quando conste de quadros homologados pelo Serviço Nacional de Bombeiros, bem como os elementos dos corpos gerentes das Associações de Bombeiros», (cfr. documento junto aos autos a fls. 28, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) - U). 22. À data do acidente, o autor era trabalhador por conta de outrem, exercendo a sua actividade remunerada, como motorista, ao serviço da Associação de Bombeiros de O... do H... - V). 23. O sinistro em questão está coberto pela apólice de acidentes de trabalho, em consequência do contrato celebrado entre a ré e a entidade patronal do autor - W). 24. Em consequência deste acidente, o autor sofreu politraumatismo craniano, luxação acrómio-clavicular direita e fractura LI com instalação de paraplegia – 1º. 25. Apresentando quadro de paraplegia com nível sensitivo T7 e EG=15 – 2º. 26. O autor foi internado, no Serviço de Neurotraumatologia, e foi submetido a intervenção cirúrgica para fixação transpedicular T12-L2 – 3º. 27. Em 18 de Novembro de 2005, o autor foi submetido a uma ressonância magnética que revelou anomalia da emissão de sinal da medula cervico-dorsal com hipersinal em T2 e sinal heterogéneo com componente discretamente hipertenso em Tl - 4º. 28. Em 7 de Dezembro de 2005, o autor foi internado, no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro Rovisco Pais, na Tocha, para programa de reabilitação intenso – 5º. 29. Naquela data apresentava o seguinte quadro: a) Tetraplegia AIS A com nível motor e sensitivo à direita Tl, sensitivo à esquerda Tl e motor à esquerda C8, score motor 46/100, score sensitivo álgico 24/112; b) Flacidez dos membros inferiores, com ausência de reflexos osteotendinosos nos membros inferiores e reflexos osteotendinosos vivos e simétricos nos membros superiores; c) Tinha equilíbrio sentado estático pouco eficaz, mesmo com prótese de tronco Taylor-Knight; d) Vinha algaliado em drenagem livre e não tinha treino intestinal instituído; e) Estava dependente na maioria das actividades da vida diária (cfr. doc. n.° 2) – 6º. 30. Em 8 de Abril de 2006, os serviços médicos deste hospital deram alta ao autor, que mantinha quadro neuro-motor sobreponível ao da data de internamento, com os mesmos scores motores e sensitivos – 7º. 31. Mantinha flacidez e ausência de reflexos osteo-tendinosos dos membros inferiores – 8º. 32. Tinha equilíbrio sentado estático razoável, sendo o dinâmico deficiente – 9º. 33. O autor apenas conduz cadeira de rodas de forma autónoma, em pisos regulares sem desníveis – 10º. 34. Alimenta-se por mão própria após preparação dos alimentos – 11º. 35. Ajuda no vestuário de metade superior e é quase independente na auto-algaliação - 12°. 36. O autor é dependente de terceiros nas restantes actividades da vida diária - 13°. 37. O autor encontra-se afectado por uma invalidez permanente derivada da tetraplegia supra descrita - 14°. 38. O sinistro foi participado, em 12 de Outubro de 2006, pelo Presidente da Câmara de O... do H... – 15º. 39. O autor propôs contra a Associação de Bombeiros Voluntários de O... do H... e a aqui ré “Companhia de Seguros Império Bonança, SA”, acção com processo especial emergente de acidente de trabalho, em cujo dispositivo se condenou esta seguradora a pagar ao autor, sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (artigo 135.°, do Código de Processo do Trabalho - CPT): i) a quantia de 100,00€, a título de transportes ao tribunal; ii) a pensão anual e vitalícia, com início em 12 de Outubro de 2006, no montante de 5.397,45€; e iii) o subsídio por elevada incapacidade, no montante de 4.242,80€; iv) o subsídio para a adaptação da habitação, no montante de 4.496,40€; v) a quantia mensal de 231,54€, a título de prestação suplementar pela necessidade de assistência de terceira pessoa, com início em 12 de Outubro de 2006, actualizável em Janeiro de cada ano, de acordo com o aumento da retribuição mínima mensal garantida [a]; e se condenou a entidade empregadora, Associação de Bombeiros Voluntários de O... do H..., a pagar ao autor, sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (artigo 135°, do CPT): i) a pensão anual e vitalícia, com início em 12 de Outubro de 2006, no montante de 613,74€; e ii) o montante de 433,80€, a título de indemnizações por incapacidades temporárias [b] – Documento de folhas 120 a 124. 40. A ré, uma vez paga a indemnização relativamente a despesas de tratamento, de repatriamento e de funeral, fica sub-rogada, até à concorrência da quantia indemnizada, em todos os direitos do tomador de seguro e da pessoa segura, contra terceiro responsável pelos prejuízos, obrigando-se aqueles a praticar o que necessário for para efectivar esses direitos – artigo 34º, nº 1, das condições gerais do seguro de acidentes pessoais constantes de folhas 16 a 25. * Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir. As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes: I – A questão da intangibilidade do caso julgado formado pela sentença do Tribunal do Trabalho. II – A questão da competência do tribunal, em razão da matéria e da hierarquia. III – A questão do âmbito de aplicação pessoal do contrato de seguro. IV - A questão da cumulação real do contrato de seguro de acidentes de trabalho com o contrato de seguro de acidentes pessoais. I. DA INTANGIBILIDADE DO CASO JULGADO FORMADO PELA SENTENÇA DO TRIBUNAL DO TRABALHO Defende o autor que a sentença do Tribunal do Trabalho de Coimbra que condenou a aqui ré no cumprimento da pensão anual e vitalícia, por responsabilidade por acidentes de trabalho, não pode ser posta em causa pela sentença proferida nos presentes autos, sob pena de violação do princípio da intangibilidade do caso julgado. A excepção do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior e pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, atento o disposto pelo artigo 497º, nºs 1 e 2, do CPC. Ora, a causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, acontecendo a identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, a identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e, finalmente, a identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, conforme preceitua o artigo 498º, nºs 1, 2 e 3, do CPC. Porém, quer na acção especial emergente de acidente laboral que correu termos no Tribunal do Trabalho, quer na presente acção com processo comum baseada num contrato de seguro de acidentes pessoais, as partes não são, rigorosamente, as mesmas, pelo lado passivo da relação jurídica, e o pedido e a causa de pedir são distintos, pelo que inexiste identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir e, consequentemente, não se verifica a excepção dilatória do caso julgado, susceptível de obstar à apreciação do seu objecto na presente acção, nos termos do disposto pelos artigos 493º, nºs 1 e 2 e 494º, nº 1, i), do CPC. II. DA COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA E DA HIERARQUIA II. 1. Por outro lado, o autor sustenta ainda que o Tribunal comum de Comarca deveria considerar-se, material e hierarquicamente, incompetente, para ordenar a compensação de créditos, ou seja, por ter “condenado a ré a pagar ao autor a quantia de setenta e seis mil oitocentos e catorze euros (€76814,00)…, descontado, neste montante, os quantitativos pagos ao abrigo do contrato de seguro por acidente de trabalho”. Para que o Tribunal possa decidir sobre a procedência ou o mérito de um pedido, é, desde logo, indispensável que a acção seja proposta perante o Tribunal competente para a sua apreciação, o que significa que a competência é um pressuposto processual que se determina pelo modo como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir, que importa analisar antes de se conhecer do fundo da causa, de que depende poder o Juiz proferir decisão de mérito sobre a mesma, condenando ou denegando a providência judiciária requerida pelo demandante (2), mas, também, que deve haver uma relação directa entre a competência e o pedido(3). Com efeito, os pressupostos processuais constituem as condições mínimas de que depende o exercício da função jurisdicional e, no caso da competência, visam assegurar a justiça da decisão, a garantia de que a mesma é dimanada do Tribunal mais idóneo(4). Em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico directo entre a causa e o Tribunal, a competência afere-se pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum”, em antítese com aquilo que, mais tarde, será o “quid decisum”, isto é, a competência determina-se pelo pedido do autor, o que não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, mas antes dos termos em que a mesma é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos, como acontece com a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, seja quanto aos seus elementos subjectivos (5). II. 2. Por outro lado, a competência material dos tribunais civis é aferida, por critérios de atribuição positiva, segundo os quais pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente, civil ou comercial, e por critérios de competência residual, nos termos dos quais se incluem na competência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são, legalmente, atribuídas a nenhum outro tribunal (6). Por isso, os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual, a quem pertence o conhecimento das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, princípio este que se encontra plasmado no texto dos artigos 66º, do CPC, e 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), quando estabelecem que "são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Por seu turno, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais de competência especializada cível aqueles que possuem competência residual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 34º, 57º, nº 1 e 94º, da LOFTJ, resultando do texto deste último normativo legal a concretização acabada do mesmo princípio, ao preceituar que "aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais". Ora, aos tribunais de competência genérica, que são todos os tribunais de primeira instância, cujos poderes não se encontram espartilhados em áreas de competência especializada ou de competência específica, como acontece, na hipótese em apreço, com o Tribunal Judicial da Comarca de O... do H..., não pertenceria, segundo o autor, a competência material para o conhecimento do pleito, no segmento em que operou, no quantitativo da condenação de €76814,00, o desconto do montante em que a ora ré foi condenada a pagar ao aqui autor, através da sentença proferida no âmbito da acção laboral. Efectivamente, cabendo aos Tribunais comuns de Comarca a competência material para o conhecimento do objecto da presente acção, como decorre do estipulado pelas disposições dos artigos 66º, do CPC, e 18º, nº 1, da LOFTJ, já citadas, e ainda do artigo 85º, «a contrario», deste último diploma legal, a dedução ou abatimento operada pela sentença proferida pelo Tribunal comum e confirmada pelo acórdão recorrido, que se não confunde com o instituto da compensação, enquanto causa de extinção parcial das obrigações, como decorre do estipulado pelo artigo 847º, do Código Civil, não constitui violação das regras próprias da competência em razão da matéria. Aliás, é o que acontece nos tribunais comuns de comarca, no âmbito das acções emergentes de acidente de viação que são, simultaneamente, de trabalho, com vista à fixação do montante indemnizatório devido ao lesado, em que a este é lícito optar por uma das indemnizações concorrentes, por não ser permitida a cumulação de ambas, só podendo receber da segunda o que for necessário para completar o ressarcimento do dano que não tenha obtido, na totalidade, através da eleita. A isto acresce que podendo a incompetência absoluta ser arguida pelas partes e devendo ser suscitada, oficiosamente, pelo tribunal, em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, a violação das regras de competência, em razão da matéria, que apenas respeitem aos tribunais judiciais, só pode ser arguida, ou, oficiosamente, conhecida, até ser proferido o despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento, em conformidade com o estipulado pelo artigo 102º, nºs 1 e 2, do CPC. Assim sendo, respeitando a alegada questão de incompetência, em razão da matéria, apenas aos tribunais judiciais, e não tendo a mesma sido suscitada, até ser proferido o saneador, ainda que se possa contra-argumentar que, até então, seria uma questão, meramente virtual, já não pode agora ser objecto de apreciação e decisão, nesta sede processual. II. 3. Por outro lado, alega o autor que o Tribunal de Comarca deveria considerar-se, hierarquicamente, incompetente para ordenar a referida compensação de créditos, valoração que o Tribunal da Relação não fez. O princípio da competência, em razão da hierarquia, consagrado pelo artigo 19º, nº 1, da LOFTJ, consubstancia-se no facto de os tribunais judiciais se encontrarem escalonados, para o efeito de recurso das suas decisões, por forma a que não possa uma decisão ser alterada senão por um tribunal posicionado em escalão, hierarquicamente, superior, ou, então, quando, devendo uma causa ser decidida, em primeira instância, tenha sido submetida, directamente, à instância imediata. Porém, no caso em apreço, não se comportando o Tribunal de Comarca, perante o Tribunal do Trabalho, como um tribunal de recurso, não tendo alterado o decidido por este último, limitando-se a eleger entre as indemnizações provenientes do seguro de acidentes de trabalho e do seguro de acidentes pessoais, com vista à fixação do montante ressarcitório devido ao lesado, uma delas, não existe qualquer violação do princípio da competência, em razão da hierarquia. Não infringiu, pois, o acórdão recorrido, ao decidir como o fez, as disposições legais invocadas pelo autor ou outras de que, oficiosamente, importe conhecer, no âmbito do ordenamento processual civil ou da organização judiciária. III. DO ÂMBITO DE APLICAÇÃO PESSOAL DO CONTRATO DE SEGURO Diz a ré que o seguro em apreciação nos autos não se aplica ao autor, porquanto à data da sua celebração este estava abrangido pelo seguro de acidentes de trabalho, o que não deveria acontecer, a pretender beneficiar do actual contrato de seguro de acidentes pessoais. Efectivamente, consta das condições especiais do seguro de acidentes pessoais relativo a bombeiros, objecto de apreciação, que o âmbito das pessoas seguras elegíveis compreende «o pessoal dos Corpos Associativos e Municipais de Bombeiros, pertencentes ao comando, ao quadro activo, às categorias de aspirante, motorista e maqueiro (socorrista) do quadro auxiliar, os cadetes e ainda os médicos, farmacêuticos e enfermeiros, quando não obrigados por Lei a contratar o Seguro de “Acidentes de Trabalho”, quando conste de quadros homologados pelo Serviço Nacional de Bombeiros, bem como os elementos dos corpos gerentes das Associações de Bombeiros». E isto porque apenas cabe no quadro de cobertura contratualizado para o aludido seguro de acidentes pessoais «o pessoal dos Corpos Associativos e Municipais de Bombeiros…, quando não obrigados por Lei a contratar o Seguro de “Acidentes de Trabalho”, quando conste de quadros homologados pelo Serviço Nacional de Bombeiros,…». Assim, e, desde logo, está provado, neste particular, que “o autor se encontra inscrito, no Comando Distrital de Operações de Socorro de Coimbra do Serviço Nacional de Bombeiros, com o nº mecanográfico 0...”, não se tendo demonstrado, por outro lado, que estivesse, legalmente, obrigado, a contratar o seguro de acidentes de trabalho. Aliás, a ré, igualmente, seguradora, em ambas as espécies de contratos de seguro, em que o segurado e respectivo beneficiário foi o autor, quando celebrou o presente contrato de seguro de acidentes pessoais não arguiu a alegada incompatibilidade da obrigatoriedade da feitura do contrato de seguro de acidentes de trabalho, como impedimento legal à concretização daquele. Porém, qual o pessoal dos Corpos Associativos e Municipais de Bombeiros que não se encontra obrigado por lei a contratar o seguro de acidentes de trabalho? A análise do teor literal da cláusula, cuja indisfarçada equívoca redacção gramatical não deve ser subestimada, em conjugação com o facto de, anteriormente à entrada em vigor do DL nº 159/99, de 11 de Maio, os médicos, farmacêuticos e enfermeiros não se encontrarem obrigados a contratar seguro de acidentes de trabalho, dada a sua qualidade de trabalhadores independentes, permite, seguramente, considerar o significado da coordenada copulativa “e ainda”, no segmento “…e ainda os médicos, farmacêuticos e enfermeiros,…”, de modo a excluir a situação do autor do âmbito da previsão da cláusula de obrigatoriedade de celebração do seguro de acidentes de trabalho e, consequentemente, a considerá-lo abrangido pela respectiva cobertura do contrato de seguro de acidentes pessoais. Deste modo, o autor, embora trabalhador assalariado da Associação de Bombeiros Voluntários de O... do H..., mas não sujeito, obrigatoriamente, ao regime do seguro por acidentes de trabalho, encontra-se, igualmente, abrangido pelo seguro de acidentes pessoais controvertido. IV. DA CUMULÇÃO REAL DO CONTRATO DE SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO COM O CONTRATO DE SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS IV. 1. Entende o autor, no âmbito desta questão de direito substantivo que agora cumpre decidir, que o legislador quis atribuir o direito cumulativo de cobertura adicional derivada do contrato de seguro por acidentes pessoais, sem que tal implicasse desconto ou compensação entre este e o seguro de acidentes de trabalho, enquanto que a ré, a este propósito, sustenta a tese da não cumulação entre ambos, uma vez que o seguro por acidentes pessoais se destinava aos bombeiros voluntários que, à data da sua celebração, não estavam abrangidos pelo seguro de acidentes de trabalho, o que não era a situação do autor, justificando-se, então, a sua protecção pelo seguro de acidentes pessoais, devido à falta de tutela do seguro por acidentes de trabalho. Esta controvertida questão da cumulabilidade pelo lesado dos montantes pecuniários provenientes do contrato de seguro de acidentes de trabalho e do contrato de seguro de acidentes pessoais, de natureza nuclear para a sorte da revista, depende da análise da natureza jurídica do seguro, das suas finalidades e princípios norteadores. Revertendo ao caso em exame, importa reter que resulta da síntese essencial da factualidade que ficou demonstrada, que o autor, no passado dia 10 de Outubro de 2005, conduzia, pela Estrada Nacional n°..., um veículo de transporte de doentes, no exercício da actividade de motorista, ao serviço, por conta, sob a direcção e autoridade da sua entidade empregadora, a Associação dos Bombeiros Voluntários de O...H.... O autor exerceu, na referida Associação, desde 3 de Maio de 1978 a 2 de Setembro de 2002, a categoria de Bombeiro de 3ª classe, e, desde 3 de Setembro seguinte, a categoria profissional de motorista, com a remuneração mensal pelo respectivo trabalho subordinado de €582,00, encontrando-se, porém, inscrito, no Comando Distrital de Operações de Socorro de Coimbra do Serviço Nacional de Bombeiros. Enquanto trabalhador remunerado, ao serviço da Associação dos Bombeiros Voluntários de O... do H..., o autor encontrava-se abrangido pelo contrato de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n° 0..., em que é tomadora aquela entidade e seguradora a ora ré, e que cobria o acidente em que interveio e o vitimou. O Município de O... do H... celebrou com a ré um seguro de acidentes pessoais, titulado pela apólice n° BO..., em cujas condições especiais relativas a bombeiros se referem como pessoas seguras, nomeadamente, «o pessoal dos Corpos Associativos e Municipais de Bombeiros, pertencentes ao comando, ao quadro activo, às categorias de aspirante, motorista e maqueiro (socorrista) do quadro auxiliar, os cadetes e ainda os médicos, farmacêuticos e enfermeiros, quando não obrigados por Lei a contratar o Seguro de “Acidentes de Trabalho”, quando conste de quadros homologados pelo Serviço Nacional de Bombeiros, bem como os elementos dos corpos gerentes das Associações de Bombeiros». A isto acresce que o autor propôs contra a Associação de Bombeiros Voluntários de O... do H... e a aqui ré EE-“Companhia de Seguros I... B..., SA”, uma acção com processo especial emergente de acidente de trabalho, em cujo dispositivo se condenou esta seguradora a pagar ao autor a quantia de €100,00, a título de transportes ao tribunal [i], a pensão anual e vitalícia, com início em 12 de Outubro de 2006, no montante de €5.397,45 [ii], o subsídio por elevada incapacidade, no montante de €4.242,80 [iii], o subsídio para a adaptação da habitação, no montante de €4.496,40 [iv], a quantia mensal de €231,54, a título de prestação suplementar pela necessidade de assistência de terceira pessoa, com início em 12 de Outubro de 2006, actualizável em Janeiro de cada ano, de acordo com o aumento da retribuição mínima mensal garantida [v], e se condenou a entidade empregadora Associação de Bombeiros Voluntários de O... do H... a pagar ao autor a pensão anual e vitalícia, com início em 12 de Outubro de 2006, no montante de €613,74 [vi] e o montante de €433,80, a título de indemnizações por incapacidades temporárias [vii]. IV. 2. O contrato de seguro define-se como aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma retribuição determinada, o prémio acordado, a cargo do tomador do seguro, a, tratando-se de evento, futuro e incerto, relativo à pessoa humana, entregar a prestação convencionada, designadamente, a de indemnização ou capital, ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites, convencionalmente, estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios, na hipótese de prestação a realizar, em data determinada Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 23 e 24; José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, 89, 90, 120 e 241. . O contrato de seguro rege-se pelas estipulações da apólice, não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, subsidiariamente, pelas disposições do Código Comercial, atento o preceituado pelo artigo 427º, deste diploma legal, aplicável Este artigo e os demais, seguidamente, citados do Código Comercial, foram revogados pelo artigo 6º, nº 2, a), do DL nº 72/2008, de 16 de Abril, que estabeleceu o novo regime jurídico do contrato de seguro, a partir da sua entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 2009.. Com efeito, o contrato de seguro é um contrato, essencialmente, formal, constituindo a sua redução a escrito, através de um instrumento, denominado apólice, que é o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, que contém a roupagem do respectivo contrato, nela se devendo enunciar os elementos e, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes, em conformidade com o disposto pelos artigos 426º, corpo, e § único, e nºs 3, 4, 6 e 8, do Código Comercial, aplicável, e 1º, j), do DL nº 176/95, de 26 de Julho, um pressuposto da sua validade ou existência legal. O seguro de acidentes pessoais tem por objecto a reparação, seja em forma de indemnização ou renda, seja em forma de assistência médica, dos danos sofridos pelo segurado, na sua pessoa, em virtude de acidente, acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a acção de uma causa exterior e estranha à vontade da pessoa segura e que nesta origine lesões corporais José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, 60 e 61., encontrando-se hoje regulado pelos DL’s nºs 85/86, de 7 de Maio, e 94-B/98, de 17 de Abril, em cujo artigo 1º daquele e 123º, b), deste último, se compreendem, de acordo com a natureza da prestação que lhes serve de contrapartida, os seguros de prestações indemnizatórias, os seguros de prestações convencionadas e os seguros que resultam da combinação destas duas tipologias. Os seguros de prestações indemnizatórias são aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar, a partir dos danos resultantes do sinistro, até ao limite máximo fixado, enquanto que os seguros de prestações convencionadas, no sentido útil que decorre do termo a definir, uma vez que, sendo clausuladas, contratualmente, todas as prestações são, nesse sentido, convencionadas, são aqueles cujo conteúdo e montante estão, previamente, definidos, dependendo apenas a sua realização da verificação de um determinado facto. Esta classificação não reproduz, nos seus precisos termos, uma outra que separa os seguros de danos - o seguro de coisas ou real - dos seguros de pessoas, sendo os primeiros os que atingem o património do segurado [seguro pela perda ou deterioração de objectos segurados, como se diz no artigo 441º, do Código Comercial] e os últimos os que afectam a vida, a integridade física ou a situação familiar das pessoas seguras, porquanto sendo a última modalidade daquela antecedente classificação tripartida o resultado da combinação de ambos os tipos contratuais, a prestação do segurador corresponde, em muitos casos, à indemnização de danos, embora a sua determinação se faça, prévia e globalmente, como acontece na hipótese do seguro de acidentes, em que o segurador se obriga ao pagamento de determinado capital, em caso de acidente sofrido pelo segurado, independentemente da valorização concreta dos danos (7). Serve isto para dizer que o seguro de acidentes pessoais, que é um seguro de pessoas, comporta prestações indemnizatórias e, nessa medida, tem natureza indemnizatória, sendo-lhe aplicável o princípio indemnizatório com as suas consequentes implicações (8). IV. 3. Na verdade, o Direito dos Seguros está, actualmente, dominado por determinados princípios, neles se destacando o princípio indemnizatório e o princípio da sub-rogação, que se encontram, estreitamente, interligados. O princípio indemnizatório que tem como principais implicações evitar o sobre-seguro, impedir a cumulação de seguros e obstar a que o lesado seja, também, indemnizado pelo lesante (9), reflecte o carácter não especulativo do contrato de seguro, ao interditar que este possa constituir uma fonte de rendimento para os lesados, pois que o segurado apenas deve ser ressarcido do prejuízo que, efectivamente, sofreu, como preceitua, coerentemente, o artigo 435º, do Código Comercial, ao estabelecer que “excedendo o seguro o valor do objecto segurado, só é válido até á concorrência desse valor” (10). Na hipótese do lesado ter contratado um seguro de acidentes pessoais, ao contrário do que acontece no caso de acidente, simultaneamente, de viação e de trabalho, pode, em princípio, cumular o montante desse seguro com a indemnização oriunda da responsabilidade pelo acidente de trabalho, porquanto “não são de imputar, na indemnização, prestações que o lesado obtém com base num por ele concluído contrato de seguro, representando, ao invés, a contraprestação dos prémios por ele pagos, além de que seria contrário ao sentido do contrato de seguro que ao obrigado pudesse aproveitar a indemnização”(11).. Efectivamente, na hipótese de acidente, simultaneamente, de viação e de trabalho, não é lícito ao lesado a cumulação das duas indemnizações, devendo o mesmo optar por uma delas e só podendo receber da outra o que for necessário para completar o ressarcimento do seu dano. Se o contrato do seguro tiver sido concluído pelo lesado, este goza do direito à aludida cumulação, pois que, como se referiu já, não só o montante do seguro constitui a contraprestação dos prémios por ele pagos, como seria contrário à finalidade do contrato de seguro que o quantitativo deste aproveitasse ao terceiro responsável, excluindo ou reduzindo a indemnização a que é obrigado, sendo certo que o argumento fundamental dos que defendem a cumulação de indemnizações é o de que o seguro de acidentes pessoais tem natureza indemnizatória. A isto acresce, em abono da tese da cumulação, que sendo a reposição natural o princípio geral da obrigação de indemnização, segundo o qual “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, e, subsidiariamente, quando a mesma não seja possível, não repare, integralmente, os danos ou se torne, excessivamente, onerosa para o devedor, o princípio da reposição em dinheiro ou por equivalente, tendo, então, “como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”, de acordo com o estipulado pelos artigos 562º e 566º, nºs 1 e 2, do Código Civil, esta compensação pressupõe a existência de um nexo causal entre o evento danoso e a vantagem auferida. Deste modo, se a vantagem resultar de um acto praticado pelo lesado, sem qualquer conexão com o facto danoso, como acontece no caso de seguro que aquele haja contratado, por sua conta, em contrapartida do risco de acidentes pessoais futuros, o benefício obtido pelo lesado é, por ele, adquirida, definitiva e automaticamente, não excluindo ou diminuindo a indemnização a que o responsável é obrigado (12). Porém, diversa é a situação factual, na hipótese do contrato de seguro de acidentes pessoais ter sido celebrado por uma outra pessoa ou entidade, distinta do lesado, que pode até ser a entidade patronal deste ou outra que mantenha com ele, enquanto pessoa segura, qualquer ligação. O regime legal que regula o contrato de seguro feito a bombeiros e a natureza do contrato de seguro de acidentes pessoais corroboram esta interpretação. Na verdade, o contrato de seguro efectuado em relação a bombeiros nasce da imposição legal constante do artigo 6º, do DL nº 35.746, de 17 de Julho de 1946, que criou o Conselho Nacional dos Serviços de Bombeiros, ao estabelecer a obrigatoriedade de as Câmaras Municipais procederem ao seguro do pessoal dos corpos de bombeiros municipais e voluntários contra acidentes ocorridos no respectivo serviço, tendo, mais tarde, o DL nº 36/80, de 14 de Março, dado nova redacção aquele artigo 6º, ao estatuir que «os municípios procederão obrigatoriamente ao seguro do pessoal dos corpos de bombeiros municipais e voluntários contra acidentes ocorridos em serviço, devendo o seguro ser contratado pelas quantias mínimas e compreendendo os seguintes riscos: por pessoa segura: a) - morte e invalidez permanente....b) - incapacidade temporária absoluta e total....c) - despesas de tratamento até...». No caso «sub judice», em que o seguro não foi contratado pelo lesado, mas antes pelo Município de O... do H..., que concluiu com a ré um contrato de seguro de acidentes pessoais, em que a "pessoa segura" e o “beneficiário” é o autor, sendo o objecto da garantia a "morte ou invalidez permanente", em obediência a uma imposição legal, entende-se que o lesado não pode cumular as duas indemnizações, devendo optar por uma delas e exigir do outro devedor de indemnização o que faltar para a reparação integral do dano, por aplicação analógica da solução que se defende como a mais correcta, em matéria paralela de acidente, simultaneamente, de viação e de trabalho. Efectivamente, do âmbito das pessoas seguras no contrato de acidentes pessoais analisado, consta «o pessoal dos Corpos Associativos e Municipais de Bombeiros, pertencentes ao comando, ao quadro activo, às categorias de aspirante, motorista e maqueiro (socorrista) do quadro auxiliar, os cadetes e ainda os médicos, farmacêuticos e enfermeiros, quando não obrigados por Lei a contratar o Seguro de “Acidentes de Trabalho”, quando conste de quadros homologados pelo Serviço Nacional de Bombeiros, bem como os elementos dos corpos gerentes das Associações de Bombeiros», sendo pagos os respectivos prémios pelo Município de O... do H.... Se o Município de O... do H..., ao concluir o contrato de seguro de acidentes pessoais, teve como objectivo, embora não se considerando obrigado a tal pela legislação sobre acidentes de trabalho vigente, assegurar a um seu empregado, pertencente aos quadros associativos dos bombeiros, uma indemnização pelos acidentes pessoais de que fosse vítima, a solução deve depender das circunstâncias do caso concreto, consoante foi intenção das partes subscritoras do contrato de seguro em causa atribuir aquele empregado um direito ao respectivo montante do seguro, como beneficiário autónomo, independentemente de eventual indemnização a que tivesse direito contra terceiros, hipótese em que o direito à indemnização do seguro é devida pelo terceiro responsável, ou se, diversamente, se tratou apenas de assegurar ao empregado uma indemnização de seguro, na falta de outra contra terceiros, hipótese em que o segurador, ao pagar o montante do seguro, fica subrogado nos direitos do lesado contra o terceiro responsável (13). Assim sendo, considerando o teor conjugado da apólice do seguro em análise e o que resulta do diploma que instituiu a celebração de seguros de acidentes pessoais aos bombeiros, por parte das Câmaras Municipais, não pode concluir-se, razoavelmente, que o Município de O... do H..., ao celebrar esse contrato, tivesse a intenção de atribuir ao autor, motorista e membro do quadro de pessoal dos corpos associativos de bombeiros, um beneficio autónomo, independente da eventual indemnização a que tivesse direito contra terceiros, por força do contrato de seguro emergente de acidente de trabalho, antes tem de se entender que o mesmo assume uma função de garantia, destinado a valer ao lesado, na falta de outro meio de ressarcimento patrimonial, revestindo, portanto, um cunho, acentuadamente, indemnizatório. O seguro teria, então, uma função de garantia, destinada a valer ao lesado, na falta de outro meio de ressarcimento patrimonial, pelo que o segurador, ou o Município de O... do H..., se pagasse a indemnização devida pelo seguro de acidentes pessoais, se subrogaria nos direitos do lesado contra o terceiro responsável. IV. 4. Contudo, deve considerar-se ressalvada da situação de inadmissibilidade da cumulação de indemnizações, a hipótese de ter sido inserida, no respectivo contrato de seguro de acidentes pessoais, uma cláusula de sub-rogação, muito embora de uma exegese literal dos termos do artigo 441º, do Código Comercial, em cuja epígrafe se consagra a «sub-rogação em benefício do segurador», ao preceituar que “o segurador que pagou a deterioração ou perda dos objectos segurados fica sub-rogado em todos os direitos do segurado contra o terceiro causador do sinistro”, possa resultar que a sub-rogação do segurador se limita aos seguros de coisas. Na verdade, tratando-se de seguro de danos a coisas, declarando o artigo 441º, do Código Comercial, que “o segurador que pagou a deterioração ou perda dos objectos segurados fica sub-rogado em todos os direitos do segurado contra o terceiro causador do sinistro”, é razoável concluir que o lesado pode cumular a indemnização a receber do segurador com a indemnização devida pelo terceiro responsável, já que o direito a esta se transfere, por sub-rogação, para o segurador que tenha pago o montante seguro. Porém, o artigo 441º, do Código Comercial, é susceptível de interpretação extensiva, por forma a abranger os seguros de responsabilidade, nomeadamente, os seguros de acidentes pessoais, sempre que exista um direito de regresso do segurador contra terceiro, porquanto idêntica é a «ratio legis», nesta situação, sendo de imputar a omissão de previsão do legislador à diminuta relevância, na ocasião, dos seguros de responsabilidade, referindo-se a lei a uma parte do todo, ou seja, aos seguros de coisas, quando, certamente, se o tivesse equacionado, não deixaria de ter falado na possibilidade de extensão da sub-rogação, igualmente, aos seguros de responsabilidade em geral (14). E se é certo que o princípio da sub-rogação aparece, intimamente, ligado ao princípio indemnizatório, a apólice uniforme do seguro de acidentes pessoais dos autos contém uma cláusula de sub-rogação, cujo âmbito, atendendo à interpretação extensiva que acaba de se efectuar, é, de igual modo, compatível, pela sua própria natureza, quer com os seguros de danos, quer com os seguros de acidentes pessoais (15). Assim sendo, verificada a aludida excepção ao princípio da não cumulabilidade das duas indemnizações, é compatível, no caso concreto, o contrato de seguro de acidentes de trabalho com o contrato de seguro de acidentes pessoais, porquanto foi inserida, no respectivo contrato de seguro de acidentes pessoais, uma cláusula de sub-rogação, podendo, então, o lesado cumular a indemnização proveniente do contrato de seguro emergente de acidente de trabalho com a indemnização resultante do contrato de seguro de acidentes pessoais, já que o direito a esta se transfere para o segurador que tenha pago o montante seguro, que fica subrogado nos direitos do lesado contra o terceiro responsável. CONCLUSÕES: I - Não constitui violação das regras próprias da competência, em razão da matéria, a dedução ou abatimento operada pelo Tribunal comum do quantitativo resultante da condenação em Tribunal do Trabalho, em virtude da cumulação do seguro de acidentes de trabalho com o seguro de acidentes pessoais na mesma pessoa segurada. II - Respeitando a questão da competência, em razão da matéria, apenas aos tribunais judiciais, e não tendo a mesma sido suscitada, até ser proferido o saneador, ainda que se pudesse contra-argumentar que, até então, era uma questão meramente virtual, não pode ser objecto de apreciação e decisão, em sede de recurso de revista. III - Não existe violação das regras da competência, em razão da hierarquia, quando, não sendo permita a cumulação de indemnizações provenientes do seguro de acidente de trabalho e do seguro de acidentes pessoais, haja de optar por uma delas, com vista à fixação do montante indemnizatório devido ao lesado. IV - O seguro de acidentes pessoais tem subjacente o princípio indemnizatório que reflecte o carácter não especulativo do contrato de seguro, ao interditar que este possa constituir fonte de rendimento para os lesados, e cujas principais implicações consistem em evitar o sobre-seguro, impedir a cumulação de seguros e obstar a que o lesado seja, também, indemnizado pelo lesante. V – Não tendo o contrato de seguro de acidentes pessoais sido contratado pelo lesado, motorista e membro do quadro de pessoal dos corpos associativos de bombeiros, mas pelo Município de O... do H..., que o concluiu com a ré seguradora, em obediência a uma imposição legal, em que o lesado é a "pessoa segura" e o “beneficiário”, não pode o mesmo, em princípio, cumular as indemnizações provenientes do seguro de acidentes pessoais e do seguro de acidentes de trabalho, devendo optar por uma delas e exigir do outro devedor de indemnização o que faltar para a reparação integral do dano, por aplicação analógica da solução que se defende como a mais correcta, em matéria paralela de acidente, simultaneamente, de viação e de trabalho. VI – O Município de O... do H..., ao celebrar o contrato de seguro de acidentes pessoais, não teve intenção de atribuir ao autor, motorista e membro do quadro de pessoal dos corpos associativos de bombeiros, um beneficio autónomo, independente da eventual indemnização a que tivesse direito contra terceiros, por força de anterior contrato de seguro emergente de acidente de trabalho, assumindo antes aquele contrato de seguro de acidentes pessoais uma função de garantia, destinado a valer ao lesado, na falta de outro meio de ressarcimento patrimonial contra terceiros, hipótese em que o segurador, ao pagar o montante do seguro, fica subrogado nos direitos do lesado contra o terceiro responsável. VII - Tendo sido inserida, no respectivo contrato de seguro de acidentes pessoais, uma cláusula de sub-rogação, verifica-se a excepção ao princípio da não cumulabilidade das duas indemnizações, podendo o lesado cumular a indemnização proveniente do contrato de seguro emergente de acidente de trabalho com a indemnização resultante do contrato de seguro de acidentes pessoais, já que o direito a esta se transfere para o segurador que tenha pago o montante seguro, que fica subrogado nos direitos do lesado contra o terceiro responsável. DECISÃO : Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar, nos termos pedidos, a revista da ré, e em conceder, em parte, a revista do autor, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de setenta e seis mil oitocentos e catorze euros (€ 76 814,00), acrescida de juros legais, actualmente, à taxa de 4%, desde 11 de Outubro de 2006 e até efectivo e integral cumprimento, sendo certo que, uma vez pago este montante seguro, a ré fica subrogada nos direitos do lesado contra o terceiro responsável. * Custas, a cargo do autor e da ré, na proporção de 1/3 e de 2/3, respectivamente. * Notifique. Supremo Tribunal de Justiça, 02 de Março de 2011. Helder Roque (Relator) Gregório Silva Jesus Martins de Sousa ________________________________ (1) Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa. (2) Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 74 e 75; Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, 379. (3) Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, AAFDL, 1990, 557. (4) Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, 379 e 380. (5) Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 91; STJ, de 21-2-01, Acórdãos Doutrinais do STA, Ano XL, 479º, 1539; STJ, de 9-2-99, BMJ nº 484, 292; STJ, de 9-5-95, CJ (STJ), Ano III, T2, 68. (6) Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Lex, 1999, 31 e 32. (7) José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, 47; STJ, de 21-4-2009, Pº 09A0449, www.gdsi.pt (8) STJ, de 4-10-2001, Pº nº 01B2309, www.dgsi.pt (9) José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999,146. (10) Vaz Serra, Sub-Rogação do Segurador, RLJ, Ano 94º, 225, 226 e 259, nota (1). (11) Larenz, Lehrbuch des Sculdrechts, citado por Vaz Serra, in RLJ, Ano 108º, 37. (12) Vaz Serra, in RLJ, Ano 108º, 37. (13) Vaz Serra, RLJ, Ano 108º, 38 e 39. (14) Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 1971, 220; Vaz Serra, RLJ, Ano 94º, 187; José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, 152; STJ, de 4-11-2004, Pº nº 04B3062; e STJ, de 4-10-2004, CJ (STJ), Ano XII, T3, 39. (15) Vaz Serra, RLJ, Ano 94º, 225 e 226; José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, 152. (16) Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa. |