Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
682/19.0T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
MEIOS DE PROVA
PROVA TESTEMUNHAL
GRAVAÇÃO DA PROVA
PROVA DOCUMENTAL
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
RECURSO DE APELAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 07/07/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA PARCIALMENTE A REVISTA, REENVIADO À FORMAÇÃO
PARA APRECIAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DA REVISTA
EXCEPCIONAL.
Sumário :
I - A fim de evitar, na apreciação do cumprimento dos ónus do art. 640.º do CPC, os efeitos dum excessivo formalismo, tem o STJ procurado estabelecer uma separação entre os requisitos formais de admissão da impugnação da decisão de facto e os requisitos ligados ao mérito ou demérito da pretensão, afirmando que “a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro de reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade e consistência daquela fundamentação”.
II - Em todo o caso, há sempre um “mínimo” a cumprir, sem o qual ainda estaremos no âmbito do requisito formal do ónus de impugnação.
III - Tal “mínimo” não é atingido/concretizado quando o apelante se limita a dizer que os pontos de facto identificados devem ser modificados porque duas testemunhas disseram coisa diversa da que foi dada como provada, mas não indica exatamente o que disseram (ou sequer o momento dos seus depoimentos em que o disseram, antes se limitando a dizer que os depoimentos estão gravados do “Lado A da fita da Cassete”).
IV - A forma não deve prevalecer sobre o conteúdo, razão pela qual pequenas imprecisões sobre a identificação das passagens da gravação não serão fundamento para o tribunal da Relação rejeitar a reapreciação da decisão de facto, porém, para alterar um facto, de provado para não provado (ou vice versa), não basta dizer que “não foi produzida prova” (ou o contrário).
Decisão Texto Integral:


Proc. 682/19.0T8GMR.G1.S1

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório

Banco Comercial Português, S.A., com sede no Porto, instaurou ação de reivindicação, sob a forma de processo comum, contra AA, com os sinais dos autos, pedindo que se:

- a) Declare que o prédio identificado em 1.º é propriedade do A.;

- b) Condene o R. a reconhecer ao A. o direito de propriedade sobre o bem imóvel em causa;

- c) Condene o R. a restituir ao A. a parte do imóvel supra descrito que ilicitamente detém, entregando-o devoluto de pessoas e bens.

Alegou, em síntese, que o R. ocupa, contra a sua vontade, uma parcela de 143 m2 de um prédio de sua propriedade, pretendendo a sua restituição.

O R. contestou, alegando, em resumo, que, quando adquiriu o prédio contíguo ao do A., já aquela parcela se encontrava ocupada pela anterior proprietária.

Em sede de audiência prévia, foi o A. convidado a corrigir a PI com a alegação de factos conducentes à aquisição originária da parcela em causa.

Convite a que o A. acedeu, vindo alegar que a área em discussão nos autos está na posse dos anteriores donos do seu prédio (o descrito sob o nº. …..20), desde pelo menos 19 de Maio de 1999, sem oposição de ninguém, nomeadamente da irmã da anterior dona do prédio ….20º, a qual era dona do prédio contíguo (o …..51º), atualmente pertencente ao R.; o que o R. impugnou, alegando que a parcela reivindicada sempre teve ligação física ao prédio/casa que agora lhe pertence.

Foi proferido despacho saneador – que considerou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

Instruído o processo e realizada a audiência de julgamento (no local do litígio), o Exmo. Juiz proferiu sentença, em que julgou a ação totalmente procedente e, em consequência:

“a). declarou que o prédio e a parcela identificados de I.1 a I.4 são propriedade da Autora;

b). condenou o R. AA a reconhecer referido direito de propriedade sobre os referidos prédio e parcela;

c). condenou o R. AA a restituir ao Autor a parcela de 143 m2 referida em I.4, entregando-a devoluta de pessoas e bens”.

Inconformado com tal decisão, interpôs o R. recurso de apelação, tendo-se, por Acórdão da Relação …., proferido em 08/10/2020, negado provimento ao recurso, confirmando-se consequentemente a sentença recorrida.

Ainda inconformado, interpõe agora o R. o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que, invertendo o decidido, julgue a ação totalmente improcedente.

Terminou a sua alegação com conclusões em que, inter alia, refere:

(…)

“93. Quanto aos requisitos formais para admissão da apelação, requer seja reconhecido o cumprimento dos mesmos - na medida em que era possível o fazer pelo recorrente - o que levará a reapreciação da matéria de fato incorretamente julgada, nos termos das conclusões da apelação e tudo conforme já fundamentado alhures.”

(…)”

O A. respondeu, sustentando, em síntese e no que aqui interessa, que o Acórdão recorrido não violou as normas processuais referidas pela recorrente, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação

Como consta do despacho que admitiu a presente revista, esta, em termos de revista “normal”, só foi admitida quanto à questão, também suscitada na revista, da aplicação das normas de direito adjetivo relacionadas com a impugnação da decisão da matéria de facto, uma vez que, quanto ao mais, a situação de dupla conformidade que se verifica (cfr. 671.º/3 do CPC) obstou à admissibilidade da revista enquanto revista “normal” (razão pela qual, a propósito doutros segmentos do acórdão da Relação, se encontra interposta pelo R. “revista excecional” – tendo sido invocado para o efeito o preceituado no art. 672.º/1/a) e c) do CPC – cuja verificação dos pressupostos compete à “Formação” a que alude o art. 672.º/3 do CPC, para onde os autos serão, após o prolação do presente acórdão, remetidos).

Temos pois que o objeto do presente acórdão se circunscreve à apreciação do segmento do acórdão da Relação que, com fundamento em o R./apelante não haver cumprido devidamente os ónus impostos pelo art. 640.º do CPC, rejeitou a impugnação da decisão de facto.

Vejamos, então:

Na sentença de 1.ª Instância, deu-se como provado e não provado o seguinte:

“(…)

I. Factos Provados:

1. O Autor adquiriu por compra e venda, em processo de insolvência, o prédio urbano sito em …., freguesia ….., concelho ….., descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o n.º ….20. e inscrito na respetiva matriz

2. A aquisição desse prédio está registada a favor do Autor pela Ap…. de 2016/01/15.

3. O referido prédio tem, na realidade, uma área coberta de 252,45 m2 e descoberta de 531,55 m2.

4. Dessa área descoberta faz parte uma parcela de terreno com a área de 143 m2, visível na planta anexa com sombreado assinalado com Área = 143 m2 (cfr. documento de fls.7, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

5. O Autor, por si e antecessores, está na detenção daquela parcela de 143 m2, agindo como se dono dela fosse, com conhecimento de toda a gente, desde há mais de vinte anos consecutivos.

6. E sem oposição de ninguém.

7. À revelia e sem a autorização do Autor, o Réu colocou uma “chapa de metal” no topo noroeste da referida área de 143 m2.

8. Passando a ocupar essa parcela de 143 m2 desde 27 de Novembro de 2017.

(…)

11. Em 1998, o prédio rústico nº …20, então de propriedade de BB, com área total de 2.510m², segundo contava na descrição predial, foi objeto de um destaque de 1.050m², dando origem ao prédio nº. ….51, onde em 1999, foi finalizada a construção de uma vivenda unifamiliar que, em 2017, veio a ser adquirida pelo réu.

12. Em 1999, o referido prédio descrito sob o nº. ….20 foi vendido à CC que, em 2005, construiu lá uma vivenda unifamiliar.

13. A então proprietária do prédio nº. ….20 era irmã da então proprietária do prédio nº. …...51

14. Na altura da sua compra, o Réu verificou que o terreno era inferior à metragem que constava na respetiva descrição predial.

15. A área total constante na descrição do imóvel e também na matriz, em 2005, não existia.

16. Na parcela referida em 4., há um portão de acesso ao terreno do Réu.

II. Factos não provados:

Não se provou que:

1.Quando o Réu comprou o prédio referido em I.10 foi-lhe apresentada toda a área de terreno que o compunha, inclusive a parcela de 143 m2, a qual possuía uma cerca com hastes de madeira, delimitada por fios de arame, em mau estado.

2. A área do terreno de propriedade do Autor era, na verdade de cerca de 400 m2, onde a área demarcada em vermelho no documento junto como nº. 7 a fls.36 verso corresponde ao terreno do Réu, a área em amarelo corresponde ao terreno do Autor e a marcação na cor verde indica onde efetivamente está a delimitação do terreno do Réu.

3. Na planta de implantação do referido prédio, o Réu verificou que o terreno, originalmente, era mais extenso para norte, justamente onde estava o prédio do Autor.

4. Foi feita uma sobreposição da planta do imóvel do prédio nº. … sobre a planta do imóvel do Réu, provavelmente para viabilizar a construção de uma casa de dimensões superiores a que seria permitida construir no terreno com as medidas verdadeiras, que já não seriam aqueles tais 1.400m² que constavam da descrição predial, mas apenas 400m², na realidade.

5. Os terrenos permaneceram sem uma definição precisa, in loco.

6. Até que, em Janeiro de 2016, foi feita uma delimitação dos terrenos, exatamente da forma que em 2017 o prédio foi vendido ao réu e que está representada no documento de fls.36 verso.

(…)”

Ao que, no corpo da sua alegação recursiva, o R./apelante manifestou a seguinte discordância:

“ (…)

Do recurso quanto a matéria de facto:

17. O tribunal deu como provados, dentre outros, os seguintes fatos:

Em I-3, que o prédio de propriedade do autor teria uma área coberta de 252,42m² e descoberta de 531,55m², fazendo parte dessa área (fatos provados I-4), a área de 143m² ocupada pelo réu.

Nos fatos provados 5, o juízo entendeu que o autor e seus antecessores estariam na posse da referida parcela de terreno “há mais de vinte anos consecutivos.”

18. Ora excelências, basta uma análise superficial dos documentos acostados aos autos para se verificar que o prédio de propriedade do autor foi construído apenas em 2005, sendo, portanto, impossível que em 2017, quando o réu delimitou a referida área definitivamente e passou a exercer posse inequívoca sobre ela, houvesse posse há mais de vinte anos por parte do autor ou de seus antecessores.

19. Ao contrário, pelo que depreende do depoimento das testemunhas CC e de sua irmã DD, (Lado A da fita Cassete), anteriores proprietárias dos prédios do autor e réu, respetivamente, apenas tempos depois da construção do prédio …, a parcela de terreno passou a ser ocupada pela então proprietária do prédio do autor, mas com autorização da proprietária, apenas para uso.

20. Vejam ilustres julgadores que sequer foi possível determinar quando tal a posse direta passou a ser exercida pela então proprietária do prédio do autor, sabendo-se apenas que foi muito depois de finais 2005, quando terminou a construção da casa no prédio ……, de propriedade do apelado.

21. Mister ressaltar que ambas as testemunhas confirmaram em seus depoimentos que depois de construída a casa pela Sra. CC (prédio 220), em razão de o prédio do réu ter um quintal muito maior, as irmãs acordaram que o pai das mesmas, que residia com a filha no prédio …., ficaria a cultivar a leira de cima, justamente objeto da presente lide.

22. Portanto, se pode concluir inequivocamente que até então, tal parcela de terreno estava na posse direta e indireta da então proprietária do prédio do réu. Do contrário, não haveria necessidade de haver nenhum acordo entre as duas proprietárias dos dois prédios para que a proprietária do prédio …. usasse um terreno que já fosse seu ou que já possuísse!

23. Se houve entendimentos, negociações, foi em razão de a parcela de terreno em causa pertencer ao prédio ….51, que tinha mais quintal que o prédio ….20. e que, por essa e outras razões, cedeu a posse direta para uso da referida parcela de terreno, permanecendo, contudo, na posse indireta do terreno.

24. Mesmo assim, tal fato se deu muito depois de 2005, em data que, como dito, não foi possível precisar.

25. Até aqui, pode se concluir que em 1999, foi vendido a DD o atual prédio …..51 da freguesia de ….., o qual tinha 1050 m², tendo sido construído nesse prédio uma casa que serviu de habitação à mesma, tendo permanecido na posse da totalidade do terreno até 2005. Note-se que há nos autos certidão da autarquia municipal atestando a regularidade da operação fundiária quanto ao novo prédio com 1050m².

26. Corroborando com tal conclusão, é o depoimento da testemunha DD que afirmou ter sido ela, inclusive, quem construiu o muro que alicerça a leira de cima. Aqui há que se destacar que o mm juiz equivocou-se ao considerar que o muro teria sido construído pela proprietária do prédio ……20.

27. Na r. sentença, percebe-se o erro material ao considerar que a DD, que foi quem construiu o muro, seria, na altura, então proprietária do prédio do autor. Na verdade, ela era proprietária do prédio do réu e o juízo, desse ponto da sentença em diante, sempre considerou erradamente que DD seria então proprietária do prédio do autor, o que compromete sobremaneira as conclusões do i. magistrado.

28. Em data não apurada, quando CC, irmã da então proprietária do prédio ….51 resolveu construir sua casa, foi-lhe cedida parte do terreno do prédio ….51, não se confundindo tal parte com a parcela de terreno objeto da ação. Até então, a parcela de terreno em litígio continuou a ser possuída pela então proprietária do prédio …..51, DD.

29. Tal terreno, conforme depoimento de ambas as testemunhas, era utilizado pelo pai das mesmas, o qual morava com a filha CC no prédio …...20

30. Não havia, por tanto, animus domini por parte do pai das então proprietárias, muito menos por parte da proprietária do prédio …...20

31. O que havia era uma simples autorização de uso e para o pai das proprietárias, que sequer era proprietário de qualquer dos imóveis.

32. Ora, tal “posse” jamais poderia ser considerada para efeitos de usucapião!

33. As duas proprietárias, que eram irmãs, visando o bem estar de seu pai, acordaram que o mesmo poderia utilizar a parcela de terreno do prédio ….51 para criar suas galinhas e fazer sua horta. Apenas isso!

34. Mister ressaltar que a leira de cima, continuava a ter acesso direto pelo prédio …, hoje de propriedade do réu.

35. No caso concreto não há elementos capazes de embasar as conclusões a que chegou o juízo nos fatos provados nºs 3, 4, 5, 6 e 7.

36. Pelo contrário, ficou provado que a parcela de terreno em litígio faz parte e sempre fez, do prédio do réu.

37. Outro fato que não foi corretamente apreciado pelo juízo foi a continuidade do pavimento existente na parcela de terreno.

38. Conforme alegado pelo réu em sede de contestação, o critério utilizado para colocação das chapas metálicas que vedaram acesso ao terreno, foi o alinhamento das chapas que já existiam no patamar inferior, apesar de toda a parcela de terreno da leira de cima pertencer ao prédio de propriedade do mesmo, inclusive a pequena parte que ficou acessível pelo prédio do autor.

39. O réu, por uma questão de bom senso, optou por deixar uma parcela do seu terreno para o prédio ….20, já que há ali instalado um equipamento de aquecimento afeto ao prédio do autor que necessita ser acessado por essa parcela de terreno.

40. Para evitar constrangimentos de ter que permitir acesso ao seu terreno no futuro, o réu optou por já deixar cerca de 20m² delimitados para o prédio ….20, obedecendo assim, como dito alhures, o alinhamento da parte de baixo do terreno.

41. Pela inspeção feita no local, o mmº juiz pode verificar que o material utilizado no referido pavimento era o mesmo utilizado na churrasqueira do prédio do réu e num pequeno passeio no jardim do mesmo prédio do réu, tudo construído na mesma altura.

42. No mesmo sentido, a testemunha do autor, EE, topógrafo contratado pelo Banco BCP, afirmou categoricamente em seu depoimento (Lado A da fita cassete), que no prédio do autor não havia qualquer pavimento cujo material fosse igual ao pavimento encontrado na área sob judice.

43. Vejamos a teor do depoimento nesse ponto específico:

Perguntado porque concluiu que o terreno fazia parte do prédio do autor e não do réu, a testemunha disse que pela sua experiência, o muro que sustenta o terreno de cima havia sido construída na altura da construção da primeira casa. Entretanto, ele julgava que a casa que tinha sido construída primeira tinha sido a do autor. Quando confrontado com o alvará de obras de fls. 26, a testemunha confirmou que o prédio do réu tinha sido construído primeiro.

Depois, perguntado se havia algo no prédio do autor construído com o mesmo material do pavimento existente em parte da área em litígio a testemunha disse:

44. Ora ilustres desembargadores, tal fato, mais uma vez comprova que a parcela de terreno em causa sempre pertenceu ao prédio do réu e que dito pavimento foi construído pela então proprietária do mesmo, que também construiu a churrasqueira e o passeio no quintal de baixo.

45. A mesma testemunha, perguntada porque tinha chegado à conclusão de que a parcela de terreno seria do autor e não do réu, afirmou que “ tanto um prédio como outro tinham falta de área e que pelo aspeto homogêneo do passeio, e pelo acesso, e pelas escadas existentes, chegou à conclusão que aquilo era área que integrava o prédio de cima.” (Lado A da fita cassete) Prédio esse que pertencia ao seu contratante!

46. É curioso, no entanto, que os mesmos elementos verificados pelo topógrafo quanto ao prédio do autor, se verificavam também quanto ao prédio do réu, como ficou demonstrado no laudo de inspeção.

47. Ambos os prédios tinham acesso à área, que se encontra em nível mais alto que os dois os prédios e o tal passeio foi dividido quase a meio pelas chapas colocadas pelo réu.

48. Ademais, as regras de experiência mostram que o normal é que os terrenos tenham uma delimitação de estremas mais regular. O que não é usual é que um terreno adentre noutro prédio como se fosse um L, como seria o caso, se a parcela de terreno em disputa fosse mesmo do prédio do autor.

49. Nesse sentido, basta uma simples análise área dos dois terrenos para se concluir que não faz nenhum sentido que a área em disputa pertencesse ao prédio do autor e não ao prédio do réu.

50. Também há que se considerar que ficou provado pelo depoimento da testemunha CC (Lado A da fita cassete), que o terreno de cima era abastecido com água do poço do prédio réu, outro indício de que tal parcela era afeta a esse mesmo prédio.

51. Em razão do exposto acima, há que se considerar como provados os fatos 2, 3, 4 e 5 constantes nos fatos tidos por não provados.

52. Desde o início está claro ter havido ilegalidades no que se refere a área do prédio do autor, o qual, após o destaque feito em 1998, ficou com uma área de cerca de 400m² apenas e não com a área que constava na descrição predial.

53. No entanto, tal situação foi criada pelos próprios proprietários do prédio que agora pertence ao autor.

54. Para viabilizar a venda de 1050m² de terreno, inventaram haver mais outros quase 1000m² para o prédio …., agora de propriedade do autor.

55. Manter a sentença da forma como lançada seria privilegiar as ilegalidades que se verificaram in casu, quando da operação de destaque.

56. Após ter sido vendido 1050m² de terreno à DD, dando origem ao prédio ….51, o prédio …20. ficou apenas com a área remanescente dessa operação de destaque, que jamais foi aquela constante da respectiva descrição predial.

57. Mister ressaltar que o réu já ficou prejudicado pela falta da parcela de terreno usada, anos mais tarde, para edificação da casa no prédio …..20, como ressaltado no articulado de defesa, parcela essa que não é objeto da presente demanda judicial.

58. Ademais, a parcela de terreno em litígio avança para dentro do restante quintal do réu, em nível mais elevado, ficando a menos de 5 mts de distância da construção existente e imediatamente junta ao equipamento de churrasqueira.

59. Portanto, permitir a ocupação de tal terreno pelos proprietários do prédio …20 seria um contrassenso e mais um fato gerador de litígios no futuro.

60. Comprovado que está que a parcela em litígio desde 1998, sempre esteve na posse da então proprietária do prédio do réu até depois de 2005, cai por terra a possibilidade de aquisição da mesma por usucapião a favor do autor.

61. A posse exercida pela então proprietária do prédio do autor, além de não ser qualificada para a usucapião, é de má-fé, uma vez que tinha pleno conhecimento que tal parcela de terreno pertencia ao prédio ……51 e que sequer podia ser fracionada em razão do ônus de não fracionamento que gravava dito imóvel até o ano de 2008.

62. Há que se ressaltar ainda que não ficou provado ter, em qualquer altura, havido exercício de posse com intensão de ser dono por parte dos anteriores proprietários do prédio do autor, após o destaque e a venda do terreno.

63. Apenas por amor ao debate, considerando hipoteticamente ter havido posse qualificada com animus domini por parte dos antecessores do autor, tal posse seria inequivocamente de má fé, como dito acima.

64. Assim, já que a possuidora CC, somente passou a ocupar dito terreno em data posterior a novembro 2005, data essa que sequer foi possível precisar, somente haveria possibilidade de aquisição por usucapião depois de novembro de 2025.

65. Como bem mencionado pelo mmº juiz em sua fundamentação, a posse exercida em decorrência de loteamento ilegal, o que seria o caso, se traduz em posse de má fé e sem qualquer título, devendo, portanto, observar-se o prazo vintenário para que se operasse a prescrição aquisitiva pela modalidade da usucapião.

66. O erro do julgador foi, primeiro no fato de considerar haver posse qualificada e depois no tempo em que essa posse teria perdurado.

67. A qualificação da posse é algo subjetivo e mais complexo de ser apurado. Apesar disso, o fato de ter sido dado permissão ao pais das então proprietárias para granjear a parcela de terreno, deixa claro não haver posse qualificada por ninguém além da então proprietária do prédio do réu.

68. Já o lapso temporal de exercício da posse, no caso em tela, é mais fácil de ser apurado, seja em razão do destaque feito em 1998, o que interrompeu a posse do então proprietário do prédio originário, seja pelo próprio depoimento das testemunhas que não deixa quaisquer dúvidas de que até depois de novembro de 2005, a parcela de terreno estava na posse da então proprietária do prédio …..51

69. Há que salientar ainda que o autor não conseguiu comprovar, sequer, em que data a parcela de terreno teria passado a ser possuída pela Sra. CC, ônus que lhe competia, e que seria imprescindível para verificação de eventual aquisição originária.

70. Por tudo o que fora dito até aqui, reapreciada a prova produzida, nomeadamente o depoimento das testemunhas, verifica-se existir fundamentos para alteração da decisão vergastada adotando-se a redação proposta a seguir.

71. No que diz respeito aos fatos tidos como provados os mesmos deveriam, data máxima vênia, constarem da seguinte forma:

I-3. O prédio do autor tem uma área coberta de 252,45 m² e descoberta de 388,55m².

I-4. Dessa área descoberta não faz parte a parcela de terreno com 143m² visível na planta anexa com sombreado, a qual pertence ao prédio do réu.

I-5. O autor, por si e antecessores, não detém a referida parcela de terreno, agindo como se dono dela fosse, com conhecimento de toda gente, por vinte anos ininterruptos.

I-6. O réu se opôs a eventual posse exercida por terceiros em novembro de 2017 quando vedou a parcela de terreno.

72. Já nos fatos tidos por não provados, a contrário sensu, a redação deverá ser a seguinte:

II- 1. Quando o réu comprou o prédio referido em I.10, não lhe foi feita qualquer restrição quanto a posse e propriedade da parcela de 143m² objeto da presente ação.

II-2. A área do terreno de propriedade do autor era de 531,55m², fazendo parte da mesma a parcela de terreno com 143m² visível na planta anexa com sombreado.

II-3, II-4, II-5 e II-6. Devem constar como fatos provados.

(…)”

Após o que, nas conclusões da sua alegação recursiva, o R./apelante fez constar o seguinte:

“87. O apelante discorda ainda das conclusões fáticas a que chegou o juízo a quo pois, no nosso entender, os fatos provados 3, 4, 5,6 e 7 foram incorretamente ponderados, merecendo decisão diversa conforme redação proposta alhures e abaixo replicada:

I-3. O prédio do autor tem uma área coberta de 252,45 m² e descoberta de 388,55m².

I-4. Dessa área descoberta não faz parte a parcela de terreno com 143m² visível na planta anexa com sombreado, a qual pertence ao prédio do réu.

I-5. O autor, por si e antecessores, não detém a referida parcela de terreno, agindo como se dono dela fosse, com conhecimento de toda gente, por vinte anos ininterruptos.

I-6. O réu se opôs a eventual posse exercida por terceiros em novembro de 2017 quando vedou a parcela de terreno.

88. Discorda ainda o recorrente quanto aos fatos tidos por não provados em 3, 4, 5, 6 e 7 propondo, a respeito dos mesmos, a seguinte redação:

II- 1. Quando o réu comprou o prédio referido em I.10, não lhe foi feita qualquer restrição quanto a posse e propriedade da parcela de 143m² objeto da presente ação.

II-2. A área do terreno de propriedade do autor era de 531,55m², fazendo parte da mesma a parcela de terreno com 143m² visível na planta anexa com sombreado.

II-3, II-4, II-5 e II-6. Devem constar como fatos provados. …. - …… ….. - ……. www……..jur.adv.br

(…)

O que mereceu no Acórdão da Relação, sob revista, a seguinte apreciação e decisão:

“ (…)

Alega o apelado que o apelante não cumpre os mencionados ónus porque não indica em relação a cada um dos factos julgados provados quais os meios de prova que impõem decisão diversa ou que foram incorretamente apreciados, limitando-se a impugnar os factos em bloco, sem a sua concreta especificação e sem concreta e especificada análise crítica das provas, assim não cumprindo o disposto no artº 640º, nº 2.

Vejamos:

O apelante impugna os factos constantes dos pontos 3, 4, 5, 6 e 7 dos factos provados, propondo redação diversa e impugna também os factos dados como não provados nos pontos 1 a 6 dos factos não provados (e não 3, 4, 5, 6 e 7, como se refere, por lapso, na conclusão 88, lapso esse que é evidente pelo confronto com a redação proposta para os factos não provados e pela enumeração que os antecede, remetendo para os factos II.1 a II.6).

O apelante fundamenta-se em documentos e na prova testemunhal. Na prova documental para pôr em causa o período de tempo em que foi exercida a posse pelos AA. No entanto, relativamente aos documentos, não concretiza em que documento se baseia para pedir a alteração dos factos provados. Limita-se a referir que basta “uma análise superficial” dos documentos juntos para se apurar que o prédio foi construído apenas em 2005, pelo que era impossível que em 2017 quando o autor delimitou a área do seu prédio, já houvesse posse há mais de 20 anos sobre a parcela controvertida por parte do autor ou dos seus antecessores.

O apelante fundamenta-se ainda no depoimento das testemunhas CC e sua irmã DD, mas sem que identifique a que voltas do lado A da cassete se encontram as passagens da gravação em que se funda, nem procedendo à transcrição dos depoimentos em que se fundamenta. O apelante apenas refere e não o faz relativamente a todos os pontos impugnados, o que as testemunhas CC e DD terão dito, fazendo-o em discurso indireto (v.g. ponto 21, 26, 29, 43 das alegações). A alusão ao depoimento das testemunhas em discurso indireto, não cumpre o ónus imposto pelo artº 640º, nº 2, a) do CPC).

O apelante apenas por uma única vez transcreve o depoimento de uma testemunha, fazendo-o relativamente ao depoimento de EE, (ponto 45 do recurso a que corresponde cerca três linhas), mas sem localizar este depoimento na gravação. De qualquer modo, a pequena passagem transcrita, nunca poderia fundamentar uma alteração da matéria de facto, pois que se trata de um depoimento no sentido do alegado pelo A., contra o que é alegado pelo R., ora apelante.

O apelante também faz uma impugnação genérica da matéria de facto, não indicando ponto a ponto da matéria de facto quais os meios probatórios em que se fundamenta para a procedência da impugnação.

Ora, a falta da indicação do documento ou documentos em que se funda, a não localização na fita dos depoimentos nem a sua transcrição e a impugnação genérica da matéria de facto, não cumpre o ónus imposto pelo artº 640º, nº 1, alínea b) e 640º, nº 2 do CPC, pelo que a impugnação é de rejeitar.

(…)”

Vindo o R/apelante, agora, na presente revista, invocar o seguinte:

“(…)

28. Quanto ao mérito, o Tribunal da Relação …. entendeu que não poderia dele conhecer, uma vez que o recorrido não teria cumprido o ónus imposto pelo artigo 640º, 1, b), do CPC.

29. Antes de mais, cumpre-nos salientar que os requisitos propriamente ditos vem inseridos no número 1 do artigo 640º.

30. O número dois, como vem entendendo a mais moderna doutrina e a jurisprudência mais abalizada, como se vê no Acórdão do STJ de 29.10.2015, se traduz num ónus secundário e que deve levar em consideração a possibilidade de cumprimento pelas partes, com o fim de facilitar o acesso aos meios de prova gravados.

31. Em outro julgado do STJ de 28.04.2016, dando voz à consolidada jurisprudência da Corte Suprema, adverte-se que “é necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640º do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspetos de ordem material”, de maneira a não se exponenciarem os efeitos cominatórios previsto no citado dispositivo.

32. Ora, eminentes julgadores, no caso concreto, o depoimento foi gravado em fita K7, utilizando-se um equipamento totalmente obsoleto, ultrapassado e desprovido de qualquer recurso capaz de identificar com precisão o momento em que se deu cada depoimento.

33. A única maneira de identificar concretamente os pontos em que se inserem os depoimentos é indicando o lado da fita. Lado A ou B.

34 E isso o recorrente fez!

35 Vejam que não é possível qualquer outra forma de precisar as passagens da gravação.

36. A lei processual revogada, já antevendo tais dificuldades, previa no nº 4 do artº 685-B a obrigação de transcrição dos depoimentos em casos de impossibilidade de indicação precisa dos trechos da gravação.

37. Contudo, tal obrigação foi abolida pela legislação vigente, talvez por ser impensável ao legislador que o Tribunal ….. ainda usasse gravador K7 em suas diligências!

38. O que não foi abolido e deve ainda ser prestigiado é o princípio da cooperação, pelo qual, o recorrente deveria, ao menos, ter sido notificado para se manifestar a respeito de tal situação.

39. Se tivesse sido notificado, poderia explicar que em pleno ano de 2020, é quase inexistente aparelhos de reprodução de fita K7, o que dificultou sobre maneira a análise dos depoimentos inclusive pelo recorrente.

40. A título de argumentação, após quase um mês de procura por um aparelho que reproduzisse fitas K7, o então réu conseguiu, na casa de um amigo que mora em …., ouvir uma única vez a fita K7, tomando alguns apontamentos.

41. Diante de uma situação como essa, não nos parece razoável exigir indicação mais precisa do que aquela que foi feita nas razões da apelação.

42. Há que se ressaltar ainda que a forma não deve prevalecer sobre o conteúdo, princípio esse presente em diversos preceitos legislativos respeitantes a deficiência de correção de deficiências formais.

43. Portanto, data vênia, a matéria de fato deveria ter sido conhecida e, consequentemente revista, o que levaria à absolvição do réu quanto à pretendida usucapião.

44. Não obstante, tal entendimento encontra-se em oposição com acórdão do STJ, no processo nº 1825/09.7TBSTS.P1.S1, de 01/07/2014, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Dr. Gabriel Catarino e STJ 3683/16.6T8CBR.C1.S2, de 21/03/2019, relatado pela Exma. Juíza Conselheira Dra. Rosa Tching – acórdão fundamento – que considera que o tribunal de recurso não deve abster-se de reapreciar a prova gravada ainda que o recorrente não indique com precisão as passagens da gravação onde estão os depoimentos mencionados.

45. Seguindo o entendimento explanado no douto Acórdão fundamento, entende a ora recorrente que a indicação, ainda que inexata, das passagens da gravação em que funda o recurso para basear o erro de julgamento com referência às provas gravadas, é suficiente para se considerar que o recorrente cumpriu o ónus imposto pelo artigo 640°, n° 2, alínea a) do Código de Processo Civil, não havendo motivo ou fundamento para que o Tribunal da Relação deixe de apreciar o recurso na parte relativa à impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto.

46. A questão da interpretação do estatuído na alínea a) do n° 2 do artigo 640° do CPC, podendo parecer despicienda, é, no entanto, de extrema relevância jurídica, porquanto uma má interpretação de tal preceito pode pôr em causa o próprio direito fundamental, constitucionalmente consagrado, do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, sendo a sua discussão e apreciação, pela sua relevância, claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

47. Pelo que, mesmo que não houvesse qualquer contradição entre acórdãos - e há - sempre deveria tal questão ser discutida e a Revista Excecional admitida, ao abrigo da alínea a) do n°1 do artigo 672°do Código de Processo Civil. (…)”

E, concluiu, na presente revista, do seguinte modo:

“93. Quanto aos requisitos formais para admissão da apelação, requer seja reconhecido o cumprimento dos mesmos - na medida em que era possível o fazer pelo recorrente - o que levará a reapreciação da matéria de fato incorretamente julgada, nos termos das conclusões da apelação e tudo conforme já fundamentado alhures.”

Assim, perante tal concreto contexto e encadeamento, tudo visto e ponderado, entendemos que bem andou o acórdão da Relação ao rejeitar a impugnação da decisão de facto.

Para o recurso de apelação poder ter como objeto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o apelante, em face do disposto no art. 640.º do CPC:

 - indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com a respetiva enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

 - especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; e, se a impugnação se fundar, no todo ou em parte, em prova gravada, indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes, podendo proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;

 - deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.

Pelo que, sendo assim, deve ser rejeitada a impugnação da decisão de facto se e quando houver:

 - falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (arts. 640.º/1/a), 635.º/4 e 641.º/2/b) do CPC);

 - falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados e/ou falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda (art. 640.º/1/b) e 2/a) do CPC);

 - falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação (art. 640.º/1/c) do CPC).

Em todo o caso, sem prejuízo dos ónus a cargo do recorrente, impostos pelo art. 640.º do CPC, deverem ser apreciados com rigor – como consequência do princípio da autorresponsabilidade das partes – impedindo-se que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa manifestação genérica de inconformismo das partes, o certo é que o STJ vem defendendo que há que compaginar o cumprimento dos ónus de alegação do art. 640.º com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e assim evitar, em tal apreciação, os efeitos dum excessivo formalismo[1].

É justamente por isto que se vem entendendo que o recorrente não tem que reproduzir exaustivamente nas conclusões da alegação de recurso o alegado no corpo da alegação, bastando que, nas conclusões, respeite o art. 639.º/1 do CPC, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados; desde que, como é evidente, previamente, no corpo da alegação, haja cumprido os demais ónus, especificando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa e deixe expressa a decisão que, ainda no seu entender, deve ser proferida.

Efetivamente, como é uniformemente referido pela jurisprudência deste STJ[2], são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra geral que se extrai do art. 635.º do CPC, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões, até por, acrescenta-se, as conclusões confrontarem o recorrido com o ónus de contra-alegação, evitando dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente, e servirem ainda para delimitar o objeto do recurso (nos termos do referido art. 635.º do CPC).

Seja como for – tendo o recorrente identificado, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados e tendo tomado posição sobre o resultado pretendido relativamente a cada um de tais factos – não foi aqui, nestas duas vertentes do ónus de impugnação, que residiu a razão da rejeição, mas sim, como consta do acórdão recorrido, na falta de indicação, no corpo da alegação, das passagens da gravação que fundam, segundo o R./recorrente, a modificação da decisão relativamente aos pontos de facto identificados.

Na sua referida linha de evitar, na apreciação do cumprimento dos ónus do art. 640.º do CPC, os efeitos dum excessivo formalismo, tem este STJ procurado estabelecer uma separação entre os requisitos formais de admissão da impugnação da decisão de facto e os requisitos ligados ao mérito ou demérito da pretensão, afirmando que “a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro de reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade e consistência daquela fundamentação”[3].

Em todo o caso – e sem prejuízo da linha de fronteira nem sempre ser fácil de estabelecer em abstrato – há sempre um “mínimo” a cumprir, sem o qual ainda estaremos no âmbito do requisito formal do ónus de impugnação.

E, no caso, tal “mínimo” não foi atingido/concretizado pelo R. na sua apelação.

Como resulta de todo o encadeamento descrito, o R impugnou 11 pontos de facto – 5 dos factos provados e 6 dos factos não provados – com o que, verdadeiramente, acabou por abarcar todo o litígio e tudo o que era controvertido entre as partes, ou seja, os limites (e a área) dos dois prédios vizinhos (o prédio …...51º do R. e o prédio …..20º do A.).

Para tal, invocou a prova documental e testemunhal que foram produzidas.

Porém, como se observa no acórdão recorrido, não concretizou os documentos, antes se limitando a referir que basta “uma análise superficial dos documentos juntos” para se apurar algo diferente do que foi dado como provado em termos de posse; e, quanto à prova testemunhal, aludiu às testemunhas CC e à sua irmã DD, mas, quanto às passagens da gravação que fundariam a modificação da decisão relativamente aos pontos de facto identificados, indicou tão só o “Lado A da fita da Cassete” (e não o fez sequer relativamente a todos os pontos de facto impugnados), sem nunca proceder à reprodução de quaisquer excertos do que uma e outra disseram.

Apenas por uma vez (ponto 45, supra transcrito), o R aludiu ao que uma testemunha (o EE) terá dito e para o refutar – na medida em que tal depoimento terá sido favorável à tese da A. – e não para determinar uma decisão diversa para os pontos de facto colocados em crise.

Verdadeiramente e em síntese, o R., na apelação, diz que os pontos de facto identificados devem ser modificados porque as irmãs CC e DD disseram coisa diversa da que foi dada como provada, mas o que uma e outra exatamente disseram (e o momento dos seus depoimentos em que o disseram) é algo que o R. não indica, não cumprindo, num limiar mínimo, o ónus/exigência imposto pelo art. 640.º/2/a) do CPC.

Conclusão esta que não é desproporcional, irrazoável ou formalista, uma vez que, estando-se perante depoimentos curtos – todo o julgamento está gravado numa única cassete e a produção de toda a prova não atingiu sequer 60 minutos – devia o R., caso tivesse dificuldade em identificar as passagens da gravação (por esta ter sido efetuada em gravador de cassetes), proceder à transcrição dos excertos que considerasse relevantes.

Não sendo, a nosso ver, pertinente e adequado o que se refere neste recurso de revista – sobre ter sido utilizado “um equipamento totalmente obsoleto, ultrapassado e desprovido de qualquer recurso capaz de identificar com precisão o momento em que se deu cada depoimento” – uma vez que o julgamento foi assim gravado por ter sido realizado no local (conforme havia sido determinado, sem oposição, na audiência prévia), pelo que, tudo visto, o R., na indicação dos meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação das provas, não se podia ter ficado pelo “Lado A da fita da Cassete” (que não é sequer o Lado da Cassete em que está gravado o depoimento da testemunha DD).

A forma não deve prevalecer sobre o conteúdo, razão pela qual pequenas imprecisões sobre a identificação das passagens da gravação não serão fundamento para o Tribunal da Relação rejeitar a reapreciação da decisão de facto, porém, o modo como o R., na apelação, “cumpriu” o ónus/exigência imposto pelo art. 640.º/2/a) do CPC não configura apenas – na medida em que o R. se limitou a remeter genericamente para a cassete da gravação (remissão em que não incluiu sequer o Lado da Cassete em que uma das testemunhas invocadas tinha o seu depoimento gravado) – uma mera imprecisão, mas a não indicação mínima dos momentos dos dois referidos depoimentos que fundariam a modificação da decisão relativamente aos pontos de facto identificados.

Enfim, para alterar um facto, de provado para não provado (ou vice versa), não basta dizer que “não foi produzida prova” (ou o contrário) e, no fundo, é apenas isto que o R. acaba por fazer na sua apelação, quando – é o ponto – se exige que a parte/recorrente diga exatamente o que, em termos de meio de prova, foi produzido e que, com um mínimo de exatidão, identifique o momento em que tal aconteceu (em que tal meio de prova foi produzido).

Em conclusão, a Relação não violou as normas de direito adjetivo (arts. 640.º e 662.º do CPC) relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, ou seja, não merece censura a rejeição (por o R., na apelação, não haver cumprido devidamente o ónus imposto pelo art. 640.º/1/b) e 2 do CPC) da reapreciação da decisão de facto proferida pela 1.ª Instância.

*

III - Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista “normal” respeitante ao segmento do acórdão da Relação que, com fundamento em o R./apelante não haver cumprido devidamente o ónus imposto pelo art. 640.º/1/b) e 2 do CPC, rejeitou a impugnação da decisão de facto.

Transitado, remetam-se os autos à “Formação”, de acordo e nos termos do despacho que admitiu a revista.

*

Lisboa,07/07/2021

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ana Paula Boularot, vencida de acordo com o respetivo voto de vencido que se segue.

*O relator declara que, nos termos do art. 15.º-A do DL n. 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL n. 20/2020, de 1 de maio, o presente acórdão tem voto de conformidade do 1.º Conselheiro adjunto.

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

__________


PROC 682/19.0T8GMR.G1.S1
6ª SECÇÃO


DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencida, teria revogado o Acórdão da Relação e ordenado o conhecimento da impugnação da matéria de facto suscitada pelo Recorrente em sede de recurso de Apelação, por entender estarem suficientemente cumpridos os ónus do artigo 640º do CPCivil.

Ao contrário do que sustenta na tese que faz vencimento, o Recorrente, nas suas conclusões 87 e 88, enuncia a factualidade posta em crise, bem como as alterações pretendidas, tendo ao longo das suas alegações feito apelo aos depoimentos das testemunhas, localizando os mesmos e identificando estas, bem como fez apelo aos documentos juntos aos autos, ou seja, o quantum satis para que as especificações impostas por aquele mencionado normativo se possam ter como cumpridas, aliás, em consonância com a jurisprudência que se tem vindo a firmar a propósito neste Supremo Tribunal de Justiça, pois tem sido entendimento, neste preciso conspectu, que se deverá ter como cumprida a exigência ali formulada, quando a parte indica o depoimento, identifica a pessoa que o prestou e assinala os pontos de facto que se pretendem ver reapreciados, elementos estes que na espécie foram observados, cfr neste sentido os Ac STJ de 22 de Fevereiro de 2010 (Relator Fonseca Ramos), de 29 de Novembro de 2011 (Relator Alves Velho), de 4 de Abril de 2013 (Relator Moreira Alves), de 2 de Dezembro de 2013, de 7 de Junho de 2016 e de 8 de Janeiro de 2019 da ora Adjunta, de 6 de Novembro de 2019 (Relator Chambel Mourisco), in www.dgsi.pt; de 9 Julho de 2015 (Relator Júlio Gomes), de 10 de Dezembro de 2015 (Relator José Rainho), de 19 de Janeiro de 2016 (Relator Pinto de Almeida), in SASTJ, site do STJ.

(Ana Paula Boularot)




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[1] Cfr. Acórdãos do STJ de 29/10/2015, 01/10/2015, 19/02/2015, 18/02/2016, 11/02/2016, 19/01/2016, 03/12/2015, 16/11/2015, 26/11/2015 e 09/07/2015, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Ac STJ de 23/02/2010 e de 22/10/2015, disponíveis em www.dgsi.pt.

[3] Como se escreveu no Ac do STJ de 19-12-2015, “o nível da argumentação apresentada pelo recorrente já não respeita aos requisitos formais das alegações, antes se relacionando com o respetivo mérito que deve ser apreciado pela Relação”.