Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL OMISSÃO INCÊNDIO PROPRIETÁRIO VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA OBRAS DE CONSERVAÇÃO ORDINÁRIA ILICITUDE CULPA DANOS PATRIMONIAIS EQUIDADE CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS REQUISITOS SEGURADORA INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL SEGURO FACULTATIVO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO REAPRECIAÇÃO DA PROVA ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS RECURSO DE REVISTA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DA RELAÇÃO VIOLAÇÃO DE LEI MATÉRIA DE DIREITO TEMAS DA PROVA NULIDADE DE ACÓRDÃO OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO | ||
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Data do Acordão: | 07/07/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | PARCIALMENTE CONCEDIDAS AS REVISTAS. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - A nulidade de decisão prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, – contradição entre os fundamentos – verifica-se na construção lógica da decisão e ocorre quando o julgador concluiu num sentido oposto ou diverso do que resultaria face aos fundamentos nela indicados enquanto alicerces da própria decisão, vício que não é confundível com a ocorrência de erro material, nem com erro de julgamento da matéria de facto ou de subsunção jurídica. II - A intervenção do STJ no domínio da apreciação da matéria de facto é muito limitada encontrando-se circunscrita às situações previstas no art. 674.º, n.º 3, do CPC; como tal, não cabe no âmbito de cognição deste tribunal sindicar o erro da decisão fáctica fixada pela instância recorrida quando estejam em causa meios de prova sem valor probatório tabelado. III - Por integrar uma questão de direito e, nessa medida, da esfera de competência própria deste Supremo Tribunal, cabe-lhe verificar da legalidade do uso dos poderes que a lei confere ao tribunal da Relação em sede de decisão fáctica, avaliando se este agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer. IV - O tribunal da Relação, em sede de matéria de facto, goza dos mesmos poderes que o tribunal de 1.ª instância, incluindo os que decorrem do princípio da livre apreciação consagrado legalmente, devendo, em sede de reapreciação da prova impugnada, e através dos meios de prova disponíveis, formar uma convicção autónoma e própria. V - As respostas à matéria de facto não têm necessariamente de ser afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas (consubstanciando juízos delimitativos ou até mesmo elucidativos da situação nelas descrita) exigindo-se, apenas, que se mantenham no enquadramento da matéria de facto indicada na acção por uma das partes. VI - São consideradas excessivas as respostas que não se contenham nos temas da prova, naturalmente por referência aos factos ínsitos nos articulados, por estarem fora desses mesmos temas ou os exorbitarem, o que não ocorre quando estejam em causa meros factos acessórios. VII - Impende sobre os proprietários de imóvel o dever de manter as condições de segurança contra o risco de incêndio dos edifícios destinados à habitação e, nessa medida, proceder à limpeza das condutas de evacuação dos fumos das lareiras, já que, sendo a fuligem inflamável, a sua acumulação nas paredes das condutas constitui um risco para a segurança do edifício por acarretar perigo de incêndio. VIII - Não cabe ao Supremo Tribunal a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar nos casos em que o cálculo da indemnização tenha assentado em juízos de equidade, competindo-lhe apenas controlar os pressupostos normativos do recurso à equidade e os limites dentro dos quais se situou tal juízo face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto. IX - A lei prevê dois mecanismos para superar a falta de determinação do valor do dano indemnizável: a liquidação posterior (art. 609.º, n.º 2, do CPC) ou o julgamento de acordo com a equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC). A opção por um ou outro dependerá do juízo que, em face das circunstâncias concretas, se possa formular sobre a maior ou menor probabilidade da futura determinação do montante em questão. Assim, se for de concluir no sentido da improbabilidade de vir a ser feita prova do valor exacto do dano em sede de liquidação, deve prevalecer, desde logo, o recurso à equidade. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,
I – Relatório 1. AA e BB intentaram, por si e em representação dos seus filhos menores, CC e DD, acção declarativa de condenação, com processo comum, contra EE e mulher, FF (1.ºs Réus), e Companhia de Seguros Tranquilidade, SA (que alterou a sua denominação para Seguradoras Unidas SA e, posteriormente, para Generali Seguros, SA), deduzindo o seguinte pedido: - condenação solidária dos Réus no pagamento de indemnização, no valor global de 31.636,00€ (sendo 21.636,00€ por danos patrimoniais e 10.000,00€ a título de danos não patrimoniais), acrescida de juros de mora, à taxa legal, até efectivo pagamento. Fundamentaram a acção na responsabilidade civil dos Réus (sendo quanto aos 1.ªs, na qualidade de proprietários e locadores do imóvel e a Ré Seguradora, decorrente da transferência da responsabilidade por efeito de contrato de seguro celebrado) pelas consequências do incêndio que, em 18-11-2014, eclodiu na habitação onde residiam.
2. Os Réus impugnaram as causas do incêndio (cuja eclosão os 1.ºs imputam aos Autores) e os danos dele resultantes. A Ré Seguradora invocou ainda que o contrato de seguro celebrado com os 1.ºs Réus (do ramo multirriscos habitação) não cobre os danos cuja reparação é pedida pelos Autores.
3. Os Autores apresentaram resposta.
4. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido.
5. Inconformados apelaram os Autores impugnando a matéria de facto fixada pela 1.ª instância.
6. Por acórdão (de 10-12-2020), o tribunal a quo, dando procedência parcial à apelação, alterou a matéria de facto e julgou a acção parcialmente procedente, com a condenação dos Réus a pagarem aos Autores: “a) A quantia de quinze mil euros [€ 15 000,00], a título de indemnização de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a citação até efectivo pagamento; b) A quantia de cem euros [€ 100] a cada um dos autores AA e BB, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data desta decisão até integral e efectivo pagamento. c) A quantia de duzentos e cinquenta euros [€ 250] ao autor CC, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data desta decisão até integral e efectivo pagamento;” Absolveu os Réus do mais que se encontrava pedido.
7. Inconformados os Réus recorreram de revista.
7.1. Concluiu (transcrição) a Ré Seguradora nas suas alegações: 41. Face ao exposto, a Recorrente entende que o Tribunal não tinha como atribuir um valor de condenação com recurso à equidade e deveria ter decidido nos termos do artigo 414.º do CPC, absolvendo a Recorrente do pedido.”
7.2 Os Réus EE e FF deduziram as seguintes conclusões (transcrição): “1ª - Nos termos do disposto no artº 674º do Código de Processo Civil, o recurso de revista pode ter por fundamento: Factos considerados provados: Factos julgados não provados: 49ª - Por ultimo dir-se-á que, sem prescindir do exposto, o Tribunal da Relação sempre teria que atender a limitação da indemnização no caso de mera culpa, ou seja, fixar a indemnização em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, o que não fez, violando assim o disposto no artº 494º do C. Civil.”
13. Em contra-alegações os Autores pronunciam-se no sentido da improcedência dos recursos.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil - CPC) e elencadas em termos de precedência lógica, impõe-se conhecer as seguintes questões:
1 Os factos Provados 1. Os primeiros Réus são proprietários em exclusivo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz urbana da freguesia …., sob o artigo ….. e descrito no registo predial sob o nº …….87, sito na …….
2. Por contrato de arrendamento, outorgado entre o Autor AA e os primeiros Réus, os Autores e seus três filhos menores residiram entre 16 de Agosto de 2014 e início de 2016 na fracção autónoma designada pela letra …. correspondente ao 1º andar direito, parte do prédio urbano supra identificado.
3. Por contrato de seguro titulado pela apólice …..03, o primeiro Réu, EE, na qualidade de proprietário do imóvel supra identificado, celebrou com a companhia de seguros Tranquilidade um contrato de seguro multirriscos habitação, que entrou em vigor em 21.09.2013, regulado pelas Condições Gerais e Particulares juntas com a contestação sob os documentos 01 e 02 que se dão aqui por integralmente reproduzidas.
4. No dia 18 de Novembro de 2014, ou seja, passados cerca de 90 dias desde o início do contrato de arrendamento, por volta das 2/2.30 (duas horas/duas horas e trinta minutos) da madrugada, quando os Autores estavam a dormir, eclodiu um incêndio na fracção …. (1.º direito) do edifício supra identificado, junto à lareira da sala.
5. Na sequência do acendimento da lareira do 3.º andar direito, a fuligem acumulada na conduta de saída de fumos da lareira dessa fracção incendiou-se e essa fuligem incandescente passou, através da abertura exterior dessa conduta, para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar direito, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os Autores, incendiando um sofá que encontrava ali à frente;
6. Na sequência, as chamas alastraram à sala, danificando a pintura da fracção e queimando haveres pessoais dos Autores.
7. Os primeiros Réus há tempo não apurado em concreto que não limpavam as condutas de saída de fumos das lareiras do 1.º andar direito e do 3.º andar direito;
8. Procederam à entrega dos apartamentos aos Autores e aos arrendatários do 3.º andar direito com fuligem acumulada nas paredes das condutas de saída de fumos das respectivas lareiras.
9. A falta de limpeza periódica das condutas de saída de fumos das lareiras teve como consequência a acumulação de fuligem, originando que a mesma, sujeita a aquecimento, se incendiasse.
10. Em consequência do incêndio os Autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição sob o n.º 7, cujo valor, embora não tenha sido concretamente apurado, não é inferior a dez mil euros (€ 10 000,00).
11. Os Autores (pais e filhos) ficaram desgostosos com a perda dos bens em consequência do incêndio.
12. Alguns dos bens, designadamente móveis, alguns quadros, e roupas dos autores, haviam sido oferecidos, e alguns deles estavam relacionados com eventos marcantes, baptizado, como sucedia com a toalha do baptizado e as velas do baptizado.
13. Com o alastrar das chamas, a Autora e os seus filhos menores foram obrigados a abandonar a dita fracção, permanecendo na rua com frio, só com a roupa que tinham no corpo.
14. A Autora acordou com o crepitar das chamas do incêndio.
15. A Autora e os filhos, em virtude de terem inalado fumo, foram conduzidos por precaução ao centro de saúde, onde foram observados e receberam algum conforto e apoio psicológico.
16. O menor CC, a partir do incêndio, tem dificuldade em dormir.
17. A Autora ficou muito abalada após o incêndio, quer pelo trauma, quer pelo desgosto de ter ficado praticamente sem nada no tocante a objectos pessoais e roupa.
2.1. Da nulidade do acórdão recorrido (recurso dos 1.os Réus) Sem especificarem ou concretizarem o que afirmam, os Réus (cfr. 1 e 2. das conclusões) imputam ao acórdão recorrido as nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c), d) e e), do CPC. Todavia, a propósito do quantum indemnizatório fixado e da alegada violação dos artigos. 609.º, n.º 2, e 414.º do CPC, os Recorrentes invocam ocorrer clara contradição entre a decisão e a fundamentação do acórdão. Tendo em conta que tal alegação poderá, em abstracto, integrar uma das nulidades previstas no citado artigo 615.º do CPC, cabe apreciar o acórdão sob esta perspectiva. A nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, - contradição entre os fundamentos - verifica-se na construção lógica da decisão e ocorre quando o julgador concluiu num sentido oposto ou diverso do que resultaria face aos fundamentos nela indicados enquanto alicerces da própria decisão. Tal vício, porém, não se confunde com a ocorrência de erro material[1], nem com erro de julgamento (quer da matéria de facto, quer de subsunção jurídica). Referem os Recorrentes a tal propósito que o tribunal a quo, embora tenha considerado que a prova em relação ao valor dos objectos danificados em consequência do incêndio foi incompleta e imprecisa, concluiu que esses objectos não tinham valor inferior a 10.000,00€ e, sem qualquer fundamento ou critério, acabou por fixar a indemnização pelos danos patrimoniais, com recurso à equidade, em 15.000,00€, porquanto entendeu que seria inútil condenar os Réus no que se viesse a liquidar atenta a circunstância de resultar evidenciado a impossibilidade de ser feita qualquer outra prova para apurar o valor exacto dos danos. Ao invés do que consideram os Réus, os aspectos que apontam não consubstanciam qualquer contradição lógica entre a fundamentação e a decisão, podendo integrar uma questão de erro de julgamento (fáctico e também em termos de integração jurídica) que, como já referido, não encontra cabimento no âmbito das nulidades da decisão. Com efeito, verifica-se que o tribunal a quo, conhecendo da apelação, entendeu que, em face da prova que reapreciou, se impunha a alteração da decisão na parte em que, em consequência do incêndio, os Autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição inicial sob o n.º 7, cujo valor, apesar de não concretamente apurado, não era inferior a € 10.000,00. Tal entendimento, segundo o explicitado no acórdão recorrido, decorreu do facto da prova em relação ao valor dos objectos destruídos, ainda que incompleta e imprecisa (impedindo dar como provado que os bens tinham o valor indicado na referida relação elaborada pela autora), permitia afirmar, com segurança (atendendo à multiplicidade de bens destruídos e aos valores que foram indicados pelos Autores em sede de declarações de parte e por uma testemunha), que o seu valor não era inferior a10.000,00 €. Por outro lado, no que toca à indemnização arbitrada a título de danos patrimoniais, o acórdão fixou-a por recurso à equidade tendo subjacente o entendimento de se revelar inútil condenar os Réus em montante a liquidar, por não se vislumbrar que outra prova poderia ser feita para apurar o valor exacto dos referidos danos (justificando no facto de ter sido já feita prova pericial e na impossibilidade de examinação dos bens por os mesmos já não existirem). Por sua vez, o montante fixado (em 15.000,00€) encontra-se justificado com fundamento em ter sido apurado que os bens não têm valor inferior a10.000,00 € e por os peritos, não obstante não terem examinado os bens, emitirem opinião no sentido de se mostrarem razoáveis os valores indicados pelos Autores. Resulta claramente do que decorre do acórdão recorrido a inexistência de qualquer contradição lógica entre as premissas e a decisão porquanto o tribunal a quo partiu de um raciocínio e dele retirou conclusão alicerçado, num primeiro momento, em sede de decisão de facto e, num segundo momento, em sede de decisão de direito. Não se verifica, por isso, qualquer nulidade da decisão, designadamente por contradição entre os fundamentos e a decisão.
2.2 Do erro de julgamento da matéria de facto (recursos dos 1.os Réus e da Ré Seguradora) Alegam os 1.ºs Réus que o acórdão recorrido, ao ter criado “uma nova versão conclusiva quanto às causas do incêndio”, extravasou os poderes legais quanto à alteração da matéria de facto. Invocam nesse sentido não ser lícito ao tribunal da Relação: i) formular juízos conclusivos que encerram o próprio thema decidendum, violando, com isso, o disposto nos artigos 662.º, do CPC, e 341.º, 342.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil; ii) alterar a matéria de facto valorando elementos probatórios (e desprezando outros) sem qualquer fundamento probatório. Relativamente à apreciação das provas, invocam os Recorrentes que o tribunal recorrido valorou, sem fundamento, o depoimento do Inspector da Polícia Judiciária em detrimento do auto de vistoria (feito pela Câmara Municipal) e dos depoimentos dos técnicos que foram à fracção. Alegam, igualmente, que foi dada credibilidade a excertos das declarações de parte da Autora, o que é incompreensível à luz das regras da experiência comum e violador do disposto no artigo 496.º, do CPC. Concluem, assim, que ao ser utilizada prova indevida a mesma é nula. Vejamos. Conforme decorre do disposto nos artigos 682.º, n.º 1 e 674.º, n.º 3, do CPC, o STJ, enquanto tribunal de revista, em regra, apenas conhece de matéria de direito, não lhe cabendo sindicar a matéria de facto apurada pelas instâncias, a não ser que se verifique algum dos casos excepcionais expressamente previstos na lei. Com efeito, a intervenção do STJ no domínio factual é muito limitada porquanto não lhe cabe, enquanto tribunal de revista, sindicar o erro na livre apreciação das provas, excepto quando, nos termos contemplados no artigo 674.º, n.º 3, do CPC, ocorra ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, ou ainda quando a apreciação feita se mostre alicerçada num juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade. Não pode, pois, este tribunal modificar ou sancionar a decisão fáctica fixada pela instância recorrida quando estejam em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal, ou seja, sem valor probatório tabelado[2]. Todavia, embora o Supremo Tribunal de Justiça se encontre impedido de sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, não se encontra impedido de verificar da legalidade do uso de tais poderes pela Relação, ou seja, se a mesma agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer, sendo que tal avaliação se reconduz a uma questão de direito que integra, nessa medida, a esfera de competência própria deste Supremo Tribunal[3]. Delimitados que estão, neste campo, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça, cumpre aferir se o tribunal recorrido, ao reapreciar a matéria de facto impugnada pelos Autores na apelação observou (ou não) os parâmetros que balizam a sua actuação, nos termos que lhe são impostos pelo artigo 662.º, do CPC. Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (sublinhado nosso). Com a nova redacção dada ao preceito[4], o legislador pretendeu que o tribunal da Relação produzisse um novo julgamento em função da sua própria convicção, exercendo, assim, um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição da matéria de facto[5]. Acresce que tal autonomia decisória da Relação no julgamento da matéria de facto mediante a reapreciação dos meios de prova constantes do processo, não só não o limita quanto aos meios de prova indicados pelo recorrente, como lhe impõe que forme a sua própria convicção (juízo autónomo em função dos elementos de prova acessíveis) numa apreciação global de todos os elementos de prova carreados para os autos. Mantém-se, assim, a possibilidade de sindicar a decisão da matéria de facto quando esta assente em prova oralmente produzida que tenha ficado gravada, afastando-se, desta forma, o argumento recorrente no sistema anterior de que a modificação da decisão da matéria fáctica deveria ser reservada para casos de “erro manifesto”, e de que não era permitido à Relação contrariar em termos de convicção o juízo formulado pela 1.ª instância relativamente a meios de prova que haviam sido objecto de livre apreciação. O reforço dos poderes da Relação neste campo está, de resto, bem patente na possibilidade quer de renovação da produção de certos meios de prova (quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de algum depoente ou sobre o sentido do depoimento que não sejam ultrapassadas por outras vias), quer de produção de novos meios de prova quando existir dúvida fundada acerca da prova realizada em 1.ª instância (artigo 662.º, n.ºs 1, e 2, alíneas a) e b), do CPC). Por conseguinte, nas situações em que a decisão fáctica da 1.ª instância resulte da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, sempre que a parte recorrente cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo artigo 640.º, do CPC, o tribunal da Relação, assumindo-se como verdadeiro tribunal de instância, tem o dever de proceder à reavaliação da matéria de facto impugnada[6] a partir dos meios de prova de que dispõe e formar, com total autonomia, a sua própria convicção por forma a confirmar a decisão, decidir em sentido contrário ao da 1.ª instância ou introduzir na decisão que considere erradamente julgada as alterações que se mostrem pertinentes (alterando-a em sentido restritivo ou explicativo)[7]. Assim, o tribunal da Relação, em sede de matéria de facto, goza dos mesmos poderes que o tribunal de 1.ª instância, incluindo os que decorrem do princípio da livre apreciação consagrado legalmente (cfr. artigos 607.º, n.º 5, 466.º, n.º 3, e 494.º, n.º 2, do CPC, 349.º, 351.º, 376.º, n.º 3, 391.º e 396.º, do Código Civil). Importa ter presente que, em virtude da alteração introduzida no processo civil por forma a atenuar os efeitos do rigorismo formal obstrutivo da busca da verdade material (no que se refere aos temas da prova, por contraposição ao regime anterior alicerçado nos pontos de facto da base instrutória), a produção de prova em audiência de julgamento passou a incidir sobre os temas da prova e, com isso, uma maior liberdade no que se refere à descrição da realidade que é objecto do litígio. Reportando tais considerações para o caso sob apreciação não podemos deixar de concluir que o tribunal recorrido ao alterar a realidade fáctica (desde logo no que se refere às causas do incêndio) não extravasou os poderes que lhe estão cometidos nesse âmbito, conforme passaremos a justificar. Alegam os Recorrentes que tendo os Autores sustentado o pedido indemnização em consequência dos danos sofridos pela projecção de pedaços de fuligem incandescente na sua lareira por se ter incendiado a chaminé comum do prédio que, por sua vez, incendiou o colector da fracção, e, bem assim, reiterado em sede de apelação, que fosse julgada provada a versão dos factos vertida na petição inicial, não podia o tribunal a quo, ao conhecer da impugnação da matéria de facto, proceder à alteração do factualismo criando matéria nova quanto às causas do incêndio. Defendem, assim, a violação das regras do ónus da prova, do julgamento e o princípio da livre apreciação. Carecem, porém, de razão. Os Autores alegaram, efectivamente, na petição inicial, ter ocorrido um incêndio na fracção que habitavam, provocado pela projecção de fuligem incandescente, proveniente da chaminé/colector (baseando-se, para o efeito, num relatório da polícia judiciária que juntaram aos autos), ocorrida na sequência do acendimento da lareira da fracção correspondente ao 3.º andar, fuligem essa que, ao ser projectada, incendiou o sofá que estava colocado em frente à lareira, por causa que não lhes foi imputável (pois que não tinham acendido a lareira). Imputaram o incêndio aos 1.os Réus por os mesmos, na qualidade de proprietários de todas as fracções do prédio, obrigados que estavam, além do mais, a proceder à limpeza periódica dos colectores/chaminés para evitar a acumulação de fuligem e alcatrão, não o terem feito. Resulta, assim, da factualidade alegada, que o pedido indemnizatório deduzido na acção se funda em responsabilidade civil, concretamente, na alegada conduta omissiva, ilícita e culposa dos Réus, danosa para os Autores. Note-se que em conformidade com essa alegação foram enunciados, como constituindo temas da prova, o incêndio ocorrido na fracção que constituía a habitação dos autores e a conduta (por acção e/ou omissão) dos 1.ºs Réus (na qualidade de proprietários dessa fracção e de senhorios daqueles) causadora do referido incêndio[8]. Não se vislumbra, por isso, em que medida é que o tribunal recorrido, no uso dos seus poderes de reapreciação das provas e de modificação da matéria de facto impugnada, extravasou tais poderes ou violou as regras do ónus da prova. Repare-se que a discordância dos Recorrentes centra-se, exclusivamente, no facto de a Relação não ter dado como provada a exacta versão dos factos alegados na petição no que concerne ao local por onde a fuligem incandescente teria passado para depois ser projectada para a lareira da fracção que era, então, habitada pelos Autores (de acordo com aquela versão, tal fuligem teria tido origem no colector/chaminé comum) Ora, de acordo com a factualidade dada como provada, a fuligem acumulada na conduta de saída de fumos da lareira da fracção do 3.º andar incendiou-se, tendo a fuligem incandescente passado, através da abertura exterior dessa conduta para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os Autores, que incendiou o sofá que se encontrava em frente da lareira (cfr. facto provado sob o ponto 5.). Como é evidente, tal resposta explicativa insere-se quer na alegação vertida na petição, quer nos temas da prova supra referidos, sendo que o local pelo qual a fuligem passou constitui aspecto acessório irrelevante porquanto não desvirtua a causa de pedir em que o pedido se alicerça. Como já sublinhado, o tribunal da Relação tem, em sede de reapreciação da prova impugnada, poderes em tudo idênticos aos conferidos ao tribunal de 1.ª instância, devendo, nessa reapreciação formar uma convicção autónoma e própria e expressar o seu resultado, designadamente, alterando a matéria de facto, ainda que em sentido explicativo, como sucedeu no caso. Refira-se, de resto, que é pacífico que as respostas quanto à matéria de facto que permanece controvertida não têm necessariamente de ser afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas (consubstanciando juízos delimitativos ou até mesmo elucidativos da situação nelas descrita) exigindo-se, apenas, que se mantenham no círculo da matéria alegada, mais precisamente, no enquadramento da matéria de facto indicada na acção por uma das partes. Por isso, apenas serão consideradas excessivas as respostas que não se contenham nos temas da prova, naturalmente por referência aos factos ínsitos nos articulados, por estarem fora desses mesmos temas ou os exorbitarem, o que não ocorre quanto a factos acessórios como o supra referido[9]. Em consequência, não tendo a Relação extravasado os poderes que lhe estão cometidos em sede de modificação da matéria de facto e não tendo, igualmente, sido violadas as regras sobre o ónus da prova, tem a revista, nesta parte, de improceder. Já a questão de saber se a matéria de facto dada como provada pela Relação foi fixada de forma acertada constitui matéria que, tendo sido precedida de um juízo assente na livre apreciação da prova, está subtraída ao conhecimento deste Supremo Tribunal. É que, conforme já realçado, a intervenção do Supremo, no que concerne ao controlo da decisão da matéria de facto, circunscreve-se a aspectos em que se tenha verificado a violação de normas de direito probatório material por, nessa hipótese, estarem em causa verdadeiros erros de direito. Ora, no caso vertente, apesar de os Recorrentes terem alegado que a Relação incorreu em violação de normas de direito probatório material ao ter modificado a decisão da matéria de facto, não invocaram, para além da já apreciada violação das regras sobre o ónus da prova, que tenha sido ofendida qualquer norma de direito probatório material que se enquadre numa das supra referidas excepções previstas na lei (de prova vinculada ou tarifada). O que decorre da sua alegação recursória e, bem assim, das conclusões da revista, é que os Recorrentes não se conformam com a apreciação crítica que o tribunal fez da prova testemunhal, pericial e declarações de parte, que foi produzida, nem com convicção que o tribunal a quo formou da análise crítica e conjugada dessa prova para dar como provada a factualidade que permanecia controvertida. Oos Recorrentes limitam-se (ainda que a pretexto de supostos juízos conclusivos, que não se mostram concretizados) a manifestar a sua discordância quanto à circunstância de o tribunal se ter ancorado em determinados depoimentos em detrimento de outros elementos probatórios que, no seu entender, imporiam resposta diversa. Acontece que, estando a prova testemunhal, pericial, documental e por declarações de parte, a que os Recorrentes aludem, sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigos 396.º, 389.º, e 376.º, n.º 1, a contrario, do Código Civil, e artigos 466.º, n.º 3, e 607.º, n.º 5, do CPC), não pode deixar de se concluir que a sua discordância acerca da apreciação crítica que dela foi feita pelo tribunal recorrido não se enquadra em nenhuma das excepções previstas na parte final do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, estando, como tal, o STJ impedindo de sindicar a decisão da matéria de facto que resultou da apreciação desses meios probatórios. O raciocínio exposto assume igualmente aplicação quanto à questão suscitada pela Ré Seguradora na revista no que se refere à factualidade atinente ao valor dos danos que o tribunal a quo deu como provada sob o ponto 10, uma vez que a mesma se limita a manifestar a sua discordância quanto à convicção que a Relação formou a esse propósito; como tal, porque no domínio da prova sujeita à livre apreciação do tribunal, constitui matéria subtraída ao conhecimento deste tribunal. Não existindo, pois, no que toca à decisão da matéria de facto, erro susceptível de ser sindicado pelo STJ, não pode, nesta parte, conhecer-se do objecto dos recursos, mantendo-se, em consequência, inalterada a materialidade dada como assente pela Relação.
2.3 Da responsabilidade dos 1.os Réus (recurso dos 1.os Réus); Sustentam os Recorrentes a este propósito que não se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil de que depende a obrigação de indemnizar por: - não impender sobre eles qualquer dever de praticar o acto legalmente omitido; - não resultar provado há quanto tempo não era feita a limpeza da fuligem que se depositava nas paredes das lareiras; - não ter sido demonstrada (pelos lesados) a culpa. Vejamos. Com relevância para a apreciação desta questão mostra-se provado: - que o incêndio foi causado por fuligem incandescente, que provinda da conduta de saída de fumos da lareira do 3.º andar direito, passou para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar direito, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os autores, incendiando um sofá que encontrava ali à frente (cfr. factos provados sob os pontos 4. e 5.); - que, nessa sequência, as chamas alastraram à sala danificando a pintura da fracção e queimando haveres pessoais dos autores (cfr. facto provado sob o ponto 6.) - que há tempo não apurado em concreto que os 1.ºs Réus não limpavam as condutas de saída de fumos das lareiras do 1.º andar direito e do 3.º andar direito (cfr. facto provado sob o ponto 7.); - que os 1.ºs Réus procederam à entrega dos apartamentos aos Autores e aos arrendatários do 3.º andar direito com fuligem acumulada nas paredes das condutas de saída de fumos das respectivas lareiras (cfr. facto provado sob o ponto 8.); - que a falta de limpeza periódica das condutas de saída de fumos das lareiras teve como consequência a acumulação de fuligem, originando que a mesma, sujeita a aquecimento, se incendiasse (cfr. facto provado sob o ponto 9.). Em face desta materialidade assente, é indubitável que, tal como se decidiu no acórdão recorrido, se mostram preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil consignados no artigo 483.º do CC. Com efeito, a fuligem acumulada nas paredes das condutas de saídas de fumos das lareiras das fracções supra identificadas, que, uma vez sujeita a aquecimento, se incendiou, constitui, sem margem para dúvida, um facto dominável ou controlável pela vontade humana, ainda que, em concreto, os 1.ºs Réus não o tenham controlado, pois que sobre eles recaía o dever de o fazer. O preenchimento deste primeiro pressuposto encontra-se explanado e fundamentado, de forma extensa, pormenorizada e com inteiro acerto, no acórdão recorrido. Os Recorrentes, aliás, nem sequer concretizam em que medida e por que razão entendem não existir o dever de praticar o acto omitido, quando, na verdade, sendo proprietários das fracções em causa lhes incumbia o dever de proceder à limpeza das paredes das condutas de evacuação de fumos por forma a evitar que nelas se acumulasse fuligem, como ficou demonstrado que sucedeu. Dispõe o artigo 486.º, do Código Civil que As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido. Tal dever resulta, no caso, da lei, em concreto e conforme se refere no acórdão impugnado, da conjugação do que se dispõem os artigos 1.º, alínea a), 6.º, n.º 3, e 8.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Segurança Contra Incêndio em Edifícios (RJSCIE),[10] e no artigo 89.º, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE)[11]. Extrai-se, pois, da leitura conjugada dos referidos normativos, que é sobre os proprietários que recai a responsabilidade de manter as condições de segurança contra o risco de incêndio dos edifícios destinados à habitação, sendo igualmente sobre eles que impende a obrigação de realizar todas as obras necessárias à manutenção da segurança, salubridade e arranjo estético das edificações. Encontrando-se as obras de limpeza expressamente abrangidas pela definição de obras de conservação[12] ínsita no artigo 2.º n.º 1, alínea f), do RJUE, sem dúvida que impendia os 1.ºs Réus, na qualidade de proprietários das fracções, o dever de proceder à limpeza das condutas de evacuação dos fumos das lareiras, já que, sendo a fuligem inflamável, a sua acumulação nas paredes das condutas constitui um risco para a segurança do edifício por acarretar perigo de incêndio. A circunstância de não se ter apurado há quanto tempo os Réus não procediam a essa limpeza mostra-se irrelevante para o caso, uma vez que não afasta a sua conduta omissiva porquanto, para além de se ter provado que não procediam à limpeza em questão, também se encontra apurado que a fuligem se encontrava ali acumulada, que as fracções foram, por eles, entregues aos Autores e aos arrendatários do 3.º direito nesse estado e que foi essa falta de limpeza que provocou a acumulação de fuligem, que sujeita a aquecimento originou que a mesma se incendiasse. Encontra-se assim demonstrada a ilicitude, pressuposto da responsabilidade civil, que os Recorrentes põem em causa. Relativamente à culpa, defendem os Réus que a obrigação de indemnizar estaria dependente da prova de que, apesar de terem previsto como provável a lesão e as consequências danosas da sua conduta, não as teriam evitado. É manifesto que, quanto a este aspecto, carecem também de razão. A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente (…) e pode revestir duas formas distintas: o dolo (…) e a negligência (culpa em sentido estrito)[13]. Tais modalidades de culpa encontram-se expressamente previstas no artigo 483.º do Código Civil - Aquele que, com dolo ou mera culpa (…), pelo que a modalidade a que os Recorrentes aludem (se bem se perceciona, reporta-se ao dolo eventual) não esgota as vertentes em que se desdobra a culpa em sentido lato. E se é certo que o dolo (ainda que eventual) pressupõe a consciência do prejuízo ou do carácter danoso do facto, a mera culpa ou negligência basta-se com a omissão da diligência exigível do agente, sendo que, na negligência inconsciente (a que se verifica na maioria das situações da vida corrente), o agente não chega sequer a conceber a possibilidade de o facto se verificar (por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão), podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação se usasse da diligência devida[14]. Dispondo o artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, que A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, uma vez que a diligência relevante para a determinação da culpa é a de uma pessoa normal em face do circunstancialismo do caso concreto, no quadro do evento em apreciação, a pessoa padrão a que a lei se reporta terá de ser o proprietário de um edifício, que sendo constituído por fracções, as dá de arrendamento sabendo que as mesmas têm lareiras que permitem a combustão de lenha. Não tendo os Réus demonstrado qualquer facto tendente a excluir a sua culpa, há que concluir que tal omissão lhes é censurável por lhes ser exigível que tivessem agido de modo diverso. Provada que se encontra a omissão ilícita e culposa dos 1.ºs Réus, sendo os danos incontroversos em face da realidade fáctica provada e tendo os mesmos resultado como consequência directa da referida conduta omissiva (o incêndio foi originado pela fuligem que se encontrava acumulada nas condutas de saída de fumos das lareiras em virtude da falta da sua limpeza que, ao ser sujeita a aquecimento, se incendiou - nexo de causalidade)[15], mostram-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil dos Recorrentes, recaindo sobre os mesmos a obrigação de indemnizar os Autores. Ainda, quanto a esta parte, improcedem as conclusões do recurso dos Réus.
2.4 Do montante dos danos patrimoniais (recursos dos 1.os Réus e da Ré Seguradora); Insurgem-se os Réus quanto à fixação, com recurso à equidade, da indemnização por danos patrimoniais, defendendo que, na falta de prova dos danos, a consequência devia ter sido a da absolvição do pedido nos termos do artigo 414.º, do CPC. Sustentam, ainda e em qualquer caso, que o montante de 15.000,00€ fixado no acórdão recorrido se baseou em critérios abstractos e em considerações genéricas, não se encontrando tal montante justificado. Vejamos. Entendeu o tribunal a quo, sufragando o entendimento vertido nos acórdãos do STJ que cita, que não se sabendo o valor exacto dos danos e não se antevendo a possibilidade de, em sede de liquidação, ser apurado o valor exacto[16], a aludida indemnização teria de ser fixada segundo a equidade ao abrigo do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil. Lançando mão desse critério, atentas as circunstâncias do caso (tendo sido apurado que os bens não têm valor inferior a € 10.000,00 e tendo os peritos sido da opinião, apesar de não terem examinado os bens por eles não existirem, que muitos dos valores indicados pelos autores era razoável) o acórdão considerou equitativo fixar o montante indemnizatório em 15.000,00€. Conforme o STJ vem repetidamente afirmando[17], quando o cálculo da indemnização tenha assentado decisivamente em juízos de equidade, não cabe ao Supremo Tribunal a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (na medida em que a aplicação de puros juízos de equidade, não traduz, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito), cabendo-lhe, contudo, controlar quer os pressupostos normativos do recurso à equidade, quer os limites dentro dos quais se situou tal juízo face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto. Na verdade, nas situações em que tais pressupostos e limites não sejam respeitados (por o juiz ter apelado indevidamente à equidade num caso em que a lei lhe impunha a aplicação de critérios de índole normativa, extraídos da interpretação dos preceitos aplicáveis e/ou por ter extravasado os limites que tenham ficado provados), haverá já violação de lei, cuja apreciação se insere no âmbito dos poderes do STJ. Quanto ao primeiro aspecto, relacionado com os referidos pressupostos normativos, o tribunal a quo ao considerar que seria inútil remeter a fixação da indemnização em causa para liquidação actuou com respeito pela lei, já que o juízo antecipatório feito no acórdão recorrido acerca da inutilidade da condenação em quantia a liquidar se encontra ampla e correctamente fundamentado, sendo, de resto, inteiramente conforme com a jurisprudência do STJ nesta matéria. Concretizando. Mostra-se pacífico o entendimento de que, uma vez assente a existência de um dano indemnizável (porque verificados todos os pressupostos da obrigação de indemnizar) sem que, porém, seja determinável o seu exacto montante, é possível optar-se por um dos mecanismos previstos na lei para superar a falta de determinação do referido valor: a liquidação posterior (artigo 609.º, n.º 2, do CPC) ou o julgamento de acordo com a equidade (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil). A opção por um ou outro desses mecanismos dependerá do juízo que, em face das circunstâncias concretas, se possa formular sobre a maior ou menor probabilidade da futura determinação do montante em questão; assim, se for de concluir no sentido da improbabilidade de vir a ser feita prova do valor exacto do dano em sede de liquidação, deve prevalecer, desde logo, o recurso à equidade[18]. Na situação sob apreciação o tribunal a quo, depois de ter ponderado que apesar de se ter realizado prova pericial os bens não puderam ser examinados pelos peritos (por, na sua esmagadora maioria, já não existirem), concluiu pela improbabilidade de se fazer prova do valor exacto desses bens e, nessa medida, recorreu desde logo à equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, ao invés de condenar em quantia a liquidar. Em face do que se mostra considerado pelo acórdão recorrido a opção por que enveredou, para além de acertada, encontra-se devidamente fundamentada, impondo-se concluir no sentido de que se encontram preenchidos os pressupostos normativos a que se fez referência, improcedendo, nesta parte, as revistas. Porém, relativamente aos limites do referido juízo equitativo, não podemos acompanhar o decidido pelo tribunal a quo. Dispõe o artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, que Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (sublinhado nosso). Decorre deste preceito que o recurso à equidade depende da prova de factos que balizem o juízo a fazer no caso concreto, sobretudo quando esteja em causa a fixação de indemnização por danos patrimoniais. Há, na verdade, uma grande diferença entre o recurso à equidade para obter a quantificação de danos ligados à violação de bens eminentemente pessoais - danos morais, lesão do direito à vida – e o apelo a juízos equitativos para obter uma exacta e precisa quantificação de danos patrimoniais resultantes da inutilização ou privação de um bem material: é que, no primeiro caso, o recurso à equidade constitui elemento absolutamente essencial e insubstituível para avaliar o dano, representando o juízo equitativo um verdadeiro momento constitutivo na determinação da compensação adequada a tal tipo de danos; ao passo que, no segundo tipo de hipóteses, o recurso à equidade – consentido pelo art. 566º, nº3, do CC – desempenha uma função meramente complementar e acessória, representando um instrumento para suprir possíveis insuficiências probatórias relativamente a um dano, inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exacto montante. Daqui decorre que, enquanto em sede de avaliação do dano moral o que normalmente estará em causa num recurso de revista é verificar se o montante indemnizatório arbitrado - através do inevitável e decisivo apelo à equidade - como compensação da lesão de bens eminentemente pessoais se conforma com os padrões e critérios jurisprudenciais adequados, seguidos por uma jurisprudência actualista para situações idênticas ou equiparáveis à do caso concreto «sub juditio», a aplicação do regime prescrito no nº3 do art 566º do CC em sede de puros e típicos danos patrimoniais envolve, desde logo, a questão de saber se a indefinição factual acerca do real valor do dano sofrido é susceptível de suprimento através de uma ponderação equitativa; é que, como atrás se referiu, o apelo à equidade é, neste caso, puramente complementar e acessório da aplicação da teoria da diferença, pressupondo que o «núcleo essencial» do dano está suficientemente concretizado e processualmente demonstrado e quantificado – não devendo o juízo equitativo representar um verdadeiro e arbitrário «salto no desconhecido», dado perante matéria factual de contornos manifestamente insuficientes e indeterminados. A previsão contida no referido preceito legal supõe, na verdade, o preenchimento de duas condições ou requisitos: não estar determinado apenas o «valor exacto» do dano mas terem sido provados «limites», máximo e mínimo, para esse dano – que não podem considerar-se verificadas quando, no momento do julgamento, ocorre uma essencial indefinição acerca do valor real do dano material sofrido, pressupondo a formulação do juízo complementar de equidade uma base factual minimamente sólida e consistente sobre os valores indemnizatórios em causa (…)[19]. Este tribunal tem vindo a sublinhar que, não equivalendo a equidade a arbitrariedade, a fixação de indemnização com recurso a esse juízo não pode surgir como expressão de sensibilidades ou intuições meramente subjectivas do julgador, tendo antes de se alicerçar em factualidade donde se possa, com base em padrões sedimentados na experiência comum, chegar a um valor racional[20]. Ora, em face da realidade factual dada como provada, apenas se encontra apurado com relevância para a formulação do juízo equitativo, que os haveres pessoais dos Autores ficaram queimados em consequência do incêndio e que o seu valor, que não foi concretamente apurado, não é inferior a 10.000,00€ (cfr. factos provados sob os pontos 6 e 10.). Assim sendo, na falta de quaisquer outros elementos fácticos passíveis de complementar a materialidade acima descrita e balizar o juízo equitativo a leva a cabo no caso concreto quanto ao valor dos danos patrimoniais, somos de entender que a fixação da indemnização apenas se poderá ater ao único facto que, a esse propósito, foi dado como provado: o valor dos bens não é inferior a € 10.000,00. Em consequência, uma vez que o juízo equitativo feito no acórdão recorrido extravasa os limites dos factos tidos por provados, nos quais não encontra suporte, há que reduzir a indemnização fixada a título de danos patrimoniais para a quantia de € 10.000,00 (artigo 566.º, n.º 3, do CPC). De salientar que relativamente ao montante dos danos não pode merecer acolhimento o defendido pelos 1.ºs Réus no sentido de a indemnização ser fixada em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados nos termos do artigo 494.º, do Código Civil, pois que, para além de se tratar de uma faculdade e não de uma obrigação[21], a limitação da indemnização nos casos aí contemplados sempre dependeria da alegação e prova de factos tendentes a preencher os critérios previstos na referida norma e a permitir concluir que as circunstâncias do caso o justificariam, prova que, de todo, não foi feita. Procedem, assim, nesta parte, as conclusões da revista da Ré Seguradora, e, parcialmente, a revista dos 1.ºs Réus.
2.5 Da responsabilidade da Ré Seguradora (recurso da Ré Seguradora): Resta, por fim, apreciar se os danos em causa estão excluídos das coberturas do seguro celebrado, tal como sustenta a Recorrente. Desde já se adiante que a Ré carece de razão, porquanto a interpretação que faz da cláusula 1.ª da cobertura, referente à “Responsabilidade Civil Proprietário ou Inquilino/Ocupante” não tem qualquer correspondência no texto do documento que constitui as condições específicas da apólice do Seguro Multiriscos Habitação e que resultou provado; como tal, não pode valer com o sentido que lhe pretende dar (artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil). Com relevância para a apreciação desta questão mostra-se provado que: - por contrato de seguro titulado pela apólice ….., o 1.º Réu, na qualidade de proprietário do imóvel, celebrou com a companhia de seguros Tranquilidade um contrato de seguro multirriscos habitação, que entrou em vigor em 21-09-2013 e cujas condições foram dadas por reproduzidas no ponto 3. dos factos provados; - de acordo com as Condições Gerais da apólice, o contrato de seguro celebrado regula-se pelas Condições Gerais e Particulares e, quando contratadas, pelas Condições Especiais que prevêem regimes específicos de cobertura ou a cobertura de outros riscos e ou garantias além dos previstos nas Condições Gerais (cf. pontos 1. e 4. da cláusula preliminar). - de acordo com as mesmas Condições Gerais, o contrato celebrado destina-se a cumprir a obrigação de segurar os edifícios constituídos em regime de propriedade horizontal (fracções autónomas e partes comuns) contra o risco de incêndio, podendo, no entanto, o contrato garantir, para além dessa cobertura, a título facultativo, bens aí não enquadráveis e outros riscos nos termos previstos nas Condições Especiais e Particulares (cfr. cláusula 2.ª, pontos 1 e 4, das Condições Gerais); - consta, além do mais, das Condições Particulares da apólice, a cobertura de responsabilidade civil do proprietário até ao montante de € 100.000,00, sem franquia; - a Condição Específica referente à Responsabilidade civil Proprietário ou Inquilino/Ocupante, tem a seguinte redacção: Cláusula 1.ª – Âmbito da Cobertura 1. A presente Condição Especial garante a Responsabilidade civil extracontratual do Segurado na qualidade de proprietário ou inquilino/ocupante. 2. A garantia abrange, até ao limite de capital seguro constante nas Condições Particulares, os danos patrimoniais ou não patrimoniais, directamente decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros, em consequência da propriedade do imóvel seguro, bem como decorrentes da sua qualidade de inquilino ou ocupante do local de risco. Cláusula 2.ª – Exclusões Sem prejuízo das exclusões previstas nas Condições Gerais aplicáveis à presente cobertura, não ficam garantido: (…) b) Os danos sofridos pelo Segurado e pelo seu agregado familiar. Resulta, pois, com evidência destas cláusulas que os Autores, sendo inquilinos do imóvel seguro, são, para este efeito, terceiros. Na verdade, a tese da Recorrente no sentido de o contrato de seguro em questão garantir também a responsabilidade extracontratual dos inquilinos ou ocupantes é totalmente desprovida de sentido e não encontra, sublinhe-se, qualquer apoio no texto da apólice. A responsabilidade extracontratual que está garantida pelo contrato é apenas a do segurado que, no caso, coincide com o tomador do seguro, qualidade essa que os Autores não têm uma vez que não foram eles que celebraram com a Ré o contrato de seguro. Por outro lado, igualmente carece de cabimento o argumento no sentido de que está em causa uma cobertura obrigatória e que, não tendo sido contratada a cobertura facultativa para danos causados ao recheio, apenas o imóvel constitui objecto do seguro. É que, tal como decorre dos factos acima descritos, não se está aqui no âmbito da cobertura obrigatória, mas antes no domínio da cobertura facultativa de responsabilidade civil e esta, contrariamente ao que sucede com aquela outra, tem um âmbito completamente distinto, abrangendo os danos patrimoniais ou não patrimoniais, decorrentes de lesões causadas a terceiros, em consequência da propriedade do imóvel seguro (artigos 137.º, e 138.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16-04). É, pois, esta a única interpretação possível das cláusulas a que se fez alusão, quer por ser a que encontra expressa correspondência no texto da apólice de seguro em causa, quer por ser a que traduz o sentido que qualquer declaratário normal, colocado na posição dos 1.ºs Réus, delas retiraria (artigos 236.º, e 238.º, n.º 1, do Código Civil). Consequentemente, estando garantida, por força do contrato de seguro celebrado, a obrigação de indemnizar terceiros (como sucede com os Autores), improcede, nesta parte, a revista da Ré Seguradora.
IV. DECISÃO Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedentes os recursos de revista interpostos, respectivamente pelos 1.ºs Réus e pela Ré Seguradora; consequentemente, alterando o acórdão recorrido na parte atinente à indemnização por danos patrimoniais, condena-se os Réus no pagamento aos Autores da quantia de 10.000,00€ (dez mil euros), a esse título, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, mantendo, no mais, a decisão recorrida. Custas (da acção e do recurso) pelos Autores e Réus, na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que aqueles beneficiam.
Graça Amaral (Relatora) Maria Olinda Garcia Ricardo Costa
Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
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