Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | SANTOS BERNARDINO | ||
| Descritores: | CONHECIMENTO OFICIOSO POSSE PRECÁRIA DIREITO DE SUPERFÍCIE USUCAPIÃO ABUSO DE DIREITO ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA | ||
| Nº do Documento: | SJ200907020005342 | ||
| Data do Acordão: | 07/02/2009 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE À RÉ, NEGADA REV. AA | ||
| Sumário : | 1. O juiz, embora, como regra, só possa servir-se dos factos alegados pelas partes, não está sujeito às alegações destas no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito: pelo que respeita ao direito, o juiz pode ir buscar regras diferentes das invocadas pelas partes (indagação), pode atribuir às regras invocadas pelas partes sentido diferente do que estas lhes deram (interpretação), ou fazer derivar das regras de que as partes se serviram efeitos e consequências diversas das que estas tiraram (aplicação). 2. Para efeitos de posse, conducente à usucapião, não são considerados possuidores, mas meros detentores ou possuidores precários, os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, bem como os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem. 3. O direito de superfície pode constituir-se, além do mais, por usucapião. 4. Não resultando dos factos provados que, no exercício dos poderes de facto sobre as construções e edificações que a ré levantou em prédios da autora, tenha aquela agido com intenção de actuar esses poderes como titular do direito de superfície, não está demonstrado o requisito do animus possidendi, não se podendo ter por constituído a favor da ré, por usucapião, um direito de superfície sobre as ditas construções e edificações. 5. A reivindicação, pelos autores, de prédios, livres e devolutos, que bem sabem terem sido, pelos seus antecessores, afectados ao serviço da ré, uma sociedade por eles criada, permitindo que nesses prédios fossem sendo edificadas várias construções com que a ré foi ajustando e adequando o exercício das suas actividades, ao longo de muitos anos, constitui actuação contra factum proprium, manifestamente ofensiva dos limites impostos pela boa fé e em clamorosa violação do princípio da confiança, ou seja, em claro abuso de direito. 6. O abuso de direito é de conhecimento oficioso. 7. No domínio da acessão industrial imobiliária, no caso de construção de obra própria em terreno alheio, o dono do terreno só pode exigir a destruição da obra quando ela tiver sido feita de má fé. 8. Tendo a obra sido construída de boa fé, o dono do terreno não pode limitar-se, em acção de reivindicação dirigida contra o dono da obra, a reclamar a entrega do terreno, livre e devoluto; terá de reivindicar o conjunto existente, alegando que o terreno era de valor superior ao acréscimo de valor que lhe foi trazido pelas obras, e que está em condições de pagar ao dono da obra a indemnização pelo valor das obras ao tempo da incorporação. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA intentou, em 07.03.2002, no Tribunal Judicial da comarca de São Roque do Pico, contra BB, L.da, acção com processo ordinário, pedindo que a ré seja condenada a reconhecê-la como proprietária dos três prédios – dois urbanos e um rústico – que identifica, todos situados na freguesia e concelho de São Roque do Pico, a entregar-lhos, livres e devolutos, e a pagar-lhe a quantia de € 750,00 por cada mês ou fracção que mediar entre a data da citação e a entrega dos prédios. Como fundamento da sua pretensão alegou, em síntese, como segue: Herdou, por sucessão testamentária de CC, falecida em 25 de Setembro de 1998, os dois prédios urbanos e o direito a 8/9 do rústico, os quais constituem, no seu conjunto e em vista da sua contiguidade, uma unidade económica, encontrando-se essas aquisições registadas a seu favor desde 12.03.2001. Até à sua morte, a referida Justina sempre tratou os referidos prédios, que adquiriu por morte de seu pai, BB, em 22.09.68, como coisas suas, intitulando-se dona deles, à vista de toda a gente, pagando as inerentes contribuições, mantendo, explorando e gerindo um estabelecimento comercial de mercearia, instalado no primeiro dos citados prédios. BB havia afectado a utilização dos mencionados prédios ao serviço da ré, constituída em 1955, mantendo esta aí a sua actividade comercial, sem qualquer título e por mera tolerância dos sucessivos proprietários. A autora decidiu fazer cessar essa utilização da ré, mas esta recusa-se a reconhecer o direito de propriedade da demandante e a entregar-lhe os prédios, privando-a de vender ou arrendar os referidos prédios e obstando a que retire deles um rendimento mensal não inferior a € 750,00. A ré contestou e deduziu reconvenção. Alegou que a partir da afectação ao serviço da ré, em 1955, dos prédios urbanos, efectuada pelo anterior proprietário, BB, um desses prédios – o inscrito na matriz sob o art. 567º – foi por ela usado, numa primeira fase e até 1969, como garagem e oficina de reparação de veículos; nessa altura a ré fez obras nesse edifício, alterando-o para fins de talho e de um estabelecimento de mini-mercado, actividades que ali passaram a ser exercitadas em 1969; em 1978 passou a funcionar ali apenas o mini-mercado, o que ainda hoje acontece, sempre aí tendo estado afectos, pelo menos, quatro empregados da demandada, sendo esta que tem procedido a todos os trabalhos de conservação do prédio. Quanto ao outro prédio urbano – o inscrito na matriz predial sob o art. 640º – passou a ré, a partir da sobredita afectação, a usá-lo para fins de arrecadação e garagem, como proprietária e sempre nas suas actividades comerciais, tendo, entre 1965 e 1967, prolongado essa construção para o lado norte, dentro da parte do reduto do prédio do artigo 522º urbano, que fora igualmente cedida, e até à zona da casa de habitação, e levantado um edifício novo, para o qual transferiu a oficina de reparação de veículos, e, finalmente, procedendo, em 1990, a uma total reconstrução de grande parte correspondente ao edifício. A propriedade de uma parcela do prédio rústico, com área correspondente a 8/9, fora cedida verbalmente, em 1961, por um anterior proprietário a BB, sendo que tal parcela passou, na sequência da afectação que lhe foi feita por este, a ser usada pela ré sempre que foi necessário para qualquer finalidade sua, como a descarga de mercadorias, a colocação transitória de bens da sociedade ou destinados ao seu comércio e ainda para o estacionamento de veículos seus ou dos que se encontravam em reparação na sua oficina. Em 1975 a ré instalou um posto de abastecimento de combustíveis na referida parcela, posto esse que ainda explora, e ali construiu um edifício com dois pisos, um destinado a escritório e sanitários e outro para duas arrecadações, assim como três depósitos para armazenamento de combustível, ficando, desde então, a explorar o referido posto. Em todos os imóveis referenciados, tem a ré exercido sempre as indicadas actividades de acordo com os seus interesses comerciais e como respectiva e exclusiva dona, na convicção de os mesmos lhe pertencerem e sem oposição fosse de quem fosse. Sempre se verificou, por parte de CC, uma atitude de permanente aceitação do gozo da ré como proprietária dos referidos imóveis, traduzida na não oposição aos vultuosos actos de investimento efectuados pela demandada, como a total transformação do edifício do mini-mercado, as alterações e a recuperação do edifício do prédio de arrecadação e a instalação de um posto de fornecimento de combustíveis, situação que sempre acompanhou enquanto sócia da ré e empregada do mini-mercado “.....”. Adquiriu, assim, a ré os referidos imóveis urbanos por usucapião, o que é impeditivo da propriedade quanto a eles reivindicada pela autora. Por outro lado, não podia a autora herdar o direito a 8/9 do prédio rústico, porque CC não o herdou de BB, de quem era filha, dado que aquele não adquiriu 8/9 do prédio, antes a parcela inteira. No testamento que fundamenta a sucessão de CC, a falecida instituiu a autora como sua universal herdeira, não identificando qualquer bem. Os registos não foram efectuados com base em qualquer titulo de aquisição onde sejam mencionados os prédios e direito aqui em questão, pressupondo que estes foram da testadora. O registo a favor da autora teve como fundamento a escritura de habilitação, lavrada com base no testamento e na declaração da própria autora identificando os imóveis a registar. Impugnou ainda os demais factos alegados pela autora, referentes aos actos praticados por CC sobre os imóveis em causa, bem como aos prejuízos invocados. Concluiu pela improcedência da acção, com a consequente absolvição dela, ré, do pedido; e pediu que, julgada procedente a reconvenção, seja declarado a seu favor o direito de propriedade sobre os prédios urbanos inscritos nos arts. 567º e 640º da freguesia e concelho de São Roque do Pico e descritos na CRP de São Roque do Pico sob os n.os 1526 e 1527, sendo a reconvinda condenada a reconhecer esse direito, pedindo ainda seja ordenado o cancelamento das inscrições G-1 que incidem sobre as referidas descrições e sobre a descrição 1528 da mesma freguesia. Seguiram-se réplica e tréplica, e foi deduzido incidente de intervenção provocada do cônjuge da autora, DD, tendo sido admitido o chamamento deste. Na subsequente tramitação do processo foi oportunamente efectuado o julgamento e proferida sentença, na qual a Ex.ma Juíza do Círculo de Angra do Heroísmo julgou a acção parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, e em consequência - declarou que os autores, AA e DD, são proprietários dos dois prédios urbanos e comproprietários do direito a 8/9 do prédio rústico, condenando a ré a reconhecer tais direitos; - absolveu a ré do pedido de reconhecimento da propriedade relativamente a 1/9 do prédio rústico; - condenou a ré a entregar aos autores, livres e devolutos, os referidos prédios, e a pagar-lhes a quantia que se vier a liquidar posteriormente, relativa às utilidades que estes deixaram de auferir dos prédios, desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento; e - absolveu os autores do pedido reconvencional formulado pela ré. Da sentença interpôs a ré o pertinente recurso de apelação. E não o fez em vão, pois a Relação de Lisboa, em acórdão oportunamente proferido, julgou parcialmente procedente a apelação, alterando a sentença recorrida nos seguintes termos: a) julgou procedente a excepção peremptória fundada na usucapião do direito de superfície quanto aos edifícios implantados sobre o prédio urbano descrito na CRP de São Roque do Pico sob o n.º 1527 da freguesia de São Roque do Pico, e inscrito na respectiva matriz predial, desde 1969, sob o art. 640, e sobre as edificações implantadas sobre a parcela do prédio rústico; b) absolveu a ré quanto ao pedido de restituição dos prédios referidos na alínea precedente, sem prejuízo do direito de propriedade dos autores sobre os mesmos prédios; c) confirmou a decisão quanto ao pedido de indemnização, a liquidar posteriormente, mas apenas quanto ao prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial urbana, desde 1969, sob o art. 567 e descrito na CRP de São Roque do Pico sob o n.º 1526, da freguesia de São Roque do Pico, revogando a sentença recorrida na parte respeitante aos restantes prédios, e absolvendo a ré do pedido, nesta parte; d) confirmou, no mais, o julgado. Do acórdão da Relação recorrem agora, de revista, para este Supremo Tribunal, os autores e a ré. A ré remata a sua alegação de recurso com a enunciação das seguintes conclusões: 1ª - Os factos provados sob os n.os 11, 20, 24 a 37, 40 a 44 e 47 a 59 não permitem o enquadramento da cedência à recorrente dos imóveis em causa no regime jurídico do contrato de comodato previsto nos arts. 1129º a 1141º do CC, como foi entendido no acórdão recorrido; 2ª - Nesses factos, e com fundamento nos arts. 1260º, 1261º, 1262º, 1287º e 1296º do mesmo Código, verificam-se os requisitos necessários para a aquisição por usucapião, pela recorrente, dos prédios urbanos e da parcela identificada no facto n.º 26, quanto ao prédio rústico; 3ª - Caso assim se não entenda, a mesma matéria de facto é suficiente para, com base em presunção judicial nela assente, se concluir nos mesmos termos; 4ª - Devia, pois, ter o acórdão recorrido declarado essa aquisição por usucapião e ordenado o cancelamento dos registos prediais de aquisição feitos a favor da autora sobre as descrições desses imóveis, com a consequente procedência da correspondente matéria excepcional e reconvencional e revogação da sentença da 1ª instância; 5ª - Destarte, o acórdão recorrido violou, por erro na aplicação do direito, o disposto nos arts. 1287º e 1296º do CC; 6ª - A não se entender assim, deve então considerar-se que, quanto ao prédio do art. 567 urbano da freguesia de São Roque do Pico, o cumprimento da sentença corresponderia a um abuso de direito, na medida em que a inexistência de qualquer oposição às iniciativas e investimentos e o larguíssimo período decorrido na actividade ali exercida criaram a convicção de que a mesma se manteria, verificando-se, em consequência, a violação do art. 334º do CC; 7ª - Deve, pois, ser revogado o acórdão recorrido e declarado que pertence à recorrente o direito de propriedade sobre os imóveis em causa, com todas as consequências legais. Por seu turno os autores terminam a sua alegação enunciando as seguintes conclusões: 1ª - Ao declarar e reconhecer à recorrida o direito de superfície sobre o prédio rústico (terra de arvoredo), com 4,84 ares, o acórdão recorrido declarou e reconheceu àquela um direito que ela não pediu em lugar algum ou em momento algum do processo, designadamente no pedido reconvencional, assim violando o disposto no n.º 1 do art. 3º e no n.º 1 do art. 661º do CPC; 2ª - Tal determina a sua nulidade, conforme o previsto no art. 668º/1.e) do mesmo diploma; 3ª - Ao declarar e reconhecer à recorrida o direito de superfície, adquirido por usucapião, sobre o aludido prédio rústico e sobre o prédio urbano descrito na CRP de São Roque do Pico sob o n.º 1527 e inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 640, convolando o pedido, quanto a este (quanto àquele nenhum pedido foi formulado) de declaração e reconhecimento do direito de propriedade, o acórdão recorrido condenou em objecto diferente do pedido, assim violando, também aqui, as normas do n.º 1 do art. 3º e do n.º 1 do art. 661º do CPC; 4ª - O que determina a sua nulidade, a este outro título, conforme o previsto no art. 668º/1.e) do mesmo diploma; 5ª - Ao declarar e reconhecer à recorrida o direito de superfície, adquirido por usucapião, sobre o prédio rústico referido na conclusão 1ª e sobre o prédio urbano descrito na CRP de São Roque do Pico sob o n.º 1527 e inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 640, o acórdão recorrido decidiu em oposição aos factos provados sob os n.os 12 e 19, que caracterizam a relação da recorrida com os referidos prédios como de mera detentora ou possuidora precária, sem que tenha ocorrido, em momento algum, a inversão do título; 6ª - É, por isso, e a este título, tal acórdão nulo, conforme o previsto no art. 668º/1.c) do CPC, tendo violado ainda o disposto no art. 1290º do CC. As nulidades arguidas pelos recorrentes foram objecto de apreciação pela conferência, na Relação, tendo-se concluído pela improcedência da arguição, assim se mantendo a decisão proferida nos seus precisos termos, “rectificando apenas o lapso da referência feita no relatório e na fundamentação do acórdão, na parte em que reporta a reconvenção da ré ao prédio descrito sob o ponto 3. da factualidade assente, passando tal referência a ser considerada apenas em relação aos prédios descritos sob os pontos 1. e 2. da mesma factualidade”. Não foram apresentadas contra-alegações. Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir. 2. São os seguintes os factos provados: 1. Na Rua ................, freguesia e concelho de S. Roque do Pico, existe um prédio urbano constituído por casa destinada a armazém de mercearia, composta de rés-do-chão e primeiro andar, com a área coberta de 102 m2, a confrontar a norte e oeste com EE, a sul com MM e a leste com Rua ................, inscrito na respectiva matriz predial urbana, desde 1969, sob o art. 567 e descrito na Conservatória do Registo Predial de S. Roque do Pico sob o n.º 1526, da freguesia de S. Roque do Pico. 2. Na mesma Rua ................, na freguesia e concelho de S. Roque do Pico, existe um prédio urbano constituído por casa destinada a garagem e arrecadação de um piso, com a superfície coberta de 126 m2, a confrontar a norte, sul e leste com CC e a oeste com GG, descrito na Conservatória do Registo Predial de S. Roque do Pico sob o n.º 1527 da freguesia de S. Roque do Pico e inscrito na respectiva matriz predial urbana, desde 1969, sob o art. 640. 3. No lugar do Cais, freguesia e concelho de S. Roque do Pico, existe um prédio rústico (terra de arvoredo), com 4,84 ares, a confrontar a norte com MM, a sul e oeste com CC e a leste com Rua ................, descrito na Conservatória do Registo Predial de S. Roque do Pico sob o n.º 1528 da freguesia de S. Roque do Pico, inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 605. 4. Os prédios urbanos descritos nos pontos 1 e 2 encontram-se inscritos na Conservatória do Registo Predial de S. Roque do Pico a favor da autora, por sucessão testamentária de CC, desde 12.03.2001, estando também inscritos na matriz predial a favor da autora. 5. Na Conservatória do Registo Predial de S. Roque do Pico encontra-se inscrita, a favor da autora, desde 12.03.2001, a aquisição de 8/9 do prédio rústico descrito no ponto 3., por sucessão testamentária de CC. 6. A sociedade ré foi constituída em 1955, encontra-se matriculada sob o n.º 20 da Conservatória do Registo Comercial de S. Roque do Pico, e tem como objecto social o exercício do comércio de mercearia por grosso ou qualquer outro que resolvesse explorar, excepto o bancário. 7. Foram sócios fundadores da ré BB e seu neto EE, sendo então a sociedade administrada por ambos os sócios. 8. Em 30 de Janeiro de 1961 foi inscrita a favor de II, CC e EE, a cessão que lhes fez BB da sua quota na sociedade, na proporção de 1/3 para cada um daqueles. 9. CC era filha de BB e de HH e faleceu no dia 25 de Setembro de 1998, no estado de solteira. 10. Em 30 de Setembro de 1988 foi inscrita a aquisição, por doação, da quota de II a favor de EE. 11. BB, anterior proprietário dos prédios descritos nos pontos 1 a 3, afectou-os ao serviço da ré, que aí passou a exercer a sua actividade, onde ainda se mantém. 12. Ao afectar os mencionados prédios ao serviço da ré, BB quis apenas permitir-lhe a sua utilização. 13. Em 9 de Outubro de 1963, no Cartório Notarial da JJ, BB declarou fazer o seu testamento pela forma seguinte: “Que lega a seus filho II e CC a metade a que tem direito dos seguintes prédios: 1º) Casa de morada, com mobília e todo o recheio, armazéns, duas garagens e quintal, situada na Rua do........, S. Roque do Pico …… lega o seu direito a metade do cofre que se encontra no escritório da firma “BB Limitada”, à própria firma”. 14. Em 9 de Outubro de 1963, no Cartório Notarial da JJ, HH declarou fazer o seu testamento pela forma seguinte: “Que lega a seus filhosII e CC a metade a que tem direito dos seguintes prédios: 1º) Casa de morada, com mobília e todo o recheio, armazéns, duas garagens e quintal, situada na Rua do Cais, S. ........… … lega o seu direito a metade do cofre que se encontra no escritório da firma “BB Limitada”, à própria firma”. 15. BB faleceu no dia 22 de Dezembro de 1968, e sua mulher HH dia 21 de Fevereiro de 1967. 16. Consta da relação de bens por óbito de BB, datada de 22 de Fevereiro de 1969, sob a verba nº5, “Uma casa de morada com dependências de armazém e garagem com quintal sita na Rua ......, freguesia de .........e do Pico, confrontando do norte e leste com caminho, sul e oeste Dr. KK”. 17. Consta da relação de bens por óbito de HH, datada de 20 de Maio de 1967, sob a verba nº5: “Uma casa de morada com dependências de armazém e garagem com quintal sita na Rua do Cais, freguesia de São Roque do Pico, confrontando do norte e leste com caminho, sul e oeste Dr. KK”. 18. CC continuou a permitir a utilização de tais prédios pela ré. 19. A ré tem vindo a manter a sua actividade comercial nos aludidos prédios mediante a tolerância sucessiva de BB e de CC. 20. Os prédios descritos nos pontos 1 a 3 fazem parte de uma mesma unidade económica, constituída por eles próprios e ainda por parte do reduto do prédio inscrito na matriz sob o art. 552 da freguesia de S. Roque do Pico. 21. CC sempre tratou os prédios referidos nos pontos 1 a 3 como coisas suas, intitulando-se como dona dos mesmos. 22. As contribuições respeitantes aos prédios descritos nos pontos 1 a 3, relativamente aos anos de 1993 a 1997, foram liquidadas a CC e II. 23. CC pagou as referidas contribuições, juntamente com II. 24. Até 1969, a ré usou o prédio descrito no ponto 1 como garagem e oficina de reparação de veículos. 25. Tal oficina denominava-se “Oficina Picoense”, e ali trabalhavam três empregados da ré. 26. Em 1969, o prédio descrito no ponto 1 tinha uma aparência exterior rústica, sendo as paredes cobertas de pedra de basalto delimitadas pelos interstícios entre elas pintados em branco. 27. No dia 12 de Dezembro de 1968, a ré requereu à Câmara Municipal de S. Roque do Pico a aprovação de um projecto de alteração do prédio urbano descrito no ponto 1, para fins de talho e de um estabelecimento de venda de produtos alimentícios, tendo ainda requerido a emissão de licença para efectuar a respectiva obra. 28. As obras e a licença mencionadas no n.º anterior foram, respectivamente, aprovadas e emitida no dia 19 de Dezembro de 1968. 29. As referidas obras foram executadas no decurso do ano de 1969 pela ré, tendo o prédio referido no ponto 1 ficado alterado nos termos constantes do projecto aprovado. 30. Na sequência das obras mencionadas supra, a ré passou a explorar, em 1969, a actividade de mercado no piso superior e de talho no piso inferior. 31. O que passou a constar de actas e de documentos apresentados na Repartição de Finanças do concelho. 32. Por conveniência comercial da ré, cessou em 1978 a actividade de talho, ficando o respectivo piso destinado a arrecadação do mini-mercado. 33. Mantendo-se posteriormente a exploração do edifício como mini-mercado, por aquela, o que faz no presente. 34. O estabelecimento a que se refere o ponto 27 passou a denominar-se “Mini-Mercado .....”. 35. Em 23 de Setembro de 1975, encontravam-se afectos ao aludido estabelecimento quatro empregados da ré. 36. A ré tem procedido a todos os trabalhos de conservação do prédio, mormente a pintura e retelho. 37. Relativamente ao prédio urbano identificado em 1, a ré adquiriu também todo o equipamento necessário ao funcionamento do novo estabelecimento. 38. O prédio a que se refere o ponto 2 era composto por um único edifício, completamente separado das construções então existentes. 39. Tal prédio foi construído em parte do reduto do prédio inscrito na matriz sob o artigo urbano 552, onde BB tinha a sua casa de habitação. 40. Após a afectação mencionada no ponto 12, a ré passou a usar o prédio descrito no ponto 2 como arrecadação e garagem, no exercício da sua actividade comercial. 41. Toda a área do prédio urbano identificado em 2 era ocupada pelo edifício referido no ponto 38. 42. Entre 1965 e 1967, a ré prolongou o prédio descrito no ponto 2 para o lado norte, dentro da parte daquele reduto do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. 552, e até à zona da casa de habitação de II, e construiu um edifício novo e mais alto, do lado sul, para o qual a ré, em 1969, transferiu a “Oficina Picoense” de reparação de veículos, quando esta deixou de funcionar no prédio descrito no ponto 1, em virtude das obras a que se referem os pontos 27 a 29. 43. A ré sempre procedeu a obras de conservação no conjunto formado pelo prédio descrito no ponto 2 e pelas construções mencionadas no ponto 42, efectuando pintura e retelhos. 44. Em 1990 a ré efectuou a reconstrução de uma grande parte do prédio descrito no ponto 2, por este ter ficado danificado por um sismo. 45. Em 1961, LL declarou verbalmente ceder parte do prédio a que se refere o ponto 3 a BB, o qual declarou aceitar. 46. II, como contrapartida, construiu ao LL uma garagem situada junto ao lado sul do mini-mercado ...... 47. A parcela cedida ficou com uma área correspondente a 8/9 do prédio descrito no ponto 3, confrontando a norte com LL, sul e oeste com “BB, L.da” e a leste com rua. 48. Esta parcela foi inscrita na matriz a favor de BB em 1961 e a favor de BB e CC em 1969. 49. Tal parcela foi igualmente afecta à finalidade da ré por BB. 50. Após a afectação que lhe foi feita do dito prédio por BB, a ré passou a usá-lo para as suas finalidades, como descarga de mercadorias e colocação transitória de quaisquer outros bens da sociedade ou destinados ao seu comércio e ao estacionamento de veículos seus ou dos que se encontram em reparação na oficina que explora. 51. A ré eliminou o muro que delimitava a parcela referida no ponto 47 do reduto habitacional de parte do art. urbano 552, mencionado no ponto 42. 52. Formando assim um único espaço para o qual dão todos os imóveis em causa. 53. Em 1969 ou 1970, a ré, com a ajuda da Câmara Municipal, asfaltou a zona destinada ao acesso ao espaço referido em 52. 54. Na parte mais a norte da parcela referida no ponto 47, e junto ao lado sul da garagem referida no ponto 46, a ré fez uma entrada de acesso ao espaço mencionado em 52 e as suas instalações. 55. Em 1975, a ré instalou um posto de abastecimento de combustíveis na zona da parcela que fica imediatamente a seguir a essa entrada, para o lado sul e junto à rua, e construiu um edifício com dois pisos, sendo um destinado a escritórios e sanitários e o outro a duas arrecadações, assim como construiu três depósitos para armazenamento de combustíveis e implantou uma bomba e todos os restantes acessórios. 56. E construiu os muros e passeio que definem a zona composta pelas construções mencionadas em 55, efectuando os trabalhos de pintura e remate. 57. A ré ficou, desde então, a explorar o posto referido em 55, o que ainda hoje se mantém. 58. A ré sempre procedeu à sua conservação, incluindo a pintura de todos os elementos. 59. A ré tem vindo a actuar da forma descrita com o conhecimento das pessoas do Cais do Pico e de toda a ilha. 60. A ré actuou com a aceitação de CC, a qual sempre a acompanhou na veste de sócia que era da ré. 61. CC também exercia funções no estabelecimento comercial a que se alude, entre elas as de “caixa”, pertencendo ao quadro de pessoal da empresa, com essa categoria profissional. 62. Iniciou essas funções em 1 de Fevereiro de 1969 e cessou-as em 10 de Março de 1989, altura em que foi despedida com justa causa pelo sobrinho, EE. 63. No dia 27 de Maio de 1991, no âmbito dos autos de acção ordinária n.º 37/89, que correram termos no Tribunal de S. Roque do Pico, em que é autora “BB, L.da” e ré CC, e em que a primeira peticionava a condenação da segunda a pagar-lhe a quantia de 27.190.880$00, acrescida de juros, as partes transigiram sobre o objecto do processo, reconhecendo-se a ré devedora à autora de tal quantia e comprometendo-se a pagá-la entregando para o efeito a nua propriedade de metade do imóvel descrito na CRP de S. Roque do Pico sob o n.º 106 e inscrito na matriz urbana respectiva sob o art. 552. 64.II, filho de BB e de HH, faleceu no dia 7 de Outubro de 1990, no estado de solteiro. 65. No dia 11 de Outubro de 1988, no Cartório Notarial da JJ, II declarou que “ … institui sua única e universal herdeira sua irmã CC …”. 66. Da relação de bens apresentada na Repartição de Finanças de S. Roque do Pico por óbito deII, consta sob a verba n.º 10º “Um armazém de mercearias de rés do chão e 1º andar, sito na Rua ................ da freguesia e concelho de São Roque do Pico, confrontando do norte e oeste com os proprietários, sul herdeiros de LL e leste com Rua ................, inscrito na Matriz Predial Urbana sob o art. 567-1/2” e sob a verba n.º 11 “Um armazém de um só pavimento sito no mesmo lugar, confrontando no norte, sul e leste com os proprietários, e oeste com GG, inscrito na Matriz Predial Urbana sob o art. 640 -1/2;” e sob a verba n.º 14º “Prédio inculto sito na Rua ................ na mesma freguesia, confrontando do Norte com Herdeiros de LL, Sul e Oeste com os Proprietários e Leste com Rua ................, inscrito na Matriz Predial Rústica sob o art. 605-4/9”. 67. No dia 26 de Fevereiro de 1991, CC declarou, perante a notária do Cartório Notarial da JJ, que instituía sua única e universal herdeira AA, ora autora. 68. No dia 5 de Novembro de 1998, a autora declarou, perante o Notário do 2º Cartório Notarial de Ponta Delgada, que CC havia falecido e fizera testamento público na qual a instituía única e universal herdeira. 69. A autora decidiu fazer cessar a utilização que a ré vinha fazendo dos prédios. 70. A autora notificou EE para que exercesse o direito de preferência na venda que a mesma pretendia fazer dos prédios a que se referem os autos. 71. A ré recusa-se a abdicar dos prédios. 72. A autora está impedida de obter dos prédios em causa utilidades económicas. 73. Existe um prédio urbano descrito na CRP de S. Roque do Pico e composto por casa de habitação com rés-do-chão e 1º andar, água furtada e uma dependência, tendo 6 divisões no ....,...r e 2 na água furtada, tanque e quintal, com 484 m2, confrontando a norte com Rua do Cais, sul com herdeiros de NN, leste com estrada e oeste com KK, inscrito na matriz sob o art. 552. 74. Em 03.02.87 foi registada a aquisição do imóvel descrito no ponto 73 a favor de II e CC, por legados de BB e esposa, HH. Em 30.09.88, foi registada a aquisição de ½ do mesmo prédio a favor de EE, por doação de BB, com usufruto a favor do doador. Em 15.05.92 foi registada a aquisição de ½ do mesmo imóvel a favor de “BB, L.da”, por transacção com CC, com usufruto a favor desta. 75. Os AA. são casados entre si segundo o regime da comunhão geral de bens. 3. Estão interpostos dois recursos, um pelos autores e outro pela ré.Constitui princípio reconhecido no nosso direito processual o de que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente: tirante qualquer questão de que deva conhecer oficiosamente, só das questões suscitadas naquelas conclusões pode conhecer o tribunal ad quem. Neste processo, o recurso dos autores vem essencialmente fundado em nulidades do acórdão recorrido, seja por excesso de pronúncia (condenação em objecto diverso do pedido), seja por oposição entre os fundamentos e a decisão. Deverá, por isso, em atenção às consequências que decorrem das nulidades invocadas (se vierem a ser reconhecidas), ser analisado em primeiro lugar. É o que irá fazer-se, já de seguida. 3.1. No acórdão recorrido assinala-se que a ré se defendeu do pedido reivindicativo formulado pelos autores “com a excepção peremptória da usucapião, tendente a provar a sua aquisição originária dos direitos de propriedade sobre os mesmos prédios e, além disso, deduziu pedido reconvencional com vista ao reconhecimento desses direitos”. E, na subsequente exposição, refere a Relação que da factualidade assente se alcança que a posse da ré sobre os imóveis reivindicados “mais não era do que uma posse em nome alheio ou mera detenção, à luz do disposto no artigo 1253º” do Cód. Civil, logo acrescentando que a ré “não provou que, durante o longo tempo em que vem utilizando os referidos prédios, tenha invertido o seu título de posse, nos termos previstos nos artigos 1263º, alínea d), e 1265º do CC”, pois que, muito embora tenha realizado, nos ditos prédios, “actos materiais de transformação e adaptação, que não são de mera utilização” deles, “fê-lo ainda em vista da utilização latitudinária que lhe fora consentida pelo anterior proprietário e sempre com o conhecimento e aquiescência dele e dos que lhe sucederam”. E assim – remata o acórdão recorrido – resulta do que fica dito “que a actuação da ré, ao agir como agiu, jamais pôs em causa a propriedade dos prédios urbanos e a quota de comproprietário do prédio rústico que CC transmitira, por via testamentária, à autora”. Mas a Relação não se ficou por aqui. E avançou no sentido de “saber se as obras realizadas pela ré nos referidos prédios permitem titular a propriedade ou a posse sobre os mesmos”, logo adiantando que, para tanto, importaria saber, em primeiro lugar, “qual o enquadramento jurídico em que se poderá radicar a detenção que a ré vem fazendo dos prédios em referência”. E, depois de teorizar doutamente sobre esta questão, acaba por expressar o entendimento de que a situação concreta “nos remete para o quadro de um contrato de comodato precário, nos termos do n.º 2 do artigo 1137º do CC, segundo o qual assiste ao comodante o direito de fazer cessar o contrato em qualquer altura, conforme o pretendido pelos autores”. “Nesta linha de entendimento – continua a Relação – aos autores assistiria o direito à restituição dos prédios em causa”. Tanto mais quanto é certo que, no que respeita ao prédio urbano descrito em 1. dos factos provados, “estamos perante a realização de benfeitorias que, quando muito, confeririam à ré o direito a indemnização e retenção para garantir o respectivo pagamento” – questão que a ré nem sequer suscita; e, relativamente às edificações que esta implantou nos prédios identificados em 2. e 3., “estamos perante novas construções em prédio alheio com autorização do respectivo proprietário, o que poderia levar porventura à aquisição do respectivo solo por via potestativa da acessão industrial imobiliária, mediante o pagamento do respectivo valor, nos termos dos artigos 1339º e seguintes do CC” – mas também neste particular a ré não deduziu tal pretensão. Mas o acórdão recorrido não havia ainda esgotado o tema que se propusera tratar. Continuando a discorrer sobre ele, disse mais o seguinte: Não obstante isso, afigura-se que a actuação da ré ao construir em prédio alheio as referidas edificações, praticou actos susceptíveis de integrar a constituição de um direito de superfície com fundamento em usucapião, nos termos dos artigos 1524º e 1528º do CC. Com efeito, da matéria dada como provada resulta que as referidas edificações constituem claramente implantação e manutenção de obra em terreno alheio (pontos 42, 44, 53 a 56 da factualidade assente), à vista de toda a gente (ponto 59), sem oposição do proprietário do solo, há mais de 20 anos, sem que a autora e seus antepossuidores tenham questionado a realização dessas obras. Neste contexto, o animus da ré não incide sobre o solo ou sobre os referidos prédios tal como se encontram descritos no registo predial, mas sobre as próprias construções que ali implantou. É certo que a ré excepciona a acção na base do direito de propriedade, mas os factos alegados e provados a seu favor suportam a qualificação jurídica do direito de superfície, como causa impeditiva da restituição dos edifícios implantados nos prédios descritos sobre os pontos 2 e 3, qualificação essa a que o tribunal poderá atender oficiosamente, ao abrigo do disposto no artigo 664º do CPC e cujo alcance se confina ao âmbito da presente acção. Já tal qualificação não poderá ser aproveitada no âmbito do pedido reconvencional, porquanto a ré dirige o pedido ao direito de propriedade sobre os referidos prédios, não sendo lícito ao tribunal condenar em objecto diverso. E foi com apoio nas considerações agora transcritas que a Relação julgou procedente “a excepção peremptória fundada na usucapião do direito de superfície quanto aos edifícios implantados sobre o prédio identificado em 2 e sobre as edificações implantadas sobre a parcela do prédio rústico identificado em 3”, e absolveu a ré do pedido de restituição dos mencionados prédios, sem prejuízo do direito do direito de propriedade dos autores sobre eles. Terá, ao fazê-lo, incorrido na nulidade que os autores lhe imputam? Deve, antes de mais, precisar-se que, ao contrário do que expressam as conclusões dos autores, o acórdão recorrido não declarou e não reconheceu à sociedade recorrida o direito de superfície sobre os prédios a que aludem, i.e., sobre dois dos prédios por aqueles reivindicados [prédio urbano inscrito na matriz sob o art. 640 e prédio rústico]. O que o dito acórdão fez foi coisa diferente: entendeu que a ré, ao construir nesses prédios, praticou actos qualificáveis como de constituição, por usucapião, de um direito de superfície sobre as edificações que ela, ré, neles levantou, por resultar da matéria dada como provada que as referidas edificações constituem implantação e manutenção de obra em terreno alheio, verificando-se os requisitos da usucapião: à vista de toda a gente, sem oposição do proprietário do solo, há mais de 20 anos, sem que a autora e antepossuidores tenham questionado a realização dessas obras, sendo que, neste contexto, o animus da ré incide sobre as próprias construções que ali edificou, e não sobre o solo ou sobre os prédios tal como se encontram descritos no registo. E nem sequer reconheceu à ré a titularidade desse direito de superfície: limitou-se a valorá-lo no âmbito da defesa por excepção deduzida pela ré, como causa impeditiva do direito dos autores à restituição dos prédios reivindicados, não lhe reconhecendo qualquer eficácia no âmbito do pedido reconvencional. Postas, assim, as coisas no seu devido lugar, entendemos que não se verifica a apontada nulidade. A ré deduziu defesa por excepção, alegando um conjunto de factos que valorou, juridicamente, de uma certa forma: entendeu que deles decorria, para si, a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre os prédios reivindicados pelos autores [recte, pela autora]. Mas, como é sabido, e decorre directamente do disposto no art. 664º do CPC, o juiz, embora, como regra, só possa servir-se dos factos alegados pelas partes, não está sujeito às alegações destas no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Vale isto dizer que, pelo que respeita ao direito, o juiz pode ir buscar regras diferentes das invocadas pelas partes (indagação), pode atribuir às regras invocadas pelas partes sentido diferente do que estas lhes deram (interpretação), ou fazer derivar das regras de que as partes se serviram efeitos e consequências diversas das que estas tiraram (aplicação). E foi o que, no caso, fez a Relação: operou uma mera convolação jurídica dos factos excipientes, valendo-se do disposto no citado art. 664º, dentro de cujos limites se manteve. Quando muito, poderia imputar-se-lhe a violação da regra, com assento no n.º 3 do art. 3º do mesmo Código, que proíbe as decisões-surpresa, uma vez que a qualificação jurídica que adoptou não correspondeu à previsão das partes, expressa ao longo do processo; contudo, disso não se queixou nenhuma destas. Mas não pode falar-se em condenação em objecto diverso do pedido – pela simples mas decisiva razão de que condenação (no pedido reconvencional) não houve. E, por isso, por inverificada se tem de haver a alegada violação dos arts. 3º/1, 661º/1 e 668º/1.e) do CPC. Quanto à invocada violação do art. 1290º do CC, alegadamente geradora da nulidade a que alude o art. 668º/1.c) do CPC, ela assenta no equívoco, já assinalado, em que se enredam os autores/recorrentes: o acórdão não declarou nem reconheceu à ré/recorrida o direito de superfície, adquirido por usucapião, sobre os dois prédios reivindicados, antes e apenas valorou, em sede de defesa por excepção por ela deduzida, os factos que resultaram provados, qualificando-os como susceptíveis de integrarem a constituição de um direito de superfície sobre as edificações neles levantadas pela mesma ré, com efeitos impeditivos do direito dos autores à restituição dos prédios. Quanto ao mais, o acórdão é claro no reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre (todos) os prédios reivindicados. É, pois, manifesta a improcedência do recurso dos autores, quando analisado pelo prisma das invocadas nulidades. Porém, da conclusão 5ª da sua alegação intui-se que os autores sustentam ainda que houve erro de julgamento, por não se verificarem os requisitos do declarado direito de superfície, adquirido por usucapião. E isso melhor se infere do modo como finalizam a sua alegação de recurso, em que pedem a anulação do acórdão recorrido ou, caso assim se não entenda, seja o mesmo revogado, sendo confirmada integralmente a sentença da 1ª instância. Ou seja: o que os autores pretendem é que a ré seja condenada a restituir-lhes todos os prédios (como decidiu a sentença da 1ª instância) e não apenas um (como resulta do acórdão da Relação), a pretexto de que o fundamento invocado no acórdão recorrido para negar a restituição de dois deles – o direito de superfície, constituído por usucapião – se não verifica. Dada a relação que existe entre esta questão e a segunda questão que emerge do recurso da ré, analisá-las-emos em conjunto, na parte final deste acórdão. 3.2. Vejamos, então, o recurso da ré. 3.2.1. No acórdão recorrido considerou-se que BB, anterior proprietário dos prédios reivindicados, os afectou à sociedade ré para que esta os utilizasse no âmbito da respectiva actividade comercial, não se provando que, com a referida afectação, quisesse transferir a posse dos prédios para a ré. Teve-se ainda como certo que a ré utilizou esses prédios a coberto dessa afectação, não tendo iniciado uma posse em nome próprio, presumindo-se, assim, que a posse continuou em nome de quem a começou, o aludido BB. E também a ré não provou que, durante o alargado período em que vem utilizando os prédios, tenha invertido o seu título de posse, não se inferindo dos autos elementos que permitam concluir por uma actuação daquela, sobre os prédios, psicologicamente dissociada do acto de afectação dos mesmos às finalidades dela, ré, por BB. Os actos materiais de transformação e adaptação que a ré realizou nos prédios – que não são actos de mera utilização destes – foram efectuados, na tese da Relação, ainda em vista da utilização latitudinária que lhe fora consentida por BB e sempre com o conhecimento e a aquiescência dele e dos que lhe sucederam, pelo que não pode ver-se nessa actuação transformativa uma manifestação inequívoca de inversão do título de posse. O enquadramento mais consentâneo com a vontade normativa das partes, à luz dos ditames da boa fé, para a detenção que a ré vem fazendo dos prédios em causa, será, segundo a Relação, reconduzi-la ao âmbito do contrato de comodato – um comodato precário, já que dos autos não é possível aferir a delimitação temporal da afectação dos ditos prédios às finalidades da ré. Daí resultaria o direito dos autores de fazer cessar o contrato em qualquer altura, e o consequente direito à restituição dos prédios – solução que a Relação afastou apenas por considerar, como já vimos, a constituição de um direito de superfície, com fundamento em usucapião, sobre as edificações neles implantadas pela ré. Ora, a ré questiona a qualificação jurídica da cedência dos prédios, entendendo que existe um conjunto de factos provados que não toleram o enquadramento dessa cedência no regime jurídico do comodato, deles decorrendo, ao invés, a prova dos requisitos necessários para a aquisição por usucapião, por ela, do direito de propriedade sobre os mesmos prédios, seja por decorrência directa desses factos, seja, quando menos, por presunção judicial a extrair de tais factos. É, porém, seguro que lhe falece razão. A usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos reais de gozo – entre eles o direito de propriedade – que depende da verificação de dois requisitos: a posse e o decurso de um certo lapso temporal. É o que decorre do disposto do art. 1287º do CC: A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião. A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art.1251º do CC). Essa actuação – a actuação de facto correspondente ao exercício do direito, por parte do possuidor – constitui, nos termos do citado art. 1251º, o elemento essencial da posse, o corpus. Este normativo não contém explícita referência ao elemento subjectivo – o animus – que, porém, decorre de outras normas do Código, designadamente do art. 1253º. Na verdade, o nosso Código consagra a concepção subjectiva da posse: além do corpus exige-se, para que de posse se possa falar, a existência do apontado elemento subjectivo, o animus. O que vale dizer que, para que haja posse, não basta o simples poder de facto sobre a coisa: é ainda necessário que haja, por parte do detentor, a intenção (o animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre ela, e não um mero poder de facto. E assim, não são considerados possuidores, mas meros detentores ou possuidores precários, os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, bem como os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito, e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem (citado art. 1253º) – tudo situações em que falta o animus possidendi. Ora, perscrutando a matéria de facto a que a recorrente alude – a constante dos n.os 11, 20, 24 a 37, 40 a 44 e 47 a 59 – não vemos que dela resulte que a posse por esta exercida sobre os prédios tenha sido actuada como se deles fosse proprietária ou que, ao fazer as obras que levou a cabo, quisesse pôr em causa a propriedade deles. Ademais, essa factualidade não pode ser considerada isoladamente, sem que se tenham em conta outros factos que também fazem parte do acervo factual apurado; e a matéria que consta dos n.os 12, 18, 19, 21, 22, 23 e 49, conjugada com aquela a que a ré faz apelo, não revela mais do que uma situação que tem por base um título do qual apenas resulta, quando muito, o direito (obrigacional) da ré de reter e de utilizar os prédios, sem jamais pôr em causa a propriedade destes. Em suma: o que a matéria de facto, globalmente considerada, revela é uma posse precária por parte da ré, suportada na mera tolerância do(s) proprietários, justificada por em causa estar uma sociedade familiar, cujos sócios eram os donos dos prédios e foram, por isso, mantendo uma atitude de permissão e aceitação das obras realizadas pela ré, mas sempre tratando os prédios como seus. Não se verifica, pois, o requisito da posse, tal como o configura a nossa lei, para que possa defender-se – directamente ou com base em presunção judicial – a aquisição por usucapião, por parte da ré, do direito de propriedade sobre os prédios aqui em causa, improcedendo o que consta das conclusões 1ª a 5ª e 7ª (ut supra) da alegação da ré/recorrente. 3.2.2. E é agora o momento de analisarmos o invocado erro de julgamento do acórdão recorrido, no reconhecimento do direito de superfície, constituído por usucapião, como impeditivo da restituição de dois dos prédios reivindicados, e a matéria da conclusão 6ª da ré, que refere que a restituição do outro prédio, determinado na sentença da 1ª instância e confirmada pelo acórdão recorrido, integraria um abuso do direito, com a consequente violação do disposto no art. 334º do CC. O objectivo dos autores é, pois, que seja decretada – com o reconhecimento da inexistência do falado direito de superfície – a restituição dos dois prédios, inviabilizada pelo acórdão recorrido; ao invés a ré, que tem a seu favor, nessa parte, a decretada absolvição do pedido de restituição desses dois prédios, pretende alargar esse efeito (de não restituição) ao terceiro prédio (o urbano inscrito na matriz respectiva sob o art. 567), com o fundamento de que tal restituição envolveria abuso de direito. Comecemos pela primeira parte da questão: a de saber se se verifica o decretado direito de superfície. Nos termos do art. 1528º do CC, o direito de superfície pode constituir-se por contrato, testamento ou usucapião. No que toca à constituição por usucapião, a que são aplicáveis as regras já acima traçadas (sub 3.2.1.) interessa ter em conta a distinção – que a nossa lei não faz claramente – entre direito de construir sobre prédio alheio e direito sobre o prédio construído separado do solo. Na definição legal, o direito de superfície consiste na faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações (art. 1524º CC). Mas, na noção de direito de superfície cabe não só o direito de construir, de efectuar a construção ou de plantar em terreno alheio (concessão ad aedificandum ou ad plantandum), como também o direito sobre a construção já existente em terreno alheio. Ora, compreende-se facilmente uma usucapião do direito de superfície, visto como direito sobre uma construção já existente separada do solo: pode, na verdade, uma pessoa exercer actos de posse sobre uma casa que está construída, e exercê-los com animus não de proprietário pleno mas de superficiário. Imagine-se que foi constituída, por escritura, um direito de superfície sobre a casa separada do solo, mas o título constitutivo é nulo. Esse indivíduo não adquiriu a superfície, mas passou a possuir a casa nesses termos e com o respectivo animus; ao fim de um certo número de anos pode adquirir por usucapião o direito de superfície, pode adquirir um direito sobre aquela casa separada da propriedade do solo. Dúvidas, porém, já se suscitam quanto à possibilidade de adquirir por usucapião o direito de construir. Para adquirir por usucapião o direito de construir seria necessária a verificação do requisito essencial, que é a posse. Ora, se se compreende imediatamente a posse sobre a casa separada do solo, já o mesmo não acontece em relação à posse do direito de construir. O que é a posse do direito de construir? Quais os actos em que se traduz esta posse? Parece que só se pode possuir ... construindo. É, apesar de tudo, configurável uma situação de posse do direito de construir. Em hipótese paralela à acima referenciada, imagine-se que um indivíduo confere a outro, por acto nulo por falta de forma (v.g., por contrato verbal), o direito de construir sobre solo de que é proprietário. Estoutro indivíduo não adquire o direito de superfície, dada a falta de forma; mas ao fim de um determinado tempo pode adquiri-lo por usucapião, porque este acto, nulo por vício de forma, se não lhe transmitiu um verdadeiro direito, é todavia um título que mostra ter-se transferido a posse desse direito (1).. Pois bem! No caso em apreço, não vemos, no complexo fáctico que vem dado como assente, onde possa fundar-se uma posse, por parte da ré, exercida à imagem de um direito de superfície. Não se vê, isto é, que no exercício dos poderes de facto sobre as edificações em causa, tenha a ré agido com a intenção de actuar esses poderes como titular do direito de superfície. A própria Relação não deixou de dar-se conta dessa dificuldade, precisamente quanto ao animus possidendi, ao reconhecer que a ré “excepciona a acção na base do direito de propriedade”. E aqui reside, a nosso ver, a “prova provada” de que não se verifica, designadamente pela falta do animus respectivo, uma posse conducente à usucapião, tendo por referência o direito de superfície. É a própria ré que, de modo inequívoco, afasta essa conclusão, ao afirmar um animus diferente, não sendo de sufragar a afirmação, todavia indemonstrada, do acórdão recorrido, de que “os factos alegados e provados a seu favor suportam a qualificação jurídica do direito de superfície”. Entendemos, pois, ser de afastar a aludida qualificação jurídica, que é a do acórdão recorrido. Mas, decorrerá do que vem de ser dito que, tal como decretou a sentença da 1ª instância, deverá ordenar-se a restituição dos prédios reivindicados aos autores? Quanto ao invocado abuso de direito, cabe referir que o acórdão recorrido afastou a sua verificação no caso em apreço, ponderando que “perante as circunstâncias em que a ré tem vindo a actuar, sob o conhecimento e aquiescência dos sucessivos titulares dos prédios em causa, não podia legitimamente criar a expectativa de consolidação da sua posição jurídica sobre os referidos prédios”. Não temos por acertada esta posição da Relação. Foram, afinal, os antecessores dos autores, donos dos prédios, que criaram a concreta situação que se verifica. Afectaram os prédios ao serviço da sociedade por eles criada, e permitiram que, nesses prédios, fossem sendo edificadas várias construções, com que a ré foi ajustando e adequando o exercício das suas actividades. Os autores, ao peticionarem a restituição dos prédios, “livres e devolutos” – o que implicaria a destruição das construções neles efectuadas pela ré e a privação desta, sem fundamento sério, do local onde exerce a sua actividade – actuam, notoriamente, contra factum proprium, e ofendendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, e em clamorosa violação do princípio da confiança, ou seja, em claro abuso do direito, nos termos do disposto no art. 334º do CC. E esta conclusão vale para os três prédios reivindicados, não apenas para aquele (o inscrito na matriz sob o art. 567) a que, no presente recurso, a ré – respaldada na decisão da Relação, que afastara a restituição dos dois outros aos autores – limitou a sua pretensão. Na verdade, como é entendimento assente da doutrina e da jurisprudência, a circunstância de as partes não terem invocado o abuso do direito não obsta a que o tribunal dele conheça oficiosamente: o abuso do direito é de conhecimento oficioso. Basta, para tal ilustrar, referir o pensamento do Prof. VAZ SERRA (2). e o entendimento expresso, entre outros, nos acórdãos deste Supremo Tribunal, de 26.03.80, de 04.07.80, de 07.01.93, de 31.10.2006 e de 06.11.2007(3). Mas, dito isto, cremos que se pode ir ainda mais além. Na verdade, o que ocorre, no caso em análise, é – pelo menos no que tange ao prédio rústico – uma situação de construção de obra própria (por parte da sociedade ré) em terreno alheio (terreno dos antecessores dos autores e, agora, destes), situação contemplada no art. 1340º do CC, ou seja, no domínio da acessão industrial imobiliária. E, tendo as obras e edificações sido efectuadas com autorização dos antecessores dos autores, deve concluir-se ter a ré agido de boa fé (n.º 4 do citado art. 1340º). Ora, nestes casos, a lei (n.os 1, 2 e 3 do mesmo normativo) decide sobre a propriedade do conjunto (obras mais terreno) de acordo com o valor relativo dos elementos que o integram. E assim, esse conjunto, formado pela obra e respectivo terreno, pertencerá ao dono da obra, desde que o acrescimento de valor directamente trazido pela dita obra ao conjunto seja superior ao valor primitivo do terreno, pagando o autor da incorporação a quantia correspondente a este valor, para se não enriquecer à custa do dono do terreno. Se, ao invés, o valor primitivo do terreno superar o valor que a obra aditou ao conjunto, o dono do terreno faz sua a obra, indemnizando o autor dela pelo valor desta ao tempo da incorporação. Vistas as coisas a esta luz, deverá concluir-se que, não obstante o reconhecimento do direito de propriedade invocado pelos autores sobre este terreno rústico, o pedido de restituição de tal terreno, com a necessária demolição das construções nele edificadas pela ré, não poderia lograr atendimento. E não podia, desde logo porque, em casos destes – de construção de obra própria em terreno alheio – o dono do terreno só pode exigir a destruição da obra quando ela tiver sido feita de má fé (art. 1341º CC), o que não é, manifestamente, o caso, pois as obras foram feitas – repete-se – com o conhecimento e o consentimento dos antecessores dos autores, e, consequentemente, de boa fé. Assim, tendo a obra sido construída de boa fé – o que a autora não podia ignorar quando propôs a acção – não poderia ela deixar de reivindicar o conjunto obra/terreno, e alegar que o terreno era de valor superior ao acréscimo de valor que a este foi trazido pelas obras, e que estava em condições de pagar à ré a indemnização pelo valor das obras ao tempo da incorporação. Como não alegou nenhuma destas circunstâncias e se limitou, estranha e censuravelmente, a reivindicar o terreno, “livre e devoluto”, como se as obras nele efectuadas não existissem ou como se, pelos seus antecessores, nada tivesse a ver com a sua implantação, a acção teria, fatalmente, de improceder. E isto não apenas porque, tal como foi instaurada, a acção representou o exercício abusivo de um direito, mas também porque a autora, nas condições em que se apresentou a propor a acção – e a que, mais tarde, o seu cônjuge aderiu – apesar de ser dona do terreno a que vimos aludindo, não tinha o direito que invocava: não podia exigir a demolição das obras nele efectuadas, porque estas, como vimos já, não foram feitas de má fé (cfr. art. 1341º CC); e não podia reivindicar o conjunto existente (e que ela, autora, não podia ignorar), por não ter alegado os pressupostos indispensáveis à titularidade desse direito, nos termos definidos no art. 1340º do mesmo diploma (4).. Dir-se-á, porém, que o que vem de ser referido não logra aplicação tão indiscutível relativamente aos dois prédios urbanos reivindicados. Na verdade, não se desconhece o entendimento de quem sustenta que apenas as incorporações sobre o terreno são de considerar abrangidas pelas regras do instituto da acessão industrial imobiliária, sendo a regra do n.º 1 do art. 1340º do CC insusceptível de interpretação extensiva para dar ao inciso «terreno» o significado de «prédio» e de aplicação analógica ao caso de construção de obra sobre edifício alheio (5). Todavia, não falta também jurisprudência que entende que o direito de acessão industrial imobiliária se verifica não apenas quando – como no caso em apreço, relativamente ao prédio supra aludido – as obras realizadas se incorporam em prédio rústico, mas também quando elas se incorporam em prédio urbano alheio (6), e doutrina que lhe serve de suporte (7)”. ; e mesmo naquela primeira tese, “as obras profundas e inovadoras em prédio alheio, com aproveitamento de construção preexistente (...) não estão excluídas da previsão do art. 1340º, n.º 1, dependendo da presença, nelas (obras), daquele quid (inovação) que acresce à melhoria inerente a toda a benfeitoria” – o que parece ser o caso vertente (obras profundas e inovadoras nos ditos prédios urbanos, feitas pela ré – cfr. n.os 27 a 29, 30, 37, 42 e 44 dos factos assentes). Assim, as considerações que acima deixámos expressas quanto às construções efectuadas pela ré no terreno rústico, logram também aplicação no que concerne às que levou a cabo nos dois urbanos, e conduzem às mesmas consequências. 4. Nos termos que se deixam expostos, improcede o recurso dos autores e procede, em parte, o recurso da ré.E, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que julgou procedente a excepção peremptória fundada na usucapião do direito de superfície quanto aos edifícios implantados nos dois prédios – um urbano e outro rústico – mencionados no dito acórdão, bem como na parte em que confirmou a decisão da 1ª instância quanto ao pedido de indemnização, a liquidar posteriormente, quanto ao prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 567; e decide-se, sem prejuízo do direito de propriedade dos autores sobre os prédios reivindicados, julgar improcedente o pedido daqueles, de restituição de tais prédios, “livres e devolutos”, não só por tal pedido representar o exercício abusivo do seu direito, nos termos sobreditos, mas também porque a autora, no condicionalismo em que se apresentou a litigar – e a que, mais tarde, o seu cônjuge aderiu – apesar de ser dona dos aludidos prédios, não tinha o direito que reclamava: não podia exigir a demolição das obras nele efectuadas, porque estas, como vimos já, não foram feitas de má fé, e não podia reivindicar o conjunto existente (prédios mais obras, que ela, autora, não podia ignorar), por não ter alegado os pressupostos indispensáveis à titularidade desse direito, nos termos definidos no art. 1340º do Cód. Civil. No mais, confirma-se o acórdão recorrido. Custas, aqui e nas instâncias, pelos autores e pela ré, na proporção de ¾ e ¼, respectivamente. Lisboa, 03 de Julho de 2009 Santos Bernardino (Relator) Bettencourt de Faria Pereira da Silva __________________________________ (1) - Cfr. Prof. MOTA PINTO, Direitos Reais, prelecções ao 4º ano Jurídico de 1970/71, coligidas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Liv. Almedina, págs. 297/299, que aqui seguimos muito de perto. (2) - Na Rev. Leg. Jur., ano 112º, págs. 131/132. (3) - Os dois primeiros no BMJ 295/426 e BMJ 299/320, o terceiro na Col. Jur. (Acs. do STJ) ano I, tomo I, pág. 5, e os dois últimos proferidos no Proc. n.º 06A3241 e no Proc. n.º 07A2960, respectivamente, e ambos disponíveis em www.dgsi.pt. (4) - Cfr. neste sentido a anotação de ANTUNES VARELA ao ac. do STJ de 16.06.83, na Rev. Leg. Jur. ano 120º, págs. 214 e ss., maxime a fls. 222/224, que aqui seguimos de muito perto. (5) - Cfr. A. QUIRINO DUARTE SOARES, Construção de obra sobre edifício alheio, em Cadernos de Direito Privado, n.º 12 Out./Dez. 2005, págs. 3 e ss. (6) Cfr. os Acs. STJ de 17.03.98, no BMJ 475/690 e de 12.02.2004, consultável em www.dgsi.pt. (7) Cfr. a anotação de ANTUNES VARELA ao primeiro dos acórdãos citados na nota anterior, na Rev. Leg. Jur. ano 132º, pág. 255; e esse parece ser também o entendimento de MENEZES CORDEIRO, na sua obra Direitos Reais, II vol., Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1979, pág. 718, onde escreve que a acessão industrial imobiliária é “genericamente definível como a união ou incorporação em prédios (imóveis) de coisas alheias por acção do homem”. |