Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | CATARINA SERRA | ||
| Descritores: | PRESTAÇÃO DE CONTAS DECISÃO SURPRESA IRREGULARIDADE PROCESSUAL PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO OMISSÃO DE FORMALIDADES ARGUIÇÃO DE NULIDADES EXCESSO DE PRONÚNCIA | ||
| Data do Acordão: | 12/12/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA | ||
| Sumário : | I. A obrigação de prestação de contas é uma obrigação de informação (cfr. artigo 573.º do CC) que impende que administre, de facto ou de direito, bens ou interesses alheios. II. Não tendo a autora conseguido provar que existiu, sem margem para dúvidas, administração de bens ou interesses alheios durante determinado período, não está a ré obrigada à prestação de contas. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO Recorrente: AA Recorrida: BB 1. Na acção movida por BB contra AA, proferiu o Tribunal de 1.ª instância a seguinte decisão: “- não reconhecer a obrigação da ré de prestar contas da administração do património de CC e de DD, à autora, no período de 20 de novembro de 2014 a 6 de dezembro de 2020, absolvendo-a, por conseguinte, de tal pedido; - reconhecer a obrigação da ré de prestar contas da administração do património de DD, à autora, no dia 7 de dezembro de 2020; - reconhecer a obrigação da ré de prestar contas da administração do património de CC, à autora, de 7 de dezembro de 2020 até à atualidade”. 2. Inconformada, apelou a autora, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra proferido Acórdão com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida na parte em que não reconheceu a obrigação da Ré de prestar contas (à Autora) da administração do património de CC e de DD, no período de 20 de Novembro de 2014 a 6 de Dezembro de 2020, reconhecendo-se e determinando-se que a Ré está obrigada a prestar contas à Autora relativamente à administração das contas que estavam na titularidade de DD, no período compreendido entre 20/11/2014 a 06/12/2020, devendo ser, oportunamente, notificada para prestar essas contas nos termos previstos no n.º 5 do art.º 942.º do CPC”. 3. Desta vez é a ré quem, inconformada, vem interpor o presente recurso de revista, sustentando em conclusão: “1- Por sentença proferida no Tribunal de 1ª instância (Juízo de Competência Genérica de ...), a recorrente foi absolvida do pedido de prestação de contas relativamente à herança de CC desde a sua morte (.../.../2014) e a morte da sua viúva DD, ocorrida em .../.../2020, mas reconhecido o dever de as prestar contas da administração do património de ambos após 7/12/2020; 2- Inconformada com esta decisão, a Autora veio interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, arguindo a nulidade da sentença com base no artigo 615º, 1 al. d), consubstanciada na falta de pronúncia sobre factos alegados na petição, falta de caracterização jurídica da relação estabelecida entre DD e a Ré, AA e contradição entre a prova produzida e a decisão; 3- O Tribunal da Relação a quo, considerou não se verificar nenhum dos vícios apontados no recurso e respetivas alegações, não obstante, 4- Entendendo que pretendeu a recorrente arguir erro de julgamento, ou erro na apreciação da prova, veio alterar a decisão, reconhecendo e determinando que a Ré está a obrigada a prestar contas desde o falecimento de CC; 5- A recorrente entende que o Acórdão recorrido, para além de uma verdadeira “decisão-surpresa”, ultrapassou os limites do recurso definidos nas alegações e mais especificamente nas conclusões; 6- As conclusões formuladas nas Alegações de recurso delimitam o seu objecto e âmbito de apreciação, verificando-se que a apelante pretendeu de forma clara e expressa limitar o seu recurso à apreciação da nulidade da sentença da 1ª instância, prevista na alínea d) do artigo 615º do CPC, e nada mais; 7- A Ré, não respondeu ao recurso, por entender que nenhuma das nulidades apontadas se verificava; 8- Apesar de se reconhecer no Acórdão recorrido que as conclusões limitam o poder cognitivo do recurso e decidir pela inexistência dos vícios apontados pela recorrente, surpreendentemente e ultrapassando quer as alegações, quer as conclusões, acaba por se apreciar o recurso à luz do “erro de julgamento”, nunca invocado pela recorrente, mesmo nos fundamentos do recurso; 9- Mesmo que se entenda que o poder do julgador não está vinculado à matéria de direito, ou à qualificação jurídica invocada pelas partes, o Tribunal da Relação ultrapassou em muito essa prerrogativa substituindo-se materialmente à Autora/apelante no seu ónus de alegação e de concluir expressamente o que queria ver apreciado, 10- Ao alterar oficiosamente o objecto do recurso, substituindo-se à parte, o Tribunal a quo incorreu na violação do princípio do dispositivo e do princípio do processo equitativo, razão pela qual o Acórdão é nulo, nos termos do artigo 5º, 1, artigo 639º e artigo 615º nº 1, al. d) todos do CPC, nulidade que se invoca para os devidos efeitos legais; 11- Mas ainda que se entendesse que não se verifica a nulidade supra alegada, o que não se aceita, a verdade é que o Acórdão continuaria a ser nulo por consubstanciar uma decisão-surpresa, violadora do princípio do contraditório; 12- Nem nas alegações, nem nas conclusões se abordou a existência de erro de julgamento, ultrapassando-se mais uma vez o corolário do principio da liberdade de julgamento em matéria de direito sem que se tenha dado cumprimento ao princípio do contraditório consagrado no nº 3 do artigo 3º do CPC; 13- O Tribunal a quo decidiu com base num fundamento jurídico que não foi previamente invocado e sequer, sopesado pelas partes, que faz com que a fundamentação do Acórdão recorrido constitua uma verdadeira decisão surpresa sobre a qual a ora recorrente não teve oportunidade de se pronunciar, arguindo-se assim a nulidade do Acórdão nos termos do disposto nos artigos 615º, 1 al. d) e 666º, nº 1 e artigo 3º, 3 todos do CPC; 14- Pelo exposto, deve o Acórdão recorrido ser considerado nulo por excesso de pronúncia, por violação do disposto no artigo 3º, 3, art.º 7º, artigo 666º, nº 1 e artigo 615º, 1, al. d) toda do CPC; 15- assim como violador do princípio constitucional do processo equitativo, previsto no artigo 20º, 4, conjugado com o artigo 18º ambos da Constituição da República. Ainda que assim não se considere, o que por mera hipótese se consente; 16- A sentença da 1ª Instância não enferma de qualquer erro de julgamento já perante a matéria de facto dada por provada e não provada, outra não poderia ser a decisão que não a de reconhecer o dever de prestar contas das heranças de CC e DD, só após o decesso desta, quando a recorrente assumiu as funções de cabeça de casal; 17- No âmbito de uma sucessão hereditária o poder de administração da herança, recai sobre o cabeça-de-casal (art.º 2079º do C. Civil), recaindo sobre este o dever de prestar contas (art.º 2093º do C. Civil); 18- No caso dos autos, o cargo de cabeça-de-casal foi legalmente deferido e exercido de facto pela viúva DD não tendo sido alegado ou provado que, apesar de ser a titular do cargo, o tenha deferido na pessoa da recorrente ou que esta o tenha exercido de facto; 19- Caberia à Autora alegar e provar que, não obstante a cabeça-de-casal fosse a viúva, era a recorrente que desempenhava esse cargo, ainda que meramente de facto, o que não se verificou; 20- Pelo que, como decorre dos artigos 2093º e 2079º do Código Civil., independentemente da conduta da recorrente apurada nos autos, o dever de prestação de contas recaía sobre a cabeça-de- casal DD, que sempre exerceu o cargo de forma autónoma pelo menos até Outubro de 2020; sendo esta a responsável por eventuais atos de gestão que incumbiu à sua filha; 21- Também não foi alegado, nem provada a existência de uma relação jurídica de mandato entre a cabeça-de-casal e a sua filha ora recorrente, mas apenas que a conduta desta se cingia a atos de vida corrente da própria cabeça-de-casal e não do património da Herança. Em todo o caso, 22- da prova produzida resulta que, efectivamente, DD estava a par de todos os movimentos bancários feitos pela recorrente, não só os consentindo como até os ordenando; 23- Veja-se que se dá por provado que DD depositou o dinheiro existente aquando da morte de seu marido, em seu nome, com a cláusula de movimentação a favor da filha, ora recorrente, não se tendo dado por provado se este dinheiro foi movimentado e por quem! 24- Ficou também demonstrado que DD era titular de uma conta bancária na Caixa Geral de Depósitos, gerida por si, embora a Ré tivesse um cartão multibanco na sua posse, tendo feito levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD (e não de CC); 25- Dos factos não provados, se retira que a ré NÃO movimentava a conta de DD a seu bel-prazer, nem era a única pessoa com acesso às contas bancárias de seus pais; 26- Pelo que, data maxima venia, a sentença da primeira instância não enferma do vício que lhe é apontado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, ou seja, erro de julgamento, já que da prova testemunhal produzida se apurou que a recorrente agia a mando da mãe DD, a quem fazia os “recados” e prestava contas; 27- Não se aceitando que os actos praticados pela recorrente em vida de sua mãe, lhe confiram a qualidade de administradora do património de seus pais; 28- A solução do Acórdão recorrido, só teria cabimento, no caso de se ter demonstrado que a recorrente era a administradora do património de sua mãe, o que não se verificou, já que o simples ato de fazer compras a pedido da cabeça-de-casal, que se manteve lúcida e autónoma pelo menos até 7 de Outubro de 2020, não confere à recorrente o estatuto de “administradora do património”, tese aliás já defendida por este STJ nomeadamente no Acórdão de 16/11/2023, supra citado. Ou seja, 29- Não se apurou no caso concreto uma relação jurídica substantiva entre a recorrente e sua mãe DD, que obrigue aquela à prestação legal de contas, tal como a define o artigo 941º do CPC 30- Aliás, não tendo sido provado que a Ré era a única pessoa que geria a conta bancária de DD, nem o fazia a “seu bel-prazer”, torna difícil, senão mesmo impossível prestar contas, já que não pode responder pelos atos praticados por outras pessoas, nomeadamente pela cabeça-de-casal, sua mãe; 31- O que significa, com o devido respeito, que o Tribunal da Relação andou mal ao condenar a Recorrente a prestar contas, fundamentando tal decisão num erro na apreciação da prova ou erro de julgamento, pois da matéria de facto provada e não provada se conclui claramente que a Recorrente nunca foi administradora ou gestora do património dos pais, auxiliando a sua mãe na vida corrente a pedido desta e sob a sua orientação; 32- Para além da violação das normas processuais e constitucionais já indicadas, o Acórdão recorrido fez errada apreciação do disposto nos artigos 941º do CPC, porquanto a Ré nunca foi administradora de património alheio”. 4. No Tribunal da Relação de Coimbra foi proferido Acórdão apreciando a arguição de nulidade com o seguinte teor: “Notificada do acórdão proferido em 04/06/2024 que, julgando procedente o recurso de apelação interposto pela Autora, decidiu “...revogar a decisão recorrida na parte em que não reconheceu a obrigação da Ré de prestar contas (à Autora) da administração do património de CC e de DD, no período de 20 de Novembro de 2014 a 6 de Dezembro de 2020, reconhecendo-se e determinando-se que a Ré está obrigada a prestar contas à Autora relativamente à administração das contas que estavam na titularidade de DD, no período compreendido entre 20/11/2014 a 06/12/2020, devendo ser, oportunamente, notificada para prestar essas contas nos termos previstos no n.º 5 do art.º 942.º do CPC”, veio a Ré AA interpor recurso de revista, onde invoca, com fundamento na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, a nulidade do acórdão por violação do princípio do dispositivo e excesso de pronúncia. Importa, portanto, apreciar a referida nulidade, nos termos previstos no art.º 617.º, n.º 1, do CPC (aqui aplicável por força do disposto no art.º 666.º do mesmo diploma). Sustenta a Recorrente, em resumo, que o acórdão recorrido ultrapassou os limites do recurso na medida em que apreciou um erro de julgamento sem que este tivesse sido invocado para fundamentar o recurso. Com efeito – diz – o recurso de apelação fundamentava-se apenas na nulidade que se apontava à sentença recorrida e, ao apreciar o recurso à luz do “erro de julgamento” que nunca havia sido invocado, o acórdão substituiu-se à Apelante no seu ónus de alegação, ultrapassou em muito a mera apreciação da qualificação jurídica, alterou oficiosamente o objecto do recurso em violação do principio do dispositivo e do princípio do processo equitativo e excedeu o âmbito das questões que lhe era permitido apreciar, incorrendo no vício previsto na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC. Mais alega que o acórdão consubstancia uma decisão surpresa violadora do princípio do contraditório, uma vez que as alegações não haviam abordado a existência de “erro na apreciação da prova”, com base no qual o recurso veio a ser julgado procedente, o que fez sem dar às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre uma solução inovadora e não esperada, porque não alegada. Refira-se que, não obstante seja invocada a violação de várias normas e princípios – designadamente o princípio do dispositivo e do contraditório –, o vício imputado ao acórdão proferido nos autos é sempre o mesmo: a nulidade por excesso de pronúncia nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do citado art.º 615.º. Salvo o devido respeito, pensamos não estar configurada a referida nulidade. Segundo o disposto na norma citada, a sentença é nula quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Tal dispositivo é aplicável aos acórdãos proferidos em 2.ª instância nos termos previstos no art.º 666.º. É certo – como diz a Recorrente – que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações e, portanto, é por via delas que se determinam os concretos fundamentos do recurso e, consequentemente, as questões que nele importa apreciar, sem olvidar, no entanto, que, conforme resulta do disposto no n.º 3 do art.º 5.º, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito e, como tal, não está vinculado à qualificação ou tratamento jurídico que o recorrente dá às questões que inclui nas conclusões das suas alegações de recurso. Ora, apesar de ser certo que, em termos literais e formais, a Recorrente no âmbito da apelação apenas invocava a nulidade da sentença proferida em 1.ª instância, não é menos certo – como dissemos e explicámos no acórdão – que, na verdade, o que delas resultava era a invocação de um erro de julgamento que, nessa medida, se considerou incluído no objecto do recurso e foi apreciado. A Autora/Apelante dizia nas conclusões a), b) e c) das suas alegações o seguinte: a) O tribunal não caraterizou a relação jurídica que se estabeleceu entre DD e a Ré, que é uma relação de mandato, havendo igualmente omissão de pronuncia, cominado nos termos da al. d) do 615º do CPC com a nulidade da sentença. b) Havendo uma relação de mandato, a ré é obrigada a prestar contas, al. d) do artigo 1161º do CC. c) O tribunal, apesar de ter declarado como provado que “A ré efetuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD”, conta essa que também é titulada pela Ré e que foi aberta com fundos provenientes de depósitos pertencentes, em parte, à herança de CC, não condenou a ré a prestar contas de tais levantamentos, existindo uma contradição insanável entre a prova produzida e a decisão, pelo que, mais uma vez, a cominação prevista na al. d) do 615º do CPC é a nulidade da sentença. Tendo em conta o teor dessas conclusões, era evidente – pensamos nós – que aquilo que a Apelante estava a invocar, designadamente na conclusão c), era um erro de julgamento, ainda que o tivesse qualificado erradamente como nulidade da sentença, invocando, além do mais, termos que nem sequer se compatibilizavam com qualquer nulidade de sentença, tendo em conta que aquilo que invocava era uma “contradição insanável entre a prova produzida e a decisão” e essa expressão não encaixa em nenhuma das nulidades da sentença. Ao dizer que existia uma “contradição insanável entre a prova produzida e a decisão” porque a sentença recorrida, apesar de ter declarado como provado que “A ré efetuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD”, conta essa que também é titulada pela Ré e que foi aberta com fundos provenientes de depósitos pertencentes, em parte, à herança de CC”, não havia condenado a Ré a prestar contas de tais levantamentos, o que a Ré estava a invocar era um erro de julgamento. Reproduzimos aqui o que, a esse propósito, se disse no acórdão aqui em causa (que é agora objecto de recurso de revista): “O que resulta da alegação da Apelante é que, tendo resultado provado que a Ré efetuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD, e uma vez que essa conta também era titulada pela Ré e havia sido aberta com fundos provenientes de depósitos pertencentes, em parte, à herança de CC, a Ré deveria ter sido condenada a prestar contas desses levantamentos. Mas, o que isso traduz é um erro de julgamento; ou seja, o que a Apelante diz – com a sua argumentação – é que a sentença recorrida errou na apreciação que fez da matéria de facto e nas consequências jurídicas que dela retirou à luz das normas aplicáveis, porque, em face desses factos, deveria ter condenado a Ré a prestar contas”. Entendemos, portanto, em face disso, que não havia razões para recusar a apreciação dessa questão com fundamento em razões meramente formais e que resultavam de um erro técnico das alegações que qualificava (erradamente) a situação descrita como nulidade da sentença. O que estava a ser invocado – ainda que sob a qualificação de nulidade da sentença – era um erro de julgamento que, nessa medida, tinha que ser – como foi – apreciado. Entendemos, portanto, à luz do exposto e ao contrário do que sustenta a Ré (agora Recorrente) que o acórdão não se substitui à Apelante no seu ónus de alegação e não alterou oficiosamente o objecto do recurso em violação do principio do dispositivo e do princípio do processo equitativo. O que se fez no acórdão foi apreciar a concreta questão que havia sido invocada pela Apelante (não obstante a errada subsunção e qualificação jurídica que lhe havia sido dada), sem que se possa dizer, em nosso entender e ao contrário do que diz a Recorrente, que tenha sido ultrapassada em muito a mera apreciação da qualificação jurídica. Pensamos, por outro lado, que, ao contrário do que sustenta a Recorrente, a situação descrita não justificava que se desse às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a questão. Ao contrário do que diz a Recorrente, a decisão proferida não pode ser qualificada como “solução inovadora e não esperada”, já que, como se disse, estava expresso nas conclusões das alegações que a Apelante atribuía um erro à sentença recorrida porque, tendo julgado provados determinados factos, não havia decidido que a Ré estava obrigada a prestar contas e, apesar das deficiências técnicas dessas conclusões, era evidente que, quando aí se alegava existir “contradição insanável entre a prova produzida e a decisão”, o que se pretendia dizer é que, perante a matéria de facto provada, a Ré não podia ter sido absolvida da obrigação de prestar contas, ou seja, tinha que ser condenada (um erro de julgamento, portanto). Nessas circunstâncias, porque a Apelada (agora Recorrente) já tinha tido oportunidade de responder a essas alegações, não se impunha nem se justificava que lhe fosse concedida nova oportunidade. Entendemos, portanto, em face de tudo o exposto, que o acórdão não padece da nulidade invocada”. 5. No Tribunal da Relação de Coimbra foi ainda proferido o seguinte despacho: “Admito o recurso que vem interposto que é de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo. Notifique. Remeta ao STJ”. * Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se: 1.ª) o Acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia; 2.ª) o Acórdão recorrido é nulo por violação do princípio do contraditório; e, subsidiariamente, 3.ª) se existe o erro de julgamento declarado pelo Tribunal recorrido. * II. FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido: 1) CC faleceu no dia ... de ... de 2014, no estado de casado com DD, em regime de comunhão geral de bens, a qual faleceu no dia ... de ... de 2020, pelas 06h00m, no estado de viúva do mesmo; 2) A Ré AA e EE são filhos de CC e de DD; 3) EE faleceu no dia ... de ... de 2010, no estado de divorciado; 4) A Autora BB e FF são filhas de EE; 5) No dia 24/11/2014, quatro dias após o óbito de CC, foi constituída a conta aforro n.º .........68, em nome de DD, com a subscrição de um certificado de aforro da série C em nome desta, com cláusula de movimentação a favor da Ré, no valor de 100936,43€, não existindo valores à data do óbito de DD (a .../.../2020); 6) A conta bancária da qual DD era titular na Caixa Geral de Depósitos sob o n.º .........00, era gerida por si, embora a Ré tivesse o cartão bancário da conta na sua posse; 7) A Ré efectuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD; 8) Foram realizados movimentos bancários, a partir da conta de DD, na cidade de ...; 9) Por documento, datado de 10/12/2014, intitulado “requerimento”, a Ré “requer, nos termos legais: que lhe seja averbado ou emitido novo alvará da sepultura n.º 73, do 2.º talhão do Cemitério ..., com o Alvará datado de 02/12/1986, para seu nome por ser bisneta e herdeira de GG, já falecido, e sua mãe DD, não poder deslocar-se por motivos de saúde”; 10) Em 2018, DD foi institucionalizada, na sequência de uma queda; 11) No dia 7 de Outubro de 2020, DD sofreu um AVC; 12) No dia 7 de Dezembro de 2020, foi realizado um levantamento bancário no valor de 2600 euros, pela Ré, a partir da conta de DD; 13) A partir do dia 7 de Dezembro de 2020 até à atualidade, a Ré passou a gerir o património de CC; E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido: A. Enquanto viveu em sua casa, DD não saía da sua localidade (...); B. DD tinha uma vida espartana, sem luxos, típico de uma idosa; C. A Ré movimentava a conta de DD a seu bel-prazer; D. A Ré era a única pessoa com acesso às contas bancárias dos seus pais. O DIREITO Tanto quanto é possível compreender, a recorrente insurge-se contra a decisão arguindo, desde logo, duas nulidades que, sendo embora de natureza diferente, têm uma causa comum: a alegada “decisão-surpresa” contida no Acórdão recorrido. Segundo a recorrente, tal configuraria simultaneamente excesso de pronúncia e violação da lei processual (cfr., em especial, conclusões 5 a 15). Aprecie-se por partes. 1. Da alegada nulidade por excesso de pronúncia A nulidade por excesso de pronúncia é uma nulidade pertencente ao tipo “nulidades da sentença”, previstas no artigo 615.º, n.º 1, e aplicáveis aos acórdãos por força dos artigos 666.º, n.º 1, e 685.º, todos do CPC. Há, em particular, nulidade por excesso de pronúncia sempre que o Tribunal se pronuncie sobre questões sobre as quais carecesse de poder para se pronunciar [cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC]. Perscrutando os autos e, em particular, o Acórdão recorrido, logo se vê que não foi isso o que aconteceu neste caso. O que sucedeu foi que, interpretando as alegações de apelação, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que a questão do erro de julgamento do Tribunal de 1.ª instância, não obstante não explicitamente ou não correctamente formulada, era suscitada e que, tendo sido suscitada, lhe cumpria apreciar. Leia-se o excerto relevante do Acórdão recorrido: “Ainda que o tenha qualificado (erradamente) como nulidade da sentença, o que está subjacente à alegação da Apelante é a invocação de um erro de julgamento que consideramos incluído no objecto do recurso e que, como tal, se impõe apreciar. Tendo em conta a alegação constante da alínea c) das conclusões das alegações, considera a Apelante que, tendo resultado provado que a Ré efectuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD, e uma vez que essa conta também era titulada pela Ré e havia sido aberta com fundos provenientes de depósitos pertencentes, em parte, à herança de CC, a Ré deveria ter sido condenada a prestar contas desses levantamentos. Está em causa, portanto, o segmento da decisão que não reconheceu a obrigação da Ré de prestar contas à Autora da administração do património de CC e de DD, no período de ... de ... de 2014 (data do óbito de CC) a ... de ... de 2020 (dia anterior ao óbito de DD) e que, em consequência, a absolveu desse pedido. Importa, portanto, saber se a Ré está obrigada a prestar contas com referência a esse período (sendo certo que tal obrigação foi reconhecida em relação ao período posterior ao óbito de DD)”. O Tribunal recorrido procedeu, pois, simplesmente, à requalificação de uma das questões suscitadas no recurso, o que está dentro dos seus poderes ou, aliás, à luz dos artigos 5.º, n.º 3, e 6.º do CPC (dever de gestão processual), dos seus poderes-deveres. Não está, de todo, a tomar conhecimento de uma questão de que não podia tomar conhecimento; está, ao invés, a conhecer de uma questão de que podia – e devia – tomar conhecimento, questão esta que resultou da sua (legítima) interpretação das alegações de apelação. Não se confirma, em suma, a nulidade por excesso de pronúncia arguida pela recorrente. 2. Da alegada nulidade por violação de lei processual A recorrente alega ainda que a “decisão-surpresa” é causa de nulidade por violação do princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, o que configura uma nulidade processual. Pese embora a controvérsia existente na doutrina e na jurisprudência1, este parece ser o enquadramento jurídico (mais) adequado às situações do tipo da dos autos. Explica-se bem este entendimento no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29.02.2024 (Proc. 19406/19.5T8LSB.L1.S1): “A decisão (sentença ou despacho) que conhece de questões de que não podia tomar conhecimento viola – e viola directamente - o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, na parte em que proíbe ao juiz conhecer de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes e que a lei lhe não permita conhecer, ao passo que a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é tomada com violação do n.º 3 do artigo 3.ºdo CPC. E diz-se que ela é tomada com violação deste preceito por que tal violação ocorreu em momento anterior à prolação do despacho. Com efeito, não era no momento da decisão que devia ser observado o princípio do contraditório, era antes de ela ser proferida que o juiz tinha o dever de dar à parte a possibilidade de se pronunciar sobre a questão que iria decidir. Logo, quando o tribunal profere uma decisão sem observância do contraditório, como prescreve o n.º 3 do artigo 3.º do CPC, não está a conhecer de uma questão de que não pode tomar conhecimento. O caso dos autos não oferece dúvidas. Decorre do regime da deserção dos recursos previsto no artigo 281.º do CPC, designadamente dos n.ºs 2, 3e 4, que o juiz da 1.ª instância tinha o poder de conhecer da questão da deserção do recurso. Quando decide sem cumprimento do princípio do contraditório, o que o tribunal está a fazer é a omitir, no processo de decisão, uma formalidade que a lei prescreve. Socorrendo-nos das palavras de Manual de Andrade, estamos perante um desvio do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei [Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 176]. Visto que não há norma especial que sancione a omissão desta formalidade, aplica-se-lhe a regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispões que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão”. Visivelmente, a nulidade processual, regulada genericamente no artigo 195.º do CPC, é uma nulidade de natureza diferente das chamadas “nulidades da sentença”, o que tem consequências, desde logo, ao nível do respectivo regime: o meio processual próprio para reagir é a reclamação perante o tribunal onde foi cometida a nulidade arguida (cfr. artigos 196.º, 2.ª parte, e 197.º, n.º 1, ambos do CPC). Sucede que a recorrente não reclamou para a Conferência do Tribunal da Relação, optando por invocar a nulidade no recurso de revista. Perante isto, poder-se-ia equacionar a eventual convolação do recurso de revista, nesta parte, em reclamação para a Conferência do Tribunal recorrido, posto que se verificassem os respectivos requisitos, designadamente de prazo,. A verdade é que a Conferência do Tribunal recorrido já se pronunciou sobre a questão da violação do princípio do contraditório, ao dizer no Acórdão em que apreciou a nulidade por excesso de pronúncia: “Pensamos, por outro lado, que, ao contrário do que sustenta a Recorrente, a situação descrita não justificava que se desse às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a questão. Ao contrário do que diz a Recorrente, a decisão proferida não pode ser qualificada como “solução inovadora e não esperada”, já que, como se disse, estava expresso nas conclusões das alegações que a Apelante atribuía um erro à sentença recorrida porque, tendo julgado provados determinados factos, não havia decidido que a Ré estava obrigada a prestar contas e, apesar das deficiências técnicas dessas conclusões, era evidente que, quando aí se alegava existir “contradição insanável entre a prova produzida e a decisão”, o que se pretendia dizer é que, perante a matéria de facto provada, a Ré não podia ter sido absolvida da obrigação de prestar contas, ou seja, tinha que ser condenada (um erro de julgamento, portanto). Nessas circunstâncias, porque a Apelada (agora Recorrente) já tinha tido oportunidade de responder a essas alegações, não se impunha nem se justificava que lhe fosse concedida nova oportunidade”. Em face disto, aquela convolação seria um acto inútil e, enquanto tal, legalmente proibido (cfr. artigo 130.º do CPC). * Verificado que não existe nulidade do Acórdão, cumpre analisar a questão (subsidiária) respeitante ao erro de julgamento reconhecido / declarado pelo Tribunal a quo (cfr. conclusões 16 a 32). 3. Da obrigação da ré de prestar contas relativamente ao período entre 20.11.2014 e 6.12.2020 A decisão recorrida quanto a isto foi a seguinte: “Não existindo nenhuma disposição legal que, de forma genérica, determine quando é que uma pessoa tem a obrigação de prestar contas a outrem – existindo apenas diversas normas que, de forma casuística, estabelecem essa obrigação – poder-se-á, no entanto, estabelecer como princípio geral (de algum modo consignado no art.º 941.º do CPC) que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. Ora, resultando provado que a Ré movimentava efectivamente a conta aforro e a conta na CGD de que era titular DD (contas que, ao que tudo indica, continham fundos pertencentes à herança aberta por óbito de CC), o que fazia mediante autorização que por esta lhe havia sido concedida (fosse mediante cláusula de movimentação a seu favor ou fosse mediante a entrega do respectivo cartão bancário e respectivos códigos), pensamos ser de concluir que, estava, de facto, a administrar bens e interesses alheios e, portanto, estava obrigada a prestar contas dessa administração/movimentação à titular da conta, dando conta dos movimentos/levantamentos efectuados e da utilização dada aos valores monetários levantados. Não compartilhamos, portanto, das dúvidas e da posição assumida pela decisão recorrida quando fala em ausência de prova no que se refere à gestão pela Ré das contas de DD, quando diz que não é possível afirmar que não tenha sido DD a realizar os movimentos bancários ou que não tivesse dado ordens para o efeito, já que resultou provado que esta geria a sua conta bancária, pese embora o auxílio que dispunha para o efeito (facto provado 6). O que sabemos – e temos como certo (na medida em que resultou provado) – é que a Ré movimentou, com a autorização da sua mãe, uma conta que não lhe pertencia (estava na titularidade da mãe), dela fazendo levantamentos e transferências, e isso basta, a nosso ver, para concluir que a Ré estava, de facto, a administrar essa conta (alheia) e que, como tal, estava obrigada a prestar contas à titular da conta que a encarregou e autorizou a fazer essa gestão/administração. Refira-se que, ao contrário do que resulta da contestação da Ré, a sua obrigação de prestar contas não assenta no exercício de funções de cabeça de casal relativamente à herança aberta por óbito de CC (tendo em conta que não temos notícia de que tais funções tenham sido exercidas pela Ré), mas sim no acordo estabelecido entre a Ré e a sua mãe (DD) – e na subsequente relação que entre elas se estabeleceu – por via do qual esta (em seu nome pessoal e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu marido) autorizou a Ré a movimentar as contas (que estavam na sua titularidade), encarregando-se de proceder a levantamentos e pagamentos com os valores aí existentes. E porque assim é, era à sua mãe – e não aos herdeiros do referido EE – que a Ré estava obrigada a prestar contas, sem prejuízo – como veremos – de as dever prestar aos herdeiros por não ter sido alegado e provado que as tenhas prestado à mãe em vida desta. Estando a Ré obrigada – como se concluiu – a prestar contas à sua mãe, sobre ela recaía o ónus de provar que havia cumprido essa obrigação, dando conta à mãe (em vida desta, naturalmente) dos movimentos/levantamentos efectuados e prestando-lhe toda a informação relevante no que toca, designadamente, à utilização dada aos valores monetários levantados. Não tendo sido alegado e provado que a Ré tivesse cumprido essa obrigação em vida da sua mãe, impor-se-á concluir que o direito de exigir a prestação de contas se transferiu para os respectivos herdeiros, uma vez que está em causa uma relação jurídica de natureza patrimonial que, como tal e conforme se diz no Acórdão da Relação do Porto de 23/01/2023, “...pode ser objeto de sucessão, transmitindo-se, enquanto obrigação, aos herdeiros do mandatário, e, enquanto direito, aos herdeiros do mandante - artº 2024º, do CC”. Importa, portanto, em face do exposto, revogar a decisão recorrida na parte em que não reconheceu a obrigação da Ré de prestar contas (à Autora) da administração do património de CC e de DD, no período de 20 de Novembro de 2014 a 6 de Dezembro de 2020, reconhecendo-se e determinando-se que a Ré está obrigada a prestar contas à Autora relativamente à administração das contas que estavam na titularidade de DD no período compreendido entre 20/11/2014 a 06/12/2020”. A recorrente insurge-se contra esta decisão alegando, no essencial, que a autora / ora recorrida não provou que a ré / ora recorrente fosse, de facto ou de direito, a administradora dos bens da sua mãe (cfr., em particular, conclusões 17 a 20 e 21 a 25, respectivamente), pelo que não estava obrigada à prestação de contas. Invoca, fundamentalmente, violação do disposto no artigo 941.º do CPC (cfr., em especial, conclusão 32). Dispõe-se no artigo 941.º do CPC: “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”. Como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, em comentário à norma, “[e]m termos de direito substantivo, a obrigação de prestar contas decorre de uma obrigação de carácter mais geral – a obrigação de informação –, consagrada no art. 573.º do CC (…). Inexistindo norma legal que genericamente determine quando é que alguém tem de prestar contas, o art. 941.º pressupõe a existência de normas de direito substantivo que imponham tal obrigação. O direito em causa pode ser de natureza obrigacional, real, familiar ou sucessória. Incumbe àquele que se arroga o direito o ónus da prova dos factos que conduzem à aplicação da norma jurídica que serve de fundamento à sua pretensão (arts. 342.º, n.º 1 e 573.º do CC). Em termos gerais, assume-se que quem administra bens ou interesses, total ou parcialmente, alheios, está obrigado a prestar contas ao titular ou ao contitular destes bens ou interesses”2. A mesma posição é defendida por Rui Pinto, que afirma que “[a] obrigação de prestação de contas é uma obrigação de informação, nos termos do artigo 573.º CC (…), ‘por quem’, nos termos de lei ou negócio jurídico, ‘administra bens alheios’, i.e., ‘bens que não lhe pertencem, ou não lhe pertencem por inteiro. Para esse efeito, não relevam ‘a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas’ (…) – podem ser actos de administrador de facto (…) – nem a existência e a natureza do negócio de que resultam esses poderes, nem o fim e o teor desses poderes (…). O que basta para justificar a prestação de contas são concretos actos de administração com expressão patrimonial (…)”3. Em face das alegações da recorrente, é conveniente esclarecer que, como decorre da doutrina acima indicada, a obrigação de prestação contas não impende exclusivamente sobre quem é investido na posição de cabeça-de-casal ou sequer sobre quem ocupa informalmente essa posição; abrange quaisquer sujeitos que desempenhem, de facto ou de direito (por outro título), as funções de administrador de bens ou interesses de outrem. Sucede que, examinando a factualidade provada, não é possível afirmar, com segurança, que, no período que decorreu desde a morte de CC, pai da ré e avô da autora (........2014), até à morte de DD, mãe da ré e avó da autora (........2020), a ré exerceu poderes de administração de bens alheios, nomeadamente através da movimentação das contas. É verdade que os factos provados 5 e 6 permitem dizer que, durante o período em causa, a ré tinha o poder de movimentar o certificado de aforro subscrito por DD, existindo uma cláusula de movimentação a seu favor, e o poder de movimentar a conta bancária de que era titular DD, estando na sua posse o respectivo cartão bancário (cfr. facto provado 6). Mas isso não é suficiente para concluir que tais poderes foram exercidos e de forma a configurar administração de bens alheios. E quanto aos levantamentos e transferências feitos pela ré a partir da conta bancária de DD (cfr. facto 7), não é certo, desde logo, que tenham sido feitos durante o período “crítico”. São, em contrapartida, relevantes os factos não provados C e D, dos quais se retira que não ficou demonstrado que a ré movimentava livremente a conta de DD e que a era a única pessoa com acesso às contas bancárias. Em síntese: como diz José Alberto dos Reis, “[p]ode formular-se este princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses”4. No caso em apreço, uma vez que a titular dos bens em causa já não está viva, o poder de exigir a prestação de contas (de natureza patrimonial, logo susceptível de transmissão), a existir, ter-se-ia transferido para os seus sucessores, passando a ser eles os beneficiários da obrigação. O problema é que a autora não provou, cabendo-lhe o ónus de provar (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC), que a ré tivesse administrado aqueles bens e, assim sendo, falta o pressuposto essencial da obrigação de prestação de contas. * III. DECISÃO Pelo exposto, concede-se provimento à revista, revogando-se o Acórdão recorrido e repristinando-se a decisão do Tribunal de 1.ª instância, na parte em que não reconhece a obrigação da ré de prestar contas da administração do património de CC e de DD à autora, no período de 20 de novembro de 2014 a 6 de dezembro de 2020, absolvendo-a, por conseguinte, de tal pedido. * Custas pela recorrida. * Lisboa, 12 de Dezembro de 2024 Catarina Serra (relatora) Maria da Graça Trigo Ana Paula Lobo ________
1. Segundo alguns autores, a “decisão-surpresa” é causa de nulidade da sentença por excesso de pronúncia. Veja-se, por exemplo, Teixeira de Sousa [CPC online (versão de 2022.12), CIDP, p. 4 (https://blogippc.blogspot.com/2023/01/cpc-online-14.html)], que diz: “[s]e o juiz conhecer de uma matéria de facto ou de direito alegada por uma das partes sem previamente ter sido concedida à parte contrária a possibilidade de exercer o contraditório, a decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º), porque o juiz decide essa questão de facto ou de direito quando não estão reunidas as condições para se poder pronunciar sobre ela”. 2. Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra, Almedina, 2020, p. 388. 3. Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 832-833. 4. Cfr. José Alberto dos Reis, Processos Especiais, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1982 (reimpressão), p. 303. |