Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14732/20.3TSPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
MEDIDA DE CONFIANÇA COM VISTA À FUTURA ADOÇÃO
LEI DE PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO
MATÉRIA DE FACTO
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
PRÍNCIPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA ATUALIDADE
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Data do Acordão: 12/12/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONDEDIDA A REVISTA
Sumário :
Se os factos provados não evidenciarem com segurança e certeza mínimas que os menores se encontravam em perigo não pode o tribunal aplicar a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

l. O Ministério Público intentou os presentes autos de promoção e proteção relativamente aos menores:

a) AA, nascido em .../10/2014;

b) BB, nascido em .../11/2008;

c) CC, nascido em .../02/2020;

d) DD, nascido em .../12/2021.

Os mesmos são filhos de EE, nascida em .../12/1981, em ... e de FF, nascido em .../08/1986, em ....

2. Depois do envio do processo para Tribunal, por sentença de 03/12/2020, foi aplicada medida de promoção e proteção de apoio junto dos progenitores, a ser executada junto da progenitora, no que se refere aos menores AA e BB.

3. Realizou-se perícia de avaliação psicológica à progenitora.

Por despacho de 28/04/2022 foi aplicada, em favor das crianças, e de forma cautelar, a medida de acolhimento residencial.

Realizou-se debate judicial, tendo sido nomeadas patronas às crianças e ao progenitor.

Foi decidido, nos termos dos artigos 62.º, n.º 1 e 3, b) e 35.º, n.º 1, g), da L. P. C. J.:

. alterar a medida aplicada em relação a AA, nascido em .../10/2014, do BB, nascido em .../11/2008, da CC, nascida em .../02/2020 e do DD, nascido em .../12/2021, aplicando agora a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção.

Nos termos dos artigos 62.º-A, n.º 6, da L. P. P. e 1978.º-A, do C. C., foi determinada a inibição do exercício das responsabilidades parentais por parte dos progenitores da criança e proibidas as visitas da família natural, exceto da irmã GG.

Foi nomeada como curadora da criança a Diretora técnica da Obra ..., atento o disposto no artigo 62.º-A, n.º 5 da L. P. P.

4. Inconformados com o decidido, os progenitores interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 15.06.2023, sem qualquer voto de vencido, decidido:

«julgar improcedentes os recursos intentados por EE e FF, confirmando-se a decisão recorrida».

5. Inconformada veio a progenitora EE interpor recurso de revista excepcional nos termos do artigo 672 n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil e de revista normal nos termos dos artigos 671 e 674 ambos do CPC formulando as seguintes conclusões:

1. O recurso ora apresentado tem na sua génese a decisão do tribunal da Relação do Porto de manter, em sede de recurso, a decisão proferida pelo tribunal a quo de confiar os menores BB, CC, BB e AA a instituição com vista a futura adoção e consequente inibição do exercício das responsabilidades parentais pela progenitora, aqui recorrente, e proibição de visitas.

2. Decisão, que, sem conceder, decidiu o tribunal recorrido manter, não com base no que vem disposto nas alíneas d) e e) do n.° 1 do artigo 1978.° do Código Civil, conforme inicialmente, sustentou o tribunal de julgamento, mas unicamente, com base na al. d) desse mesmo artigo.

3. Contudo, não obstante a alteração interpretativa introduzida, trata-se de decisão com a qual a recorrente não pode concordar, sendo que, o Acórdão recorrido incide sobre matéria de Direito e assume particular relevância social, pelo que, vem apresentar o presente de recurso de revista excecional e normal, nos termos previstos nos artigos 671.°, 672.° n.° 1 b) e 674." todos do Código de Processo Civil.

4. Neste sentido, nomeadamente, // - Considerando que, no caso, estamos perante uma situação em que existe ainda uma ligação afetiva entre o menor, a quem foi aplicada medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção, e a sua mãe e que a rutura definitiva dessa relação pode ser geradora de intranquilidade ou incompreensão social, verifica-se o pressuposto previsto na al. b) do n.º 1 do art. 672.° do CPC conducente à admissibilidade da revista excecional. (Sublinhado e negrito nosso), Ac.STJ de 27-04-2021 disponível em https://www.stj.pt/7page id=4222.

5. Se por um lado, se trata duma decisão que quebra de forma definitiva o contacto de uma mãe com os seus filhos, o que lhe confere a necessária relevância social, fá-lo, por outro lado, de forma perfeitamente, injustificada e desnecessária, o que enfatiza, assim, ainda mais, esse destaque social, e habilita, o presente recurso nas duas modalidades de revista previstas, já que, é também, nesses termos, uma decisão nula e Inconstitucional.

6. O tribunal recorrido erra na subsunção dos factos ao direito, e na aplicação e interpretação, nomeadamente, do artigo 1978.° n.° 1 d) e n.° 2 do Código Civil.

7. Para a decisão adotada, tornava-se necessário que se verificassem dois requisitos, o sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação, e, a colocação da segurança, saúde, formação, educação ou o desenvolvimento dos menores, em grave perigo.

8. Sem conceder, nem os vínculos de filiação foram seriamente, afetados, nem a progenitora colocou gravemente, em perigo, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento dos menores.

9. Vejamos que, é o próprio tribunal recorrido que ao afastar a aplicação da al. e) do artigo acima referido, confirma que a recorrente nutre afeto, preocupação e interesse pelos seus filhos, não se compreendendo assim que julgue depois verificadas as premissas acima referidas da al. d), o que é gerador de nulidade nos termos do artigo 615.° n.° 1 c) e n.° 4 do CPC.

10. São abundantes nos autos os factos que atestam o cuidado da recorrente com o bem-estar, saúde, desenvolvimento e educação das crianças, os quais se encontram demonstrados documentalmente, e não assentam apenas em meros relatos de técnicas desavindas com a progenitora proferidos em audiência de discussão de julgamento, os quais o tribunal de recurso preferiu enaltecer.

11. Sendo que, sem conceder, existem igualmente, depoimentos prestados nessa sede, que descrevem esse mesmo cuidado, conforme se transcreveu supra em sede de alegações, e aqui se consideram por integralmente, reproduzidos.

12. A mencionada decisão violou, assim, vários normativos ordinários e preceitos constitucionais, aos quais já se fizeram referência na apelação apresentada, desde logo, o mais elementar princípio norteador de toda a legislação nacional e internacional aplicável a crianças e jovens, que vem nomeadamente, previsto no artigo 4.° n.° 1 a) da Lei n.° 147/99, de 01 de setembro, que é o do Interesse superior da criança e do jovem.

13. Noticie-se que da sua própria redação se realça a proteção da continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, entre as quais inegavelmente, se incluem a relação com a progenitora.

14. Foram também atentados os princípios orientadores da intervenção previstos na Lei n.° 147/99, de 01 de setembro, da Proporcionalidade e atualidade, do Primado da continuidade das relações psicológicas profundas e o da Prevalência da família.

15. Da mesma forma, o princípio da subsidiariedade, que impõe a aplicação da medida sufragada na decisão recorrida, quando nenhuma das demais medidas previstas couberem ao caso, não foi respeitado.

16. Não se olvide, que a recorrente, ainda que apresente limitações, sempre acompanhou, educou, criou todos os menores durante todo o período que antecedeu a intervenção da comissão de proteção, tendo sido, inclusivamente, a mesma que, em determinado período, reconhecendo que não mais conseguiria assegurar a estabilidade, bem-estar e desenvolvimento destas crianças solicitou que fossem acolhidas em instituição.

17. Isto, ainda que esteja pericialmente, apurado que a recorrente tem uma personalidade de desconfiança, de ceticismo e de resistência em relação a qualquer intervenção exterior junto das crianças que não passe pelo seu crivo.

18. Sendo que, ultrapassadas as vicissitudes pelas quais passou, desde logo, manifestou o seu desejo, disponibilidade, e demonstrou ter condições para reintegrar os seus filhos no seu agregado.

19. Refira-se que, os tribunais recorridos falharam no necessário percurso gradativo para a decisão tomada, sequer do mesmo fizeram menção na sua decisão, não justificando e demonstrando a efetiva e exclusiva necessidade desta medida, tratando-se assim de factualidade em relação à qual se deveriam ter pronunciado, omissão esta que deverá ser cominada em nulidade, que desde já, se argui, nos termos da al. d) do n.° 1 e n.°4 do artigo 615.° do CPC.

20. O recurso de revista normal apresentado pela recorrente tem como fundamento a violação de lei substantiva, por erro de interpretação da norma aplicável (artigo 1978.° n.° 1 d) e n.° 2 do Código Civil), e as nulidades previstas nos artigos 615° n°. 1 alíneas b) a d) por remissão do artigo 666." todos do CPC que, desde já, se arguem.

21. Ao confirmar a decisão recorrida violou os artigos 9.º e 1978° n.° 1 d) e n.° 2 do Código Civil, e o artigo 3.° n.° 2 c) e f) da Lei n.° 147/99, de 01 de setembro por erro de interpretação casuística da norma aplicável.

22. Colocando, assim, sem fundamento, em causa a manutenção do vínculo biológico entre a mãe, aqui recorrente, e os seus quatro filhos, o qual se deve sempre priorizar (artigo 4.° g) e h) da Lei n.° 147/99, de 01 de setembro).

23. A decisão recorrida carece de fundamentação, foram assim violados o artigo 6.° da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, artigos 3° n.° 2, 5.° e 14.° n.° 2 da Convenção sobre os Direitos da Criança, artigo 205.° da Constituição da República Portuguesa, o que a faz padecer de nulidade, nos melhores termos previstos no artigo 615." n.° 1 b) e d do Código de Processo Civil.

24. Os elementos objetivos dos autos imporiam uma decisão diversa, de igual forma, os fundamentos aduzidos estão em contradição com a decisão, bem como, deixou o tribunal recorrido de se pronunciar sobre questões que tinha que se pronunciar, o que, nos melhores termos previstos no artigo 615.° n.° 1 b) a d) e n.° 4 do Código de Processo Civil, fere a decisão recorrida de nulidade que, desde já, se argui.

25. A decisão é igualmente, nestes termos desproporcional e excessiva, e como tal Inconstitucional violando ainda os artigos 2.°, 3°, 8°, 18.° n.° 2, 36° n.°s 5 e 6 todos da Constituição da República Portuguesa, que, nomeadamente, preveem que a restrição de Direitos, Liberdades ou Garantias deverá sempre ocorrer num quadro do mínimo indispensável, padecendo, assim a decisão de Inconstitucionalidade, que igualmente, se aduz.

26. Impor judicialmente, que se elimine definitivamente, a relação biológica principal que é a que existe entre uma mãe e os seus filhos, trata-se de decisão revestida de um intenso relevo social.

27. Sendo inevitável que se gere um maior desconforto e indignação social quando a mesma é decretada, sem que se obedeça aos comandos legais existentes e progressivos previstos para o efeito, conforme se verificou.

28. Ao que ainda a acresce, o facto da relação de filiação afetiva ser intensa, nada justificando que se relegue estas crianças para um incerto e improvável futuro adotivo, atendendo ao seu número, à sua idade e às patologias que já apresentam, para além de todas as demais vicissitudes que, por regra, adornam os processos de adoção.

29. Forçando-os também assim a uma separação entre si, não sendo previsível, que estas crianças atendendo às patologias que apresentam venham a ser, num futuro próximo ou mais distante, adotadas, e não necessitamos da existência de quaisquer estatísticas desta factualidade para assim concluirmos, para tal o tribunal recorrido apenas tinha que se socorrer das regras de experiência comum e, salvo o devido respeito, do mais elementar bom senso, conforme lhe está imposto.

Venerandos Conselheiros,

30. A decisão recorrida fará, da mesma forma, com que estas crianças venham a crescer sem a presença de qualquer figura parental de referência.

31. Sendo que, a recorrente encontra-se, também, disponível e anseia o reingresso dos seus filhos no seu agregado, reunindo as condições para o efeito.

Conclui pedindo que o recurso seja julgado procedente, sendo o Acórdão revogado e substituído por Acórdão que estabeleça e fixe, a residência dos menores junto da progenitora, sujeitando-a, e aos menores, a medidas de apoio nomeadamente, do foro psicológico e aos menores ao acompanhamento médico.

6. Igualmente inconformado veio o progenitor FF interpor recurso de revista excepcional nos termos do artigo 672 n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil, formulando as seguintes conclusões:

1 – Por acórdão proferido pelo Juízo de Família e Menores do ... – Juiz 4, no âmbito do Processo nº 14732/20.3..., foi decidido alterar a medida aplicada em favor dos menores AA, BB, CC e DD, aplicando a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção.

2 – O Recorrente, não se conformando com o referido Acórdão, do mesmo interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida – o Recorrente, não se podendo conformar com a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, da mesma interpõe o presente Recurso de Revista excecional.

3 – Estamos certamente perante interesse de particular relevância social, uma vez que, está em causa a vida de quatro menores (com idades compreendidas entre os oito e os dois anos de idade), dois dos quais diagnosticados com espetro do autismo (e com probabilidade de mais um deles padecer do mesmo problema), cuja relação afetiva com os seus progenitores que poderá vir a ser quebrada definitivamente caso se venha a confirmar a medida de promoção e proteção aplicada.

4 – Está em causa a ponderação da verificação dos pressupostos da aplicação da medida de confiança de menores a instituição com vista a futura adoção e consequente inibição do exercício das responsabilidades parentais pelos progenitores.

5 – Ou seja, no cerne destes autos está o corte irremediável e definitivo da relação biológica e primária dos pais para com estes menores, pelo que, e salvo o devido respeito por opinião diversa, a matéria em causa é de relevo social.

6 – Assim, atendo o relevo social da matéria em causa, estão verificados os pressupostos da alínea b), do nº 1, do artigo 672º do CPC, pelo que a presente Revista Excecional deve ser admitida.

7 – Da fundamentação: A aplicação da medida de confiança a instituição com vista à adoção pressupõe que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, fruto da verificação objetiva de uma das situações elencadas no artigo 1978º do Código, que, no Acórdão de que se recorre, foi a alínea d).

8 – Relativamente ao primeiro dos pressupostos – inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afetivos próprio da filiação –, nem o Tribunal ad quem, nem o Tribunal de julgamento foram sensíveis ao facto de, quando estes menores foram institucionalizados, a CC tinha apenas 2 anos de idade e os DD cinco meses, ou seja, eram crianças de muita tenra idade e com pouca perceção da realidade.

9 – Acresce que, o AA e o BB foram diagnosticados com perturbação do espectro do Autismo e existem fortes probabilidades de a CC também ser portadora de tal perturbação.

10 – Contemporânea da institucionalização dos menores está a prisão do progenitor, com todas as limitações e consequências que isso acarreta para os contactos e convívios entre pai e filhos (que, diga-se, são nulos).

11 – Em face do que se acabou de dizer, é normal e compreensível que atualmente estas crianças não façam referência ao pai, quando estão afastadas/privadas do seu progenitor há algum tempo, sem que a figura do mesmo seja mencionada pelas técnicas.

12 – Mas não podemos daí concluir que não exista relação mútua entre pai e filhos e que os vínculos afetivos entre eles estejam seriamente comprometidos – se não fosse este contexto, seria bem possível/provável que existisse hoje uma ligação afetiva sólida e saudável entre o pai e as crianças, até porque, era também o pai que, até à sua prisão, cuidava destas crianças.

13 – Já o segundo pressuposto, que respeita à colocação da segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento dos menores em grave perigo, o Tribunal ad quem afastou a aplicação da alínea e), do nº 1, do artigo 1978º do Código Civil (que havia sido aplicada pelo Tribunal de Julgamento para sustentar a sua decisão), mas entendeu verificada a alínea e) do indicado normativo legal.

14 – Acontece que, a decisão recorrida carece de fundamentação bastante no que ao progenitor diz respeito, tirando meras ilações de um facto provado [facto ll)] – carecendo de suficiente suporte probatório para o efeito –, mas sem olhar para o que resulta em concreto dos autos no que diz respeito aos cuidados que o progenitor prestava aos seus filhos enquanto estava em liberdade.

15 – Nesse sentido, o Tribunal ad quem olvidou o facto eee) também dado como provado pelo Tribunal de julgamento, a saber: “Era o progenitor das crianças quem assegurava maioritariamente o cuidado destas até à sua prisão.” – matéria factual dada como provada que não foi objeto de qualquer censura ou alteração pelo Tribunal ad quem.

16 – Sendo certo que, assegurar os cuidados de uma criança é certamente atender às suas necessidades, sejam afetivas, alimentícias, de higiene, de saúde, entre outras.

17 – Em face disto, podemos concluir que o Progenitor sempre fez de tudo para estar próximo dos seus filhos, cuidar dos mesmos, acompanhar as suas rotinas e auxiliar a mãe no que necessário fosse.

18 – Antes de ser preso, o pai sempre foi um pai presente, sempre demonstrou preocupação e uma participação ativa na vida dos filhos; o progenitor sempre foi um bom pai para os seus filhos.

19 – O progenitor – como também a progenitora – sempre manifestou a sua oposição a que os seus filhos fossem para adoção, estando disposto a assumir a educação e os cuidados dos mesmos.

20 – Este pai sempre foi afastado de todo o processo de promoção e proteção dos seus filhos, nunca foi chamado ou contactado e, mesmo assim, não desistiu dos seus filhos e mantém-se firme no propósito de querer criar as condições necessárias para os seus filhos crescerem junto a si.

21 – Certamente ter um emprego não é suficiente para que as crianças sejam confiadas a este pai, mas é um princípio de que o progenitor está na disposição de encaminhar a sua vida e criar todas as suas condições para, ou acolher as crianças no seu agregado familiar ou prestar todo o apoio de que a mãe necessitar – começando por arranjar um trabalho para satisfazer as necessidades dos mesmos, o que é aliado ao cuidado que ele já prestava aos seus filhos antes de estar preso.

22 – O contexto factual dos presentes autos, em conjugação com os princípios orientadores da intervenção do Estado previstos no artigo 4º da Lei nº 147/99, de 01 de setembro, nomeadamente os princípios do interesse superior da criança, proporcionalidade, responsabilidade parental, primado da continuidade das relações psicológicas profundas, prevalência da família, impunham decisão diversa da tomada pelos Tribunal ad quem e de Julgamento.

23 – Acresce que, estamos perante quatro irmãos, dois dos quais já diagnosticados com Espectro de Autismo e os outros dois com suspeitas de também padecerem do mesmo problema e, perante as patentes dificuldades de se encontrar candidatos que adotem estas crianças, quer em conjunto, quer isoladamente, a aplicação da medida de confiança a instituição com vista à adoção vai acabar por criar uma situação de institucionalização prolongada, privados dos seus progenitores – afirmação corroborada pelo relatório constante a fls. 498 a 500.

24 – Assim, a decisão tomada pelos Tribunal ad quem e de julgamento violou ainda o primado da continuidade das relações psicológicas profundas (artigo 4º, nº 1, alínea a) da Lei n.º 147/99, de 01 de setembro).

25 – Estas crianças têm um pai e uma mãe que querem assumir as funções parentais, pese embora com o apoio da comunidade/serviços competentes, pelo que, a decisão tomada pelo Tribunal ad quem e de julgamento são desproporcionais e excessivas.

26 – Em suma, nenhum dos dois pressupostos objetivos em que se alicerçou a decisão ora sob recurso se verificaram e resultaram provados, sendo que, não se verificando no caso concreto os requisitos legais para aplicação da medida de confiança a instituição com vista à adoção, os Tribunais ad quem e de Julgamento fizeram uma errada subsunção dos factos ao direito violando, entre outros, o disposto no artigo 4.º a), e), g) e h), 35º, ambos da Lei n.º 147/99, de 01 de setembro.

27 – A decisão recorrida carece de fundamentação, foram assim violados o artigo 6.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, artigos 3.º n.º 2, 5.º e 14.º n.º 2 da Convenção sobre os Direitos da Criança, artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, o que a faz padecer de nulidade, nos melhores termos previstos no artigo 615.º n.º 1 b) e d) e n.º 4 do Código de Processo Civil, o que, desde já, se argui, e igualmente, de Inconstitucionalidade, o que, se aduz.

28 – A decisão recorrida viola ainda os artigos 1978º do Código Civil, artigos 2º, 3º, 8º, 18º, nº 2, 36º, 67º e 68º, todos da Constituição da República Portuguesa.

29 – Pelo que, o Douto Acórdão de que ora se recorre deverá ser revogado por um outro em que se determine a aplicação da medida de acolhimento residencial, ao abrigo do disposto no artigo 35º, nº 1, alínea f) da LPCJP, confiando as crianças à guarda e aos cuidados da Casa de Acolhimento da Obra ... – Lar ..., onde já se encontram, até a concessão da liberdade condicional do progenitor, ou caso assim não se entenda, até que a mãe demostre nos autos reunir todas as condições em continuar com os seus filhos.

Conclui pedindo que seja dado provimento ao recurso

7. O Ministério Publico apresentou contra-alegações concluindo que:

«a) Deverão ser indeferidas as nulidades do Acórdão arguidas pelos recorrentes;

b) Deverá ser rejeitada a Revista normal interposta pela recorrente EE;

c) Deverão ser julgadas totalmente improcedentes as Revistas excecionais interpostas pelos recorrentes e, consequentemente, ser mantido o douto Acórdão recorrido».

8. Uma vez que os Recorrentes alegaram nas conclusões de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a nulidade do acórdão recorrido, por violação do disposto nas als. c) e d) do art. 615º do CPC, o Tribunal da Relação pronunciou-se, em Acórdão, sobre tais nulidades, indeferindo-as.

9. Por despacho de 10 de Outubro de 2023, após se ter apreciado a verificação de dupla conforme, foi decidido remeter os presentes autos à formação prevista no n.º 3 do artigo 672 do CPC.

K) Por Acórdão da Formação deste Supremo Tribunal de Justiça, a que alude o artigo 672 n.º 3 do Código de Processo Civil, foi decidido que:

«Atribuem os recorrentes relevância social à aplicação aos menores da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção, por implicar um corte irremediável e definitivo da relação biológica dos pais para os seus filhos.

No caso, as instâncias entenderam, convergentemente, que entre as crianças e os recorrentes se encontram comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, não se vislumbrando no seio da família biológica alargada dos menores, alternativas viáveis para assegurar o seu bem-estar e desenvolvimento.

Neste conspecto, sublinhou o Tribunal a quo: “Por isso, entre optar por uma vida de acolhimento ou de permanente apoio aos pais, que até hoje não revelaram serem capazes de cuidar dos seus filhos, seja adotando uma conduta conforme as regras de vida em sociedade, seja perante os atos (ou omissões) que (não) praticam em relação aos filhos, ou optar pela esperança de as crianças encontrarem uma família com quem possam criar efetivamente tais laços, pensamos que a escolha deve recair nesta última pois a infância rapidamente irá desaparecer e sabe-se o quanto marca o que sucede neste período no restante tempo de vida.”

Como tem sido afirmado inúmeras vezes por esta Formação, o debate sobre a colocação de menores, em vista à futura adoção, numa instituição social de acolhimento de menores, e a própria cessação de contactos dos menores com os seus familiares, decorrente da decretada inibição do exercício das responsabilidades parentais, encerram questões cuja resolução pode interagir com comportamentos e valores sociais relevantes, assumindo importância na estrutura e relacionamento sociais, porque implica a quebra dos laços afetivos dos menores com a sua família natural, tendo evidente repercussão fora dos limites da causa, justificando-se, assim, a excecionalidade da revista e o acesso ao terceiro grau de jurisdição.

Efetivamente, como fez notar o acórdão da Formação datado de 27 de abril de 2021, proferido no âmbito do Processo n.º 2389/15.8..., ainda que “tanto o superior interesse da criança como a definição do perigo para o menor a tutelar são conceitos indeterminados que se encontram hoje suficientemente balizados pela jurisprudência e cuja densificação depende das específicas circunstâncias de cada caso”, o certo é que a relevância da delineação de um projeto de vida de quatro crianças com idades inferiores a 10 anos, duas delas diagnosticadas com a perturbação do espectro do Autismo, em articulação com a intranquilidade ou incompreensão sociais que o decretamento da rutura definitiva de uma relação filial sempre causa, apresentam-se como circunstâncias integradoras do pressuposto previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 672º do Código de Processo Civil, justificativas da excecionalidade da revista e da outorga de um duplo grau de recurso».

E, após reconhecer «que as circunstâncias que rodeiam a solução do caso importam que a par do interesse subjetivo dos recorrentes, existe um interesse público na admissão da revista, exigindo a intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça», concluiu:

«Pelo exposto, admite-se a interposta revista excecional».

II – FUNDAMENTAÇÃO

A factualidade provada é a seguinte

a) No dia ... de Outubro de 2014 nasceu o AA, tendo a paternidade e a maternidade registadas em nome de FF e EE, respectivamente;

b) Sendo que, por sentença proferida em 25/09/2017, foi homologado acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, tendo sido fixada a residência junto da mãe;

c) No dia ... de Novembro de 2018 nasceu o BB, tendo a paternidade e a maternidade registadas em nome de FF e EE, respectivamente;

d) No dia .../02/2020 nasceu a CC, tendo a paternidade e a maternidade registadas em nome de FF e EE, respectivamente.

e) No dia .../12/2021 nasceu o DD, tendo a paternidade e a maternidade registadas em nome de FF e EE, respectivamente;

f) A progenitora apresenta funções intelectuais que lhe permitem responsabilizar-se pelos seus actos, não apresentando nenhuma psicopatologia;

g) É reativa em situações de crise, tendo dificuldade em ser tolerante à frustração;

h) É céptica, orgulhosa e competitiva;

i) É insegura e desconfiada, ocultando os seus verdadeiros sentimentos e pensamentos;

j) Resiste em admitir dificuldades pessoais

k) É muito protetora do núcleo familiar nuclear;

l) As características de personalidade da progenitora – ansiedade, hipervigilância, agressividade e elevada desconfiança interpessoal, repercutem-se no seu bem-estar global;

m) Tal implica um risco para o exercício ajustado da parentalidade, por ser uma pessoa com tendência para ser desorganizada, e dificuldade em lidar com eventos mais exigentes;

n) Revela os conhecimentos teóricos quanto às necessidades das crianças, e a sua satisfação;

o) A progenitora apresenta ligação afectiva aos filhos

p) O progenitor encontra-se em cumprimento de pena de prisão de 2 anos e 7 meses, pela prática de crime de violência doméstica, tendo tido o início de cumprimento em .../04/2022, tendo o termo previsto para .../11/2024;

q) Estando em causa factos praticados entre 2014 e 2015, sendo vítima a aqui progenitora;

r) Envolvendo agressões físicas (como murros e pontapés e mordeduras em diversas partes do corpo da vítima), com necessidade de recurso a tratamento hospitalar;

s) A execução da pena havia sido suspensa na sua execução, sujeição a regime de prova, a acompanhamento por parte da agora DGRSP, conforme sentença de 18/06/2015;

t) O progenitor foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contactos com a vítima, pelo período de 8 meses, pena declarada extinta por despacho de 07/0/2019;

u) Já por despacho de 16/02/2021 foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão, por incumprimento das referidas condições, por parte do aqui progenitor, o qual sempre se furtou aos contactos com a DGRSP, nunca tendo frequentado cursos de prevenção de violência doméstica;

v) Por sentença de 15/11/2022, já transitada em julgado, proferida no âmbito do Processo Abreviado nº 407/22.2..., do Juízo de Pequena Criminalidade do ... – J1 – foi o progenitor condenado pela prática, em 27-04-2022, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelos arts. 21º, nº 1 e 25º, alínea a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão que, nos termos do disposto no artº 50º, nºs 1 e 5 do Código Penal, se suspende na sua execução pelo período de 1 (um) ano; w) EE, progenitora dos menores foi condenada pela prática de factos ocorridos em 26-10-2019, quando se fazia acompanhar do filho BB, com 11 meses de idade, integradores do crime de falsificação de documento (uso de cartão profissional da PSP adulterado), na pena de 600 € de multa - Processo Comum Singular n.º 1405/19.9... do Juízo Local Criminal – J2.

x) O progenitor dos menores nunca exerceu actividade profissional declarada com periodicidade, sendo que o último desconto efectuado para o ISS data de Agosto de 2010, com uma remuneração de 475,00 €.

y) A progenitora dos menores, reside ... há mais de 12 anos e nunca exerceu qualquer profissão declarada.

z) O seu único registo no ISS data de Dezembro de 2011, com um valor declarado de 182 €.

aa) A família paterna do progenitor dos menores, constituída por HH, II, JJ e KK, não têm disponibilidade afectiva, financeira, económica e habitacional para cuidarem do crescimento, educação e segurança dos menores, estando disponíveis para darem apoio financeiro às crianças, caso estas fiquem entregues aos cuidados do pai;

bb) A família materna alargada não mantém contactos com a progenitora e não lhe presta apoio.

cc) Tendo esta uma vizinha disponível para prestar apoio às crianças, mas apenas de forma ocasional, e sem possibilidade de se comprometer com dias e horas certas para prestar tal apoio;

dd) A progenitora vive do subsídio de inserção social e do abono de família das crianças.

ee) A progenitora reside desde 2014 em habitação social de tipologia T2 no Bairro de ....

ff) O processo de promoção e protecção, neste Juízo, a favor, além do mais, do BB e AA, teve início em .../09/2020, após a CPCJ ... ter exaurido a intervenção junto do agregado familiar e da progenitora no período de .../05/2019 a .../9/2020, sem êxito, nem mudanças positivas na vida daquelas crianças.

gg) Os progenitores, apesar da condenação do progenitor, e supra-referida, foram mantendo o seu relacionamento afectivo;

hh) O AA sofria de asma e de alergias alimentares (entre eles, a ovos, leite e cereais) e revelava atraso na linguagem, mas o acompanhamento médico especializado só foi requerido após a abertura do Processo de Promoção e Protecção na CPCJ pela Técnica Gestora do Processo.

ii) O AA, enquanto viveu com a mãe passava o tempo a jogar jogos no telemóvel, com a permissão da progenitora que justificava tal actividade como necessária para que o menor se acalmasse.

jj) EE ocultou das técnicas da CPCJ a sua gravidez da CC e passou a recusar-se dar informações sobre o estado de saúde dos outros filhos;

kk) O progenitor nunca cumpriu com a obrigação de afastamento em relação à progenitora, com o acordo desta, passando os dias com esta na residência do agregado familiar.

ll) A progenitora relegava no progenitor das crianças os cuidados aos filhos, sempre que tinha de se ausentar de casa.

mm) Por decisão judicial de .../12/2020 foram os menores sujeitos à medida de promoção e protecção de apoio junto dos pais, a executar junto da mãe pelo período de um ano.

nn) Decorridos 6 meses, a progenitora não efectuou procura activa de emprego;

oo) Não colaborava com os técnicos informações sobre o acompanhamento médico aos filhos;

pp) Tendo recorrido ao sistema de saúde privado para tal acompanhamento;

qq) Durante o referido período a progenitora mesmo sabendo da importância em assegurar a presença do filho AA, que apresenta atraso global no desenvolvimento, inclusive psicomotor, faltou com o filho a consultas especializadas de imunoalergologia e desenvolvimento e exames médicos prescritos ao mesmo.

rr) Em ...-...-2021 o AA foi diagnosticado com Perturbação Global do Desenvolvimento e com probabilidade comorbilidade com perturbação do Espetro do Autismo e nessa altura foi recomendada à progenitora a integração do AA em estabelecimento escolar.

ss) A progenitora já revelava dificuldade de relacionamento com a médica de família e assistentes sociais e ocultou da técnica do ISS a recomendação em integrar o AA em estabelecimento escolar.

tt) Em .../06/2021 a medida de promoção e protecção foi mantida.

uu) Em Novembro de 2021 a CC, à data com quase três anos, não proferia uma única palavra, só emitia sons e fazia gestos repetidos e não focava o seu olhar em ninguém.

vv) A progenitora, quando questionada sobre as terapias de que a menor CC carecia, verbalizou desvalorizar o parecer da médica do CMIN, atestando que a mesma não era especialista no desenvolvimento e incompatibilizou-se com a técnica do CAFAP.

ww) Tendo a filha CC ao colo, a progenitora gritou com a Dra LL e deu um murro na mesa, em frente aos filhos menores, dizendo “eu sou a mãe, eu é que sei o que é melhor para os meus filhos”.

xx) Em Setembro de 2021 o menor AA foi integrado no 1º ano da Escola Básica do ..., passando a usufruir de medidas adicionais no âmbito do DL- n.º 54/2018 de 6 de Julho.

yy) A progenitora voltou a ocultar às técnicas do ISS e do CAFAP a gravidez do filho DD, nascido em .../12/2021 e o facto de permitir as visitas e pernoitas do progenitor dos menores na residência e omitiu tais factos ao Tribunal.

zz) A 5/01/2022 foram as crianças sujeitas a nova medida de promoção e protecção de apoio junto aos pais, a executar junto à progenitora, com novas obrigações para esta, nomeadamente a de zelar pela saúde e educação dos filhos; inscrever de imediato o BB no Jardim escola; sujeitar os menores BB e CC a avaliação em consultas de desenvolvimento; colaborar com as orientações médica e as cumprir com as prescrições médicas estipuladas para os filhos; de seguir, colaborar e obedecer às orientações das técnicas responsáveis pelo processo.

aaa) O bebé foi registado em .../01/2022, com o nome de BB.

bbb) O acordo de promoção e protecção foi reformulado em .../02/2022 abrangendo o AA, DD, CC e BB;

ccc) A .../04/2022 a progenitora recorreu à Linha de Emergência Social ao CAFAP da ..., pedindo ajuda na integração dos filhos em casa de acolhimento;

ddd) Por decisão judicial proferida em .../04/2022 foram as crianças sujeitas à medida de acolhimento residencial e integrados na Casa de Acolhimento da Obra ... - Lar ....

eee) Era o progenitor das crianças quem assegurava maioritariamente o cuidado destas até à sua prisão;

fff) Com os filhos a progenitora não é capaz de ser assertiva e deixa aqueles fazerem tudo o que querem, nunca os contrariando.

ggg) A progenitora

hhh) As crianças nunca fazem referência ao pai;

iii) Na altura em que viviam com a mãe, era frequente ficarem entregues aos cuidados da irmã mais velha, a GG, nascida em .../07/2011, quando os pais não estavam em casa;

jjj) Após 31/10/2022 e até 16/01/2023, a progenitora apenas fez 4 visitas, em 1, 9 e 30 de Novembro e 6 de Dezembro, enviando mensagens escritas para saber dos filhos;

kkk) Após aquela data retomou as visitas semanais;

lll) Justificando a ausência de visitas com o facto de, por razões pessoais, ter tido necessidade de se deslocar aos ...;

mmm) O AA e o BB estão diagnosticados com a perturbação do espectro do Autismo.

nnn) Sendo que existem suspeitas, pelos comportamentos que apresenta, que a CC também poderá ser portadora de tal perturbação.».

III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.

A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação dos Recorrentes, EE (mãe) e BB (pai), artigo 635 do Código de Processo Civil.

A questão concreta a apreciar e decidir, em ambas as revistas, é apenas uma e como tal será apreciada em conjunto, a saber:

Verifica-se um erro de direito na aplicação da medida de acolhimento em instituição com vista à futura adopção dos menores AA, BB, CC e DD.

Em ambas as revistas, quer a Recorrente EE (mãe) quer o recorrente FF (pai) consideram que o Tribunal recorrido ao confirmar a decisão do Tribunal de 1.ª instância incorreu em erro de direito por errada interpretação do disposto no artigo 1978 do Código Civil.

Vejamos

B) Enunciemos os princípios jurídicos aplicáveis ao caso dos autos.

Dispõe o artigo 1978.º do Código Civil, relativo à Confiança com vista a futura adopção que:

1 - O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:

a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;

b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção;

c) Se os pais tiverem abandonado a criança;

d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;

e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.

2 - Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.

3 - Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças.

4 - A confiança com fundamento nas situações previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 não pode ser decidida se a criança se encontrar a viver com ascendente, colateral até ao 3.º grau ou tutor e a seu cargo, salvo se aqueles familiares ou o tutor puserem em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou se o tribunal concluir que a situação não é adequada a assegurar suficientemente o interesse daquela.

Nos termos do artigo 38.º da Lei n.º 147/99 de 01.09, Lei de protecção de crianças e jovens em perigo, relativo à competência para aplicação das medidas, «A aplicação das medidas de promoção dos direitos e de proteção é da competência exclusiva das comissões de proteção e dos tribunais; a aplicação da medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º é da competência exclusiva dos tribunais».

Estatui o artigo 38.º-A, do mesmo diploma legal, relativo à Confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adoção, que:

«A medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adoção, aplicável quando se verifique alguma das situações previstas no artigo 1978.º do Código Civil, consiste:

a) Na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de candidato selecionado para a adoção pelo competente organismo de segurança social;

b) Ou na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de família de acolhimento ou de instituição com vista a futura adoção».

Podemos ler no n.º 1 do artigo 3.º da mesma Lei 147/99, de 01.09, relativo à legitimidade da intervenção, que:

«A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.»

Acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo que:

«Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:

a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;

b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;

c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;

d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;

e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;

f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;

g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.

h) Tem nacionalidade estrangeira e está acolhida em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, sem autorização de residência em território nacional.

E, relativamente aos princípios orientadores da intervenção nesta matéria, dispõe o artigo 4.º da mesma Lei 147/99, de 01.09, que:

«A intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios:

a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;

b) Privacidade - a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;

c) Intervenção precoce - a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;

d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo;

e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;

f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem;

g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante;

h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável;

i) Obrigatoriedade da informação - a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;

j) Audição obrigatória e participação - a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção;

k) Subsidiariedade - a intervenção deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais».

Dispõe também o artigo 6.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, que: «Nos processos que digam respeito a uma criança, a autoridade judicial antes de tomar uma decisão deverá:

a) Verificar se dispõe de informação suficiente para tomar uma decisão no superior interesse da criança e, se necessário, obter mais informações, nomeadamente junto dos titulares de responsabilidades parentais;

b) Caso à luz do direito interno se considere que a criança tem discernimento suficiente:

. Assegurar que a criança recebeu toda a informação relevante;

. Consultar pessoalmente a criança nos casos apropriados, se necessário em privado, diretamente ou através de outras pessoas ou entidades, numa forma adequada à capacidade de discernimento da criança, a menos que tal seja manifestamente contrário ao interesse superior da criança;

. Permitir que a criança exprima a sua opinião;

c) Ter devidamente em conta as opiniões expressas pela criança»

C) Tendo presentes estes princípios jurídicos e ponderando a factualidade melhor enunciada supra II, será que a decisão recorrida enferma dos vícios que lhe são apontados?

Há um efectivo erro de direito nessa decisão?

O Acórdão recorrido após enunciar a factualidade provada (ou seja, a que está descrita supra) II conclui que «Não temos a convicção que se tenha preenchido a alínea e), do n.º 1, artigo 1978.º, do C.C.-os pais da criança acolhida por instituição revelem manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade dos respetivos vínculos durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança -».

Concordamos com essa conclusão, pois que dos factos provados não é possível concluir-se que os pais, ora Recorrentes, revelem manifesto desinteresse pelos seus filhos.

Portanto, sem necessidade de outras considerações temos por seguro que a alínea e) do n.º 1 do artigo 1978 do CC não se mostra preenchida.

Porém, o Acórdão entende que se mostra preenchida a alínea d) do mesmo normativo, ou seja, segundo o Acórdão recorrido os pais (diga-se os Recorrentes), por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança.

Será assim?

Em nossa opinião e sempre salvo o devido respeito por opinião diversa a factualidade provada é manifestamente insuficiente para se pode retirar tal conclusão.

Aliás, a matéria de facto contém algumas incorreções que podem e devem ser agora corrigidas por se tratarem de lapsos evidentes.

Assim, no facto uu) consta «Em Novembro de 2021 a CC, à data com quase três anos, não proferia uma única palavra, só emitia sons e fazia gestos repetidos e não focava o seu olhar em ninguém».

Ora, tendo a CC (apesar de na alínea d) dos factos provados estar o CC o certo é que no relatório da Segurança Social (SIATT), onde está identificada a CC como sendo do sexo feminino) nascido em .../02/2020 não podia em Novembro de 2021 ter quase 3 anos pois tinha apenas 1 ano e 9 meses.

Por isso, algumas conclusões que o Acórdão retira desse facto têm de ser corrigidas.

Também a alínea ggg) dos factos provados não contém nenhum facto (nem na sentença da 1ª instância esta alínea contém qualquer matéria, seja de facto ou de direito).

Dito isto vejamos se efectivamente os factos provados são suficientes para se considerar preenchido o requisito da alínea d) do n.º 1 do artigo 1978 do CC.

Escreveu-se no Acórdão recorrido que os factos evidenciam «a incapacidade dos progenitores em cuidarem da saúde e bem estar de seus filhos» e que o pai ou é uma figura ausente (atualmente também em virtude de ter de cumprir pena de prisão) ou é uma pessoa sobre a qual não existe qualquer referência a que tenha tido algum tipo de cuidado com os filhos a não ser o de que ficava com eles em casa quando a mãe não estava».

Salvo o devido respeito não há factos que comprovem que os Recorrentes não sabem cuidar da saúde dos menores.

Ninguém é culpado de os seus filhos padecerem de autismo e sabe-se como é difícil, mesmo em famílias devidamente estruturadas, lidar com esta doença.

O menor AA sofria de asma e afirma-se no ponto oo) dos factos provados que a mãe, ora Recorrente «Não colaborava com os técnicos informações sobre o acompanhamento médico aos filhos» mas logo de seguida está provado que (ponto pp) «Tendo recorrido ao sistema de saúde privado para tal acompanhamento».

Isto significa, ao contrário do que afirma o Acórdão, que ela acompanhava as necessidades de saúde dos menores ainda que o fizesse no privado (também não percebemos como não se estranhou, como não estranhou o tribunal nem os técnicos, como é que com as condições económicas dos Recorrentes estes procuravam ajuda médica no privado).

Ao contrário do que afirma o Acórdão, pois não tem suporte nos factos provados, não é possível afirmar-se «que os menores não recebiam os cuidados adequados à sua idade e situação pessoal e que os pais, por omissão, puseram em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento das crianças».

De igual modo, também relativamente ao pai, ora Recorrente, sendo certo que dos factos resultar que não será um modelo de virtudes, a verdade é que não se pode afirmar que é uma figura ausente.

Poderá dizer-se que é ausente, no sentido de não estar presente, mas deverá explicar-se e contextualizar-se.

Actualmente está ausente porque está preso e não se pode afirmar pura e simplesmente que não contacta com os filhos desde que foi preso, nem sequer procura fazê-lo. Como o poderia fazer? Fugindo? Como poderia fazer os menores ir ao EP?

Antes estava inibido de estar com a Recorrente e não obstante isso estava com ela e com os menores sendo, aliás, ele que ficava com os menores em casa quando a mãe não estava.

A lei, tal como enunciamos supra, permite que o tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, possa confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança (artigo 1978 n.º 1 al. d).

E a questão é mesmo essa.

Os Recorrentes com o seu comportamento puseram em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento dos menores?

Recorde-se que estamos perante 4 crianças muito jovens. O AA, o mais velho, nasceu em .../10/2014, tendo actualmente 9 anos, o BB nasceu em .../11/2008, tendo actualmente 5 anos, a CC nasceu em .../02/2020, tendo actualmente 3 anos e o DD nasceu em .../12/2021 pelo que fará 2 anos este mês de Dezembro de 2023.

Afirma-se também que o comportamento da mãe em permitir que o AA, enquanto viveu com a mãe passava o tempo a jogar jogos no telemóvel, seria indicador da negligência da mãe de modo a colocar em perigo o menor.

Não podemos concordar de forma alguma com essa conclusão.

Quantos pais, mesmo de famílias devidamente estruturadas deixam os filhos usar e abusar do telemóvel.

Trata-se de um facto que não pode fundamentar a decisão tomada.

Compreendemos a dificuldade que o Tribunal recorrido teve em enquadrar devidamente a presente situação face à escassez da factualidade provada.

Essa dificuldade reflecte-se quando se escreve no Acórdão recorrido «poder-se-ia entender que haveria matéria factual que importaria acrescentar ou quiçá determinar que fosse averiguada mas, face ao que resulta da prova gravada, entendemos que tal não se justifica. Na verdade, do depoimento de MM, psicóloga que acompanha os menores na instituição, conseguimos aferir que quando a mãe visitava os filhos havia muita agitação. Trazia muita comida – bolos -, que era o que o BB procurava obter da mãe. O AA dava um beijo à mãe que lhe dava o telemóvel e ele ficava com o mesmo telemóvel durante a visita a jogar. O DD ficava no colo de uma educadora. Quando a mãe não ia, no dia que seria habitual, ou em dia de consulta, o AA perguntava pela mãe. Esta, durante as visitas, entregava a comida, o telemóvel aos filhos e falava com os educadores.

Mas estes factos não demonstram que os vínculos de filiação entre mãe e filhos não estejam comprometidos; apenas demonstram que há visitas e que há uma mínima exteriorização de afeto e preocupação mas, para nós, muito aquém do que seria a visita de uma mãe que estivesse a traçar um projeto para si e para os filhos como lhe competia.

Por isso, não se adita aquela factualidade.

O aditamento de factos deve ser efetuado por se exigir a ampliação da matéria de facto que foi omitida dos temas de prova, aditamento essencial para a resolução do litígio na medida em que assegura um enquadramento jurídico diverso do tido pelo tribunal a quo, ou seja, quando é indispensável – António Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª, página 294 -.»

A verdade é que o Acórdão não aditou nenhum facto novo mas usou factos que retirou dos depoimentos das testemunhas inquiridas para deles retirar conclusões, sendo certo que esses factos não estão na factualidade provada.

Apesar de estarmos perante um processo de jurisdição voluntária apenas podemos usar os factos que constam da factualidade provada. E estes são, em nosso entender, manifestamente insuficientes para decretar a medida que foi tomada pela 1ª instância e confirmada pelo acórdão recorrido.

Face aos factos provados não podemos afirmar, com a segurança e certeza mínimas, que os menores se encontravam em perigo, sendo necessário tomar as medidas que o tribunal da 1ª instância tomou e a Relação confirmou.

Como se afirma no sumário do Ac. do STJ de 17-01-2023:

1. Segundo o art. 69.º, n.º 1, da CRP, sob a epígrafe “Infância”, “[a]s crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de agressão e contra exercício abusivo da autoridade parental na família e nas demais instituições.”

2. O n.º 2 do mesmo preceito prevê a especial proteção que o Estado deve assegurar às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de uma ambiente familiar normal, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições. Define, assim, três situações típicas de perigo para as crianças: a orfandade, o abandono e a privação de um ambiente familiar normal.

….

4. A intervenção do Estado e da sociedade limita-se às situações em que ocorre um perigo concreto para a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou do jovem.

5. Para esse efeito, essa intervenção tem lugar mediante a aplicação, segundo os princípios orientadores consagrados no art. 4.º da LPCJP, em especial aqueles da prevalência da família, da atualidade, da proporcionalidade, da responsabilidade parental e da audição obrigatória e participação, de uma das medidas de promoção e proteção tipificadas no art. 35.º, do mesmo diploma legal, que se encontram graduadas na proporção direta do seu impacto na vida da criança ou jovem.

6. O objetivo da intervenção do sistema de proteção, quer mediante as CPCJs quer por via judicial, consiste em pôr termo a determinada situação de perigo e estabilizar a situação do menor, seguindo-se a definição do seu projeto de vida.

.......

11. Afigura-se inquestionável que o critério fundamental pelo qual o Tribunal tem de pautar a sua apreciação e decisão é o do superior interesse da criança, conceito que se encontra em constante evolução: “uma noção cultural intimamente ligada a um sistema de referências vigente em cada momento, em cada sociedade, sobre a pessoa da criança, sobre as suas necessidades, as condições adequadas ao seu bom desenvolvimento e ao seu bem-estar cultural e moral”, que se pode traduzir no direito das crianças a que o seu interesse seja apreciado e constitua um critério decisivo quando estejam em causa diferentes interesses, assim como na garantia de que este direito prevaleça sempre que se tenha de adotar uma decisão que afete uma criança, um grupo de crianças ou as crianças em geral.

…….

13. É esse primado da família que impõe ao Estado o dever de apoiar famílias que evidenciem carências várias nos planos material, da organização e gestão de recursos, social, sanitário e pedagógico (as famílias ditas disfuncionais) em ordem à criação de condições mínimas que permitam a todas as crianças e jovens a oportunidade de um desenvolvimento harmonioso.

…..».

Sabemos que neste tipo de processo deve ser sempre o «superior interesse da criança» que deve nortear a escolha da medida a ser tomada.

O Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância que aplicou a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, tendo determinado a inibição do exercício das responsabilidades parentais por parte dos progenitores da criança e proibidas as visitas da família natural, exceto da irmã GG.

Ora, esta «medida de confiança» constitui a última ratio das medidas de promoção e proteção do nosso ordenamento jurídico.

Mas, face aos factos provados essa medida não se mostra adequada para dar corpo ao superior interesse dos menores.

Afigura-se-nos que o Estado, as instituições públicas deveriam proporcionar apoio a esta família – e podem fazê-lo de várias formas, não cabendo agora, neste momento, indicar quais – de forma a evitar quebrar definitivamente os laços entre os menores e os recorrentes, seus pais.

Deste modo, o recurso tem de proceder devendo revogar-se o Acórdão recorrido determinando-se a aplicação da medida de acolhimento residencial, ao abrigo do disposto no artigo 35º, nº 1, alínea f) da LPCJP, confiando as crianças à guarda e aos cuidados da Casa de Acolhimento da Obra ... – Lar ..., onde já se encontram, até que a mãe ou o pai (logo que restituído á liberdade) demonstrem nos autos reunir as condições necessárias para cuidar dos menores.

IV- Decisão

Por tudo o exposto acordam os Juízes que constituem este Tribunal em conceder provimento a ambas as revistas e, em consequência, revoga-se o Acórdão recorrido determinando-se a aplicação da medida de acolhimento residencial, ao abrigo do disposto no artigo 35º, nº 1, alínea f) da LPCJP, confiando as crianças à guarda e aos cuidados da Casa de Acolhimento da Obra ... – Lar ..., onde já se encontram, até que a mãe ou o pai (logo que restituído á liberdade) demonstrem nos autos reunir as condições necessárias para cuidar dos menores.

Sem custas

Lisboa, 12 de Dezembro de 2023

José Sousa Lameira (relator)

Conselheiro Nuno Ataíde das Neves (com declaração de voto que segue)

Conselheira Maria de Fátima Gomes


***


Voto de vencido

Da matéria de facto provada não constam factos que nos possam informar da probabilidade séria, ou mínima que seja, de o casal progenitor vir a ter as quatro crianças a seu cargo, sem que daí não advenha perigo e prejuízo para o são crescimento das mesmas, ou vir a cumprir as suas funções paternais, com o necessário desvelo e competência.

Para além da débil formação dos progenitores recorrentes, das pretéritas condenações criminais de ambos, estado actual de reclusão do progenitor, dos crime de tráfico de estupefacientes e de violência e agressões por este praticadas sobre a mãe dos menores, resulta claro o afastamento e desinteresse evidenciado pelos progenitores em relação aos filhos ao longo da curta vida destes, tratando-se de crianças com necessidades especiais (em especial a doença de autismo de que três – o AA, o BB e também e a CC – dela padecem), doença esta a que os pais jamais virão a ter capacidade para cumprir, até porque, para além da sua deficitária formação, não têm qualquer recurso de ordem financeira que tal permita - ela vive só de RSI e da ajuda de familiares, ele está preso -, não resultando apurado se algum deles algum dia esteve empregado ou se existe a possibilidade de tal vir a suceder.

Torna-se óbvio o continuado sofrimento das crianças na sua relação com os pais que verdadeiramente nunca tiveram e não têm na sua plena dimensão, em ordem a verem satisfeitas as suas necessidades psico-sociais necessárias ao seu são desenvolvimento, a que têm direito como crianças e como cidadãos, situação a que, tudo indica, poderá ser posto cobro com a aplicação da medida determinada no Acórdão recorrido, a confiança das mesmas a instituição com vista a futura adopção

A globalidade dos factos provados revelam negatividade em relação aos pais, incumprimentos e desobediências sucessivas, com excepção do facto "o) A progenitora apresenta ligação afectiva aos filhos", que se afigura com natureza conclusivo.

Entenderia, assim, que está preenchido a alínea e) do n.º 1 artigo 1978.º, do C.C., uma vez que os progenitores nunca revelaram um sério e verdadeiro e paternal interesse pelos filhos, próprio das relações paterno-filiais, assim comprometendo seriamente a qualidade e a continuidade dos respetivos vínculos.

Repare-se que após 31/10/2022 e até 16/01/2023, a progenitora apenas fez 4 visitas, em 1, 9 e 30 de Novembro e 6 de Dezembro, o que é gravemente pouco, apenas enviando mensagens escritas para saber dos filhos, não sendo de crer que as visitas semanais recentemente tomadas pela mesma possam "lavar" tanto e sucessivo (ao longo de anos) desacompanhamento maternal, importando melhor esclarecer o nível de vinculação existente.

E repare-se também que as crianças nunca fazem referência ao pai, o que é revelador da sua desvinculação afectiva em relação a este, o que a situação de reclusão não justifica por inteiro.

Afigura-se-me, pois, que importaria esclarecer um conjunto de factos, com vista à melhor decisão de direito.

Desde logo, dos factos provados em relação ao pai, não resulta que este tenha capacidades para cuidar das crianças, o que não pode ser colmatado pelo simples facto de ser este quem assegurava maioritariamente o cuidado das mesmas até à sua prisão, factualidade que interessaria melhor esclarecer.

Do mesmo modo, resulta da matéria de facto provada que a progenitora se revela desrespeitadora das regras e das orientações que lhe são dadas pelas instituições, embora se diga que apresenta funções intelectuais que lhe permitem responsabilizar-se pelos seus actos, tendo uma personalidade reveladora de ansiedade, hipervigilante e reveladora de agressividade (o que também interessaria melhor esclarecer) e elevada desconfiança interpessoal, orgulhosa e competitiva, insegura, ocultando os seus verdadeiros sentimentos e pensamentos, resistindo em admitir dificuldades pessoais, mas muito protetora do seu núcleo familiar (o que é contraditório em relação ao seu comportamento e interessaria melhor esclarecer), características estas que, repercutindo-se no seu bem-estar global, implicam um risco para o exercício ajustado da parentalidade, por ser uma pessoa com tendência para ser desorganizada, e com dificuldade em lidar com eventos mais exigentes, embora revele conhecimentos teóricos quanto às necessidades das crianças, e à sua satisfação.

Desorganização bem revelada no facto de as crianças, na altura em que viviam com a mãe e com o pai, quando estes saiam, ficarem frequente entregues aos cuidados da irmã mais velha, a GG, nascida em .../.../2011.

Quadro fáctico também insuficiente para a melhor caracterização da progenitora enquanto mãe.

Sendo que o AA e o BB estão diagnosticados com a perturbação do espectro do Autismo, doença grave e muito complicada em termos terapêuticos, que requerem uma formação paterna específica, muito acompanhamento, muita paciência, muito carinho, que os pais, ao que resulta dos factos provados, claramente não têm para lhes dar.

Assim, ao abrigo do art. 682º nº 3 do CPC, determinaria a baixa dos autos ao tribunal recorrido, para ampliação da matéria de facto, em ordem a constituir base suficiente para a melhor percepção e avaliação das capacidades de um e outro progenitor sob o ponto de vista da sua capacidade para o cumprimento das suas obrigações paternais, assim como o melhor esclarecimento das suas condições ocupacionais e financeiras, ou expectativas nesse âmbito.