Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2120/21.9T8STB.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO
TRANSMISSÃO DA UNIDADE ECONÓMICA
FALTA DE PAGAMENTO DA RETRIBUIÇÃO
CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURANÇA SOCIAL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
BOA FÉ
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 10/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO E JULGADO IMPROCEDENTE O PEDIDO DE CONDENAÇÃO COMO LITIGANTE DE MÁ FÉ.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I- É competência material do Juízo do Trabalho o julgamento de acção destinada a apreciar e a decidir sobre a existência de direito de regresso relativo ao pagamento de retribuições laborais e contribuições para a Segurança Social, decorrente da responsabilidade solidária nas relações internas entre transmitente e adquirente de empresa, envolvendo um contrato de prestação de serviços configurado como forma de “transmissão” de empresa para efeitos juslaborais, tendo como objecto a interpretação e a aplicação dos pressupostos do art. 285º, 1, 2, 3 e 6 do Código do Trabalho, à luz das als. b)questões emergentes de relações de trabalho subordinado») e n) («questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente») do art. 126º, 1, da LOSJ.                          
II- Não preenche o art. 542º, 2, a) e d), do CPC, para qualificação como conduta processual de litigância de má fé, a exigir culpa qualificada (dolo ou negligência grave), a dedução de Reclamação para a Conferência em que se corporiza um meio de impugnação horizontal de uma Decisão Sumária Liminar proferida pelo Relator (arts. 652º, 1, c), 656º, 652º, 3, 679º, CPC), obrigando à intervenção do Colectivo e, com isso, uma reflexão ulterior e a tomada de uma decisão plural e colegial, impugnação essa que se basta com um mero requerimento que «sobre a matéria do despacho recaia um acórdão» (sem necessidade de justificação ou sequer motivação para a iniciativa processual, a não ser a prejudicialidade do decaimento da pretensão recursiva); este meio processual, sem mais factualidade, é exercido ainda como um mecanismo legítimo de defesa de uma posição jurídica diversa daquela que a decisão singular impugnada acolhe e ampara, sem violação grave dos deveres de cooperação, boa fé processual e correcção recíproca (arts. 7º, 1, 8º e 9º, 1, CPC) na relação do recorrente com as demais partes e com o Tribunal, tendo em vista inverter a solução com a qual mantém o inconformismo.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 2120/21.9T8STB.P1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, ... Secção

Reclamação de Decisão Sumária (arts. 652º, 1, c), 656º, 652º, 3, 679º, CPC)

Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. A sociedade «Schnellecke Portugal, Unipessoal, Lda.» intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra «Rangel – Distribuição e Logística, S.A.», tendo em vista, em sede principal, o exercício de direito de regresso relativamente a retribuições de trabalhadores, pagas pela Autora, devidas a título de férias e subsídios de férias (ano de 2019 e anteriores, vencidas a 1/1/2020), assim como proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal (Janeiro e Fevereiro de 2020), com referência a 29/2/2020 e não pagas pela Ré. Tal direito funda-se na transmissão-sucessão da actividade de gestão e organização das actividades logísticas de “receção, armazenagem, gestão de stocks e expedição de componentes automóveis” realizada no estabelecimento “Armazém de Produto Acabado”, propriedade da “C..., S. A.», resultante da celebração, em 13/10/2019, de contrato de prestação de serviços logísticos entre a Autora e a «C...», com início de produção de efeitos a 1/3/2020, antes a cargo da Ré e caducado em 29/2/2020, com quem tinham relação de trabalho até essa data os trabalhadores afectos à Ré e aos quais foram pagas tais retribuições pela Autora, tendo como fundamento a aplicação do regime dos arts. 285º e ss do Código de Trabalho e pressuposto de que a sucessão de empregadores por via desse novo contrato de prestação de serviços equivaleu a uma sucessão na exploração de estabelecimento (sendo a Autora a adquirente e a Ré a transmitente, sucedeu ope legis a Autora à Ré na posição empregadora de 204 contratos de trabalhos referidos aos 207 trabalhadores que até 29/2/2020 laboravam naquele armazém); a liquidação de tais valores, com referência a data anterior a 1/3/2020, ascende à quantia global de € 419.225,18, a que se juntou o valor de € 99.573,10, em referência às contribuições para a Segurança Social, calculado na percentagem de 23,75% sobre o valor anteriormente referido, somando tudo o valor de € 518.828,28.
Assim, peticionou a procedência da acção, com a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 518.828,28, acrescida de juros, incluindo os vencidos, tudo no valor total de € 536.122,46, com fundamento principal (i) na responsabilidade solidária da Ré e exercício do direito de regresso (maxime, art. 285º, 1 e 6, do CT) e fundamentos subsidiários (ii e iii) nos institutos da subrogação legal e do enriquecimento sem causa.

2. A Ré apresentou Contestação, invocando por excepção a incompetência em razão do território e em razão da matéria do Juízo Central Cível ... e apresentando defesa por impugnação e de direito para absolvição da instância e dos pedidos, assim como ser condenada a Autora em litigância de má fé com multa e pagamento à Ré de indemnização.
A Autora apresentou Resposta às excepções invocadas e ao pedido de condenação em litigância de má fé, opondo-se.

3. Apreciando e decidindo das excepções alegadas sobre a incompetência do tribunal em razão da matéria, o Juiz ... do Juízo Central Cível ... proferiu despacho, no qual, em conclusão:
                                                                                                                                                      
“Desta feita, competente territorialmente para conhecimento da presente acção é o Juízo Central ....
Pelo que, se declara a incompetência territorial deste Juízo Central Cível para conhecer a presente acção, determinando-se a sua remessa para o Juízo Central Cível ...”.

4. Na sequência, recebidos os autos, o Juiz ... do Juízo Central ... proferiu despacho:

“A A., Schnellecke Portugal, Unipessoal, Lda., através da presente acção de processo comum, demandou a R., Rangel – Distribuição e Logística, S.A., exercendo o direito de regresso relativamente a retribuições de trabalhadores, subsídios de férias e de Natal que pagou ao abrigo do art. 285.º do Código de Trabalho.
A R. invocou a incompetência material dos Juízos Cíveis, ao que a A., em Resposta, se opôs.
Apreciando, começa-se por convocar o disposto no art. 65.º do CPC que dispõe que são as leis de organização judiciária que determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.
Por sua vez, o art. 126.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013 de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ) dispõe que compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes, além do mais, de relações de trabalho subordinado (a al. b)) e das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja directamente competente (al. n)).
Pois bem, o objecto da presente acção, tal como definido pela própria A., reconduz-se justamente ao pedido de reembolso dos valores correspondentes a direitos/créditos salariais e encargos sociais vencidos ou referentes a período anterior a 1/03/2020 que pagou aos trabalhadores por si herdados da R. quando a 29/02/2020 a substituiu na organização e execução das actividades logísticas do armazém que identifica, situação por ambas as partes enquadrada no âmbito da transmissão de estabelecimento prevista no art. 285.º do Código do Trabalho (CP).
Do que vem de se dizer resulta, pois, que em apreço estão questões emergentes de relações originárias de trabalho subordinado, entre a R. e os seus trabalhadores e entre a A. e os mesmos trabalhadores, e de relação conexa entre a A. e a R., inseridas umas e outra no âmbito de matéria laboral.
Na verdade, o direito de regresso aqui exercido pela A. assenta nas relações jurídicas primárias estabelecidas primeiro entre a R. e os seus trabalhadores e depois entre a A. e os mesmos trabalhadores e na relação jurídica subsequente entre A. e R. dependente daquelas, e, nessa medida, o pedido na presente acção também se desdobra em dois, por um lado, o pedido indispensável, embora implícito, de reconhecimento do direito dos trabalhadores receberem as remunerações e subsídios em causa originariamente da R. e, ao abrigo do art. 285.º do CT, da A., e, por outro, o pedido expresso, daquele dependente, de condenação da R. a reembolsar a A. desses valores.
Donde, ao abrigo dos arts. 126.º, n.º 1, al. b) e n) da LOSJ, se conclui pela competência do Tribunal do Trabalho para conhecer da presente acção e pela incompetência deste Juízo Central Cível para o efeito.
Ora, a violação das regras da competência em razão da matéria, por força do art. 96.º, al. a) do CPC, determina a incompetência absoluta do Tribunal, excepção dilatória (art. 577.º, al. a) do CPC) que, podendo ser arguida pelas partes, deve, por imposição do art. 97.º, n.º 1 do CPC, ser conhecida oficiosamente, com a consequente absolvição da R. da instância (art. 278.º, n.º 1, al. a) do CPC), sem prejuízo da remessa do processo ao tribunal competente a requerimento da A. no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, nos termos do art. 99.º, n.º 2 do CPC.
Pelo exposto, declara-se este Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado pela A., e, em consequência, absolve-se a R. da instância.”

5. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que proferiu acórdão, no qual, visando a questão recursiva “saber ser a competência em razão da matéria para conhecer da presente acção pertence aos Juízos Cíveis ou aos Juízos do Trabalho”, se julgou totalmente improcedente a apelação, confirmando-se o despacho recorrido que concluiu pela competência do Tribunal do Trabalho para conhecer da acção.

6. Novamente sem se resignar, a Autora interpôs recurso de revista para o STJ, tendo por fundamento os arts. 629º, 2, a), d), e 672º, 1, a) a c), que finalizou com as seguintes Conclusões:

a. O presente recurso vem interposto nos termos conjugados do disposto no n.º 2, do artigos 629.º, alíneas a) e d) e artigo 672.º, alíneas a) a c), ambos do CPC, sendo que a situação sub judice reúne as condições legalmente exigíveis para o reconhecimento, pois que está em tempo, sendo dela admissível recurso.
b. Vindo interposto do Acórdão, que julga verificada e confirma, a exceção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal de primeira instância, em razão da matéria, tendo por fundamento:

vi. A violação das regras de competência em razão da matéria e a ofensa de caso julgado – cfr. al. a) do n.º 2., do artigo 629.º do CPC;

vii.  A contradição do acórdão sub judice, com outro de diferente Relação – cfr. al. d), do n.º 2., do artigo 629.º do CPC;

viii. A prevalência de questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – artigo 672.º n.º 1 al. a) do CPC;

ix. A prevalência de interesses de particular relevância social – artigo 672.º n.º 1, al. b) do CPC;

x.     Contradição de acórdão da Relação, com outro, já transitado em julgado, proferido pela Relação, no domíniodamesmalegislação e sobre amesmaquestão fundamentalde direito (…) – artigo 672.º n.º 1, al. c) do CPC.

c. A questão suscitada no presente recurso prende-se, com a competência em razão da matéria do Juiz ..., do Juízo Central Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e a sua interposição, com a necessidade de evitar a eternização do ping-pong jurisdicional em que este processo já se tornou.

d. Dispõe a alínea n), do n.º 1, do artigo 126.º da LOSJ, que os tribunais do trabalho são competentes para conhecer: Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos eterceiros, quando emergentes derelações conexas com a relação detrabalho,poracessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente”.

e. No caso da ação dos autos, Autora/recorrente e a Ré/recorrida, não são, entre si, sujeitos de uma relação de trabalho e por outro lado, a questão suscitada na ação dos autos, não se encontra cumulada com outro pedido para o qual o Tribunal do Trabalho (conjunção copulativa “e” resultante da parte final da alínea em apreço), seja diretamente competente, sendo e por último, a questão suscitada na ação, não emerge de uma relação jurídica conexa por complementaridade, acessoriedade ou dependência da relação de trabalho entre a Autora/recorrente ou a Ré/recorrida e terceiros (trabalhadores).

f. Por seu turno, face ao alegado pela Autora/recorrente, na ação, a questão a dilucidar pelo Juiz ..., do Juízo Central Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto a quo é: A Autora/Recorrente tem direito de regresso sobre a Ré/Recorrida, pelos valores que pagou aos trabalhadores em substituição desta, a título de férias, subsídios de férias e de Natal, e por que montante? – O que não é claramente (e cristalinamente), uma questão laboral.

g. A questão da competência é um dos pressupostos processuais positivos, porque a sua existênciaé essencialparaque oJuizdevapronunciar-se sobre aprocedênciaouimprocedência da ação.

h. A infração das regras de competência em razão da matéria, sendo um dos casos de incompetência absoluta – cf. artigo 96.º, al. a) do CPC – obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, implicando a absolvição do Réu da instância – cf. artigos 99.º, n.º 1, 577.º, al. a) e 576.º, n.º 2.º do CPC – sendo jurisprudência pacífica e aceite, que a competência em razão da matéria, se fixaem função dostermosem que o Autorpropõe aação, atendendoao direitoaque o mesmo se arroga e pretende ver judicialmente protegido, devendo, por isso, essa questão, ser decidida em conformidade com o pedido formulado na p. i. e a respetiva causa de pedir invocada.

i. Ora, o objeto da ação sub judice, como ali afirma a Autora/recorrente, é exatamente, o exercício de um direito de regresso contra a Ré/recorrida, pelas quantias que pagou em substituição desta (e que não deveria pagar).

j. Atentando no âmbito da competência material dos tribunais do trabalho, no confronto com a causa de pedir e o pedido formulado na ação, estes têm competência em matéria cível, para conhecer, para além do mais: “das questões emergentes de relações de trabalho subordinado (…)” – cfr. artigo 126.º, n.º 1, al. b) da LOSJ.

k. Bem como, das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho, ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a de trabalho, por acessoriedade, complementariedade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja diretamente competente” – cf. artigo 126.º, n.º 1, alínea n), da LOSJ).

l. Sabendo, que o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito – cfr. artigo 5.º, do CPC – cumpre, desde logo, perante os factos invocados pela Autora/recorrente (e apenas perante estes, que são os que interessam para a análise da competência do Tribunal), indagar, se se verificará o invocado direito de regresso.
m. Ora, conjugada a matéria de facto alegada na p. i. e em resposta na contestação e dos documentos juntos, resulta assente que:

i.        A Ré/recorrida exerceu a exploração da atividade de receção, movimentação, armazenagem e expedição, no estabelecimento industrial denominado por Armazém de Produto Acabado, da sociedade C..., sito em ..., ..., até ao dia 29.02.2020, inclusive;

ii.       Na datade 01.03.2020, a Autora/recorrente iniciou aatividade de exploração da atividade que a Ré/recorrida desenvolvera, de receção, movimentação, armazenagem e expedição no estabelecimento industrial denominado por Armazém de Produto Acabado da sociedade C..., sito em ..., ...;

iii.       Na data de 01.03.2020 ocorreu entre as partes da ação, uma transmissão de estabelecimento, processada nos termos dos artigos 285.º e ss. do CT;

iv.      Nessa data de 01.03.2020, a Autora/recorrente passou a ser a entidade empregadora dos trabalhadores que laboravam no sobredito estabelecimento industrial;

v.       Só a partir do dia 01/03/2020, é que a Autora/recorrente passou a ser a entidade empregadora dos sobreditos Trabalhadores;

vi.      Em tal data de 01.03.2020, transmitiu-se ope legis, da Ré/recorrida para a Autora/recorrente, a posição de empregadora nos contratos de trabalho dos trabalhadores que laboravam afetos ao referido estabelecimento;

vii.      A Ré/recorrida efetuou o pagamento dos vencimentos dos seus trabalhadores, até ao dia 29.02.2020;

viii.     A Ré/recorrida não pagou aos seus trabalhadores do transmitido estabelecimento, os créditos laborais relativos às férias e subsídio de férias do ano de 2019, vencidos a 01.01.2020;

ix.      Como não pagou os créditos relativos às férias, subsídios de férias e de Natal, dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2020;

x.       No dia 01/01/2020, venceu-se o direito a férias dos trabalhadores do referido estabelecimento, reportado ao trabalho por eles prestado no ano civil de 2019;

xi.      No dia 01/01/2020 venceu-se o direito desses trabalhadores de receberem da Ré/recorrida, a remuneração de férias e subsídio de férias relativos ao ano de 2019;

xii.      No dia 01/01/2020 a Ré/recorrida, tornou-se devedora das importâncias relativas a remuneração de férias e subsídio de férias do ano de 2019 e responsável pelo seu pagamento;

xiii.      No dia 15/12/2020 venceu-se o direito desses trabalhadores de receberem da Ré/recorrida, a remuneração de subsídio de Natal, relativa aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2020;

xiv.     No dia 15/12/2020 a Ré/recorrida, tornou-se devedora das importâncias relativas subsídio de Natal relativa aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2020 e responsável pelo seu pagamento;

xv.     No dia 01/01/2021 venceu-se o direito a férias e respetivo subsídio, dos trabalhadores do referido estabelecimento, reportado aotrabalhopor eles prestadonosmesesde Janeiro e Fevereiro de 2020;

xvi.     No dia 01/01/2021 venceu-se o direito desses trabalhadores de receberem da Ré/recorrida, a remuneração de férias e subsídio de férias relativos aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2020;

xvii. No dia 01/01/2021 a Ré/recorrida, tornou-se devedora das importâncias relativas a férias e subsídio de férias, relativas aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2020 e responsável pelo seu pagamento;

xviii. Não obstante as várias solicitações, à Ré/recorrida, para que efetuasse o pagamento das quantias adiantadas pela Autora/recorrente, aquela até à data nada pagou à Autora;

xix. A obrigação de pagamento que a Autora/recorrente fez aos Trabalhadores emerge de fonte legal decorrente de transmissão do estabelecimento a Ré/recorrida explorara no Armazém de Produto Acabado da sociedade C... - cfr. artigos 285.º e s.s. do CT;

xx. Ao pagar aos trabalhadores as retribuições referentes a férias do ano de 2019, vencidas em 01.01.2020 e respetivo subsídio de férias, assim como os dias de férias e subsídios de férias e de Natal dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2020, a Autora cumpriu uma responsabilidade própria a que se vinculou e responde solidariamente, a transmitente nos termos dos artigos 285.º e s.s. do CT;

xxi. Autora/recorrente alega na ação deter sobre a Ré/recorrida, um crédito decorrente de pagamentos que fez em substituição desta;

xxii. A Autora/recorrente o vem aos autos na qualidade de titular do direito de regresso perante a Ré/recorrida, face às quantias vencidas a data da transmissão, que em substituição dela, pagou aos trabalhadores do transmitido estabelecimento.

n. Repetindo, a posição da Autora/recorrente na ação, não é subsumível a qualquer norma da LOSJ, que atribua a competência para a resolução deste conflito, aos Tribunais do Trabalho, já que, por um lado, não se trata nessa ação, de questão emergente de relações de trabalho subordinado e, as partes dessa ação, não são sujeitos de uma relação jurídica de trabalho, nem a questão suscitada se encontracumulada com outropedido, parao qual o tribunal do trabalho seja diretamente competentenem, essamesmaquestão, emerge deumarelação jurídica conexa por complementaridade, acessoriedade ou dependência da relação de trabalho, entre a autora e terceiros (no caso, os trabalhadores).

o. E assim, a resolução do conflito apresentado nos autos, à primeira instância, não é da competência material dos Tribunais do Trabalho, mas dos Tribunais Cíveis, jurisdição onde foi corretamente proposta.

p. Improcedendo, por isso, a exceção dilatória prolatada pelo Tribunal de primeira instância, quanto a nós e salvo devido respeito, erradamente confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, de incompetência em razão da matéria.

q. Exatamente e como se confirma e refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.04.2010, proferido no Proc. 53/09.6TTMTS.L1-4 (o acórdão-fundamento n.º 1) decidido por unanimidade, relativo a situação exatamente idêntica à dos autos, cujo sumário vai transcrito em sede de alegações e este recurso junto a final.

r. Confrontadaamatériaalegadanestae naquelaação (aque se refereoAcórdão doTRL, datado de 21.04.2010, proferido no Processo 53/09.6TTMTS.L1-4) – (o acórdão-fundamento n.º 1), prevalece, existe e persiste, uma clara e evidente identidade do pedido, e da causa de pedir (com a o pedido e a causa de pedir desta ação).
s. Concomitantemente, nessas ações, recursos e acórdãos (sub judice e fundamento n.º 1) debate-se:

i.        O exercício de determinada atividade de exploração de estabelecimento industrial;

ii.       A transmissão de estabelecimento industrial, nos termos do regime previsto no artigo 285.º do CT;

iii.       A transmissão ope legis e respetiva data (no âmbito do artigo 285.º do CT.), da posição de empregadora nos contratos de trabalho dos trabalhadores afetos à exploração de determinado estabelecimento industrial;

iv.      A responsabilidade pelo pagamento aos trabalhadores de determinado estabelecimento (transmitido ao abrigo do disposto no artigo 285.º do CT), dos créditos vencidos à data da transmissão;

v.       O não pagamento pela Ré/recorrida/cedente/transmitente de estabelecimento (transmitido ao abrigo do disposto no artigo 285.º do CT), de créditos laborais vencidos à data da transmissão;

vi.      O pagamento pela Autora/recorrente/ cessionária de estabelecimento industrial, de créditos de trabalhadores vencidos à data de transmissão (concretizada ao abrigo do disposto no artigo285.º                                        do CT),        da                           responsabilidade      da Ré/recorrida/transmitente/cedente;

vii.      Existência          de        um        crédito          da        Autora/recorrente/cessionária,                  sobre        a
Ré/recorrida/cedente/transmitente de estabelecimento (transmitido ao abrigo do disposto no artigo 285.º do CT), relativo a créditos de trabalhadores, vencidos à data da transmissão, que a Autora/recorrente/cessionária pagou aos trabalhadores do transmitido estabelecimento, em substituição da Ré/recorrida/ transmitente/cedente;

viii.     A existência de direito de regresso da Autora/recorrente/cessionária sobre a Ré/recorrida/cedente/transmitente, relativo aos créditos laborais que pagou aos trabalhadores do transmitido estabelecimento, substituindo-se à Ré/recorrida/ cedente/cessionária;

ix.      O Tribunal ou a jurisdição competente, em razão da matéria, para apreciar de facto e de direito, a ação de direito de regresso que resulta o pedido e da causa de pedir da Autora/recorrente contra a Ré/recorrida.

t. Os supra referidos aspetos evidenciam a identidade entre ações e recursos e a contradição entre o Acórdão sub judice e aquele outro Acórdão alegado como fundamento (n.º 1) do presente recurso – cfr. artigo 672.º, n.º 2, al. c), do CPC.

u. Sendo que o único aspeto diferente entre ambos os referidos processos, surge ao nível de um e de outro dos acórdãos dos Tribunais da Relação, determinando o TRL que a jurisdição competente para o julgamento de ação em que se reclame um direito de regresso é a dos Tribunais Cíveis, quando o TRP determina, que essa jurisdição é dos Tribunais do Trabalho.

v. O que acontece, em evidente contradição com o acórdão-fundamento n.º 1 e da qual resulta a violação das regras da competência em razão da matéria, a ofensa do caso julgado e a contradição entre Acórdãos de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

w. Acresce, que evidenciando a contradição do Acórdão sub judice com o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência, no que respeita à questão da competência material dos tribunais cíveis para apreciação e julgamento de ação de regresso, mesmo quando relacionada com aspetos laborais, estão igualmente os acórdãos-fundamento n.ºs 2 a 4, juntos a final ao presente recurso.

x. Todos eles, provenientes do STJ e decididos por unanimidade, o n.º 2., datado de 14.05.2019, relativo ao processo 09S0232, o n.º 3, datado de 14.12.2017, relativo ao processo 53716.4T8GMR,G1.S1e on.º 4, datado de19.05.2004, relativo ao processo04B3847, todos relacionados com aspetos laborais.

y. Em todas as ações e recursos a que se referem estes acórdãos-fundamento n.ºs 2 a 4, em confrontação com o Acordão sub judice, prevalece, existe e persiste entre eles, uma clara e evidente identidade do pedido e da causa de pedir.
z. Sendo que também nestes 3 (três) casos a que referem os Acórdãos-fundamento n.º 2 a 4, está em causa:

i.       Um pagamento realizado a favor de terceiro, por uma primeira entidade, em substituição de uma segunda entidade.

ii.      Entidade segunda essa, que com esse pagamento a terceiro, enriqueceu ilegitimamente e sem causa ou justificação, à custa de tal primeira entidade.

iii.     No dia do pagamento da primeira entidade a favor de terceiro, a segunda entidade ficou devedora para com a primeira, dos valores por esta pagos.

iv.     Sendo que nas ações de que decorrem os recurso e subsequentes Acórdãos-fundamento n.º 2 a 4, as ali recorrentes, vieram àqueles autos de processo, na qualidade de titular de um direito de regresso perante a recorrida, face às quantias, que em substituição dela pagaram.
aa. Sendo estes, também aqui, os supra referidos aspetos de identidade entre ações e recursos, que determiname evidenciam acontradição entre Acórdãosubjudice e aquelesoutrosAcórdãos alegados como fundamento com os nos 2 a 4 do presente recurso – cfr. artigo 672.º, n.º 2, al. c), do CPC.

bb. Nos presentes autos discute-se a competência material dos Tribunais Cíveis e dos Tribunais do Trabalho, para a apreciação de uma ação de regresso com fundamento em enriquecimento sem causa, estando em causa um interesse comunitário significativo, que ultrapassa a mera dimensão inter partes.
cc. A vexata quaestio jurídica relativa à competência material em ação como a dos autos, é controversa e debatida tanto doutrina como na jurisprudência, o que desde logo resulta da prolação sobre ela de decisão dispares pelos Tribunais da Relação, conforme resulta dos presentes autos.
dd. A questão a dirimir, relativamente a esta matéria da competência material, implica operações de exegese destinadas a esclarecer o alcance dos preceitos legais acima referidos e que determinam, quer a competência material dos Tribunais do Trabalho, quer a competência material dos Tribunais Cíveis.
ee. Está-se, na situação destes autos de processo, em face de uma questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclama aturado estudo e reflexão, tratando-se de matéria que suscita divergências a nível doutrinal e jurisprudencial (conforme resulta dos acórdãos em apreço).
ff. Sendoconveniente, paraumacéleree corretaadministração dajustiça, anecessáriaintervenção do STJ, com vista à orientação dos demais Tribunais, de modo a evitar divergências suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias.
gg. Justificando-se a apreciação desta matéria pelo STJ., de modo minorar ou mesmo evitar as contradições que sobre ela possam surgir, situações, que colocam em causa a eficácia e põem em dúvida a credibilidade, quer do direito, quer das decisões judiciais, na sua formulação legal ounaaplicação casuística, estando, pois, aquiabrangidoscasosem que há um invulgar impacto na situação da vida que a norma ou normas jurídicas em apreço visam regular.
hh. Conforme demonstrado, a apreciação da questão proposta no presente recurso, é claramente necessária, pois que se prende com uma melhor aplicação do direito e necessária celeridade da justiça, evitando dúvidas e a indefinição quanto à jurisdição competente para apreciar determinada ação, o que acontece face aos dois acórdãos aqui mencionados e em conflito (cfr. artigo 672.º, n.º 2, al. a)).
ii. A prevalência de soluções diversas para questões da mesma natureza, é causadora de forte perturbação, insegurança e incerteza, necessariamente geradora de dúvidas interpretativas, que afetam negativamente os destinatários diretos das decisões judiciais e a confiança no direito.
jj. A persistência de soluções diversas para a mesma situação jurídica, consubstancia a violação de direitos constitucionais como o do acesso à justiça e aos tribunais, consagrados como direitos fundamentais.
kk. A continuada discussão da competência material dos Tribunais Cíveis e dos Tribunais do Trabalho remete para implicações sociais, que colocam em causa a eficácia do Direito e a confiança dos cidadãos nas instituições, questões que dizem respeito a valores de relevo e que merecem tutela do STJ, devido à sua importância.

ll. Tais situações tem um impacto social significativo, por acontecerem frequentemente (veja-se o caso dos autos), relacionam-se com todos os que recorrem à justiça e vêm conseguido repetir-se, expandindo a controvérsia, criando inquietações sociais, fazendo duvidar da boa aplicação da justiça e da credibilidade do direito e mesmo, da credibilidade das instituições.
mm. Nestas situações, fica posta em causa a eficácia do direito e a sua credibilidade, existindo um invulgar impacto na situação que as normas jurídicas da competência visam regular, existindo interesse comunitário na célere, correta e justa aplicação da justiça (cfr. artigo 672.º, n.º 2, al. b)).


A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade da revista excepcional, pelo não conhecimento do recurso com base no art. 629º, 2 (em face da prevalência da revista excepcional) e, de todo o modo, se for de apreciar, pela improcedência da revista.

7. Atento o objecto recursivo, notificado para audição nos termos do art. 101º, 1, 2ª parte, do CPC, o Ministério Público veio pronunciar-se com a seguinte conclusão, sustentando o provimento da revista:

“ (…) a questão dos autos não entra em nenhuma destas alíneas [b) e n)] do artigo 126.º da LOSJ pelo que o tribunal competente para a decidir terá de ser necessariamente o Tribunal Cível”, sustentando o provimento da revista.

A Recorrida, no exercício do contraditório, veio novamente pugnar pela competência do Juízo de Trabalho. 

8. De acordo com o previsto pelos arts. 652º, 1, c), e 656º, ex vi art. 679º, do CPC, o aqui Relator proferiu Decisão Sumária Liminar, na qual:

(i) se convolou oficiosamente a impugnação (arts. 6º, 2, 193º, 3, e 547º do CPC) como revista extraordinária, a título exclusivo, para apreciação e julgamento da violação das regras de competência em razão da matéria, tal como enquadrada no art. 629º, 2, a), do CPC, correspondente às Conclusões c) a v) do recurso, tendo em vista a determinação do tribunal competente para a decisão da presente acção declarativa;

(ii) se julgou improcedente a revista, julgando-se competente o Juízo do Trabalho no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por aplicação do art. 126º, 1, b) e n), da LOSJ, improcedendo as Conclusões da Recorrente, sem prejuízo da faculdade de requerimento da remessa do processo ao tribunal competente nos termos e nas condições do art. 99º, 2, do CPC.

9. Notificada, veio agora a Autora e Recorrente de revista deduzir Reclamação para a Conferência, usando da faculdade processual oferecida pelo art. 652º, 3, ex vi art. 679º, do CPC, solicitando que sobre a matéria da Decisão Sumária recaia um acórdão, restrita à improcedência da revista extraordinária sobre a questão da competência material, reiterando o entendimento expresso na fundamentação da revista e pugnando pela sua procedência.
Respondeu a Ré: (i) pugnando pela confirmação da Decisão reclamada, tendo em conta a aplicação das als. b) e n) do art. 126º, 1, da LOSJ; (ii) pedindo a condenação da Autora e Recorrente em litigância de má fé, com pagamento de multa e indemnização em valor mínimo de € 5.000 (arts. 542º, 1, 2, d), 543º, 1, a), CPC; 27º, 3, RCP; cfr. fls. 1477v-1478).
Quanto a este pedido, exerceu o contraditório a Autora e Recorrente, em requerimento atravessado a fls. 1485 e ss, pugnando pela improcedência e condenação em custas da Autora pelo incidente.
*


Foram dispensados os vistos legais.


Cumpre apreciar e decidir.

II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO

1. Objecto

           
A Recorrente alega novamente o erro de interpretação e aplicação da LOSJ para aferição da competência em razão da matéria para o julgamento da presente acção declarativa.
A única questão agora a (re)apreciar consiste na bondade da improcedência da revista extraordinária, assente na inexistência de preenchimento do art. 629º, 2, a), do CPC, tal como julgada na Decisão Sumária reclamada.

2. Factualidade relevante

Releva o que consta supra no Relatório, tendo em conta a delimitação do objecto do recurso e agora da Reclamação.


3. Direito aplicável e decisão sobre a violação das regras de competência em razão da matéria (art. 629º, 2, a), CPC)

Sobre a matéria sob apreciação, a argumentação da Decisão Sumária aqui objecto de Reclamação traduziu-se no que se transcreve:

3.1. A questão a resolver é saber se o acórdão recorrido fez a correcta aplicação do direito quando considerou incompetente em razão da matéria para conhecer da acção o Juízo Central Cível ..., em detrimento do Juízo do Trabalho, tendo em vista o confronto do art. 126º, 1, b) e n), com o art. 117º, 1, a), da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário: LOSJ).

 

Os arts. 64º e 65º do CPC estabelecem:

«São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.»; «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.».

Tal princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais resulta do disposto pelo art. 211º, 1, da CRP: «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».

E encontra ainda tradução no art. 40º, 1, da LOSJ.

Assim, a LOSJ prescreve, no seu art. 117º, a competência dos juízos centrais cíveis:

«1 – Compete aos juízos centrais cíveis:

a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000,00;

b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;

c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.

2 – Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.

3 – São remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.»


Por seu turno, o art. 126º da LOSJ prevê a competência, em matéria cível, dos juízos do trabalho:

«1 – Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:
a) Das questões relativas à anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho que não revistam natureza administrativa;
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;
e) Das ações destinadas a anular os atos e contratos celebrados por quaisquer entidades responsáveis com o fim de se eximirem ao cumprimento de obrigações resultantes da aplicação da legislação sindical ou do trabalho;
f) Das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho;
g) Das questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio;
h) Das questões entre trabalhadores ao serviço da mesma entidade, a respeito de direitos e obrigações que resultem de atos praticados em comum na execução das suas relações de trabalho ou que resultem de ato ilícito praticado por um deles na execução do serviço e por motivo deste, ressalvada a competência dos tribunais criminais quanto à responsabilidade civil conexa com a criminal;

i) Das questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais;
j) Das questões entre associações sindicais e sócios ou pessoas por eles representados, ou afetados por decisões suas, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de uns ou de outros;

k) Dos processos destinados à liquidação e partilha de bens de instituições de previdência ou de associações sindicais, quando não haja disposição legal em contrário;
l) Das questões entre instituições de previdência ou entre associações sindicais, a respeito da existência, extensão ou qualidade de poderes ou deveres legais, regulamentares ou estatutários de um deles que afete o outro;
m) Das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais;
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
o) Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão;
p) Das questões cíveis relativas à greve;
q) Das questões entre comissões de trabalhadores e as respetivas comissões coordenadoras, a empresa ou trabalhadores desta;
r) De todas questões relativas ao controlo da legalidade da constituição, dos estatutos e respetivas alterações, do funcionamento e da extinção das associações sindicais, associações de empregadores e comissões de trabalhadores;
s) Das demais questões que por lei lhes sejam atribuídas.
2 – Compete ainda aos juízos do trabalho julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação nos domínios laboral e da segurança social.»

Neste quadro de alegada especificidade, cabe averiguar se a matéria a decidir nos presentes autos consiste em questão cuja especialidade justifica a competência laboral especializada; não sendo, caberá integrá-la na al. a) do art. 117º, 1, da LOSJ.  

3.2. É sabido e reconhecido que a competência em razão da matéria se afere pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, ou seja, pela correlação entre o pedido e a causa de pedir[1].
No caso, o pedido de condenação feito estriba-se, a título principal, num direito de regresso de retribuições e contribuições para a Segurança Social, satisfeitas pela Autora, após uma situação de transmissão da titularidade de estabelecimento, ou da sua exploração, associada e inerente – de acordo com a invocação da Autora – à transmissão da posição contratual de empregador nos contratos de trabalho antes celebrados com a Ré, operada – ainda de acordo com a alegação da Autora – pela celebração de um contrato de prestação de serviços em benefício do proprietário do referido estabelecimento, antes celebrado com a Ré, sendo daí resultante uma sucessão na posição de empregadora quanto aos contratos de trabalho relativos à prestação de serviços nesse estabelecimento.
Assim, a causa de pedir – composta pelos factos “necessários para individualizar a pretensão material alegada pelo autor” e “para a qual requer, através do pedido que formula, uma forma de tutela jurídica” em juízo, factos esses que “devem ser subsumíveis a uma regra jurídica”, “isto é, “factos construídos como tal por uma regra jurídica”[2]: art. 5º, 1, CPC) – integra um núcleo factual orientado à pretensão resultante da conjugação dos n.os 1, 2 e 6 do art. 285º do CT. Com isso pretende-se determinar a existência de contratos de trabalho, assim como das suas obrigações e encargos correspondentes, à data da mudança de entidade empregadora, por um lado, e, por outro lado, a transmissão desses contratos de trabalho e das suas obrigações/contribuições em razão da transmissão de estabelecimento ou sua exploração determinada pelo contrato celebrado pela Autora com a «C...». Depois, em caso afirmativo, será de apurar se a Autora cumpriu obrigações relativas a esses contratos de trabalho transmitidos e se é de conceder a restituição dos montantes pagos tendo em conta a responsabilidade solidária de transmitente e adquirente «pelos créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessão, bem como pelos encargos sociais correspondentes, vencidos até à data da transmissão, cessão ou reversão, durante os dois anos subsequentes a esta».

3.3. O acórdão recorrido fundamentou assim a sua posição:

“(…) o direito de regresso que a autora pretende fazer valer depende da apreciação de matéria eminentemente laboral em que relevam os contratos de trabalho dos trabalhadores e os efeitos da transmissão sobre estes.
Quer dizer, não é possível julgar a questão da autora sem ter em conta a legislação laboral.
Logo a competência para a presente causa enquadra-se nas alíneas b) e n) do nº 1 do referido artigo 126º, tal como se entendeu no tribunal recorrido.”

Seguiu, portanto, a argumentação mais lata do decidido em 1.ª instância, que se recupera:

“(…) o objecto da presente acção, tal como definido pela própria A., reconduz-se justamente ao pedido de reembolso dos valores correspondentes a direitos/créditos salariais e encargos sociais vencidos ou referentes a período anterior a 1/03/2020 que pagou aos trabalhadores por si herdados da R. quando a 29/02/2020 a substituiu na organização e execução das actividades logísticas do armazém que identifica, situação por ambas as partes enquadrada no âmbito da transmissão de estabelecimento prevista no art. 285.º do Código do Trabalho (CP).
Do que vem de se dizer resulta, pois, que em apreço estão questões emergentes de relações originárias de trabalho subordinado, entre a R. e os seus trabalhadores e entre a A. e os mesmos trabalhadores, e de relação conexa entre a A. e a R., inseridas umas e outra no âmbito de matéria laboral.
Na verdade, o direito de regresso aqui exercido pela A. assenta nas relações jurídicas primárias estabelecidas primeiro entre a R. e os seus trabalhadores e depois entre a A. e os mesmos trabalhadores e na relação jurídica subsequente entre A. e R. dependente daquelas, e, nessa medida, o pedido na presente acção também se desdobra em dois, por um lado, o pedido indispensável, embora implícito, de reconhecimento do direito dos trabalhadores receberem as remunerações e subsídios em causa originariamente da R. e, ao abrigo do art. 285.º do CT, da A., e, por outro, o pedido expresso, daquele dependente, de condenação da R. a reembolsar a A. desses valores.”

3.4. A responsabilidade solidária prevista nos n.os 1 e 6 do art. 285º do CT, limitada às obrigações vencidas até à data da transmissão e ao prazo de dois anos subsequentes à sua realização (e cessação da qualidade de empregador), é uma responsabilidade patrimonial ou de garantia, que implica o nascimento de um direito de regresso nas relações internas entre transmitente e adquirente da posição de empregador (sendo este último o principal obrigado nos termos legais, e, volvidos dois anos, único), por dívidas relativas aos vínculos laborais transmitidos que tenham sido pagos nesse período sucessivo. Tem como pressuposto a transmissão para o adquirente ou beneficiário da exploração da empresa de todos os contratos de trabalho existentes na data da “transmissão” (que não sejam expressamente exceptuados), bem como de quaisquer direitos ou obrigações emergentes de tais contratos, não relevando o seu conhecimento, actual ou potencial, dos mesmos e do respectivo montante.[3]
Já no que toca à responsabilidade solidária prevista nos n.os 2 e 6 do CT, em caso de cessão ou reversão de exploração da empresa, […] recai sobre «quem imediatamente antes» a tenha exercido.
Em qualquer uma das previsões, o direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que, com o pagamento aos trabalhadores das retribuições e contribuições inerentes aos contratos de trabalho que ingressam na esfera jurídica do adquirente por força da lei, assumiu a satisfação de tais quantias abrangidas pela responsabilidade solidária; decorre da regra geral dos arts. 512º, 1, 513º e 524º do CCiv.

Logo, a constituição desse direito […] está condicionado:
— pela verificação e apreciação da existência de contratos de trabalhos válidos e eficazes à data da sua transmissão;
— pela verificação e apreciação de uma transmissão ope legis dos contratos de trabalho antes apreciados, bem como das obrigações correspondentes, para a esfera jurídica do adquirente (transmissário ou cessionário), resultante de uma situação de transmissão de titularidade ou de exploração de empresa, ainda que por extensão das situações previstas na lei;
— pela verificação de obrigações excluídas do âmbito da transmissão (permanecendo na esfera do transmitente);
— pela verificação do pagamento efectivo de retribuições e contribuições incluídas no âmbito da transmissão e pagas como responsável solidário.
*

O busílis da acção regressiva é, portanto, averiguar da factualidade inerente à existência de contratos de trabalho transmitidos por força de uma translação da empresa, operativa para efeitos do art. 285º, 1 (em conjugação com o n.º 3) e 2, do CT, e à sua relevância jurídica em termos de responsabilidade solidária e, em caso de pagamento de retribuições e outras como responsável solidário, restituição regressiva, a fim de decretar ou não a obrigação de satisfazer o direito de regresso alegado pela Autora, enquanto pagante das retribuições e contribuições descritas na acção.
             
Assim, é de entender que o conhecimento da questão do direito de regresso depende:
(i) da existência de «relações de trabalho subordinado» que se transmitiram  da Ré para a esfera jurídica da Autora; 
(ii) da existência de uma nova relação de trabalho subordinado entre os trabalhadores e a nova empregadora – no caso, a Autora –, que sucederá à anterior empregadora – a Ré – por continuidade legal (a quem se exige na acção o regresso, como terceira que passa a ser perante essa nova relação de trabalho), emergente de uma relação conexa para esse efeito (a de transmissão da titularidade ou de exploração da empresa, enquanto relação que deu fundamento à transmissão ope legis dos contratos de trabalho, vista como tal em função de se integrar o contrato de prestação de serviços celebrado pela «C...» com a Autora como forma de “transmissão” para efeitos juslaborais do art. 285º, 1 e 2, do CT[4]);
(iii) da existência de obrigações inerentes a esses contratos de trabalho transmitidos, vencidas e exigíveis à data da transmissão dos contratos de trabalho;
(iv) do apuramento da titularidade das obrigações que apenas são imputáveis ao transmitente da posição de empregador nos contratos de trabalho;  
(v) da existência do direito ao pagamento de retribuições e contribuições derivadas dessas relações de trabalho subordinado;
(vi) do pagamento efectivo dessas retribuições e contribuições pelo adquirente da posição de empregador nos contratos de trabalho;
(vii) da verificação da responsabilidade solidária pelos pagamentos inerentes a esses contratos de trabalho;
(viii) da verificação dos pressupostos do direito de regresso nas relações internas dos responsáveis solidários.

Logo, neste contexto global fáctico-jurídico, a apreciação e julgamento da acção é de absorver na competência exclusiva dos Juízos do Trabalho, no âmbito conjugado das matérias descritas nas als. b) e n) do art. 126º, 1, da LOSJ: questão com pedido envolvendo a entidade empregadora em contratos de trabalho e terceiro (a anterior entidade empregadora), com base em relação conexa que gerou a transmissão dos contratos de trabalho para a nova entidade por força da lei, sendo o pedido expresso, assim como os pedidos que são pressupostos desse pedido, emergentes das relações de trabalho subordinado configuradas por tais contratos de trabalho.”
Assim, concluiu-se:
             
“Atribuindo o art. 101º, 1, do CPC ao STJ o poder para decidir sobre a fixação definitiva do tribunal competente, visto não ser este o Juízo Central Cível, julga-se competente o Juízo do Trabalho no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por aplicação do art. 126º, 1, b) e n), da LOSJ, improcedendo as Conclusões da Recorrente, sem prejuízo da faculdade de requerimento da remessa do processo ao tribunal competente nos termos e nas condições do art. 99º, 2, do CPC.”
*

Não podendo restar quaisquer dúvidas sobre o sentido e o alcance deste corpo argumentativo, não se vêm razões para censurar e alterar o decidido, nem se vislumbra vício ou motivação alternativa que motive o seu falecimento. Importa, pois, agora colegialmente em conferência, sublinhar a sua adequação, que não é contrariada pela argumentação trazida (ou apenas reiterada) pela Reclamante.
Consequentemente, faz-se recair acórdão sobre a Decisão Sumária reclamada, nos termos do art. 652º, 3, ex vi art. 679º, do CPC, confirmando-se a decisão relativa à revista extraordinária interposta, com os consequentes efeitos processuais.

4. Da litigância de má fé da Recorrente e Reclamante em sede de Reclamação

4.1. Veio a Recorrida, e aqui Reclamada, suscitar e peticionar incidentalmente a litigância de má fé da Recorrente no uso da sua faculdade processual de impugnar para a Conferência a prévia Decisão Sumária Liminar.

Nestes termos:


“33. Decorrido, sensivelmente, um ano e meio desde a propositura da ação, os tribunais ainda não puderam debruçar-se sobre o substrato fáctico e jurídico que a enforma, devido ao uso manifestamente reprovável dos meios processuais por parte da Reclamante.

34. Depois de terem sido proferidas três decisões uniformes, estribadas em fundamentação idêntica e que se pronunciam, portanto, pela competência dos juízos de trabalho — uma espécie de “tripla conforme”! —, estoutra não hesita, ainda assim, em protrair a discussão.

35. Serve-se ora do artigo 652.º, n.º 3, do CPC, e da possibilidade nele consagrada de reclamação para a conferência, para sindicar uma decisão sobre uma questão de Direito que, como atesta a unicidade da pronúncia dos tribunais, nem sequer é controvertida!

36. É difícil desvendar uma justificação válida para tamanha insistência, dado que a Reclamante pugna pela competência de um foro não especializado na matéria e que, em consequência, lhe oferece menos garantias.

37. Na medida em que avoca a titularidade de um direito de regresso avaliado em €536.122,46 (quinhentos e trinta e seis mil, cento e vinte e dois euros e quarenta e seis cêntimos), e adia, constantemente, a intervenção do tribunal competente para conhecer do seu pedido, esta dificuldade é acrescida.

38. Fazendo-o, resvala para a seguinte e insanável contradição que, no limite, poderá — e deverá — ser tida em conta no julgamento do diferendo: a Reclamante esteve, enquanto pôde, mais preocupada em que lhe fosse dada razão relativamente à matéria adjetiva da competência dos tribunais, tendo levado esse seu capricho ao extremo, do que na satisfação do seu imaginado crédito.

39. Ora, deste padrão comportamental doloso advém, para a Reclamada, um acréscimo inesperado e desnecessário dos seus encargos, nomeadamente com o pagamento dos honorários dos seus advogados e das taxas de justiça devidas para exercício do contraditório nas várias instâncias.

40. E advém, principalmente, um injustificado e gravoso entorpecimento da ação da justiça, classificado pelo artigo 542.º, n.º 2, alínea d), do CPC, como litigância de má-fé.

41. Tal como concluiu este Supremo Tribunal, em acórdão prolatado no Proc. n.º 297/17.9T8MNC-A.G1.S1 (Cons. Maria do Rosário Morgado), a 12.11.2020, para o que pediu de empréstimo as palavras de CECÍLIA RIBEIRO:
“A conduta do agente deve apresentar-se como contrária a um padrão de conformidade da ação pessoal do sujeito processual com o dever de agir de acordo com a juridicidade e a lei. "A má fé processual (...) é toda a atividade desonesta, cavilosa, proteladora (para cansar o adversário), unilateral ou bilateral, verificada no exercício do direito de ação, quando desenvolvida com a intenção de prejudicar outrem, quer ela respeite ao mérito da causa (lide caluniosa, fraudulenta, etc.) quer às medidas instrumentais, desde que seja ilícita, isto é violadora das normais gerais e específicas da conduta processual, tendentes a criar as condições favoráveis a uma boa e justa decisão do pleito"’’.

42. Talvez por perspetivar uma decisão desfavorável, a Reclamante pretenda esgotar todas as vias colocadas à sua disposição para adensar a discussão em torno desta questão adjetiva, num empreendimento que é, para além de reprovável, manifesta e exclusivamente dilatório.”

Quid juris?


4.2. O art. 542º do CPC determina:

«1 – Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.»

Uma das condutas em que se poderá exprimir a litigância de má fé consiste na intervenção em juízo com propósitos dilatórios, obstando, pela sua conduta temerária, que o Tribunal almeje uma rápida decisão, pondo assim em causa o objectivo de realização de uma justiça pronta, que, decidindo o litígio com rapidez, reponha a certeza, a paz social e a segurança jurídica, afrontadas pelo litígio[5]. Neste caso, estaremos perante uma má fé instrumental, desde que acrescida da assunção subjectiva da falta de razão nessa intervenção[6].
Porém, a litigância de má fé censurável – com dolo ou negligência grave – não se confunde com a discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta de uma posição jurídica, ainda que diversa daquela que a decisão judicial acolhe e ampara – mesmo quando haja entendimento comum em duas instâncias, sob pena de ser sempre convocada essa natureza de litigância quando se interpõe revista excepcional em caso de dupla conformidade decisória ou, como é o caso, se confronta o terceiro grau de jurisdição nos casos de revista extraordinária (em que o recurso é sempre admissível nos termos prefigurados pelo art. 629º, 2, do CPC)[7].
Não se nos afigura que a Recorrente litigue, ao deduzir a presente Reclamação na instância recursiva junto do STJ, nomeadamente com a culpa qualificada que a lei exige, com violação grave dos deveres de cooperação, boa fé processual e correcção recíproca (arts. 7º, 1, 8º e 9º, 1, CPC) na sua relação com as partes e com o Tribunal: seja porque fosse de exigir conhecimento ou cognoscibilidade da falta do fundamento recursivo, tendo em conta a diligência exigível para a pessoa média, colocada nesta situação em concreto, quanto à pretensão deduzida em face da disciplina jurídica em causa (de acordo com a al. a) do art. 542º, 1, do CPC); seja porque, em particular para o caso, fosse de entender que a impugnação esteve apenas ao serviço da obtenção dos fins considerados ilegítimos na al. d) do art. 542º, 1, do CPC.
É certo que a Recorrente não se conforma com as consequências jurídicas do acórdão recorrido, que manteve a sentença de 1.ª instância, e continua a não se resignar com o mesmo sentido decisório da Decisão Sumária anteriormente proferida. Tem, por isso, ao seu dispor, o mecanismo contemplado pelo art. 652º, 3, do CPC, que permite a reapreciação da decisão com intervenção do Colectivo, como meio de impugnação residual e última, prevista para fazer inverter a solução fornecida pela instância a título singular.
Aproveitar deste meio de impugnação horizontal[8], obrigando a uma reflexão ulterior e à tomada de uma decisão plural e colegial, que se basta aliás com um mero requerimento que «sobre a matéria do despacho recaia um acórdão» (sem necessidade de justificação ou sequer motivação para a iniciativa processual, a não ser a prejudicialidade do decaimento da pretensão recursiva)[9], não permite julgar, sem mais factualidade, que foram violados os deveres processuais incompatíveis com uma actuação eivada da promoção de expedientes dilatórios, susceptível de desencadear a forte sanção punitiva que o CPC reserva para comportamentos abusivos em sede adjectivo-processual.
A Recorrente não se conforma e arca com as consequências do protelamento de uma decisão final e consolidada sobre a questão decidenda; mas tal não permite concluir que tenha infringido com desconsideração manifesta e grosseira esses deveres, em aproveitamento da aparelhagem legal que lhe permite pugnar pelo vencimento de uma outra forma de interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto – não está verificada uma actuação qualificadamente censurável para os efeitos pretendidos e consignados na lei.
Razão pela qual não logra proceder o pedido da Reclamada e Recorrida e se absolve a Reclamante e Recorrente.

III) DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em:


1) indeferir a Reclamação e confirmar a Decisão Sumária reclamada que julgou improcedente a revista extraordinária e fez desencadear os respectivos efeitos processuais;


2) julgar improcedente e absolver a Reclamante do pedido de condenação em litigância de má fé pela Reclamação deduzida e aqui julgada.

*

Custas da Reclamação a cargo da Reclamante, que se fixam em taxa de justiça correspondente a 3 UCs.

Custas do incidente relativo à litigância de má fé a cargo da Reclamada e Recorrida, que se fixam em taxa de justiça correspondente a 0,5 UC.



STJ/Lisboa, 26 de Outubro de 2022


Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo
             

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).


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[1] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A competência declarativa dos tribunais comuns, Lex, Lisboa, 1994, pág. 36.
[2] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil”, Scientia Iuridica n.º 332, 2013, págs. 396, 3999, 401-402; tb. “Factos complementares e função da causa de pedir”, Blog do IPPC, 21/7/2014, in https://blogippc.blogspot.com/2014/07/factos-complementares-e-funcao-da-causa.html.
[3] V. JOANA VASCONCELOS, Código do Trabalho anotado, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, sub art. 285º, págs. 684, 685, 686.
[4] Sobre este ponto de interpretação e aplicação da lei quanto às prestações de serviço de tipo “outsourcing” no âmbito do regime da transmissão da empresa, v. ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, “Alguns aspectos do novo regime jurídico-laboral da transmissão da empresa ou estabelecimento”, Questões Laborais n.º 53, 2018, págs. 24 e ss.
[5] ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 542º, pág. 593.
[6] V., neste sentido, o Ac. do STJ de 13/1/2015, processo n.º 36/12.9TVLSB.L1.S1, Rel. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.

[7] V. o Ac. do STJ de 10/5/2021, processo n.º 4679/19.1T8CBR-C.C1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[8] RUI PINTO, O recurso civil. Uma teoria geral. Noção, objeto, natureza, fundamento, pressupostos e sistema, AAFDL Editora, Lisboa, 2017, pág. 126.
[9] ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 652º, pág. 259.